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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ Rodrigo Andrey Freitas Irala AGÊNCIAS REGULADORAS E SEU PODER NORMATIVO CURITIBA 2014 AGÊNCIAS REGULADORAS E SEU PODER NORMATIVO CURITIBA 2014 Rodrigo Andrey Freitas Irala AGÊNCIAS REGULADORAS E SEU PODER NORMATIVO Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Dr. Paulo Roberto Ferreira Motta CURITIBA 2014 TERMO DE APROVAÇÃO Rodrigo Andrey Freitas Irala AGÊNCIAS REGULADORAS E SEU PODER NORMATIVO Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do titulo de Bacharel no curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, ________ de ___________________ de 2014. ________________________________________ Bacharel em Direito Universidade Tuiuti do Paraná ______________________________________ Orientador: Dr. Paulo Roberto Ferreira Motta UTP _______________________________________ Prof. ________________________________________ Prof. Dedico este trabalho à minha esposa e companheira que me apoiou e apoia no curso de Direito, em minha carreira, em minha vida. Ainda ao Professor Dr. Paulo Roberto Ferreira Motta pelo esforço em me orientar. RESUMO O presente trabalho busca demonstrar o surgimento do Estado Regulador e o seu conceito, para, a partir daí, dar arrimo ao estudo sobre Agências Reguladoras. O surgimento do Estado moderno implicou a necessidade de regulação. O Estado Regulador é diretamente determinado pela concepção intervencionista do Estado de bem-estar social, ou seja, o Estado não pode ser enfocado como simples forma de manutenção de determinada situação socioeconômica. Prosseguiremos com análise das funções e características das Agências Reguladoras Brasileiras, e sobre os poderes a elas delegados, com enfoque especial ao Poder Normativo, que se trata do poder conferido às agências de criar e editar normas, atribuição antes exclusiva do Estado. Veremos que as Agências Reguladoras Brasileiras são autarquias especiais integrantes da Administração Pública Indireta, e, portanto, pertencentes ao Poder Executivo e que possuem autonomia em relação ao Poder Público. Foram criadas inicialmente para fiscalizar a execução de atividades que, até então, o texto original da Constituição de 1988 definia como privativas do Estado. Por fim, faremos análise crítica acerca do poder normativo das Agências, posto que o poder normativo que possuem tem caráter infralegal, criadas à luz do princípio da legalidade. Palavras chave: Estado Regulador, Modelo Regulatório, Agências Reguladoras, Poder Normativo. 7 SUMÁRIO RESUMO..................................................................................................................... 1 SUMÁRIO ................................................................................................................... 7 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 1. A REFORMA DO ESTADO .................................................................................... 9 1.1. O MODELO REGULATÓRIO ............................................................................. 11 1.2. O ESTADO REGULADOR E SUAS CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS ........... 14 1.3 FINALIDADES DA REGULAÇÃO ....................................................................... 16 2. SURGIMENTO E CARACTERÍSTICAS DAS AGÊNCIAS REGULADORAS ...... 18 2.1. AGÊNCIAS REGULADORAS NORTE-AMERICANAS ...................................... 18 2.2. AGÊNCIAS REGULADORAS BRASILEIRAS .................................................... 21 2.2.1 Natureza jurídica das Agências Reguladoras ................................................... 21 2.2.2 Autonomia regulatória ...................................................................................... 22 2.2.3 Criação, instituição e extinção das Agências Reguladoras .............................. 26 3. OS PODERES DAS AGÊNCIAS REGULADORAS ............................................. 31 3.1. O PODER REGULAMENTAR ............................................................................ 31 3.2. O PODER MEDIADOR ....................................................................................... 32 3.3. O PODER NORMATIVO .................................................................................... 34 4. O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS .............................. 35 4.1. A FUNÇÃO NORMATIVA ................................................................................... 35 4.2. A FUNÇÃO ADMINISTRATIVA .......................................................................... 37 4.3. A FUNÇÃO JURISDICIONAL ............................................................................. 38 4.4. ANÁLISE CRÍTICA DA COMPETÊNCIA NORMATIVA DAS AGÊNCIAS .......... 40 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 46 Usuário Rectangle 8 INTRODUÇÃO Com as mudanças no contexto mundial o capitalismo entrou em países antes socialistas e se fortaleceu onde este sistema jurídico-econômico já era dominante. Com isso os projetos de privatização foram se espalhando pelo mundo. No Brasil, com as privatizações levadas a termo nos últimos anos, muitas atividades que eram antes exercidas diretamente pelo Estado passaram a ser executadas por particulares, por empresas privadas. Com isso o papel do Estado passou de executor para fiscalizador. Veremos que as Agências Reguladoras brasileiras são autarquias especiais integrantes da Administração Pública Indireta, e, portanto, pertencentes ao Poder Executivo. Foram criadas inicialmente para fiscalizar a execução de atividades que, até então, o texto original da Constituição de 1988 definia como privativas do Estado. As Emendas Constitucionais n. 8, de 15/08/1995, e n. 9, de 09/11/1995, abriram à iniciativa privada os setores das telecomunicações e do petróleo, atribuíram à União competência para criar órgãos de regulação para os dois setores. Seguidas desses órgãos, outros em diferentes setores foram criados, nas esferas federal, estadual e municipal. Faremos também uma análise das funções e características das Agências Reguladoras Brasileiras, e sobre os poderes a elas delegados, com enfoque especial ao Poder Normativo, que se trata do poder conferido às agências de criar e editar normas, atribuição antes exclusiva do Estado. 9 1. A REFORMA DO ESTADO Diversas são as maneiras de se conceituar “estado”, isso porque depende do assunto que está sendo tratado. No presente estudo enfocaremos o “Estado” analisado pelo Direito Administrativo, como ente personalizado. O Estado deve funcionar de maneira eficiente e eficaz, ou seja, deveser um instrumento para o desenvolvimento nacional e prestar contas de suas atividades. Com as mudanças no contexto mundial, após a batalha dos Estados Unidos com a União Soviética, o capitalismo surgiu em países antes socialistas, adentrou territórios da Cortina de Ferro, bem como se fortaleceu em países onde o capitalismo já dominava o sistema jurídico-econômico. O então presidente dos EUA encontrou apoio com a mandatária do Reino Unido, Margaret Thatcher. Foi ela a pioneira na transformação de todo o sistema jurídico-econômico da Grã-Bretanha, com a desregulação e a privatização, a contratação externa de serviços financiados publicamente e a venda de propriedades públicas. Como resultado os projetos de privatização foram se espalhando pelo mundo. Cabe ressaltar que na América Latina, infelizmente, esses projetos não objetivam melhorar e aprimorar a prestação dos serviços públicos, mas sim uma maneira dos governos enfrentarem seus credores internacionais no (re)financiamento dos programas de estabilização econômica dos anos 90. Várias são as razões que tornam as reformas econômicas um assunto in loco: o desenvolvimento de um mercado mundial que destaca a incidência de atividades públicas sobre a competitividade nacional; a ideia de que a produtividade do setor público é inferior à do setor privado; a limitação do crescimento do setor público para que possa ser alcançado pelo setor privado; uma redução na capacidade de o poder 10 público dirimir os problemas econômicos e sociais com as tradicionais receitas; as exigências da população por maior qualidade nos serviços públicos. Deu-se início à reforma do Estado Brasileiro no governo de Fernando Collor de Mello, através da Medida Provisória nº 155, editada na data de 15/03/1990. Foi logo transformada na Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990, que criou o Programa Nacional de Desestatização e tinha como objetivo inicial a reordenação da posição estratégica do Estado na Economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; visando reduzir a dívida pública, concorrendo para o saneamento das finanças do setor público e a retomada de investimentos nas empresas e atividades que viessem a ser transferidas à iniciativa privada, com a modernização do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia; permitindo que a Administração Pública concentrasse seus esforços nas atividades em que a presença do Estado fosse fundamental para a consecução das prioridades nacionais, bem como para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que viessem a integrar o Programa1. O governo do então Presidente Collor foi marcado pela implementação do Plano Collor, pela abertura do mercado nacional às importações e pelo início de um programa nacional de desestatização. Seu Plano, embora parecesse desafiador e eficaz, acabou por aprofundar a recessão econômica, corroborada pela extinção, em 1990, de mais de 920 mil postos de trabalho e uma inflação na casa dos 1200% ao ano2. 1 Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990. Artigo 1º e incisos - Revogada pela Lei. nº 9.491, de 1997. 2 Disponível em http://acervo.estadao.com.br/noticias/topicos,impeachment-de-collor,887,0.htm. Consulta realizada em 30.03.14 às 14h24m. 11 Collor foi substituído por Itamar Franco, que convidou Fernando Henrique Cardoso para ocupar o cargo de Ministro da Fazenda. Fernando Henrique criou então, juntamente com equipe de economistas, o Plano Real. Estabilizou a moeda e os índices de inflação. Foi então que nas próximas eleições para presidência da República assumiu o mais alto cargo do Poder Executivo Federal. Em 09/09/1997 foi editada a Lei nº 9.491, que revogou a nº 8.031/1990, mas manteve em todos os seus termos a desestatização. Ainda hoje enfrentamos certa dificuldade na organização do Estado e na capacidade para implementar, equilibradamente, políticas públicas em áreas fundamentais para o desenvolvimento da sociedade, que devem ser a base central do seu planejamento: distribuição de renda, alimentação, empregos, segurança, educação, acesso à justiça, saúde, programas de infraestrutura para moradia, saneamento básico. 1.1. O MODELO REGULATÓRIO Quando se fala em intervenção do Estado no domínio econômico, em sentido amplo, relaciona-se à ideia de um modelo regulatório. Pode-se dizer que desde o momento em que o Estado adquiriu o monopólio da produção jurídica (o que ocorreu a partir da idade média), existe um “Estado Regulador”. O Estado Regulador é, primeiramente, uma organização institucional que se relaciona às concepções do Estado de Direito. Pode-se afirmar, então, que práticas regulatórias são inerentes ao Estado em sua clássica configuração. 12 O surgimento do Estado moderno implicou a necessidade de regulação. Portanto, e de certa forma, a expressão “Estado Regulador” até poderia ser objeto de reprovação tanto quanto “Estado Interventivo”. Sua utilização se reporta, entretanto, a uma alteração qualitativa em face de concepções anteriores. Para Marçal Justen Filho3, para se compreender o conceito de Estado Regulador é necessário reconhecer a supremacia da ordem jurídica sobre a atuação política: A ideia de Estado de Direito resultou da conjugação de três princípios fundamentais, a saber: a supremacia constitucional, a generalização do princípio da legalidade e a universalidade da jurisdição. Daí derivou a concepção de que as atividades políticas desenvolvem-se dentro dos limites jurídicos, sendo impossível reconhecer outro fundamento de legitimidade dos atos estatais senão a validade. A compatibilidade com a ordem jurídica é o critério de aceitabilidade da atuação estatal. Para Justen Filho, sob esse ângulo, o Estado Regulador ao qual se alude, se vincula necessariamente à figura do Estado de Direito, que resulta das concepções desenvolvidas ao longo do século XIX. Importa ressaltar que a regulação econômica realizada através das agências independentes se caracteriza também pela sequência de procedimentos transparentes, com a possibilidade de participação dos interessados. Os mais importantes atos praticados pelas agências brasileiras têm como pressuposto necessário a sua prévia divulgação e debate público. Para que a regulação seja efetiva, é necessário que os atores econômicos sejam constantemente consultados. A legislação brasileira prevê, inicialmente, a possibilidade de participação popular em conselhos consultivos das agências, ou seja, podem ser indicadas a participar desses conselhos consultivos as pessoas 3 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002. p. 16. 13 indicadas pelo Poder Legislativo, pelo Poder Executivo, pelas entidades representativas dos usuários e por entidades representativas da sociedade. Por exemplo, na Agência Reguladora Anatel, o Art. 33 da Lei n. 9.472/97 aduz que: “O Conselho Consultivo é o órgão de participação institucionalizada da sociedade na Agência”. Há, também, mecanismos que autorizam a interação dos particulares antes da edição de um ato normativo. Ocorre, por exemplo, a consulta e audiência pública, as quais garantem a publicidade dos atos das agências e permitem participação dos interessados no processo normativo. Insta frisar que no Brasil está previsto umprocedimento formal e participativo para a elaboração de normas pelas agências, mas não acontece qualquer negociação com os particulares, como acontece nos Estados Unidos. Lá há o negotiated rulemakin4, procedimento que possibilita a elaboração de normas por meio de negociação entre as agências reguladoras e representantes daqueles que serão atingidos pelo diploma normativo. Conclui-se que a previsão legal de procedimentos formais para a elaboração de normas e outras atividades pelos entes reguladores tem elevada importância como forma de controle da atuação de tais entes. 4 CUÉLLAR, Leila. Apontamentos acerca do poder normativo das agências reguladoras norte-americanas. In> CUÉLLAR, Leila; MOREIRA, Egon Bockmann. Estudos de direitos. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 99-131. 14 1.2. O ESTADO REGULADOR E SUAS CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS Com a evolução das civilizações a configuração original do Estado de Direito foi superada, mas requícios foram mantidos e integram de modo inafastável à concepção de “Estado Regulador”. O conceito de “Estado Regulador” é diretamente determinado pela concepção intervencionista do Estado de Bem-estar Social. Afirmar o monopólio do Direito pelo Estado é insuficiente para justificar e legitimar os poderes estatais. O Estado não pode ser enfocado como simples forma de manutenção de determinada situação socioeconômica. Ao contrário, o Estado e os poderes jurídicos a ele outorgados são instrumento de alteração das relações estabelecidas entre os diferentes agentes sociais. A crise fiscal do Estado de Bem-estar conduziu a perspectiva de redução das dimensões do Estado e de sua intervenção direta no âmbito econômico. Passou-se a um novo modelo de atuação estatal, caracterizada preponderantemente pela utilização da competência normativa para disciplinar a atuação dos particulares. Essa concepção mudou, principalmente pela prevalência de concepções regulatórias do Estado. O novo paradigma se peculiariza não por integral rejeição da concepção intervencionista, mas pela diferenciação acerca dos limites e instrumentos adequados. Neste sentido, sobre a redução da intervenção estatal e o predomínio das funções regulatórias, preconiza Marçal Justen Filho5: No modelo desenvolvido ao longo dos últimos trinta anos, a atuação e a intervenção estatal diretas foram reduzidas sensivelmente. A contrapartida da redução da intervenção estatal consiste no predomínio de funções 5 JUSTEN FILHO, 2002, p. 21. 15 regulatórias. Postula-se que o Estado deveria não mais atuar como agente econômico, mas sim como árbitro das atividades privadas. Não significa negar a responsabilidade estatal pela promoção do bem-estar, mas alterar os instrumentos para a realização dessas tarefas. Ou seja, o ideário do Estado de Bem-Estar permanece vigente, integrado irreversivelmente na civilização ocidental. As novas concepções acentuam a impossibilidade de realização desses valores fundamentais através da atuação preponderante (senão isolada) dos organismos públicos. Vale ressaltar que o modelo regulatório distancia-se efetivamente da ideia de dirigismo econômico que, na tentativa da realização do projeto de Bem-Estar, foi praticada em muitos países. Marçal Justen Filho6 afirma que o dirigismo correspondeu à pretensão de supressão da autonomia empresarial privada, assumindo, o Estado, competências amplas e ilimitadas no setor econômico. Esse modelo reconhecia a necessidade de planejamento centralizado e rejeitava espaços alheios ao Estado para implantação de projetos em outros moldes. O dirigismo manifestava-se como um projeto estatal de dominação por extensão e por intensidade. Sob o ângulo de extensão, o dirigismo levava a submeter ao poder estatal todas as atividades relevantes para o interesse coletivo. Pela intensidade, acarretava a intromissão estatal no íntimo das decisões pertinentes às diferentes unidades empresariais7. A concepção regulatória retrata uma redução num leque de dimensões da intervenção estatal no âmbito econômico. Mesmo que não seja possível delimitar um padrão predeterminado, a regulação incorpora a concepção da subsidiariedade. Isso importa reconhecer os princípios gerais da livre iniciativa e da livre empresa, reservando-se ao Estado o instrumento da regulação como meio de orientar a atuação dos particulares à realização de valores fundamentais. 6 JUSTEN FILHO, loc cit. 7 ALBINO DE SOUZA, Washington Peluso. Primeiras Linhas de Direrito Econômico. 2ª Ed. FBDE, 1992. p. 147. 16 Sobre o tema, destaca Carlos Ari Sundfeld8: A regulação é – isso, sim – característica de um certo modelo econômico, aquele em que o Estado não assume diretamente o exercício de atividade empresarial, mas intervém enfaticamente no mercado utilizando instrumentos de autoridade. Assim, a regulação não é própria de certa família jurídica, mas sim de uma opção de política econômica.” Conclui-se que a regulação é característica de determinado tipo econômico onde o Estado atua, reservando-se ao Estado o instrumento da regulação como meio de orientar a atuação dos particulares à realização de valores fundamentais. 1.3 FINALIDADES DA REGULAÇÃO Na doutrina econômica é comum apontar a regulação estatal como meio efetivo para preencher as lacunas do mercado. É indispensável destacar que a ideia de um Estado Regulador não envolve abraçar concepções economicamente reducionistas. Se a ideia de regulação se envolveu nesse âmbito, a tanto não pode ser limitada. As finalidades regulatórias relacionam-se à realização dos valores fundamentais consagrados pela Nação, sejam eles de natureza econômica ou não. Para Marçal Justen Filho9, seria um reducionismo (já praticado no passado) imaginar que a regulação estatal se relaciona apenas à obtenção da maior eficiência econômica possível. Essa concepção se revelou defeituosa, especialmente a partir da análise da regulação comunitária europeia. Nesse caso em especial a regulação 8 SUNDFELD, Carlos Ari. Serviços Públicos e Regulação Estatal, em Direito Administrativo Econômico. Malheiros – SBDP, 2000. p. 23. 9 JUSTEN FILHO, 2002, p. 16. 17 foi utilizada visando à obtenção de determinados fins econômicos de curto, médio e longos prazos. Obviamente que a regulação é um instrumento da realização de fins escolhidos pelo Estado. Mais do que isso, é imperioso tomar consciência dessa condição instrumental da atividade regulatória do Estado, sob pena de neutralizar-se eticamente a ação estatal. Isso equivaleria a subordinar a atuação estatal à realização exclusiva de valores econômicos, alterando o núcleo fundamental da Constituição. Neste sentido, Marçal Justen Filho10 afirma que por essas razões é que a regulação é considerada um conjunto ordenado de políticas públicas: Defende-se, por isso, a concepção de ser a regulação um conjunto ordenado de políticas públicas, que busca a realização de valores econômicos e não econômicos, reputados como essenciais para determinados grupos ou para a coletividade. Essas políticas envolvem a adoção de medidas de cunho legislativo e de natureza administrativa, destinadas a incentivar práticas privadas desejáveis e a reprimir tendências individuais e coletivas incompatíveis com a realização dos valores prezados. As políticas regulatórias envolvem inclusive a aplicação jurisdicional do Direito. A configuraçãode um modelo regulatório significa uma inovação característica, consistente na estruturação sistemática da atividade regulatória. Anteriormente, a produção da regulação era aleatória, desorganizada e eventual. Era uma alternativa secundária para a realização dos fins do Estado. Diante do exposto, conclui-se que o modelo regulatório é uma importante via de realização de interesses públicos, e, deste modo, a regulação deixa de ser apenas um meio de intervenção econômica para tomar uma dimensão cada vez maior e mais importante para as políticas sociais, econômicas e organizacionais. 10 JUSTEN FILHO, 2002, p. 40. 18 2. SURGIMENTO E CARACTERÍSTICAS DAS AGÊNCIAS REGULADORAS 2.1. AGÊNCIAS REGULADORAS NORTE-AMERICANAS O instituto jurídico da regulação e a criação dos entes competentes surgiram na Inglaterra. Aparece a figura do common calling, profissional que oferecia seus serviços de interesse às comunidades em troca de uma remuneração, que possuíam qualificações especializadas, e por isso eram muito requisitados. É neste momento histórico que emergiu o instituto jurídico das atividades de utilidade pública e sua regulação (com a tabelação dos valores cobrados)11. Nos Estados Unidos a regulação das atividades públicas teve início na metade do século XIX, com a criação de autoridades de controle (regulatory agencies) por atividades e setores. As primeiras agências reguladoras norte- americanas datam de 1839 e 1844 em Rhode Island e New Hampshire, com um restrito poder no controle ferroviário (JUSTEN FILHO, 2002, p. 70-72). Os Estados Unidos foi o berço do surgimento das agências reguladoras. A doutrina internacional é unânime ao publicar que o marco da regulação das public utilities se deu com uma decisão tomada pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte no ano de 1876, no famoso caso Munn versus Illinois, 94 US 113 (1876)12. Em resumo, trata-se de um litígio onde Munn e Scott, proprietários de um silo para armazenamento de grãos, na cidade de Chicago. Foram acusados e condenados na Suprema Corte americana de subir os preços das taxas de armazenamento de grãos em desconformidade com a legislação estadual. 11 JUSTEN FILHO, 2002, p. 71. 12 Id., 2002, p. 75. 19 O professor Dr. Paulo Motta13 esclarece importantes conclusões acerca do supracitado julgado, marco do aparecimento das agências reguladoras: A primeira é a de que a mais alta instância do Judiciário norte-americano reconheceu que o Estado, no exercício de sua soberania, tem o dever- poder de regular a conduta de seus cidadãos, inclusive no exercício de suas atividades privadas, notadamente quando destas depende a coletividade. [...] A segunda, que determinadas atividades.necessárias ao bem comum – public utilities -, desde tempos imemoriais, sempre foram reguladas no país onde nasceu o common Law e, nos Estados Unidos, a fixação de um preço máximo a ser cobrado pelos serviços é matéria básica de regulação estatal. A terceira, que os dispositivos constitucionais devem ser interpretados de acordo com a época em que estão sendo aplicados, ou seja, que é tarefa da jurisprudência, bem como da doutrina, modificar a interpretação dos dispositivos legais, sendo desnecessária, portanto, a modificação legislativa para que a evolução do direito se proceda. Surge aqui, quer nos parecer, o caráter incerto e casuístico do instituto [...]. A quarta, ao contrário dos países que adotaram o sistema do civil Law, o common Law pressupõe que a “outorga” (melhor seria consignar “conquista”) para o exercício de determinadas atividades não se faz pelo Estado, mas sim pelos próprios agentes privados que prestam e utilizam aquela atividade. A quinta, que no verdadeiro federalismo praticado nos Estados Unidos da América do Norte, mesmo nas matérias econômicas mais fundamentais, os Estados-membros gozam de ampla competência legislativa. As decisões da Suprema Corte Norte-americana continuaram e fixaram novos e fundamentais marcos para a questão regulatória, pois conferiram ao Poder Legislativo a competência para a devida regulação destas atividades econômicas. Para a Suprema Corte, os Estados federados norte-americanos dispunham de ampla liberdade para adotar qualquer política econômica, que, promovesse de modo equilibrado o bem-estar da população. As leis de conteúdo econômico gozavam de ampla presunção de validade e constitucionalidade, restando aos Tribunais a invalidação apenas quando houvesse excesso de Poder Legislativo. Paulo Motta (2003, p. 68) conclui que as agências norte-americanas possuem uma natureza jurídica própria. O ponto central do sistema jurídico norte-americano, o 13 MOTTA, Paulo Roberto Ferreira de. Agências Reguladoras. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 58-59. 20 due processo of Law, em todas as suas formas, é verificado em todos os procedimentos. As funções normativas são materializadas por atos administrativos das agências competentes. A função administrativa possui um caráter de prevenção de conflitos, havendo expressa previsão de negociações prévias. A participação da população em todas as agências se faz por exigência legal e devem incentivar essa participação. As funções jurisdicionais não prescindem, jamais, da observância total de todos os direitos e garantias asseguradoras do due processo f Law. Ainda, segundo o professor Dr. Paulo Motta14 dois pontos devem ser destacados quando se analisam as agências norte-americanas. O primeiro é a função administrativa realizada pelas agências no direito norte-americano, em que é, a todo tempo, destacado o papel de prevenção realizado por estes entes, no intuito de evitar conflitos entre usuários e concessionários, na medida em que se possa usar a expressão concessionário no direito norte-americano, e usuários contra usuários. O segundo ponto, segundo Motta, a ser observado é o papel jurisdicional exercido pelas agências nos Estados Unidos. Existe ampla e específica regulamentação para que a decisão dos conflitos caiba a pessoa sem vínculo com as agências, aos chamados árbitros independentes. O Code of Federal Regulations, ao tratar das regras práticas e procedimentos, define regras para as negociações e arbitragem para a solução de conflitos. Foram aqui demonstradas as características emblemáticas das agências reguladoras norte-americanas, base das Agências Reguladoras que surgiram no Brasil. 14 MOTTA, 2003, p. 69-70. 21 2.2. AGÊNCIAS REGULADORAS BRASILEIRAS As agências reguladoras foram criadas no Brasil a partir de 1996, na esteira do processo de privatizações e reformas do Estado, tendo sua concepção profundamente influenciada pela doutrina neoliberal. Essas entidades começaram a ser criadas com o objetivo de modernizar e conferir maior eficiência à atuação do Estado em determinados setores. O direito brasileiro adotou o termo “agências” para batizar essas novas entidades por influência da terminologia utilizada pelo Direito norte-americano, onde o termo “agência” é largamente utilizado como sinônimo de órgãos públicos. O modelo das agências reguladoras foi adotado no Brasil como consequência de alterações no texto constitucional destinadas a abrir a economia e o mercado brasileiros à ação do capital estrangeiro (representado pelas empresas e grupos transnacionais), abertura que foi largamente estimulada pelos Estados Unidos e pelos demais países desenvolvidos, e intermediadapor instituições internacionais de crédito como o FMI e o Banco Mundial. Os alvos principais desse processo foram a exploração de recursos naturais e a prestação de serviços públicos, áreas até então protegidas constitucionalmente contra a ação de entidades estrangeiras e que consistiam nos setores mais atraentes do ponto de vista econômico. 2.2.1 Natureza jurídica das Agências Reguladoras As agências reguladoras brasileiras são autarquias de regime especial, que possuem autonomia em relação ao Poder Público. 22 Hely Lopes Meirelles15 explica o regime especial diferenciado: “O regime especial diferenciado significa que à entidade autárquica são conferidos privilégios específicos, visando aumentar sua autonomia em relação às autarquias comuns, sem infringir os preceitos fundamentais pertinentes a essas entidades de personalidade jurídica”. Além das características de competência regulatória, com a ampliação das funções normativas e judicantes da Administração Pública indireta, pode-se congregar os seguintes elementos confirmadores da autonomia das Agências Reguladoras: organização colegiada, impossibilidade de exoneração ad nutum aos seus dirigentes, autonomia financeira e orçamentária, e independência decisória. Cabe ressaltar, que as Agências Reguladoras somente terão condições de desempenhar adequadamente seu papel se ficarem preservadas de ingerências externas inadequadas, especialmente por parte do Poder Público, tanto no que diz respeito a suas decisões político-administrativas, quanto a sua capacidade financeira. Por isso que, constatada a evidência, o ordenamento jurídico cuidou de estruturá-las como autarquias especiais, dotadas de autonomia político- administrativa e autonomia econômico-financeira16. 2.2.2 Autonomia regulatória As Agências Reguladoras são entidades autônomas em relação ao poder central, sendo, de certa forma, detentora de independência decisória. 15 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 18º ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 315. 16 BARROSO, Luis Roberto. Apontamentos sobre as Agências Reguladoras. In: MORAES, Alexandre de (Org.). Agências Reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002. p.121. 23 Vital Moreira17 aponta diversas razões para defesa da autonomia regulatória das Agências. A primeira seria a separação entre a política e a economia, de modo que a economia não permaneça nas mãos do Governo; a segunda seria a garantia de estabilidade e segurança no quadro regulatório (inamovibilidade do mandato dos reguladores), de modo a não depender do ciclo eleitoral, mantendo a confiança dos agentes regulados, quanto à estabilidade do ambiente regulatório. Segue sustentando, como razão para a autonomia, o favorecimento do profissionalismo e a neutralidade política, mediante o recrutamento de especialistas profissionais, ao invés de correligionários políticos dos governantes. Tem-se, ainda, a separação do Estado-empresário do Estado Regulador, com o indispensável tratamento isonômico entre os operadores públicos e privados. Destaca a “blindagem” contra a captura regulatória, mediante a criação de reguladores afastados das constrições próprias da luta partidária e do ciclo eleitoral, proporcionando melhores condições de resistência às pressões dos regulados e, por fim, a garantia do autofinanciamento, de modo que a entidade reguladora potencialize a sua autonomia em relação ao Governo e aos regulados. O conjunto de funções exercidas pelas agências reguladoras pode ser sintetizado em três principais: o poder de polícia, o fomento e as atribuições de poder concedente. A organização dessas entidades autárquicas especiais estruturou-se de forma que as suas decisões definitivas tenham uma forma colegiada, onde o Conselho Diretor seja composto pelo Direitor-Presidente e demais diretores, com quorum deliberativo por maioria absoluta. As nomeações desses dirigentes são 17 MOREIRA, Vital. Por uma regulação ao serviço da economia de mercado e do interesse público: a “declaração de condeixa”. In: GUERRA, Sergio. Agências Reguladoras: da organização administrativa piramidal à governança em rede. Belo Horizonte: Forum, 2012. p. 119. 24 feitas por prazos certos e não coincidentes, havendo impossibilidade de exoneração ad nutum. A autonomia financeira e orçamentária está assegurada nas leis que instituírem cada Agência Reguladora, em que pese o contingenciamento de recursos (retardamento ou inexecução de parte da programação de despesa prevista na Lei Orçamentária) que essas autarquias vêm ocasionalmente enfrentando. Os recursos das Agências Reguladoras advêm das chamadas taxas de fiscalização ou regulação pagas por aqueles que exercem as respectivas atividades econômicas reguladas, de modo a que inexista dependência de recursos do orçamento do tesouro. A independência decisória representa o estabelecimento do Conselho Diretor da Agência Reguladora como última instância decisória, pela sua vinculação administrativa ao respectivo Ministério (e não por subordinação hierárquica). Sobre a independência decisória, Sergio Guerra ressalta que a doutrina não é unânime acerca da possibilidade ou não de interposição de recurso hierárquico impróprio contra as decisões das Agências Reguladoras18. Se por um lado não se discute que a Administração Pública é um todo coeso e orgânico, que deve articular todas as unidades administrativas, sejam os órgãos ou entidades da administração direta ou indireta, por outro, não é uníssono o entendimento doutrinário de que as Agências Reguladoras, por terem natureza autárquica especial, devem se sujeitar a uma supervisão ministerial e do Chefe do Poder Executivo, que permita à Administração Pública direta rever os atos regulatórios por meio do controle administrativo. 18 GUERRA, 2012, p. 126. 25 O que se pode concluir da análise das doutrinas que tratam deste assunto, é que não deve ser admitido recurso hierárquico impróprio contra decisões finais das Agências Reguladoras (cuja lei de criação disponha que suas decisões se dêem em último grau), quando exercerem as funções executivas, normativas ou judicantes dentro dos limites de suas competências preponderantemente técnicas. Porém, se as Agências Reguladoras usurparem competência legal dos Ministérios e atuarem em flagrante contraste às normas legais, pode-se admitir recurso hierárquico impróprio. O Parecer AGU/MS-04/06, de 23 de maio de 2006, da lavra do Consultor da União, Marcelo de Siqueira Freitas, foi adotado por meio do despacho do Consultor Geral da União nº 436/06, para os fins do art. 41 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. O Presidente da República aprovou o parecer em 13 de junho de 2006, vinculando toda a organização administrativa federal às seguintes premissas: a) o recurso hierárquico próprio, decorrente do princípio e da organização hierárquica no âmbito próprio de cada instância ou nível administrativo, tendente a submeter à autoridade superior o ato ou decisão praticada pela autoridade inferior, na escala organizacional, tem sempre cabimento, independente da previsão legal, salvo se, excepcionalmente, a lei ou o regulamento excluí-lo, de modo explícito; b) o recurso hierárquico impróprio, entendido como aquele que devolve à autoridade superior, estranha ao corpo administrativo da entidade, mas incumbida de sua vigilância e controle, os atos e decisões emanados dos Órgãos da AdministraçãoIndireta, tem irrefutável cabimento quando expressamente previsto em lei, e na extensão em que previsto; c) cabe, implicitamente, o recurso hierárquico impróprio, das decisões finais dos órgãos da Administração Indireta, em virtude do poder de supervisão ministerial, 26 quando os atos e decisões possam suscitar, mediante o recurso, o controle repressivo (Art. 25, I; Art. 26, I, do DL nº 200-67), quer se tenha por objeto a proteção de direitos subjetivos legítimos, quer o resguardo do interesse público; d) não terá cabimento, porém, o recurso impróprio, quando a própria lei atribuir, de modo induvidoso, a determinados atos e decisões, caracteres de definitividade e preclusão, no âmbito administrativo, de modo que somente tenha lugar o seu controle e revisão no âmbito da apreciação judicial; e) em qualquer caso, porém, embora numa colocação e efeitos diversos da matéria recursal, todo assunto em curso na esfera da Administração Federal é sujeito à avocação de competência pelo Presidente da República, desde que ocorra relevante motivo de interesse público, operando-se uma substituição do poder decisório nos termos do art. 170 do DL nº 200-67 (Parecer CGR L-084/1975, aprovado pelo Presidente da República e publicado no DOU de 02.12.1975). 2.2.3 Criação, instituição e extinção das Agências Reguladoras As Agências Reguladoras, sendo autarquias, estão submetidas a regras especiais que disciplinam o modo pelo qual devem validamente nascer e se extinguir as pessoas jurídicas de Direito Público. Assim, como entidades de natureza Pública, não se lhes aplicam os dispositivos contidos no Título II do Código Civil Brasileiro, que tratam da criação e extinção das pessoas jurídicas de Direito Privado. As Agências se sujeitam aos princípios e normas do regime jurídico-administrativo. No Brasil a falta de lei sobre o regime das agências reguladoras em geral leva à conclusão de que só podem ser criadas e extintas através de lei específica. 27 Neste sentido, determina o Art. 37, inciso XIX, da Constituição Federal: “somente por lei específica poderá ser criada autarquia [...]”. Na mesma esteira, o Decreto-lei nº 200/1967 define autarquias como entidades “criadas por lei” (Art. 5º, I). Porém, a unanimidade doutrinária e jurisprudencial em torno dos pontos mencionados contrasta com o silêncio a respeito de duas questões correlatas: a) o que se deve entender por “lei específica”? b) quais os desdobramentos jurídicos decorrentes da criação de agência reguladora por meio de instrumento normativo adequado? O deslinde da questão a respeito do significado da expressão “lei específica” depende da análise de dois pontos: o que se entende por lei e qual o conteúdo do qualificativo “específica”. Das onze agências reguladoras federais existentes até agora, oito foram criadas mediante lei ordinária: ANEEL (Lei nº 9.427/96), a ANATEL (Lei nº 9.472/97), a ANP (Lei nº 9.478/97), a ANS (Lei nº 9.961/2000), a ANA (Lei nº 9.984/2000), a ANVISA (Lei nº 9.782/99), a ANTT (Lei nº 10.233/2001) e a ANTAQ (Lei nº 10.233/2001). Três foram criadas por medidas provisórias: a ANCINE (Medida Provisória nº 2.219/2001, atualmente MP nº 2.228-1, de 06/09/2001), a ADA (Medida Provisória nº 2.157-5/2001) e a ADENE (Medida Provisória nº 2.156-5/2001). Além disso, apenas três desses diplomas normativos cuidaram exclusivamente de criar as respectivas agências reguladoras – a Lei nº 9.427/96 (ANEEL). Nos demais casos, os diplomas normativos tratam de diversos assuntos, inclusive a criação das agências. Houve também uma única lei (Lei nº 10.233/2001) que criou, simultaneamente, três autarquias: a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), a ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) e o DNIT 28 (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). Isso apenas foi possível por haver conexão entre as correspondentes áreas de atuação. Por isso que o sentido literal da expressão “lei específica”, prevista no artigo 37, XIX, da Constituição Federal, é fundamental para analisar se as agências reguladoras brasileiras foram criadas validamente. O vocábulo “lei” é empregado em vários sentidos. O artigo 5º, II, da Constituição Federal determina: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. O mesmo artigo, em seu inciso XXXVI diz: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. O artigo 59 da Constituição Federal elenca todas as espécies legislativas: emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. Por essa abrangência do vocábulo “lei” é que deve-se interpretar qual dos sentidos está sendo utilizado no artigo 37, inciso XIX, da CF, que normatiza a criação das Agências Reguladoras. Outro detalhe que vale ressaltar é que a lei que cria Agência Reguladora é de iniciativa privativa do Presidente da República, conforme disposto no Art. 61, § 1º, II. Alíneas “a” e “e”, da Constituição Federal. Desta maneira, conclui-se ser impossível que uma agência reguladora seja criada através de lei delegada, decreto legislativo ou de resolução. Quanto à hipótese de uma agência reguladora ser criada através de emenda constitucional e lei complementar, não há impedimentos jurídicos para que isso ocorra, mas é mais raro, em função dos quóruns mais rigorosos. 29 Portanto, apesar de existir possibilidade de se criar uma agência reguladora por emenda constitucional e lei complementar, o veículo normativo próprio é a lei ordinária, proposta pelo Presidente da República (Art. 61, § 1º, CF), com discussão e votação iniciadas na Câmara dos Deputados (Art. 64, caput, CF), e revisão pelo Senado (Art. 65, CF), havendo a possibilidade de ser feito o pedido de urgência pelo Presidente da República na apreciação (Art. 61, § 1º, CF). Se aprovado nas duas Casas, o projeto será enviado ao Chefe do Executivo para sanção ou veto (Art. 66, § 1º, CF) e finalmente sua promulgação (Art. 66, § 7º, CF). Cabe acrescentar, que é igualmente válida a lei que, criando certa agência, extingue pessoa jurídica carregada das mesmas atribuições. Criar autarquia e constituí-la são eventos distintos. A criação se dá através de lei específica, por manifestação de vontade do Estado revestida de força inaugural, é seu nascimento jurídico. A instituição, ao contrário, opera-se através de decreto, que regulamenta a lei que criou e faz surgir a entidade. De acordo com Celso Antonio Bandeira de Mello19 não deve ser confundida a criação das autarquias com sua instituição: “Não se deve confundir o problema da criação das autarquias com o de sua instituição. O Executivo, para dar cumprimento efetivo à vontade legal de criar uma autarquia necessita praticar atos complementares. Incumbe-lhe não só regulamentar a lei, como ainda tomar as providências indispensáveis ao funcionamento da nova pessoa administrativa afetando-lhe os recursos humanos e materiais previstos. Por isso existem decretos que “instituem autarquias”. Correspondem a manifestações do Executivo subordinadas ao efetivo cumprimento da lei.” Cabe ao decreto presidencial instituidor da entidade aprovar o regime interno, atribuição que, no caso das agências reguladoras, consta expressamente 19 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Natureza e regime jurídico das Autarquias. São Paulo: Ed. RT, 1968 p. 419. 30 nas suas leis de criação: Art. 34 da Lei nº 9.427/1997, Art. 10 da Lei 9.472/1997, Art. 77 da Leinº 9.478/1997, Art. 5º da Lei nº 9.782/1999, Art. 2º da Lei nº 9.961/2000, Art. 26 da Lei nº 9.984/2000, e Art. 99 da Lei nº 10.233/2001. As Agências Reguladoras Federais foram instituídas pelos seguintes decretos: Aneel – Decreto nº 2.235/1997, Anatel - Decreto nº2.338/1997, ANP - Decreto nº 2.455/1998, ANS - Decreto nº 3.327/2000, ANA - Decreto nº 3.692/2000, Anvisa - Decreto nº 3.029/1999, ANTT - Decreto nº 4.130/2002, Antaq - Decreto nº 4.122/2002, Ancine - Decreto nº 4.121/2002, ADA - Decreto nº 4.125/2002 e Adene - Decreto nº 4.126/2002. As atuais agências reguladoras federais foram criadas por prazo indeterminado, e só podem ser extintas por lei específica. Sobre o tema, Celso Antonio Bandeira de Mello20 discorre: “Só a lei extingue autarquia. O que foi feito em nível de norma primária, só neste nível pode ser desfeito. Obviamente, nem o decreto, nem a simples vontade autárquica podem derrogar preceito legal”. É claro que, se para a criação das autarquias a Constituição Federal exige lei, a extinção delas também depende de lei. É o que se extrai do Art. 17 da Lei criadora da Anatel – Lei 9.472/1997: “A extinção da agência somente ocorrerá por lei específica”. 20 BANDEIRA DE MELLO, 1968, p. 425. 31 3. OS PODERES DAS AGÊNCIAS REGULADORAS Como já vimos, as agências reguladoras são dotadas de autonomia ao realizar suas funções. Por isso, é essencial compreender os poderes especiais que possuem as agências reguladoras. Devido seu status de ente independente, foi-lhes dada a prerrogativa de produção de normas abstratas, o qual chamamos de poder normativo; prestar funções administrativas, definidas pelo poder regulamentar; e o chamado poder mediador, com a função de mediar litígios entre os envolvidos no processo regulatório. É verdade que, o fato de uma agência reguladora reunir tais poderes especiais trouxe à tona uma série de discussões acerca dos limites e validade desses poderes, já que se trata de um ente dotado de autonomia e independência, inclusive dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. 3.1. O PODER REGULAMENTAR O Poder Regulamentar é a faculdade que possuem os chefes do Poder Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) de expedir decretos, regulamentos e instruções para que determinada lei seja executada de maneira correta. Ressalte-se que este poder à eles conferido não pode ser delegado a outros (assessores, etc.), por isso dizemos ser personalíssimo. 32 Há uma ressalva quanto aos limites desse poder regulamentar, que é com relação às matérias submetidas à reserva legal (aquelas que conforme reza a Constituição são apenas normatizadas por lei). Caso seja verificada alguma irregularidade, abuso ou erro, o Congresso Nacional pode sustar tais atos normativos, conforme preconiza o Art. 49, inciso V da Constituição Federal: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”. O Poder Regulamentar é prerrogativa do Presidente da República e dos Ministros de Estado (Art. 84, IV, e 87, II, CF), porém não o exercem com exclusividade, pois outros entes da Administração Pública possuem essa prerrogativa especial. Apesar de possuírem este poder especial regulamentar, as agências reguladoras possuem restrições, quais sejam: devem submeter os regulamentos à norma maior e à lei, por se tratar de regulamentos inferiores, e que não podem contrastar com a lei; é vedada a inovação de matéria; é vedado versar sobre matéria de reserva legal; não possuem efeito ex tunc; sua fundamentação deve ser precisa; e são sujeitas ao controle do Poder Judiciário. Conclui-se que as agências reguladoras possuem esse Poder Regulamentar, porém com restrições e vedações. 3.2. O PODER MEDIADOR Também conhecido como poder "quase judicial", o Poder Mediador possui a prerrogativa de mediar embates entre os envolvidos nos atos das agências. 33 Alguns doutrinadores dos Estados Unidos referem-se ao Poder Mediador como aquele que possui "discricionariedade técnica". Em outras palavras, para eles, a faculdade de mediar litígios das agências, seria de forma essencialmente técnica, vedada a interferência no mérito da questão, e limitada ao controle das agências apenas quanto à legalidade. Porém essa tese de vedação de controle pelo Poder Judiciário nas agências regulatórias não foi acatada nem nos Estados Unidos, nem no Brasil. O fato das agências reguladoras possuírem a prerrogativa de mediar embates, não se pode ignorar o Princípio da Inafastabilidade da tutela jurisdicional. A verdade é que não há esfera de discricionariedade na Administração Pública brasileira que não esteja sujeita ao controle judicial. Sobre o tema discorre Carlos Ari Sundfeld21: O Judiciário, com a estrutura que lhe foi dada no século passado, não é capaz de conhecer todos os conflitos decorrentes da vida moderna e das normas editadas para transformar em valores jurídicos os novos valores que foram sendo incorporados pela sociedade. Mesmo assim resistimos à ideia de que outros órgãos ou entes possam ter um papel que de algum modo corresponda, ou se assemelhe, no novo tempo, àquilo que o judiciário fez no passado em caráter de exclusividade. A grande questão que se coloca quanto a esse aspecto da regulação é a efetividade do controle judicial sobre as decisões das agências reguladoras. Por se tratarem as agências reguladoras de entidades especializadas é clara a dificuldade do Poder Judiciário de analisar conflitos que possuam caráter técnico. Insta ressaltar que o fato de as agências reguladoras serem tecnicamente especializadas foi um dos principais motivos que levou à criação das agências reguladoras, a crescente evolução tecnológica, a especialização, o peso técnico dos 21 SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às Agências Reguladoras. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2002. 34 entes regulados, e que, levou, logicamente, a Administração Pública a especializar- se. Conclui-se que há um controle do Poder Judiciário, mas apenas de caráter formalista, não havendo, na maioria das vezes, como ponderar as decisões tomadas pelas agências reguladoras. 3.3. O PODER NORMATIVO As agências reguladoras são legalmente dotadas de prerrogativas para edição de normas sobre as matérias de sua competência e especialidade. Trata-se do Poder Normativo das agências, assunto polêmico na doutrina brasileira. A Lei da Anatel, em seu Art. 22, inciso IV (Lei n. 9.472/97), determina: “Compete ao Conselho Diretor editar normas sobre matérias de competência da Agência.” Este poder de “editar” normas a que se refere a Lei da Anatel é o Poder Normativo que possuem as Agências Reguladoras, e que dá a elas o status de independentes, e que será mais detalhadamente estudado no próximo capítulo. 35 4. O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS 4.1. A FUNÇÃO NORMATIVA Como vimos nos capítulos anteriores, as agências reguladoras foram criadas com o intuito de regrar o jogo do mercado, a pretexto de modernizar e conferir maior eficiência à atuação do Estado em determinados setores. O qualitativo “reguladoras”, retirado da linguagem econômica e de vaga significação para o Direito, sugere competências voltadas a normatizar,controlar e fiscalizar. As Agências Reguladoras foram legalmente dotadas de competência para edição de normas sobre matérias de sua especialidade (técnica). A administração Pública desenvolve atividades funcionais, ou seja, atua a defesa de interesses da coletividade, buscando mediante a utilização de prerrogativas instrumentais, cumprir as finalidades prefixadas em lei. Nesta linha, preconiza Celso Antonio Bandeira de Mello22: “Tendo em vista este caráter de assujeitamento do poder a uma finalidade instituída no interesse de todos - e não da pessoa exercente do poder -, as prerrogativas da administração não devem ser vistas ou denominadas como “poderes” ou como “poderes-deveres”. Antes se qualificam e melhor se designam como “deveres-poderes”, pois nisto se ressalta sua índole própria e se atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então, o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas interentes limitações.” Celso Antonio Bandeira de Mello afirma que, ao invés de utilizarmos a expressão “poder normativo”, poderíamos falar em “dever normativo”, que bem ressalta a natureza instrumental da supradita atribuição. 22 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 62-63. 36 A legislação atribuiu às agências reguladoras competências para editar normas sobre determinadas matérias (especializadas). Mas o que se questiona é qual a natureza e a extensão desse dever normativo. Para Norberto Bobbio23, o dever normativo é: “aquele voltado à edição de proposições prescritivas cuja violação causa uma resposta proveniente do grupo social (sanção externa) e que, além disso, são aplicadas por órgãos estatais especializados, de acordo com regras preestabelecidas (sanção institucionalizada).” Insta ressaltar, que o dever normativo atribuído às agências reguladoras não inclui a competência para edição de todas as espécies de normas jurídicas. Por exemplo, as Agências Reguladoras não podem editar normas de cunho constitucional. Também as Agências Reguladoras são proibidas de criar disposições de natureza legislativa, ou seja, normas que inovem originariamente na ordem jurídica. Pois, no Brasil, a delegação o exercício de função legislativa ao Poder Executivo só pode ser realizada pelo Congresso Nacional em favor do Presidente da República, através de Resolução, conforme disposto no Art. 68 da Constituição Federal. O professor Marçal Justen Filho24 afirma ser inconstitucional delegar às Agências Reguladoras o poder de editar determinadas normas: “[...] enfim, seria inconstitucional constituir uma agência e delegar a ela, de modo permanente e definitivo, o pode para editar normas legais sobre certos assuntos. Não poderia reputar-se como constitucional uma lei estabelecer que uma agência reguladora seria dotada dos poderes para disciplinar um certo setor de atividades, editando todas as normas necessárias para tanto.” 23 BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 1ª Ed. Bauru: Edipro, 2001. p. 159. 24 JUSTEN FILHO, Marçal. Op cit. p. 512. 37 Conclui-se, então, que o dever normativo tem caráter infralegal, mesmo porque a própria legislação criadora das agências reguladoras determina expressamente a subordinação de tais entidades ao princípio da legalidade (Art. 38 da Lei n. 9.472/1997, art. 17 da Lei n. 9.478/1997 e art. 66 da Lei n. 10.233/2001), cujo conteúdo enuncia a superioridade da lei em relação aos atos praticados pela Administração Pública. Também são vedadas as Agências Reguladoras de emitirem prescrições de natureza jurisdicional, caracterizadas pela aptidão jurídica de resolver, com força de coisa julgada, conflitos de interesse, já que tal função cabe, nos Estados onde vigora a unidade de jurisdição, exclusivamente ao Poder Judiciário. Por fim, resta afirmar que o dever normativo das Agências Reguladoras não envolve a expedição de atos regidos pelo Direito Privado, uma vez que tais entidades, sendo expressão da vontade da Administração Pública, atuam, única e exclusivamente, na defesa dos interesses públicos. Em síntese podemos dizer que, o legislador, ao conferir às Agências Reguladoras prerrogativa para editar normas sobre matérias de sua competência, não conferiu a elas aptidão jurídica para editar normas de natureza constitucional, legislativa, jurisdicional ou privada. 4.2. A FUNÇÃO ADMINISTRATIVA As Agências Reguladoras foram criadas com a intenção de melhorar os serviços públicos prestados à população. Na execução das leis que regulam esses serviços, todas as Agências Reguladoras atuam através do binômio prevenção- fiscalização e exercem funções administrativas. 38 O Professor Dr. Paulo Motta25 bem esclarece sobre a função administrativa que possuem as Agências Reguladoras: “Importante salientar, até mesmo como homenagem ao legislador nacional, que as agências reguladoras brasileiras possuem, em tese, à exceção das que são submetidas ao contrato de gestão. Uma notável separação em relação ao Poder Executivo, podendo, em consequência, no gozo de suas autonomias, exercer a função administrativa, notadamente no campo fiscalizatório, com expressiva autonomia.” Ainda afirma o ilustre professor Motta que todo o trabalho regulatório, no campo da fiscalização, deve ser o de impedir a prática de políticas anticoncorrência por parte das empresas prestadoras, até porque uma das razões pela qual a regulação foi criada foi como “ferramenta de combate aos monopólios, duopólios e trustes, principalmente em relação aos serviços que, por questões técnicas, impedem ou dificultam, a competição”. Uma das maiores dificuldades da função administrativa é definir os valores das tarifas a serem cobradas. A dificuldade está em achar um ponto de equilíbrio entre um bom serviço prestado e uma tarifa justa por ele. Conclui-se, que às agências reguladoras brasileiras compete o dever de cumprir com autonomia, neutralidade e lealdade suas funções de prevenir e bem fiscalizar, com a finalidade de que os serviços públicos, ou de interesse social que regulam estejam ao alcance, com qualidade, de toda a população. 4.3. A FUNÇÃO JURISDICIONAL Quando se fala em função jurisdicional das agências reguladoras, deve-se esclarecer que não se trata da função jurisdicional exercida pelo Poder Judiciário, 25 MOTTA, Paulo F., op. cit., p. 188. 39 pois as agências não operam coisas julgadas. Fala-se aqui, da função jurisdicional das Agências Reguladoras, que é substancialmente a função administrativa. O Professor Dr Paulo Motta explica que no exercício da função de aplicar a lei ao caso concreto e resolver conflitos, as agências reguladoras receberam do legislador instrumentos incompletos. Para ele deveria existir um Código de Processo Administrativo único para as agências reguladoras, pois a dificuldade processual devido a ausência de instrumentos processuais limita a cidadania e impede a eficácia plena e material do direito positivo criado sobre a regulação dos serviços públicos brasileiros. Sobre a função jurisdicional, o Professor Dr. Paulo Motta26 faz importante observações: “Consigne-se, por importante, que qualquer decisão tomada pelas agências reguladoras será, sempre, passível de apreciação judicial. E, em virtude da autonomia que gozam as agências reguladoras no direito brasileiro, inexiste o duplograu de jurisdição nos processos administrativos, uma vez que as decisões tomadas por elas não são passíveis, através de recurso hierárquico, ou impróprio, ser reexaminadas por outras entidades do Executivo.” Por fim, cabe ainda frisar, que as agências reguladoras poderão aplicar sanções que estejam normatizadas em seus regulamentos, no exercício da função jurisdicional. Para o Professor Dr. Paulo Motta, a criação de tipos administrativos em regulamentos e resoluções, é inconstitucional, isto depois de analisada a função normativa que possuem as agências reguladoras, e sobre a qual faremos uma análise crítica no próximo tópico. 26 MOTTA, Paulo F., op. cit., p. 190. 40 4.4. ANÁLISE CRÍTICA DA COMPETÊNCIA NORMATIVA DAS AGÊNCIAS Como vimos anteriormente, a legislação atribuiu às agências reguladoras competências para editar normas sobre determinadas matérias (de sua especialização). Entretanto, as leis e regulamentos das Agências Reguladoras não definem a natureza, nem limitam o alcance desse poder normativo, o que leva a discussões acerca do tema entre os doutrinadores. Obviamente que as Agências Reguladoras não têm o poder de editar todas as espécies de normas jurídicas. Por isso o termo utilizado “norma jurídica” deve ser limitado àquilo que é de competência das Agências Reguladoras. A começar pelas normas constitucionais, que não podem de maneira alguma serem editadas pelas Agências Reguladoras. Nesta linha, também não pode ser admitido que as Agências Reguladoras editem normas de disposição legislativa, justamente porque elas não possuem o condão de inovar originariamente qualquer matéria. A justificativa para tal restrição é, tão somente, porque o exercício da função legislativa é do Poder Executivo e só pode ser realizada pelo Congresso Nacional em favor do Presidente da República, através de Resolução, conforme o art. 68 da Constituição Federal. O doutrinador Marçal Justen Filho27 justifica tal restrição legislativa às Agências Reguladoras: “[...] em primeiro lugar, a regra alude à delegação ao Presidente da República, sendo inviável admitir a possibilidade de eleger-se como destinatário da delegação um outro órgão estatal. Depois, a delegação faz- 27 JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit. p. 512. 41 se caso a caso, a propósito de questões específicas e determinadas. Ademais disso, hão há cabimento de o art. 68 albergar a transferência para outro órgão de um poder legiferante permanente e estável. A delegação legislativa versa sobre o poder de elaborar um conjunto de normas sobre determinado tema. Não pode resultar da transferência da competência legislativa propriamente dita. Anote-se que a própria Constituição, no art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, determinou a invalidação de atos de delegação de competência (especialmente legiferante) eventualmente produzidos sob a vigência da Carta anterior.” Ou seja, o que se conclui é que seria inconstitucional delegar a uma agência reguladora a prerrogativa de editar normas de determinadas matérias. Não teria como admitir que uma agência reguladora possua tal poder de normatizar sobre temas que não sejam de sua alçada. O Professor Dr. Paulo Motta28 discorre sobre o tema: “Resta, neste momento, perguntar se no atual estágio da Constituição de 1988, mesmo após todo o processo de emendas sofrido pelo Texto original, existem, ou não, permissivos para que as agências reguladoras brasileiras possam exercer função normativa ou apenas expedir atos administrativos. Analisando ainda mais profundamente, podemos afirmar que, para que as Agências Reguladoras possam ter tal prerrogativa legislativa, a de editar normas (de qualquer matéria), a Constituição Federal de 1988 deveria sofrer mudanças. Portanto, a função normativa das Agências Reguladoras tem caráter infralegal, tanto é que as próprias leis que criam as Agências Reguladoras são muito claras que estes entes devem ser subordinados ao Princípio da Legalidade. Como o Professor Dr. Paulo Motta29 conclui: “É neste contexto que a função normativa a ser exercida pelo Parlamento lócus da representação popular, sofre fissuras. Pluralizam-se as fontes normativas, a fim de que o capital, notadamente o circulante, e por isso especulativo, não sofra restrições nos seus trajetos lucrativos. Neste 28 MOTTA, Paulo F., op. cit., p. 154. 29 MOTTA, Paulo F., op. cit., p. 154. 42 panorama de crise de poder, é que as Agências Reguladoras encontram crescimento.” 43 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com os processos de democratização acontecendo pelo mundo todo, o modelo intervencionista brasileiro deu lugar a um modelo temperado, que fez parte de um movimento neoliberal, que teve início na Europa nos meados da década de 80. No Brasil surge, então, com a Constituição Federal de 1988, o modelo de Estado Regulador, tendo como objetivo central a busca da dignidade da pessoa humana. Juntamente com esse novo modelo, iniciaram-se processos de desestatizações (privatizações), passando do Estado para os particulares a concessão de serviços antes públicos. Como vimos, a configuração de um modelo regulatório significa uma inovação característica, consistente na estruturação sistemática da atividade regulatória. Anteriormente, a produção da regulação era aleatória, desorganizada e eventual. Era uma alternativa secundária para a realização dos fins do Estado. O modelo das agências reguladoras foi adotado no Brasil como consequência de alterações no texto constitucional destinadas a abrir a economia e o mercado brasileiros à ação do capital estrangeiro Dentre outras medidas, o Estado criou as autarquias especiais, categoria de entes com funções também especiais para controlar e regular alguns setores econômicos e prestação de serviços públicos. As agências reguladoras brasileiras são autarquias de regime especial, que possuem autonomia em relação ao Poder Público. 44 O conjunto de funções exercidas pelas agências reguladoras pode ser sintetizado em três principais: o poder de polícia, o fomento e as atribuições de poder concedente. Além das características de competência regulatória, com a ampliação das funções normativas e judicantes da Administração Pública indireta, pode-se congregar os seguintes elementos confirmadores da autonomia das Agências Reguladoras: organização colegiada, impossibilidade de exoneração ad nutum aos seus dirigentes, autonomia financeira e orçamentária, e independência decisória. Vimos que as agências Reguladoras possuem 3 poderes especiais: regulador, mediador e normativo. Este poder de “editar” normas é o Poder Normativo que possuem as Agências Reguladoras, e que dá a elas o status de independentes. O que se questionou é, quais são os limites desse poder normativo? Quais as consequências que essas normas editadas por autarquias especiais podem acarretar? Seria constitucional? O objetivo deste trabalho não foi de esgotar o tema, e sim trazer à discussão essas questões quanto à edição de normas por agências “independentes”, mas submetidas ao Poder Público. Concluímos, portanto, que o poder normativo que possuem as Agências Reguladoras tem caráter infralegal, tanto é que as próprias leis que criam as Agências Reguladoras são muito claras que estes entes devem ser subordinados ao Princípio da Legalidade. Por fim verificamos que, para que as Agências Reguladoras possamter prerrogativa legislativa, a de editar normas (de qualquer assunto), a atual Constituição Federal Brasileira deveria sofrer radicais mudanças. E enquanto se 45 opera desta maneira, as agências reguladoras atuam, de certa forma, inconstitucionalmente. 46 REFERÊNCIAS BARROSO, Luis Roberto. Apontamentos sobre as Agências Reguladoras. In: MORAES, Alexandre de (Org.). Agências Reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002. BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 1ª Ed. Bauru: Edipro, 2001. BRASIL. Lei nº 8.987/95. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão de serviços públicos previstos no art. 175 da Constituição Federal e dá outras providências. Brasília, 1995. 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