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CASTRO, Eduardo Viveiros de Posfacio de Arqueologia da violencia

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Posfácio

O intempestivo, ainda
Os selvagens querem a multiplicação do múltiplo.
P. Clastres
Reaprendendo a ler Clastres1
Arqueologia da violência, publicado originalmente em 180 sob o título 
Pesquisas de antropologia política, compreende textos escritos, em sua 
maioria, pouco antes da morte do autor, em 1. Ele forma um par na-
tural com a coletânea publicada em 14, A sociedade contra o Estado. Se 
esta última possui uma maior unidade interna, e contém mais artigos ba-
seados em experiência etnográfica direta, a presente coletânea documenta 
a fase intensamente criativa em que se achava Pierre Clastres quando do 
acidente em que perdeu a vida, aos 43 anos, em uma estrada das Céven-
nes, no Maciço central francês. Os trabalhos aqui reunidos compõem, 
assim, um livro de transição, que projeta uma obra inacabada; transição 
e obra que cabe agora a seus leitores – especialmente, é claro, aos etnó-
logos americanistas – completar e prolongar o melhor que soubermos.
Entre vários textos notáveis deste Arqueologia da violência, desta-
cam-se, sem sombra de dúvida, os dois capítulos finais: o ensaio que dá 
1. Este ensaio foi originalmente publicado como introdução à segunda edição em inglês 
de Archeology of Violence, dada à luz em 010 pela editora Semiotext(e), na Semiotext(e) 
Foreign Agent Series. Agradeço a Sylvère Lotringer não só o convite a escrevê-lo, como o 
entusiasmo generoso com que acolheu a proposta de tê-lo republicado em português. Entre 
outras diferenças, o texto ora apresentado se estende por algumas páginas a mais que a 
versão original. Meu objetivo continua a ser apenas o de chamar a atenção para a atualidade 
da obra de Clastres do ponto de vista de sua significação filosófica e política, isto é, para seu 
interesse geral, no melhor sentido da palavra. Por isso, as considerações feitas na longa seção 
final do ensaio, sobre a relação entre essa obra e os desenvolvimentos recentes da etnologia 
americanista, têm um valor meramente sinóptico.
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nome ao livro nesta edição e o artigo subsequente, o último que Clastres 
publicou em vida. Eles imprimem uma inflexão decisiva ao conceito que 
tornou seu autor célebre, a “sociedade-contra-o-Estado”. Retomando o 
problema clássico das relações entre a violência e a constituição do corpo 
político soberano, Clastres propõe nesses artigos uma relação funcional 
positiva entre a “guerra” (melhor dizendo, o estado metaestável de hos-
tilidade virtual entre comunidades locais relativamente autônomas) e a 
intencionalidade coletiva que define ou constitui as chamadas sociedades 
primitivas – o espírito de suas leis, para falarmos como Montesquieu.2
* * *
A morte de Pierre Clastres foi a segunda perda precoce sofrida pela 
geração de antropólogos franceses formada na passagem dos anos 50 
para os 60, um período de grande fermentação intelectual, na França 
como em outras partes do mundo, quando se lançaram as bases daquela 
brusca virada na sensibilidade político-cultural do Ocidente que veio a 
marcar os anos 60-0 com uma qualidade única – talvez as palavras “es-
perança” e “alegria” sejam, ou fossem, as mais adequadas para defini-la. 
A neutralização dessa ruptura foi um dos objetivos principais da violenta 
contrarrevolução da direita que tomou de assalto o planeta desde então, 
imprimindo sua fisionomia ao mesmo tempo arrogante e ansiosa, brutal 
e desencantada, à história mundial das décadas seguintes. E assim vem 
sendo até hoje, mesmo que as coisas pareçam estar começando a querer 
mudar (aqui, toda cautela é pouca).
O primeiro da geração a partir foi Lucien Sebag, morto pelas pró-
prias mãos em 165, para a imensa consternação de seus amigos (entre 
os quais Félix Guattari), seu professor Claude Lévi-Strauss e seu ana-
lista Jacques Lacan. Os doze anos que separam a morte de Sebag e a de 
Clastres – nascidos no mesmo ano (134), ambos filósofos de formação, 
rompidos com o Partido Comunista após 156, convertidos à antropologia 
2. L’Esprit des lois sauvages (Abensour [org.] 18) é o título de uma coleção de ensaios 
comemorativos do décimo aniversário da morte de Clastres.
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pela poderosa influência intelectual de Lévi-Strauss (que então se aproxi-
mava do zênite) – talvez expliquem algo da diferença que suas respectivas 
obras mantêm com o estruturalismo. Sebag, originário da vibrante comu-
nidade francófona de judeus tunisinos, era muito próximo do fundador da 
antropologia estrutural, que o tinha como seu melhor discípulo e provável 
sucessor. O estudo de Sebag (publicado postumamente em 11) sobre 
a mitologia cosmogônica dos Pueblo foi um dos materiais preparatórios 
para a vasta empresa de análise da mitologia ameríndia por Lévi-Strauss. 
O jovem etnólogo mantinha também um envolvimento intenso com a 
psicanálise. Um de seus raros trabalhos publicados em vida analisava os 
sonhos de Baipurangi, uma jovem do povo Aché-Guayaki, junto ao qual 
Sebag chegou a compartilhar com Clastres alguns períodos no campo,3 
antes de se fixar entre os Ayoreo do Chaco, para uma pesquisa etnográ-
fica que sua morte deixou por terminar. Além disso, Sebag foi um dos 
primeiros pensadores de sua geração a tentar aprofundar o significado 
filosófico e político do estruturalismo, com Marxisme et structuralisme 
(Sebag 164), um livro sofisticado teoricamente, que poderá voltar a sus-
citar interesse à medida que a dinâmica intelectual do período começa a 
ser reavaliada em profundidade.4
Clastres tinha em comum com seu amigo a ambição de reler a filo-
sofia social moderna à luz dos ensinamentos da antropologia de Lévi-
Strauss; mas as semelhanças entre as respectivas inclinações paravam 
mais ou menos aí. A Sebag atraíam sobretudo o mito e o sonho, os dis-
cursos da fabulação humana; já os temas preferenciais de seu colega eram 
o rito e o poder, os mecanismos de instituição do social, de abordagem 
à primeira vista mais difícil pela antropologia estrutural:
Não sou estruturalista, mas não tenho nada contra o estruturalismo; é 
que me ocupo, como etnólogo, de campos que, em minha opinião, não 
são do domínio de uma análise estrutural. (Clastres [15 ] 003: 35 ) 
3. Dessa convivência resultou um artigo conjunto sobre alguns costumes funerários dos 
Aché (Clastres & Sebag 163).
4. Para um balanço da obra de Lucien Sebag, ver D’Onofrio (org.) 005.
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O autor de Arqueologia da violência se dedicou desde cedo a articular uma 
respeitosa mas implacável crítica interna ao estruturalismo, recusando-se 
a aderir à doxa positivista que começava a se acumular em volta da obra 
de Lévi-Strauss, e que a ia transformando, nas mãos de seus epígonos, em 
“uma espécie de Juízo Final da Razão, capaz de neutralizar todas as ambigui-
dades da História e do Pensamento” (Prado Jr. 18; Prefácio supra, p. 8). 
Ao mesmo tempo, Clastres manifestou durante toda a sua carreira uma 
hostilidade ainda mais implacável – e esta não exatamente respeitosa (ver 
o cap. 10 deste livro) – ao que chamava de “etnomarxismo” francês, isto é, 
os antropólogos que se empenhavam em enquadrar na dogmática do ma-
terialismo histórico as “formações sociais pré-capitalistas”, em particular 
as sociedades de linhagem da África do Oeste.5
Assim, se Sebag escreveu um livro real intitulado Marxisme et struc-
turalisme, Clastres deixou-nos, com A sociedade contra o Estado e Arqueo-
logia da violência, o material para um livro possível que caberia intitular 
Nem marxismo, nem estruturalismo. O autor via no marxismo e no estrutu-
ralismo uma mesma falha fundamental, oriunda do privilégio concedido 
por ambos à racionalidade econômica: a desvalorização da intencionali-
dade política, que seria como que o verdadeiro princípio vital das cole-
tividades humanas. A fundamentação metafísica do socius na produção, 
5.Os etnomarxistas franceses eram, em sua grande maioria, africanistas de formação (além 
de bastante antipáticos a Lévi-Strauss). Isso é tão pouco acidental quanto a relação entre 
o etnoanarquismo de Clastres e sua especialização nas sociedades das Terras Baixas da 
América do Sul. As diferentes áreas etnogeográficas do mundo – seus diversos estilos ci-
vilizacionais – possuem como que “valências” sociocosmológicas que as tornam mais ou 
menos afins a determinadas abordagens teóricas, sem se tornarem por isso meras hipóstases 
dessas teorias. Quando muito, é antes o contrário o que se passa, uma teoria antropológica 
geral sendo, frequentemente, pouco mais que uma redescrição abstrata e (re)estilizada de 
determinadas “teorias nativas”, isto é, de cosmopráticas histórica e culturalmente situadas.
Observe-se, de passagem, que o fato de a sucessora designada (na prática) por Lévi-Strauss 
para sua posição no Collège de France ter sido Françoise Héritier, uma africanista próxima 
dos “etnomarxistas” – em vez de, especulemos, o Lucien Sebag de um outro mundo possí-
vel –, explica em parte a trajetória algo apagada do pensamento levistraussiano dentro da 
antropologia francesa nas últimas duas décadas do século passado. A declarada lealdade 
teórica de Héritier a Lévi-Strauss nunca chegou a compensar sua invencível incompreensão 
do estruturalismo.
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com o marxismo, e na troca, com o estruturalismo, incapacitaria ambos a 
pensar o que havia de característico, ou melhor, de singular na socialidade 
primitiva, e que se localizava forçosamente nesse plano da intencionali-
dade política. Clastres resumiu tal singularidade na fórmula “sociedade-
contra-o-Estado”, expressão que designa uma forma de vida baseada na 
despotencialização simbólica e prática da representação coletiva, na ini-
bição estrutural da tendência perene à conversão da autoridade, riqueza 
e prestígio em coerção, desigualdade e exploração, e em uma gestão das 
alianças interlocais guiada pelo imperativo estratégico de autonomia po-
lítica do grupo local, que se reflete igualmente no plano do ethos pessoal, 
o indivíduo e o grupo primitivos sendo ambos feitos da mesma matéria 
múltipla e intratável, do mesmo espírito revesso e “inconstante”.6
* * *
O antimarxismo de Clastres era, pois, diverso de seu não estruturalismo. 
No materialismo histórico, ele não conseguia ver mais que um elogio 
etno cêntrico da produção como verdade da sociedade e do trabalho 
como essência da condição humana. Esse evolucionismo economicista 
se defrontaria, nas sociedades primitivas, com seu limite epistemológico 
abso luto, pois estas constituem “máquinas antiprodução” que contradi-
zem todos os preceitos científico-metafísicos da economia política.7 Em 
lugar da economia política do controle – controle do trabalho produtivo 
dos jovens, pelos velhos; controle do trabalho reprodutivo das mulheres, 
pelos homens – que os etnomarxistas, na esteira de Engels, se compra-
ziam em ver na raiz das sociedades rotuladas, com impecável lógica mí-
tica, de “pré-capitalistas”, Clastres discernia, nas sociedades “primitivas” 
6. Viveiros de Castro [13a] 00.
7. Uma leitura da genial dissertação de Oswald de Andrade ([150] 10), “A crise da filo-
sofia messiânica”, em paralelo com uma leitura dos artigos de Clastres constitui exercício 
do mais alto interesse para se pensar (n)o presente. Por essa conexão (“errática” mas nada 
aleatória) Oswald-Clastres passa uma corrente conceitual de imensa energia – antropoló-
gica, lúdica, revolucionária – capaz de tirar do sério, e dos eixos, muito do que precisa ur-
gentemente sê-lo.
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(adjetivo que remete a um outro mitema filosófico ocidental), um duplo 
contracontrole, ou metacontrole: o controle político da economia, por um 
lado – regime de suficiência subprodutiva, bloqueio da acumulação pela 
redistribuição forçada ou a dilapidação ritual –, e o controle social do 
político, por outro lado – separação entre chefia e poder, submissão do 
guerreiro ao imperativo suicida da glória. A sociedade primitiva como 
sistema imunológico: a mobilização guerreira a serviço da integridade 
sociológica, o controle da tentação do controle. Arqueologia da violência 
é um Contra Hobbes (Abensour 18b) – a guerra continua ali a se opor 
ao Estado, mas com essa diferença crucial que a socialidade está do lado 
da guerra, não do soberano, o qual aparece ao contrário como quase-na-
tureza (Richir 18) –, mas é talvez mais ainda um Anti-Engels, um ma-
nifesto contra o continuísmo necessitarista da História (Prado Jr., supra, 
p. 16).8 Clastres é o pensador da ruptura, do acidente, da contingência 
radical, do evento como “mau encontro”. Sob esse aspecto, ele se mostra 
profundamente levistraussiano.
Com efeito, é possível tomar a obra de Clastres como representando 
antes uma radicalização que uma rejeição do estruturalismo. É nela que 
um conceito fundamental de Lévi-Strauss, o de “sociedade fria” – forma 
da vida coletiva que, diferentemente daquela praticada pelas sociedades 
ditas “históricas”, tem a propriedade (ativa e positiva) de não refletir nem 
interiorizar sua historicidade empírica como condição transcendental –, 
encontra uma expressão determinada no plano da antropologia política. 
A sociedade primitiva de Clastres é a sociedade fria de Lévi-Strauss; a 
primeira é contra o Estado pelas mesmas razões que fazem a segunda ser 
contra a História. E em ambos os casos aquilo que elas procuram conju-
rar ameaça constantemente invadi-las, do exterior, como irromper de seu 
próprio interior; este foi um problema que Clastres e, a seu modo, Lévi-
8. E, já que lembramos de Oswald uma vez, lembremos outra: “A ruptura histórica com o 
mundo matriarcal produziu-se quando o homem deixou de devorar o homem para fazê-lo 
seu escravo. Friedrich Engels assinala o fecundo progresso dialético que isso constitui para 
a humanidade ’’ (Andrade [150] 10: 104).
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Strauss jamais cessaram de se colocar.9 Além disso, se a guerra clastriana 
visa deslocar a troca estruturalista – este é o bordo de ataque do capítulo 
11 do livro –, deve ser sublinhado que não pretende aboli-la. Ao contrá-
rio, o autor reafirma a principialidade da troca enquanto vetor genérico 
de hominização (em sua encarnação prototípica como “proibição do in-
cesto”), incapaz por isso mesmo, entretanto, de dar conta da singulari-
dade dessa forma que Clastres chamou “sociedade primitiva”.
Mas eis que essa forma era, para o autor, o objeto por excelência da 
antropologia ou da etnologia, palavra que às vezes preferia para descre-
ver sua profissão. Para ele, a antropologia, ou etnologia, é “uma ciência 
do homem, mas não de qualquer homem” (Clastres 168: ). O que 
faria dela uma ciência humana diferente das outras: arte das distâncias, 
saber paradoxal, sua vocação é a de tentar um diálogo com aqueles povos 
cujo silenciamento foi uma condição de possibilidade (prática e teórica) 
da civilização que gerou a antropologia. Diálogo, portanto, com os “sel-
vagens” ou “primitivos”, com aqueles coletivos que escaparam, como 
se por uma precária tangente, ao Grande Atrator da Razão e do Estado. 
A relação do projeto de Clastres com o de Lévi-Strauss se torna, a partir 
daí, um tanto mais delicada: se o homem que é objeto dessa ciência não é 
qualquer sorte de homem, é porque a distância requerida não é qualquer 
espécie de distância, uma distância que pudesse ser percorrida dentro de 
um universo politicamente isotrópico. A distância clastriana é, primeiro 
que tudo, uma distância cosmopolítica, e só então epistêmica. 
A antropologia encarna, para Clastres, um projeto de consideração 
do fenômeno humano como definido por uma alteridade intensivamá-
xima, uma dispersão cujos limites são a priori indetermináveis. “[Q]uando 
o espelho não nos devolve nossa própria imagem, isso não prova que não 
haja nada a observar” ([14] 003: 35). Essa constatação seca10 encontra 
9. Parece-me portanto em vão que Claude Lefort (18: 18-0) pretenda não haver relação 
entre os conceitos de Clastres e de Lévi-Strauss; a rejeição crítica que ambos enfrentaram, ex-
pressa em termos praticamente idênticos, é uma prova por assim dizer a contrario dessa afinidade.
10. Feita em “Copérnico e os selvagens”, o cap. 1 de A sociedade contra o Estado. O espelho 
etnológico de Clastres seria então um daqueles raros a seguir o judicioso conselho de Cocteau: 
“Os espelhos deveriam refletir um pouco mais antes de devolver as imagens” (13: 60).
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eco em uma formulação recente de Patrice Maniglier a propósito do que 
este filósofo chama de “a mais alta promessa” da antropologia, a saber, 
a de “nos devolver uma imagem de nós mesmos em que não nos reco-
nheçamos” (005: 3-4).11 O propósito de tal consideração, o espírito 
dessa promessa, não pode ser então o de reduzir a alteridade que baliza 
o percurso interno do conceito de humano, mas sim o de multiplicar as 
suas imagens. Alteridade e multiplicidade definem ao mesmo tempo o 
modo como a antropologia constitui a relação com seu objeto e o modo 
como seu objeto se autoconstitui. “Sociedade primitiva” ou “contra o 
Estado” é o nome que Clastres deu a esse objeto, e ao seu próprio encon-
tro com a multiplicidade. E se o Estado existiu desde sempre, como argu-
mentaram Deleuze & Guattari (180: 445), então a sociedade primitiva 
também existirá para sempre: como exterior imanente do Estado, força 
de antiprodução sempre a ameaçar as forças produtivas, multiplicidade 
não interiorizável pelas grandes máquinas mundiais. “Sociedade primi-
tiva”, em suma, é uma das muitas encarnações conceituais da perene tese 
da esquerda de que um outro mundo é possível: de que há vida fora do 
capitalismo, como há socialidade fora do Estado. Sempre houve, e – é 
para isso que lutamos – continuará havendo.
* * *
“Há em Clastres uma maneira de afirmar que prefiro a todas as precauções 
ditadas pela prudência acadêmica.” Quem o diz é a grande helenista Ni-
cole Loraux (18: 158-5), que nem por isso deixou de contrapor a cer-
tas afirmações de nosso autor, que implicavam polemicamente a Grécia 
antiga, considerações críticas diversas, muitas delas bem fundadas, todas 
elas serenas. Acontece que tal serenidade é coisa assaz rara, quando se 
trata da recepção da obra de Clastres, cuja “maneira de afirmar” é for-
temente polarizadora. Por um lado, ela provoca uma irritação de cômica 
11. O ponto de Maniglier – que se situa por assim dizer no momento seguinte da “reflexão” 
do espelho da nota anterior – é que essa promessa é cumprida pelo estruturalismo, algo de 
que Clastres não poderia, pelo menos no primeiro momento de sua carreira, discordar.
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intensidade entre os zelotes da razão e da ordem, e nos temperamentos re-
acionários em geral. Não é incomum que o anarquismo do autor seja alvo 
de juízos que pertenceriam antes à psicopatologia criminal que à história 
das ideias.12 Mesmo no campo da etnologia sul-americana, onde a influ-
ência de Clastres foi formativa (não confundir com normativa) para toda 
uma geração, assiste-se hoje à retomada de um esforço de nulificação de 
seu trabalho, como parte de um processo de rotinização do carisma – vá 
lá o eufemismo – em pleno curso dentro de alguns nichos disciplinares,13 
e no qual a “prudência” de que fala Loraux parece que vem servindo de 
pretexto para uma empresa de desvitalização metódica do pensamento. 
Não apenas do pensamento de Clastres, mas, o que é bem mais para se la-
mentar, daquele dos povos que ele estudou. A “harmonia em toda parte” 
prevista pelo autor – a captura dos índios pelo regime da semelhança uni-
versal: missionarização, escolarização, onguificação, patrimonialização… 
– ameaça agora o modo de vida indígena também no plano do conceito 
etnológico: etnificação, convivialização, historificação, proprietarização…
Nos espíritos mais jovens – mais generosos e inquietos –, por outro 
lado, a obra de Clastres pode suscitar uma adesão algo “irrefletida” (falá-
vamos há pouco de espelhos) e às vezes um pouco autocomplacente, gra-
ças ao poder de sedução de sua linguagem, de uma concisão e insistência 
quase encantatórias, à enganosa simplicidade de sua argumentação, e à 
paixão autêntica que transpira de praticamente cada página sua. Clastres 
transmite ao leitor a sensação de que este é testemunho de uma experiên-
cia privilegiada; ele o faz compartilhar consigo uma mesma admiração 
pela dignidade existencial daquelas “imagens de nós mesmos” em que 
não nos reconhecemos, e que assim mantêm sua inquietante alteridade, 
isto é, sua autonomia. Tudo isso – aquela sensação, essa admiração, e esta 
autonomia –, é, como se sabe, meio perigoso. Sobretudo no bom sentido.
12. Ver, por exemplo, o diagnóstico de Moyn (004): “[Ó]dio exagerado e monomaníaco ao 
Estado”; “ódio vociferante ao capitalismo”; “desconfiança fanática do Estado”; “obsessão 
paranoica”, e por aí afora. O autor fica a um milímetro de culpar Clastres pelos atentados 
do Unabomber.
13. Essa é uma história que fica para outra vez; dar nome aos bois, aqui, levaria um bom 
pedaço de nosso comentário.
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Autor difícil, então, em sua aparente facilidade. São justamente os 
melhores leitores de Clastres que precisam (re)aprender a lê-lo, em meio 
a tantos esforços para que se o ignore ou esqueça. Precisam permanecer 
atentos às suas virtudes como aos seus defeitos: saber apreciar suas intui-
ções antropológicas fulgurantes e sua sensibilidade como etnógrafo de 
campo (Crônica dos índios Guayaki [1] é uma obra-prima do gênero 
etnográfico); mas também saber resistir à sua peremptoriedade tantas 
vezes excessiva, não desviando pudicamente os olhos diante de suas in-
cômodas hipérboles, suas hesitações, suas impaciências e imprecisões – 
sem por isso deixar de preferi-las de longe à remencionada prudência, 
sempre pomposa, ora e vez melíflua, própria de certa gravitas acadêmica. 
Resistir a Clastres, mas não parar de lê-lo; resistir com Clastres, enfim: 
confrontar seu pensamento no que nele permanece de vivo e perturbador. 
François Zourabichvili faz uma reflexão sobre Gilles Deleuze que me 
parece identicamente pertinente para o caso de Clastres e seus leitores:
A filosofia de Deleuze não é, para mim, nem evidente nem satisfatória 
[satisfaisante]; a razão de meu interesse por ela é bem outra: ela não 
me deixa tranquilo… [U ]ma filosofia só é interessante por seus aspec-
tos desorientadores, ao mesmo tempo estranhos e atraentes. Em caso 
contrário, ela se torna uma doutrina, um sinal de reconhecimento para 
uma comunidade de fiéis. Eis por que não se deve procurar esconder as 
aparentes contradições do filósofo que se admira. É preciso, ao contrá-
rio, partir dessas contradições, e confrontá-las incessantemente; é preciso 
saber ver nelas não aporias definitivas, como faria um refutador, mas o 
signo seguro de uma perspectiva inabitual (cf. Zourabichvili 004, ms.)
* * *
Maurice Luciani, em um necrológio publicado na revista Libre, evocava a 
“indiferença ao espírito do tempo” como uma das características da per-
sonalidade irônica e solitária de Clastres. A apreciação não deixa de ser 
curiosa, visto que o espírito dos tempos que correm tende a descartar seu 
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pensamento justamente por seu caráter anacrônico, “datado”, como se 
diz: romântico, primitivista, exotizante e outras mais daquelas taras que a 
crítica neoliberal e neoconservadora costuma creditar a 168.14 Mas, no-
tem que Luciani escrevia em18, uma década depois do annus horribilis, 
quando já havia então se instalado o silêncio ou o opróbrio que iriam en-
volver a obra de Clastres e de vários outros pensadores contemporâneos. 
Uma releitura de Arqueologia da violência a tantos anos de distância é, as-
sim, uma experiência ao mesmo tempo desorientadora e iluminadora. Se 
ela vale a pena ser feita, é porque algo da época na qual esses textos foram 
escritos, ou melhor, contra a qual foram escritos – e foi nessa medida que 
ajudaram a defini-la –, algo dessa época permanece na nossa, algo dos 
problemas de então continua conosco. Ou talvez não: os problemas mu-
daram radicalmente, dir-se-á. Pois tanto melhor: o que acontece quando 
reintroduzimos em outra época conceitos elaborados em circunstâncias 
muito específicas? Que efeitos eles produzem ao reaparecerem?15
O efeito de anacronismo suscitado pela leitura de Clastres é real. 
Tomem-se os três primeiros capítulos de Arqueologia da violência, por 
exemplo. Falar dos Yanomami como “o sonho de todo etnógrafo”; despe-
jar um sarcasmo furioso contra os missionários evangélicos (e os turistas) 
sem reconhecer “autocriticamente” certa identidade com eles, como hoje 
é de praxe – mudaria a missão, ou mudou o antropólogo? –; manifestar 
sua fascinação por um modo de vida que o autor não hesita em chamar 
de primitivo e qualificar de feliz; deixar-se mesmerizar pela ilusão ime-
diativa (e algo falóculo-cêntrica) que se exprime no elogio entusiasmado 
do depoimento de Elena Valero;16 incorrer no pessimismo sentimental 
14. Some-se a essa crítica “neo-neo” de direita o retorno recente, ali mais para a esquerda 
do espectro intelectual, de um certo universalismo autoritário (Badiou, Zizek) que parece 
ter aprendido muito pouco e esquecido menos ainda. De uns tempos para cá, ele se pôs a 
louvar o cristianismo paulino, com as intenções que se pode imaginar.
15. François Châtelet, citado em Barbosa 004: 53.
16. “Em suma: pela primeira vez, sem dúvida – milagrosamente, pode-se dizer –, uma cul-
tura primitiva se relata ela própria, o Neolítico expõe diretamente seus prestígios, uma 
sociedade indígena descreve-se a si mesma de dentro. Pela primeira vez, podemos entrar 
no ovo sem arrombá-lo, sem quebrar a casca: ocasião bastante rara e que merece ser cele-
brada.” (supra, p. 56)
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do “último círculo”, da “última liberdade”, da “sombra mortal” que se 
estende por sobre “a última sociedade primitiva livre, na América do Sul 
com certeza, e provavelmente também no mundo” – tudo isso tornou-se 
rigorosamente inominável nos salões contemporâneos. A análise breve 
mas devastadora que faz Clastres do projeto da antropologia,17 ao mesmo 
tempo que antecipa muito da reflexividade pós-colonial que iria levar a 
disciplina, nas décadas subsequentes, a uma aguda crise de consciência – 
o que é sempre a pior maneira de suscitar uma descontinuidade criativa 
dentro de um projeto político ou intelectual –, formula-se em termos 
que nos parecem hoje desconfortavelmente aristocráticos, no sentido de 
Nietzsche, com certeza o personagem essencial para uma genealogia da 
obra clastriana. Tal viés aristocrático do “pensamento 68” (faço desse 
apodo uma bandeira) tornou-se quase ininteligível, com a descida do 
espesso nevoeiro de má consciência e boas intenções que hoje envolve a 
apercepção cultural do cidadão neo-ocidental globalizado. E no entanto 
é fácil ver que a profecia que encerra o primeiro capítulo do livro, sobre 
a visita do autor aos Yanomami, estava substancialmente correta:
Eles são os últimos sitiados. Uma sombra mortal se estende por toda 
parte… E depois? Talvez se sintam melhor, uma vez rompido o úl-
timo círculo dessa última liberdade. Talvez se possa dormir sem ser 
despertado uma única vez… E algum dia, ao lado dos chabuno, ha-
verá então perfuradoras de petróleo; no flanco das colinas, escavações 
de minas de diamante; policiais nas estradas, lojas à beira dos rios… 
Harmonia em toda parte. (supra, p. 5)
Esse “algum dia” parece de fato próximo: a mineração já está lá, espa-
lhando morte e desolação; as perfuradoras de petróleo não estão muito 
longe, nem as lojas abarrotadas de gadgets inservíveis; o policiamento 
das vias públicas talvez ainda demore um pouco (vai depender do ren-
dimento do ecoturismo). A grande e inesperada diferença em relação à 
profecia de Clastres, porém, é que agora são os Yanomami eles mesmos 
17. Ver os ensaios “Copérnico e os selvagens”, de 16, e “Entre silence et dialogue” de 168.
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30
que chamaram a si a tarefa de articular uma crítica cosmopolítica da ci-
vilização ocidental, recusando-se a contribuir para a “harmonia em toda 
parte” com o silêncio dos derrotados. A reflexão extensa, minuciosa-
mente impiedosa do xamã-filósofo Davi Kopenawa, em uma colabora-
ção intertradutiva com o antropólogo Bruce Albert construída ao longo 
de mais de trinta anos, materializou-se enfim em um livro, La Chute du 
ciel [A queda do céu], que promete mudar os termos da interlocução an-
tropológica com a Amazônia indígena (Kopenawa & Albert 010). Es-
tamos talvez, com essa obra excepcional a todos os títulos, começando 
realmente a passar “do silêncio ao diálogo”; mesmo que a conversa não 
possa ser senão escura e ominosa, pois vivemos em tempos sombrios. 
A luz, que há, está do lado dos Yanomami, com seus inumeráveis cris-
tais brilhantes e suas legiões resplandecentes de espíritos infinitesimais a 
povoar as visões xamânicas (Viveiros de Castro 00).18
Anacronismo de Clastres, então? Intempestividade, antes (Lima & 
Goldman 003: ). Às vezes tem-se a sensação de que é preciso mesmo 
lê-lo como se ele fosse um pensador pré-socrático cuja obra, dispersa 
em enigmáticos fragmentos, tivesse acabado de ser descoberta. Como 
se ele fosse alguém que falasse não apenas sobre um outro mundo, mas a 
partir de um outro mundo, usando uma linguagem que seria uma ances-
tral da nossa, e que, como não somos mais capazes de entendê-la a nosso 
contento, precisássemos “transcriar”, mudando a distribuição de seus 
aspectos implícitos e explícitos, literalizando o que ela tem de figurativo 
e reciprocamente, procedendo a uma reabstração de seu vocabulário em 
função das mutações de nossa retórica filosófica e política (como tam-
bém de nosso conhecimento); reinventando, em suma, o conteúdo e o 
propósito desse discurso.19
18. O livro de Kopenawa e Albert é uma prova eloquente (há muitas outras) de que a an-
tropologia tem algo de melhor a mostrar a respeito dos Yanomami do que a lista de abomi-
nações de todo tamanho em que ela se viu implicada em sua atuação junto a esse povo, as 
quais vêm dando matéria para farto escândalo; nem todo ele, longe disso, motivado pelas 
mais puras das intenções.
19. A analogia com os pré-socráticos é um pouco mais que uma licença poética. Clastres 
aproximou e contrastou, em mais de uma ocasião, o pensamento dos xamãs guarani com a >
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310310 Posfácio
Da carência à endoconsistência
A questão que se põe, assim, é a de saber até que ponto a noção de so-
ciedade-contra-o-Estado permanece hoje, para usarmos uma conhecida 
fórmula, “boa para pensar” (cf. Sztutman 011: 31), em outras palavras, 
se ela ainda é capaz de suportar um verdadeiro uso analítico, mais que 
uma simples menção histórica. E boa para pensar, acrescentemos, não 
apenas a paisagem sociopolítica da América indígena – região sobre a 
qual o conhecimento empírico aumentou várias ordens de magnitude 
desde a época em que Clastres escrevia – ou, como defende aqui o autor, 
a “sociedade primitiva em geral” (supra, pp. 188, 66), mas boa também 
no sentido de que ela continuaria a ser uma peça-chave dentro da má-
quina desejante da esquerda libertária. Alguma dúvida sobre essa atu-
alidade parece razoável, agora que o Mercado avulta como muito maisameaçador que o Estado, e que o Capitalismo parece ter conseguido, no 
plano do etograma da espécie, o que a Microsoft quase conseguiu em seu 
ramo, a saber, tornar-se o único sistema operacional disponível. Com 
efeito, seu sucesso foi tamanho que, na frase atribuída a Fredric Jame-
son, “hoje em dia parece ser mais fácil pensar o fim do mundo que o fim 
do capitalismo”.20 
Parece, mesmo. Admirável época a nossa, em que o puritanismo 
pruriente, a hipocrisia autoflagelatória e a impotência militante conspiram 
filosofia de Heráclito e Parmênides, reformulando o problema tradicional da “passagem” 
do mito à filosofia – correlativo, para ele, ao problema do surgimento do Estado – a partir 
de uma comparação do destino da oposição do Um e do Múltiplo entre os Guarani e os 
Gregos (Loraux 18; Prado Jr., supra). Clastres não via, portanto, a passagem do mito 
à filosofia como marcando a transição do despotismo teocrático “oriental” à democracia 
racional “protoeuropeia”. Ele opera com um conceito de mito muito diverso daquele utili-
zado pelos helenistas.
20. Apud Fisher 00: , um livro tão despretensioso quanto essencial. Tal facilidade com-
parativa se mostra, por exemplo, nos esforços desesperados (entre os bem-intencionados) 
ou cínicos (entre os bem interessados) de crer ou fazer crer nessa contradição em termos 
que é um “capitalismo sustentável”, quando todos sabemos – ou pelo menos deveríamos 
desconfiar – que existe uma incompatibilidade axiomática entre a economia capitalista e 
qualquer noção de sustentabilidade (Fisher op. cit.: 1).
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para tornar impossível sequer “imaginar uma alternativa coerente” (Fi-
sher 00: ) ao nosso inferno civilizacional – quanto mais pôr mãos à 
obra, buscando algum apoio, e alguma esperança, naqueles povos que 
nunca tiveram nada com isso, nada conosco, e que assim, havendo desde 
sempre sido uma alternativa a nós, podem nos estimular a criarmos al-
ternativas para nós. Alternativas outras que as deles, decerto; mas outras, 
sobretudo, que nossa disfórica sensação de falta de alternativas. “Um 
pouco de possível, senão sufoco.”
Mas está difícil olhar para outros povos, outras “soluções de vida” – 
outras problematizações da vida –, em busca de um possível. Con-
sidere-se, por exemplo, entre os diversos signos atuais de asfixia, a 
síndrome do pânico diante de tudo que possa soar como “othering” (in-
traduzível neologismo, em sua semântica autocontraditória): como se 
toda diferença desembocasse em inevitável opressão, toda alteridade 
preparasse uma intolerável discriminação. Parece que os outros agora 
realmente nos devolvem uma imagem na qual, enfim!, nos reconhece-
mos. Se assim é de fato, então para que ficarmos a perder tempo com 
as cansativas preliminares (no sentido erótico) do exotismo nostálgico, 
não é mesmo? Passemos todos direto ao gozo, medíocre mas garantido, 
do narcisismo depressivo. 
O projeto de Clastres era o de transformar a antropologia “social” 
ou “cultural” em uma antropologia política, no duplo sentido de uma an-
tropologia que tomasse o poder (não a “dominação”, a “exploração” ou 
o “conflito”) como imanente à vida social, e, mais importante, que fosse 
capaz de levar a sério a alteridade radical da experiência dos povos ditos 
primitivos, o que requeria, antes de mais nada, o reconhecimento de sua 
plena capacidade de autoinvenção e de autorreflexão. Para isso, era pre-
ciso primeiro romper a relação teleológica – melhor dizendo, teológica – 
entre a dimensão política da vida coletiva e a forma-Estado, afirmada e 
justificada por virtualmente toda a filosofia ocidental. Deleuze escreveu, 
em uma passagem famosa: “A esquerda precisa que as pessoas pensem, 
e seu papel, esteja ela ou não no poder, é o de descobrir um tipo de pro-
blema que a direita quer a todo custo esconder” (10a: 13). O problema 
que Clastres descobriu, o da coincidência fortuita entre poder e coerção, 
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3131 Posfácio
é um daqueles que a direita precisa esconder. A antropologia só se tor-
nará realmente política, afirma Clastres, a partir do momento em que for 
capaz de mostrar que o Estado e tudo aquilo a que ele deu origem (em 
particular, as classes sociais) são uma contingência histórica, um infor-
túnio acidental antes que um destino essencial, e que às sociedades que 
não o têm não falta nada, senão a vontade de ser tida por ele, a estranha 
vontade negativa de ter uma falta que o necessite. É com o Estado e pelo 
Estado que a necessidade se substitui à suficiência.
A esquerda precisa que as pessoas pensem… Ela precisa então fazer 
as pessoas pensar (ninguém pensa se não for provocado a fazê-lo); mas, 
para isso, é preciso fazê-las levar a sério o pensamento, a começar pelo 
pensamento dos outros – uma vez que todo verdadeiro pensamento já de 
si suscita os poderes da alteridade. O tema do “como levar enfim a sério” 
as escolhas filosóficas, isto é, vitais, expressas nas formações sociais pri-
mitivas retorna insistentemente em Clastres. No capítulo 6 deste livro, 
afirmando que a etnologia das últimas décadas tinha feito muito para li-
berar essas sociedades do olhar exotizante do Ocidente21 o autor escreve: 
Em outras palavras, já não se projeta sobre as sociedades primitivas o 
olhar curioso ou divertido do amador mais ou menos esclarecido, mais 
ou menos humanista; elas são levadas de certo modo a sério. A questão 
é saber até onde vai essa seriedade. (supra, p. 13 )
Até onde, com efeito? Essa é uma questão que a antropologia decidi-
damente não resolveu, talvez porque ela seja a questão que a define; 
resolvê-la equivaleria, para Clastres, a dissolver uma diferença indis-
pensável e irredutível; seria ir mais longe do que pode almejar a disci-
plina.22 Por isso, talvez, o autor associasse sempre o projeto da disciplina 
21. O fato de que sua própria obra seria, mais tarde, acusada de exotizante não deixa de ser 
uma prova de que Clastres tinha muito mais razão do que suspeitava, e ao mesmo tempo 
que ele subestimava seus inimigos presentes e futuros.
22. Vejam-se as melancólicas palavras finais do cap. : “Sendo as coisas o que elas são…” 
(supra, p. 64) – às quais o livro já mencionado de Kopenawa e Albert talvez constitua um 
bem-vindo começo de desmentido.
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à figura do paradoxo. O paradoxo é um operador central na antropolo-
gia de Clastres: há um paradoxo da etnologia (o conhecimento não como 
apropriação mas como despossessão); um paradoxo próprio a cada uma 
das duas grandes formas sociais (na sociedade primitiva, a chefia sem 
poder; na nossa, a servidão voluntária); e um paradoxo da guerra e do 
profetismo (dispositivos de indivisão que se tornam os germes de um 
poder separado). Seria mesmo possível conceber esse primeiro grande 
tipo psicossocial identificado pelo discurso clastriano, o chefe sem poder, 
como uma espécie de “elemento paradoxal” do político, termo supra-
numerário e casa vazia ao mesmo tempo, significante flutuante que não 
significa nada em particular (seu discurso é oco, redundante), existindo 
apenas para se opor à ausência de significação (essa vacuidade institui 
o plenum da sociedade). Isso tornaria o chefe clastriano, naturalmente – 
paradoxalmente? –, uma figura emblemática do universo estruturalista 
(Lévi-Strauss 150; Deleuze 1). 
Seja como for, o fato é que, hoje, o paradoxo se generalizou; não 
são mais apenas os etnólogos que se veem diante do desafio da alteridade. 
A questão do “até onde?” se coloca para o Ocidente como um todo, e nela 
se joga o destino daquilo que chamamos orgulhosamente de nossa Civi-
lização. Enfim, o problema de “como levar a sério os outros” se tornou, 
ele próprio, um problema que é imperativo levar a sério. Em La Sorcelle-
rie capitaliste [A feitiçaria capitalista], um dos poucos livros publicados 
na França de hoje que prolongao espírito da indagação clastriana (pela 
mediação da voz de Deleuze e Guattari), os autores observam:
Temos por exemplo o costume de deplorar os estragos feitos pela coloni-
zação, e as confissões de culpa tornaram-se rotina. Mas falta-nos ainda 
o devido sentimento de horror [effroi] diante dessa ideia de que não 
apenas nos consideramos um dia a cabeça pensante da humanidade, 
como, e isso com as melhores intenções do mundo, continuamos a fazê-
lo. […] O horror começa quando nos damos conta de que, malgrado 
nossa tolerância, nossos remorsos, nossa culpa, nós afinal não muda-
mos tanto assim. (Pignarre & Stengers 005: 88 )
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314314 Posfácio
E eles concluem a reflexão com uma pergunta que é uma versão do “até 
onde?” de Clastres: “Como abrir espaço para os outros?” (id. ibid.: 8).
Abrir espaço para os outros certamente não significa tomá-los como 
modelos, fazendo-os passar de “nossas” vítimas (id. ibid.) a “nossos” re-
dentores. O projeto de Clastres se inclui entre aqueles que concebem o 
trabalho da antropologia como sendo o de elucidar as condições de au-
todeterminação ontológica do Outro,23 o que significa, entre outras coi-
sas, reconhecer-lhe uma consistência sociopolítica própria, e, enquanto 
tal, não transferível para nosso mundo como se fosse a receita há muito 
perdida da felicidade eterna universal. O “primitivismo” clastriano não 
era uma plataforma política para o Ocidente. Em seu debate com Birn-
baum (cap. ), ele contesta: 
Assim como o astrônomo não convida outrem a invejar a sorte dos astros, 
não milito em favor do mundo dos selvagens. Birnbaum confunde-me 
com os promotores de uma empresa da qual não sou acionista (R. Jaulin 
e seus acólitos). […] Analista de um certo tipo de sociedade, tento des-
cobrir modos de funcionamento e não elaborar programa. (supra, p. 18)
A comparação com o astrônomo evoca, é claro, o “olhar distanciado” de 
Lévi-Strauss, mas dando-lhe uma explícita interpretação política. Vendo-
se a si próprio como astrônomo mais que como astronauta – ao contrário 
do que alguém poderia imaginar –, Clastres sobretudo não pretendia pos-
suir os planos do veículo que faria a viagem até esses mundos distantes, 
esse “outro planeta sociológico” (Richir 18: 6) que são as sociedades 
primitivas. De fato, ele acreditava que um limite absoluto, equivalente à 
velocidade da luz para a física, impedia as sociedades modernas de cru-
zar o imenso espaço intersocietário – a barreira populacional. Embora 
sempre recusando a imputação de determinismo demográfico ([14] 
003: , ou aqui mesmo, pp. 1-3), Clastres sustentava que a pequena 
dimensão populacional e territorial das sociedades primitivas era uma 
condição básica para a não emergência de um poder separado, assim 
23. Ver Viveiros de Castro 00, para um desenvolvimento desse ponto de vista.
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como via uma relação intrínseca entre o Estado e o crescimento demo-
gráfico: “Todos os Estados são natalistas” ([15] 003: 6). A perda de 
controle da sociedade primitiva sobre seu “fluxo demográfico” era uma 
das preocupações frequentemente expressas pelo autor. A multiplicidade 
primitiva é subtrativa antes que aditiva, é molecular antes que molar, é 
minoritária no sentido quantitativo e qualitativo: o múltiplo só se faz 
com poucos, e com pouco. O igualitarismo selvagem de Clastres é, mais 
uma vez, “aristocrático”, como é aristocrática toda verdadeira minoria.24
Sem dúvida que a análise da questão do poder nas sociedades pri-
mitivas deve alimentar uma reflexão política sobre nossas próprias so-
ciedades (Clastres [15] 003), mas de um modo que se poderia dizer 
principalmente comparativo e especulativo. Por que o Estado, sendo uma 
contingência antropológica, tornou-se uma fatalidade histórica para tan-
tos povos, e sobretudo para a nossa tradição? Em que condições a linha 
flexível da segmentaridade primitiva, com seus códigos e territorialidades, 
dá lugar à linha rígida da sobrecodificação generalizada, à emergência 
de um aparelho de captura que separa a sociedade de si mesma, criando 
a necessidade de uma instância exterior ao corpo social que o totalize e 
unifique? E mais, como pensar a nova face do Estado no mundo das “so-
ciedades de controle” (Deleuze 10b), em que a transcendência se ima-
nentiza e moleculariza, o socius tende a se identificar totalmente com a ins-
tância que o unifica, o indivíduo interioriza o Estado e é perpetuamente 
24. Uma das hipóteses que Clastres aventou para o que entendia serem sinais de emergên-
cia do Estado nas sociedades tupi-guarani foi justamente uma explosão demográfica. Re-
ciprocamente, como lemos no cap. 1 deste livro, o autor via na atitude antinatalista das 
sociedades do Chaco a contrapartida feminina – era às mulheres que repugnava a ideia de 
ter filhos – da sede suicida de glória que impelia os guerreiros. Ambos os movimentos mani-
festariam uma espécie de pulsão de morte coletiva, latente em todas as sociedades primitivas 
(mas apenas nelas?), fazendo com que, em certas circunstâncias históricas, elas voltassem a 
máquina de guerra antiestatal contra si mesmas. Resta que no caso tupi-guarani, pelo menos, 
Clastres pode ter confundido (não estou certo de que o tenha feito) o tamanho absoluto da 
população de uma categoria étnica, os “Tupi-Guarani”, com as dimensões demográficas e 
sociopolíticas efetivas das várias sociedades ou redes de comunidades que pertenciam – mas 
de um ponto de vista meramente linguístico-cultural – a essa categoria. O múltiplo só se faz 
com poucos, mas esses poucos podem ser (ou serão sempre?) alguns entre muitos.
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316316 Posfácio
monitorado e modulado por ele? Quais as novas formas de resistência 
que se impõem, isto é, que surgem inevitavelmente?25 
* * *
A resposta a essas questões depende do tipo de economia da diferença 
que está em jogo na comparação antropológica.
Há duas maneiras muito distintas pelas quais a antropologia univer-
saliza, isto é, estabelece uma troca de imagens através do espelho (“atra-
vés” também no sentido do impróprio de “por meio de”). Por um lado, 
ela pode fazer funcionar a imagem dos “outros” de modo que esta revele 
algo sobre “nós”, certos aspectos de nossa própria humanidade que não 
somos capazes de reconhecer como nossos, por múltiplas razões. Este é o 
projeto antropológico que, iniciado na fase heroica de Boas, Malinowski 
e Mauss, consolidou-se na época em que Clastres escrevia, e que veio se 
prolongando até hoje, de Claude Lévi-Strauss a Marshall Sahlins, de Roy 
Wagner a Marilyn Strathern: a lenta transformação de uma imagem do 
Outro definida pela falta ou carência, por sua distância privativa em re-
lação ao Eu, em uma figura da alteridade dotada de endoconsistência, de 
autonomia em relação à imagem de nós mesmos, e, nessa medida, dotada 
de valor crítico e heurístico para nós. O que Lévi-Strauss fez para a razão 
classificatória, com sua noção de pensamento selvagem, Sahlins para a 
racionalidade econômica, com sua “primeira sociedade de afluência” (ver 
o cap. 8 deste livro), Wagner para o par natureza-cultura, com sua me-
tassemiótica da invenção e da convenção, Strathern para o par indivíduo-
sociedade, com a elucidação das práticas melanésias de análise social e de 
conhecimento relacional, Clastres fez para o poder e a autoridade, com 
sua ideia da sociedade-contra-o-Estado enquanto positividade política 
plena – esses antropólogos construíram, por via da imagem do outro, 
uma outra imagem do mundo: uma imagem do mundo que incorpora a 
25. E digo “inevitavelmente” porque trata-se, aqui também, de “descobrir modos de fun-
cionamento e não [de] elaborar programas” – ou antes, talvez de descobrir aqueles para 
melhor elaborar estes.
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imagem que o outro faz do mundo, a imagem com a qual o outro faz um 
mundo; um mundo que nada deve, porque nada fica a dever, ao nosso. 
Uma nova imagem, então, do pensamento, da economia, da cultura, da 
socialidade, da política. E do mundo. 
Em qualquer desses casos, jamais se tratou de estabelecer uma dico-
tomia substantiva, erguendo uma Grande Muralha antropológica, mas 
sim de indicar uma bifurcação que, mesmo decisiva, não é por isso menos 
fortuita: uma outra distribuição cosmossemiótica entre forma e fundo, a 
integração parcial de uma série de pequenas diferenças no modo de fa-
zer a diferença. É preciso insistir ao máximo sobre a contingência des-
sas metadiferenças, ou recriam-se, por um mau paradoxo, outros tantos 
Estados na esfera do pensamento, traçando-se um grande divisor, uma 
linha rígida ou “maior” no plano do conceito – atualizando aquilo que 
Deleuze & Guattari (180: 446-ss) chamam de “ciência de Estado”, a 
ciência teoremática que extrai constantes das variáveis, por oposição 
à “ciência menor”, a ciência nômade e problemática das variações contínuas, 
associada à máquina de guerra antes que ao Estado. E a antropologia, ou 
pelo menos a “etnologia”, a ciência paradoxal de Clastres, é uma ciência 
menor por vocação. Fazê-la em modo maior é trair sua vocação. À antro-
pologia interessam as macrodualidades e as grandes oposições sociocos-
mológicas do mesmo modo como elas interessam à mitologia indígena 
(como demonstrado por Lévi-Strauss): ambas começam justamente por 
elas, mas para mediá-las e diferenciá-las, multiplicá-las e fractalizá-las, 
internalizá-las e molecularizá-las até um limiar de discernibilidade – sem 
prejuízo de que elas se vejam, ao cabo do trabalho analítico (do mitema 
ou do conceito), reconstituídas como que pelo avesso em algum outro e 
inesperado plano. Que, por sua vez…
Assim, essa diferença tão imensa como instável entre Eu e Outro 
não impede, ao contrário, incita à percepção dos elementos de alteridade 
no coração de nossa “própria” identidade. O pensamento selvagem não 
é o pensamento dos selvagens, mas a potência selvagem de todo pen-
samento enquanto/onde este não é “domesticado em vista de um rendi-
mento” (Lévi-Strauss 16: 8). O princípio de subprodução (a lógica 
da suficiência) e a propensão constitucional ao ócio criativo pulsam por 
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baixo de todo o moralismo necessitarista da economia e da pretensa in-
saciabilidade pós-edênica do desejo humano (Sahlins 1, 16). Nossa 
sociedade também é capaz de gerar momentos – em nosso caso, sempre 
excepcionais e “revolucionários” – em que a vida é vivida como uma 
“sequência inventiva” (Wagner 181), assim como compartilha com todas 
as outras – mesmo que de modo paradoxal, semiclandestino – a condição 
de interpenetração relacional das pessoas que chamamos “parentesco” 
(Edwards & Strathern 000; Strathern 005, Sahlins 011). E por fim, 
no caso de Clastres, a constatação de nossa dependência constitutiva, no 
plano do pensamento mesmo, perante a forma-Estado não deve impe-
dir a percepção de todas as intensidades contrárias, as fendas, frestas e 
linhas de fuga por onde nossa sociedade está constantemente resistindo 
à sua captura pela transcendência sobrecodificadora do Estado. É nesse 
sentido que a “sociedade-contra-o-Estado” permanece válida como con-
ceito universal – não como tipo ideal ou como designador rígido de uma 
espécie sociológica, mas como analisador de toda e qualquer experiência 
de vida coletiva. 
A segunda forma de universalização parte, ao contrário, do postu-
lado de que os primitivos são mais parecidos conosco do que nós com eles. 
E, como são parecidos conosco – mas apenas parecidos –, aspiram a ser 
exatamente como nós, ou seja, a viver felizes sob o signo da santíssima 
trindade do Homem Moderno: o Estado, o Mercado e a Razão, que são 
como o Pai, o Filho e o Espírito Santo da teologia capitalista. Em outras 
palavras, eles também, nossos primitivos (estes são realmente nossos), 
exprimindo instintivamente a racionalidade infusa do Capital, são maxi-
mizadores genéticos e individualistas possessivos; eles também otimizam 
a relação custo-benefício e fazem escolhas racionais (o que inclui serem 
“irresponsáveis” quando se trata da relação com o ambiente – extermi-
naram a megafauna na América! incendiaram a Austrália!); eles são su-
jeitos pragmáticos e sensatos como nós, que não confundem capitães de 
longo curso da Marinha Real britânica com divindades bárbaras,26 nem 
26. Refiro-me ao conhecido debate de Obeyesekere com Sahlins sobre a morte do capitão 
Cook pelos havaianos.
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experimentam sua consciência íntima, o recesso sacrossanto da própria 
subjetividade, sob o modo esdrúxulo da “dividualidade” relacional;27 
eles também instituem desigualdades sociais à menor oportunidade 
para tanto, cobiçam o poder e a riqueza, oprimem e escravizam seus se-
melhantes mais fracos, admiram e divinizam seus semelhantes mais for-
tes, e, como aqueles críticos evocados por Courbet, de vez em quando 
também acordam gritando: “Quero julgar! Devo julgar!”. Em suma, 
nossos pobres primitivos estão – ou estavam, até que se lhes passou o 
trator por cima – no caminho certo. A prova de que eles são humanos 
(e de que estamos sendo cientificamente antietnocêntricos ao insistir so-
bre isso, contra aquele anarcorromantismo fanático de Clastres, aquele 
relativismo cultural implausível de Sahlins, Wagner ou Strathern) é que 
compartilham conosco todos os nossos defeitos naturais, defeitos que se 
foram pouco a pouco transformando, é claro, em virtudes sociais, du-
rante as décadas gloriosas que nos brindaram com Thatcher, Reagan, 
o Patriot Act, a Fortaleza Europa, o neoliberalismo e outras maravilhas 
inauditas – e, de quebra, com a psicologia evolucionária, sempre pronta 
a justificar tudo o que precede com alguma Just-so story. A sociedade 
primitiva agora é uma ilusão, uma “invenção” da sociedade moderna 
(Kuper 188). Esta última, ao que parece, não é uma ilusão e jamais 
foi inventada por quem quer que seja: sempre fomos modernos. Talvez 
porque só o Capitalismo seja real, inato e espontâneo, o vero Dado en-
carnado. Walter Benjamin estava mais que certo ao defini-lo como uma 
estrutura diretamente religiosa. 
É contra essa segunda forma de universalização, reacionária, 
mío pe e, sobretudo, reprodutiva da figura do Estado como modelo do 
Universal, que a obra de Clastres se construiu, preventivamente por 
assim dizer. Pois ele sabia muito bem que o Estado não pode admitir 
as sociedades primitivas, aquelas, justamente, que não querem ser ad-
mitidas. A imanência e a multiplicidade são sempre escandalosas aos 
olhos do Um.
27. Este é um clichê argumentativo muito usado pelos “cognitivistas” contra a análise me-
lanésia da pessoa tal como reconstruída no trabalho clássico de Marilyn Strathern.
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O diferente e o semblante 
A tese da sociedade contra o Estado é às vezes confundida com um elogio 
do libertarianismo no sentido americano (estadunidense) do termo, isto 
é, interpretada como se seu conteúdo lógico implicasse uma oposição à 
interferência do governo central na vida dos indivíduos, um elogio do 
“livre mercado”, uma defesa das milícias de cidadãos, a liberação do porte 
de arma para todos, o convite para algum Tea Party e por aí afora. Em 
suma: Pierre Clastres e Ayn Rand, farinha do mesmo saco. 
Naturalmente, tomar a despressuposição teórica do conceito de Es-
tado por uma recusa da organização política enquanto tal por um elogio 
do individualismo à americana ou por um incentivo ao autocapitalismo 
(o nome certo parece que é “empreendedorismo”) é um engano grotesco. 
O capítulo  deste livro é instrutivo a esse respeito, na medida em que dis-
cute oerro inverso. Pierre Birnbaum, cujas críticas o autor rebate ali, faz 
uma leitura durkheimiana da sociedade contra o Estado, identificando-a, 
antes que a um elogio do indivíduo, a uma “sociedade de coerção total”. 
Clastres glosa assim seu oponente: 
Em outras palavras, se a sociedade primitiva ignora a divisão social, é 
ao preço de uma alienação bem mais terrível, a que submete a comu-
nidade ao sistema esmagador das normas às quais não é permitido a 
ninguém alterar. O “controle social” se exerce de maneira absoluta: não 
é mais a sociedade contra o Estado, é a sociedade contra o indivíduo. 
(supra, p. 18)
A resposta de Clastres consiste mais ou menos em dizer que o “controle 
social”, ou antes, o poder político, não se exerce sobre “o indivíduo”, 
mas sobre um indivíduo, o chefe, que é individualizado justamente para 
que o corpo social continue indiviso, “em relação consigo mesmo”. Em 
seguida, o autor esboça a tese (também mencionada no cap. 5) de que 
a sociedade primitiva inibe o Estado mediante a extrusão metafísica de 
sua própria causa e origem, ao remeter ambas à esfera do mundo mítico 
primordial, àquilo que está totalmente fora do controle humano e, nessa 
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medida, não pode ser apropriado por uma fração da sociedade de modo 
a convencionalizar desigualdades. Ao colocar seu fundamento fora de 
“si mesma”, a sociedade se torna natureza, isto é, torna-se o que Wagner 
(186) chamaria de um “símbolo que representa a si mesmo”, impedindo 
a projeção de uma Convenção totalizadora, uma figura do Um que a en-
carnasse e sobrecodificasse. A transcendência heteronômica da origem 
serve então como garantia da imanência e autonomia do poder social. 
O mito contra o Estado, em suma.
Clastres credita essa miniteoria política da religião primitiva a Mar-
cel Gauchet, que anos mais tarde iria desenvolvê-la em um sentido que o 
primeiro autor talvez não pudesse prever. Mas aqui há um significativo 
ponto de hesitação de Clastres. Desde o começo, na verdade, Gauchet 
associava tal exteriorização da origem justamente à origem do Estado – 
que surgiria com a captura, por uma figura humana, desse lugar da trans-
cendência impessoal –, e não à sua inibição. Clastres estava ciente disso; 
ele acreditava que seu jovem colega havia descoberto a falha congênita 
no plano de composição do socius primitivo que o tornava uma presa 
potencial para o monstro Estado. Como se sabe, Gauchet acabou por 
derivar daí (para encurtarmos uma longa história) uma reflexão sobre as 
virtudes do Estado constitucional liberal, regime no qual a sociedade se 
aproximaria de uma situação ideal de autonomia ou imanência, por via 
de uma interiorização das fontes simbólicas da socialidade que seria, essa 
interiorização, engenhosa o suficiente para não destruir a exterioridade 
instituinte do socius enquanto tal. O Estado contra o Estado, digamos, em 
uma autêntica Aufhebung do anarquismo clastriano, que se veria enfim 
transformado em um programa político defensável.28 
A resposta de Clastres a Birnbaum, parece-me, poderia ter ido mais 
longe. A sociedade-contra-o-Estado é efetivamente contra-o-indivíduo, 
porque o indivíduo, enquanto sujeito, é um produto e um correlato do 
28. Em Moyn 005 acha-se uma descrição da trajetória de Gauchet, a quem o comentador 
parece perdoar (ou louvar) tudo, menos seu pecado original, a saber, sua adesão “juvenil” à 
visão maligna de Clastres. Ver também, em sentido contrário, uma cortante passagem onde 
Lefort (18: 0-03) desautoriza, mas sem mencionar nomes, o raciocínio de Gauchet so-
bre a condensação da alteridade exterior primitiva na figura do Estado.
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33 Posfácio
Estado. O Estado precisa do indivíduo e o indivíduo requer o Estado; 
a autosseparação criadora do Estado cria-separa igualmente os sujeitos 
ou indivíduos (singulares ou plurais), ao mesmo tempo que o Estado se 
oferece a si mesmo como Modelo para estes: l’État c’est le Moi. É assim 
importante que estabeleçamos um contraste inequívoco entre a sociedade 
clastriana e seu homônimo durkheimiano, uma fonte de mal-entendidos 
nem sempre esclarecida por Clastres, que tendeu ocasionalmente a hi-
postasiar a sociedade primitiva – no mínimo, deu tal impressão –, conce-
bendo-a como um Sujeito coletivo, um Super-Indivíduo realmente, e não 
apenas formalmente, exterior e anterior ao Estado (Deleuze & Guattari 
180: 443-ss), e assim, ontologicamente homogêneo a ele. Neste caso, 
estaríamos de fato navegando em águas durkheimianas.29 A Sociedade 
de Durkheim é a forma-Estado em sua tradução sociológica: pense-se na 
coercividade constitutiva do fato social, na transcendência inaugural do 
Todo em relação às Partes, em sua função de Entendimento universal, em 
seu poder de unificação inteligível e moral do diverso sensível e sensual. 
Por isso a relevância estratégica que tem para Durkheim a “oposição” 
entre indivíduo e sociedade: um é uma versão do outro, os membros da 
sociedade enquanto corpo espiritual coletivo são como minúsculos sub-
Estados individuais subsumidos pelo Estado enquanto Super-Indivíduo.30 
29. Lefort (18: 18) também imputa a Clastres uma “tentação” durkheimiana, ao co-
mentar a análise do rito de iniciação apresentada no ensaio “Da tortura nas sociedades pri-
mitivas” (cap. 10 de A sociedade contra o Estado). O ponto de Lefort é que Clastres faz do 
religioso um instrumento da “lei social”, expressão de uma vontade coletiva que é interio-
rizada ritualmente.
30. Em uma “legítima” sociedade-contra-o-Estado, ao contrário, cada indivíduo aparece, 
“como tal”, isto é, tal como aparece para um não parente, para o antropólogo, digamos – en-
quanto, portanto, não tomado como (um) parente, em toda a sua reticularidade relacional (o 
que, naturalmente, mudaria bastante as coisas) –, cada indivíduo aparece, dizíamos, como 
um micro-“Estado” insubsumível, insubmisso, uma entidade plenamente soberana, que não 
se deixa substituir por nenhuma outra entidade. Qualquer antropólogo que já passou por 
uma sociedade desse tipo poderá atestar que “negociar” o que quer que seja com as pessoas 
ali é um trabalho diplomático maravilhosamente exasperante. Pois cada um é o representan-
te de si mesmo, embaixador de sua própria mônada; nada que foi “acertado” com alguém 
pode ser considerado como válido, indutiva ou dedutivamente, para o que se negociará 
com outrem. No final das contas, não é então que em uma sociedade-contra-o-Estado cada >
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A sociedade primitiva de Clastres, ao contrário, é contra o Estado, e por-
tanto contra a “sociedade” concebida à sua imagem. Ela tem a forma de 
uma multiplicidade assubjetiva, seus componentes ou associados não são 
individualidades ou subjetividades, mas singularidades – ela desconhece 
a máquina abstrata produtora de sujeitos, rostos ou semblantes (bela pa-
lavra) que exprimem uma interioridade subjetiva:
[D]eterminados agenciamentos de poder exigem a produção de um 
rosto, outros não. Se consideramos as sociedades primitivas, poucas 
coisas passam pelo rosto: sua semiótica é não significante, não subje-
tiva, essencialmente coletiva, polívoca e corporal, apresentando formas 
e substâncias de expressão bastante diversas. A polivocidade passa pe-
los corpos, seus volumes, suas cavidades internas, suas conexões e coor-
denadas exteriores variáveis (territorialidades). […] Os “primitivos” 
podem ter as cabeças mais humanas, as mais belas e mais espirituais; 
eles não têm rosto e não precisam dele. A razão disso é simples. O rosto 
não é um universal, nem mesmo o do homem branco; é o próprio Homem 
branco, com suas grandes bochechas e o buraco negro dos olhos. O rosto é 
o Cristo. (Deleuze & Guattari [180] 16, v. 3: 4-43)
Uma interpretação do anarquismo de Clastres em termos individualis-
tas ou liberais, subjetivistas e “rostificantes”, seria, portanto,um erro 
simétrico àquele que imaginaria sua sociedade primitiva como uma or-
dem totalitária ou mesmo simplesmente “totalizante”. Na fórmula fe-
liz de Bento Prado Jr. (supra), o pensamento de Clastres era, mais que 
simplesmente anarquista, “anarcôntico” – uma palavra-valise que inclui 
não apenas uma referência ao arconte ateniense, mas o “falso” sufixo 
/-ôntico/, como que para marcar o significado metafísico ou ontológico 
do anarquismo de Clastres, sua oposição ao que este via como o princípio 
indivíduo já seja um Estado em si mesmo, mas sim que cada um “já” é, dividualmente, 
fractalmente, molecularmente, uma sociedade-contra-o-Estado à part entière. A sociedade-
contra-o-Estado se apresenta como um ente distributivo, ainda que possa ocasionalmente 
(ou deva ritualmente) se representar como um ente coletivo. (Esta nota remete às muitas 
conversas havidas com José Antonio Kelly, etnógrafo dos Yanomami.)
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3434 Posfácio
fundador da filosofia e do Estado ocidental, a saber, a ideia de que o Ser 
é Um e o Um é o Bem. 
Por isso, é da maior importância observar que o regime da exterio-
rização da origem intrínseco à sociedade-contra-o-Estado não significa, 
como Gauchet e outros sustentaram, nem uma exteriorização “instituinte” 
do Um, nem uma unificação “projetiva” do Exterior.31 Pois é preciso in-
cluir decisivamente a máquina de guerra entre os mecanismos principais 
de conjuração do Estado mobilizados pelas sociedades primitivas, e, com 
isso, tirar todas as consequências do fato de que a exterioridade primitiva 
é inseparável da figura do Inimigo como determinação transcendental 
do pensamento.32 A exteriorização está a serviço de uma dispersão. Os 
selvagens querem a multiplicação do múltiplo.
* * *
Há hoje um sentimento amplamente difundido na Esquerda de que o 
neo liberalismo efetivamente enfraqueceu o poder do Estado nas socie-
dades ocidentais modernas, e que é chegada a hora de abandonarmos a 
postura antiestatista e antitotalitarista associada à crítica do stalinismo e 
ao autonomismo utópico dos anos 60 e 0. Enfim, é tempo de constatar-
mos, com não pequeno constrangimento, que talvez tenhamos sido cúm-
plices do Mercado em sua luta para diminuir e subjugar o Estado, última 
barreira protetora dos direitos do povo contra a sanha do Capital. Essa 
é uma discussão complexa, que não tenho espaço nem realmente com-
petência para aprofundar. Mas não posso deixar de dizer que não acre-
dito nem um pouquinho nisso. A ideia de que o capitalismo globalizado 
acarretou uma diminuição do poder do Estado parece-me inverossímil. 
31. Este é um ponto que não escapou a Lefort. Comentando a ideia de Clastres-lido-por-
Gauchet segundo a qual a instituição do social é concebida, nas sociedades primitivas, como 
se engendrando em um lugar outro, o autor observa, com absoluta precisão: “[N]ão deve-
mos perder de vista que, se a noção de alteridade é onipresente, ela permanece entretanto 
não localizável, sem remeter a uma instância definida, jamais se fazendo signo da presença 
de um ‘grande outro’. Para falar como Clastres, o outro não é o Um” (Lefort 18: 01).
32. Ver Viveiros de Castro 00, cap. 1.
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35
À parte o fato de que foi e continua a ser preciso um gigantesco aparelho 
regulador e interventor, administrado pelo Estado, para produzir a “des-
regulação” da economia, bem como para sustentar política e militarmente 
um mercado livre que não é nem uma coisa nem outra, não é preciso ser um 
fanático anarcoautonomista para perceber que jamais o Estado esteve 
tão presente, tão perto da vida cotidiana. A Grã-Bretanha, por exemplo, 
com suas câmeras de vigilância penduradas por toda parte, seus agentes 
secretos infiltrados nos movimentos civis, sua polícia neo-orwelliana, 
transformou-se em um espaço de autoespionagem universal e perpétua; 
nos Estados Unidos, a Guerra contra o Terror justificou uma invasão dos 
espaços privados e uma violação das liberdades públicas como jamais se 
viu na história das democracias modernas, gerando, de resto – ou fortale-
cendo –, um microfascismo “cidadão” que tornou a paranoia o modo de 
produção dominante da subjetividade nativa. E no mundo inteiro, vemos 
o aparelho jurídico-policial dos Estados nacionais prestando seu apoio 
solícito aos esforços das corporações transnacionais para cercar defini-
tivamente os commons da noosfera e esmagar com a máxima violência 
qualquer resistência à bioeconomia política do Capital.33
Enfim, não é preciso recorrer a Agamben e à sua tese sobre o es-
tado de exceção (o Estado como “in-fundado” no estado de exceção), ou 
reencaminhar o leitor ao utilíssimo manual de antifeitiçaria de Pignarre 
e Stengers, para manter que se deve levar perfeitamente a sério uma ob-
servação feita por Clastres em 14, e apresentada por um historiador 
como evidência cristalina da “fixação” do antropólogo gascão34 no fan-
tasma do totalitarismo:
33. Veja-se o caso exemplar de Marie Mason e o “Green Scare” (< migre.me/3PxMN >), 
entre outros. O ativista ecológico se vê promovido a terrorista, e o “pirata” que baixa músi-
cas na internet é aproximado da figura terrível do “inimigo de todos” (Heller-Roazen 00), 
a tal ponto que hoje a situação se inverteu, e todos nos tornamos os inimigos do Um; todos 
nós fomos transformados em terroristas virtuais diante do Estado.
34. Prado Jr. (supra) lembra que Clastres, nascido na Gasconha (“como D’Artagnan”), só 
foi aprender o francês, arquétipo moderno de toda língua maior ou de Estado, na escola. 
Esse detalhe biográfico ilumina particularmente a leitura do cap. 4 deste livro, “Do etnocí-
dio”, ajudando a perceber algo do substrato existencial do discurso clastriano.
3636 Posfácio
Nada, senão uma fixação no totalitarismo, pode explicar essa recomenda-
ção feita por Clastres em uma entrevista: “E não devemos nos deixar le-
var pelas aparências […] Em todas as sociedades ocidentais, a máquina 
do Estado está se tornando cada vez mais estatista, o que quer dizer, cada 
vez mais autoritária […] com o amplo apoio da maioria”. Ele acrescen-
tava: “A máquina do Estado está se encaminhando para uma espécie de 
fascismo, não o fascismo de um partido, mas um fascismo interior”. To-
dos procuram a autoridade para mandar, mesmo aqueles que prometem 
usar o Estado em nome da liberdade. (Moyn 004: )35
Se lembrarmos do que se passava em 004, quando Moyn escrevia estas 
linhas, nos Estados Unidos e em tantos outros lugares santos da democra-
cia no Ocidente, até que o juízo de Clastres não soa tão paranoico assim. 
E ele não difere muito, no frigir dos ovos, do que já previa o sagacíssimo 
Tocqueville (Moyn 005: 1). Por fim, se os leitores preferirem a opinião 
de outro especialista inconteste na cultura política francesa, e que não 
pode ser considerado um anarquista hidrófobo, recordemos então Tony 
Judt (010; cito a versão on-line):
O Estado, longe de desaparecer, pode estar às vésperas de alcançar seu 
triunfo total: as prerrogativas da cidadania, a proteção fornecida pelos 
documentos que consignam os direitos de residência, todas essas coisas vão 
ser utilizadas como trunfos políticos. Demagogos intolerantes, surgidos de 
dentro de nossas democracias estabelecidas, irão, muito em breve, começar 
a exigir “testes” – de conhecimentos, de linguagem, de atitude – para 
decidir se todos esses imigrantes desesperados, acabados de desembarcar, 
merecem ou não a “identidade” britânica, ou holandesa, ou francesa. Já 
se está fazendo isso. Neste admirável novo século, vamos sentir saudade 
dos tolerantes, dos marginais – do povo da borda [the edge people ].
Bem, talvez Pierre Clastres não fosse especialmente tolerante. Mas ele 
pertencia sem dúvida ao povo da borda, em mais de um sentido. Pois o 
35. A citação de Clastres provém da entrevista a L’Anti-Mythes, in Clastres [15] 003: 0.
3
caso é quetodos nós precisamos em algum momento, na verdade, a cada 
momento, escolher entre “tornar-se índio” – habitar a margem e viver 
nas bordas (não é preciso passar a dormir debaixo da ponte; estamos fa-
lando de outra coisa) – ou permanecer no centro fortificado, confortavel-
mente identificado ao colonizador. Uma questão de, como direi?, “gosto”.
Entre a filosofia e a etnologia
A crítica de Clastres à antropologia levistraussiana, fundada na convicção 
de que haveria dimensões importantes da vida humana que escapavam 
tanto à metodologia do estruturalismo como à sua ontologia do social, 
foi um dos primeiros sinais da virada pós-estruturalista do pensamento 
francês nas cercanias de 168, que trouxe a filosofia política (e a política 
da filosofia) para o centro da cena. Clastres e Sebag, de fato, eram os 
dois candidatos naturais ao papel de mediadores entre o projeto cientí-
fico de Lévi-Strauss e o horizonte filosófico mais amplo em que esse pro-
jeto, nolens volens, estava situado.36 A morte de ambos interrompeu essa 
comunicação incipiente, induzindo uma fase de dormência filosófica da 
antropologia francesa de que esta só recentemente começou a despertar, 
e isso graças mais à iniciativa de uma nova geração de filósofos (onde 
cabe destacar a estratégica intervenção inicial de Jean Petitot, e, nos úl-
timos anos, a reflexão de Patrice Maniglier) que aos herdeiros discipli-
nares de Lévi-Strauss.37 
36. Lévi-Strauss sempre marcou, com ênfase não destituída de altivez, a distância entre 
suas preocupações e as da filosofia “do seu tempo”. Como se ele não percebesse (ou fingisse 
não perceber) que sua própria obra ia contribuindo de maneira decisiva para modificar a 
filosofia do seu tempo, e que além disso, para além das diferenças de estilo, de objeto, ou de 
ascendência teórica, era evidente a emergência de um campo problemático transdisciplinar, 
comum aos diversos “estruturalismos”, inclusive aqueles em que Lévi-Strauss não se reco-
nhecia (Deleuze 1; Maniglier 011).
37. Dentre estes últimos, a parcela mais dinâmica dedicou-se, de início, a cultivar um 
cognitivismo de inspiração chomskyana; mais tarde, parece ter aderido ao catecismo da 
psicologia evolucionária. A maioria dos herdeiros, porém, refugiou-se em uma prática et-
nográfica tendendo ao burocrático, marcada por um grande rigor descritivo e uma modesta >
3838 Posfácio
Recoloca-se, portanto, a questão da utilidade da obra de Clastres 
no cenário político e filosófico contemporâneo. Neste momento, em que 
pensar se tornou tarefa da mais profunda urgência e da mais extrema gra-
vidade – quem ainda não se deu conta de que “nossa civilização”, com 
toda a certeza, e nossa espécie, com forte probabilidade, entraram em 
uma crise de dimensões absolutamente inauditas? e que essa crise está 
destruindo boa parte da vida não humana no planeta? – neste momento, 
perguntávamos, o excêntrico etnólogo gascão e sua estranha sociedade 
primitiva continuam bons para pensar? 
* * *
É sem dúvida por via da filosofia que a obra de Clastres se inscreve na 
história intelectual e pode aspirar a uma atualidade no presente. Mas 
essa obra consiste, primeiro que tudo, em uma intervenção no campo 
da antropologia social ameríndia, intervenção esta que veio fecundar a 
filosofia ocidental com o aporte do pensamento dos selvagens, abrindo a 
possibilidade de um autêntico devir-índio do conceito (e aqui, outra vez, 
Clastres prolonga Lévi-Strauss).
Costuma-se considerar Pierre Clastres como antropólogo de uma 
nota só, defensor de uma tese monolítica, a “sociedade-contra-o-Estado”. 
Note-se, de saída, que essa forma de organização da vida coletiva é, na 
verdade, definida pelo autor por uma dupla relação inibitória: uma inibi-
ção interna ou intracomunitária, a chefia sem poder, e outra externa ou 
intercomunitária, o dispositivo centrífugo da guerra. Tal distinção, em 
si mesma, sugere a possibilidade de interpretações filosóficas distintas, 
se não divergentes, da obra de Clastres. Como toda possibilidade aspira 
à realidade, isso foi naturalmente o que aconteceu. Há de fato duas lei-
turas principais dessa obra: a fenomenológica e a deleuzo-guattariana. 
imaginação teórica – com as exceções de praxe, escusado dizer. Nos últimos cinco anos, a 
obra de Philippe Descola (005) aparece sem dúvida como a primeira tentativa de fôlego 
da antropologia francesa de retomar a trajetória interrompida do pensamento estruturalista, 
em bases próximas à inspiração levistraussiana.
>
3
Sua coabitação um tanto problemática não foi até agora, tanto quanto 
eu saiba, objeto de nenhuma menção mais explícita pelos comentadores, 
e menos ainda de uma reflexão aprofundada. As linhas abaixo, por isso, 
têm apenas um valor sugestivo e preliminar.
A primeira leitura da obra de Clastres põe a ênfase na determina-
ção que ali teria sido feita de uma “função política” invariante através de 
todas as sociedades. O propósito ou resultado dessa função seria “consti-
tuir um lugar onde a sociedade aparece para si mesma” (Richir 18: 6). 
A sociedade-contra-o-Estado é definida, nesses termos, por um certo modo 
de representação política, e a política ela própria é concebida essencialmente 
como um modo de representação (antes que um modo de funcionamento 
ou um exercício – Lima & Goldman 003: 15), um dispositivo de projeção 
de um duplo molar do corpo social no qual este se reconhece (“aparece”) 
como tal. A figura do chefe sem poder – a inibição interna, objeto dos 
primeiros trabalhos de Clastres – avulta aqui como o aporte decisivo do 
autor, que teria descoberto uma nova ilusão transcendental (Richir op. 
cit.: 66), um novo modo de instituição (necessariamente imaginária, no 
sentido de Castoriadis) do social. Digo novo, mas tratar-se-ia de fato 
do modo arcaico ou originário da socialidade humana; o modo, a pa-
lavra se impõe, natural. Ele consistiria na retroprojeção de um Exterior, 
uma “Natureza” que é preciso negar para que a Cultura ou Sociedade se 
instituam, mas que é preciso ao mesmo tempo (e para isso mesmo) re-
presentar dentro do socius por um simulacro que é, justamente, o lugar 
destinado à figura do poder. Surge assim o chefe como quase-natureza, o 
elemento excluído do circuito socializante da troca, a imagem invertida 
da coletividade: o líder, espelho do grupo, reflete para este sua face una e 
indivisa. É da natureza da sociedade (primitiva ou natural) separar-se de 
uma natureza não social que lhe sirva de Outro, e representá-la no interior.
Essa interpretação efetua o que se poderia chamar, com licença do 
trocadilho, uma verdadeira “redução fenomenológica” da sociedade-con-
tra-o-Estado. Redução feita com a complacência do inventor do conceito, 
diga-se de passagem. Refiro-me com isso à proximidade entre Clastres e 
os intelectuais reunidos à volta de Claude Lefort na concepção da revista 
Textures e em seguida da Libre, onde foram publicados os três últimos 
330330 Posfácio
capítulos do presente livro. Lefort, aluno de Merleau-Ponty, egresso do 
movimento trotskista, com o qual rompeu em 148, cofundou com Cor-
nelius Castoriadis o legendário Socialismo ou Barbárie, grupo que teve 
um papel de destaque na história do pensamento libertário na França. 
A marca registrada desse agenciamento fenomenológico-socialista (que 
incluía Marcel Gauchet até sua conversão ao liberalismo, a partir dos anos 
80) era a combinação de um radical antitotalitarismo político com um não 
menos radical humanismo metafísico, que já se revelava, por exemplo, 
no tipo de crítica “antitroquista” cedo dirigida por Lefort (151) contra 
o estruturalismo, bem como em sua tentativa de trazer os primitivos para o 
regaço da História, ao propor – supostamente contra Hegel e o materia-
lismo histórico – a existência de “modos de historicidade” próprios, os 
quais exprimiram posições intencionais características de cada sociedade,

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