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COLHENDO BÊNÇÃOS Um caso de doença e cura espiritual ROBERTO DE CARVALHO Pelo Espírito Basílio De casamento marcado e cheio de planos para o futuro, Juliano começa a apresentar sintomas de doença terminal e fica preso a uma cadeira de rodas, mas exames clínicos em moderno hospital nada acusam. Quando tudo parece perdido, Flora, sua dedicada noiva, é orientada durante o sono a procurar ajuda espiritual. Em um Centro Espírita o rapaz é submetido a caridoso tratamento que desvendará a perseguição imposta por vingadores invisíveis. Diante desta nova realidade, o casal muda radicalmente a maneira de encarar o mundo e suas vidas passam por profundas transformações. Roberto de Carvalho LITERATURA E MEDIUNIDADE Oriundo de família católica, filho do operário Emmanoel José de Carvalho e da costureira Maria Carolina, Roberto de Carvalho é o sexto filho de uma prole de sete irmãos. Nasceu no dia 2 de março de 1964, em Liberdade, pequena cidade localizada na Zona da Mata mineira. Sua inspiração literária manifestou-se muito cedo e, ainda na infância, Roberto fazia versos, compunha letras de música e, mentalmente, criava histórias durante as solitárias caminhadas para a escola, que ficava a cerca de 4 quilômetros do sítio onde morava. Aos 13 anos, mudou-se com a família para Angra dos Reis, tendo ali vivido durante 27 anos. Na juventude, incentivado por uma professora de Língua Portuguesa, começou a participar de concursos literários. Após ter conquistado várias premiações, foi indicado para ocupar uma Cadeira no Ateneu Angrense de Letras e Artes. Nesse período, publicou seus primeiros livros e se tornou membro da Academia Guanabarina de Letras, do Rio de Janeiro. Em 2004, ano em que completou 40 anos, Roberto foi acometido de um imenso vazio existencial. Havia abandonado o catolicismo na ju- ventude e se afastou completamente das religiões. Sua irmã, Nelsan, que morava em São Paulo e havia se tornado espírita há alguns anos, convidou-o para conhecer a Doutrina. Roberto aceitou por curiosidade, mas, ao entrar pela primeira vez num Centro Espírita e ouvir uma belíssima palestra, percebeu que estava no lugar certo. Naquele exato momento, abraçou o espiritis- mo. Empenhado em aprender o máximo possível, mudou-se para São Paulo e se debruçou sobre as obras da codificação, direcionando os seus escritos aos fundamentos do espiritismo cristão, inserindo neles o funcionamento das leis universais e os preceitos de caridade, amor a Deus e ao próximo, perdão das ofensas, e a origem espiritual dos homens. A produção desta nova fase literária de sua vida foi bem aceita pela Editora Aliança que, em 2006, publicou com grande sucesso o seu primeiro romance: A Cabana das Flores. Atualmente, o autor ultrapassa o número de 200 mil livros vendidos, mesclando obras próprias e mediúnicas, numa lavra diversificada que inclui poesias, romances, infanto-juvenil, artigos, contos, redação jornalística e biografias. Tornou-se um divulgador do espiritismo, também por meio de palestras que desenvolve sobre os temas constantes em suas obras. Em 2010, tomou posse na Academia de Letras da Grande São Paulo, ocupando a Cadeira 29, cujo patrono é Humberto de Campos. Iniciou seus trabalhos espirituais em 2005, na Sociedade Espírita de Assistência Rodrigues de Abreu, na Vila Carrão. Mais tarde, atuou na Casa do Caminho Fraterno, no bairro da Penha e, desde 2008, trabalha no Grupo Espírita Pescadores de Amor, em Itaquera, nas reuniões de assistência espiritual, além de integrar a equipe de palestrantes da Casa. Basílio UM AMIGO MUITO ESPECIAL Afirmando que nenhuma manifestação artística positiva ocorre sem um importante auxílio espiritual, Roberto percebe que vem da espiritualidade a magnífica fonte de inspiração que o envolve, sempre que se propõe a inserir em seus escritos os preceitos do Evangelho de Jesus. Não tendo esse companheiro espiritual se identificado e, considerando a máxima de que a mensagem é muito mais importante que o mensageiro, foi-lhe sugerido adotar para essa fonte inspiradora o codinome Basílio. Segundo Roberto, certamente trata-se de um amigo muito querido que, apesar das suas tantas imperfeições, ajuda-o a realizar esse gratificante trabalho. A certeza desta afirmativa deve-se, entre ou- tros, ao esclarecimento feito em O Livro dos Médiuns, Segunda Parte, Capítulo XXTV, Identidade dos Espíritos, item, 28: "...O médium experimenta as sensações do estado em que se encontra o Espirito manifestante. Quando o Espirito é feliz seu estado é tranquilo, calmo; quando é infeliz é agitado, febril, e essa agitação se transmite natu- ralmente ao sistema nervoso do médium..." Para Roberto, a inspiração para dissertar sobre os temas doutrinários chega sempre com serenidade e alegria. Por isso, a certeza de que, independentemente de qual seja seu verdadeiro nome, o companheiro Basílio, que o assiste e orienta, é um Espírito feliz. AS BÊNÇÃOS DO PERDÃO Escravo de uma angústia represada há muito tempo, em minha alma ferida, vaguei no mundo em triste caminhada, sem compreender a lógica da vida. Fiz do rancor meu norte, minha estrada, numa ilusória e vã contrapartida. Tornei minha existência um grande nada e nada herdei de mim na despedida. Agora espero a chance de voltar e conviver com os mesmos que feri, sempre a julgar-me cheio de razão. Sei, hoje, que é preciso superar o orgulho desastroso em que vivi, sem partilhar as bênçãos do perdão! Soneto recebido por inspiração mediúnica, em 01107/2012 Roberto de Carvalho pelo Espírito Basílio Colhendo Bênçãos Um caso de doença e cura espiritual Aliança Sumário Introdução Primeira Parte 1 Confronto........................................ 2 Tristezas .......................................... 3 Cárcere ............................................. 4 Afinidades ....................................... 5 O amor ............................................. 6 Ciúmes ............................................. 7 Recompensa..................................... 8 Prosperidade ................................... Segunda Parte 9 Sombras ........................................... 10 O justiceiro....................................... 11 Acolhida .......................................... 12 A aldeia............................................ 13 Em família ....................................... 14 Antigo crime.................................... 15 Vingança ......................................... 16 Olho por olho................................... 17 O julgamento ................................... Terceira Parte 18 O hipnotizador ................................ 19 A doença .......................................... 20 Amor fraterno .................................. 21 Intrigante história ............................ 22 Renúncia............................................ 23 O tratamento ................................... 24 Sessão mediúnica ............................ 25 Revelação ......................................... 26 Ilusionismo ...................................... Quarta Parte 27 O convite.......................................... 28 Delicada gravidez ............................ 29 Atitude de amor............................... 30 A escolha........................................... 31 Epílogo ............................................ Por que meios podemos neutralizar a influência dos maus Espíritos? Praticando o bem e pondo toda a vossa confiança em Deus, repelireis ainfluência dos Espíritos inferiores e destruireis o império que queiram ter sobre vós. Evitai escutar as sugestões dos Espíritos que vos suscitam maus pensamentos, que sopram discórdia entre vós e excitam todas as paixões más. Desconfiai sobretudo dos que exaltam o vosso orgulho, porque eles vos atacam na vossa fraqueza. Essa é a razão porque Jesus vos ensinou a dizer, na oração dominical: "Senhor! Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal". 0 Livro dos Espíritos — Pergunta 469 Introdução Sendo a morte do homem um efeito meramente físico, ao qual o Espírito sempre sobrevive, é natural que exista o intercâmbio entre as pessoas que habitam os dois planos. Em razão das imperfeições morais, os homens, ao longo de suas existências, angariam antipatias e inimizades que não se dissolvem com a desencarnação do adversário. Assim, o inimigo pode dar sequência à perseguição, mesmo depois de haver deixado a Terra, manifestando sua maldade pelas obsessões e subjugações que a tantos afetam. Um Espírito endurecido pelo ódio, enquanto não tiver a consciência despertada para o bem, usará inúmeros recursos para atingir o seu objetivo de vingança. Dentre eles, a influenciação mental para a consecução de crimes, para a indução ao suicídio ou para a inserção psíquica de doenças, cujos sintomas podem se manifestar no corpo físico. Para influenciar um encarnado, o Espírito vingativo se aproveita de circunstâncias favoráveis ou até mesmo as provoca, a fim de impelir a vítima para o objeto de um desejo passional. Ou seja, utiliza as más inclinações morais do próprio encarnado para induzi-lo ao caminho da perdição. Os processos obsessivos são permitidos por Deus como instrumentos destinados a pôr em prova a fé e a constância dos homens no bem. Quando as más influências alcançam uma pessoa, é porque foram atraídas por ela mesma. Ou seja, Deus deixa à consciência de cada um a escolha do caminho que deve trilhar. Para neutralizar a influência dos maus Espíritos, é necessário, além da prece e da vigilância, certas mudanças de conduta, como o amor ao próximo, a compaixão e a prática da caridade, como ensinou Jesus. E por meio de bons pensamentos e atitudes positivas que o homem destrói em si mesmo a causa que atrai e permite a ação do Espírito obsessor. PRIMEIRA PARTE 1 Confronto "Enquanto uma gota de sangue correr na Terra pelas mãos dos homens, o verdadeiro Reino de Deus ainda não terá chegado, esse reino de pacificação e de amor, que deve banir para sempre do vosso globo a animosidade, a discórdia e a guerra" E.s.E1 — Cap. III; item 12 Os fatos aconteceram muito rapidamente, sem que Juliano tivesse tempo para raciocinar e evita los. Lembrava-se apenas do momento em que, tendo sofrido uma espécie de vertigem, produzida por um primitivo instinto de sobrevivência, cometeu o desatino. Um pouco antes, havia se despedido de Flora naquela noite de sábado, após três horas de prazeroso namoro, na varanda da casa da moça. Eram bem jovens; ele tinha 24 anos e Flora havia acabado de completar 21. Haviam trocado alianças de noivado e definido a data do casamento, para dali a um ano. Dona Francisca, futura sogra de Juliano, havia servido suco de pitanga e broa de milho verde para comemorarem a novidade. Ela adorava o genro e o tratava com muito carinho. Ao se despedir, Juliano prometeu às duas que iria direto para casa. - Por favor, não passe no bar — advertiu a noiva, enquanto o acariciava no rosto com o dorso da mão. — Estou com péssimos presságios, pois tive um sonho ruim na noite passada. Desde menina, Flora possuía uma intuição aguçada; tinha o dom de antever os acontecimentos, por meio de sonhos, e previu inúmeras ocorrências dentro e fora do ciclo familiar. 1 O Evangelho segundo o Espiritismo - Allan Kardec. N. do A. Naquela noite, estava preocupada com o noivo, pois sabia que Ulisses novamente havia rondado o bairro, fazendo ameaças, propagando impropérios e jurando vingança. Aliás, era isto que ele vinha fazendo desde que soube do envolvimento entre Juliano e Flora. Mas, nos últimos dias, seu inconformismo parecia haver tomado proporções alarmantes, segundo havia chegado ao conhecimento da moça. Diante do apelo da noiva, Juliano garantiu que iria para casa e se despediu sorridente, tentando tranquilizada. No entanto, ao passar em frente ao bar, sentiu um impulso irresistível de entrar. Era uma noite quente de verão e ele estava com vontade de tomar uma cerveja. Parou em frente ao estabelecimento e viu que alguns amigos jogavam bilhar, conversando animadamente. Vendo-o, os colegas o convidaram para participar do jogo. Inicialmente, Juliano relutou. Afinal, também tinha conhecimento das ameaças de Ulisses e sabia que seu adversário era assíduo frequentador daquele local. Mesmo assim, acabou entrando. Dentro do bar, percebeu a ausência de Ulisses e esta percepção o deixou bem mais tranquilo. Não que estivesse com medo do rival, apenas não queria se envolver em confusões. Principalmente agora, que estava de casamento marcado com a moça que tanto amava, cheio de projetos promissores para o futuro. Cumprimentou os amigos com alegria, apertando a mão de cada um. Pediu uma bebida, muniu-se de um taco de bilhar e entrou no jogo, animado e descontraído. Mas, o sossego não durou muito tempo, pois alguns minutos depois, Ulisses chegou. Estava com uma aparência horrível; mal vestido, barba por fazer, e a expressão de seu rosto lembrava uma carranca. Ulisses pareceu não notar a presença de Juliano. Dirigiu-se ao balcão, mandou que enchessem um copo com aguardente e virou num só fôlego. Depois, sentou-se em um tamborete, acendeu um cigarro e com os olhos percorreu o ambiente, deparando-se finalmente com o rapaz. A partir daí, Ulisses não mais desviou os olhos da direção em que Juliano se encontrava, fitandoo com uma indisfarçável postura de afronta e provocação. Embora parecesse distraído, o noivo de Flora estava inteiramente atento aos seus movimentos. Um detalhe que deixou Juliano bastante preocupado foi ter percebido uma saliência sob a camisa de Ulisses, na altura da cintura. Deduziu que o adversário estava armado e isto o deixou muito apreensivo. Mesmo assim, continuou jogando com os colegas, disfarçando o tremendo mal-estar que sentia naquele momento, arrependido, inclusive, de não ter cumprido a promessa feita a Flora e seguido direto para casa. Pensou em ir embora, mas seu amor-próprio não o permitiu. Achou que se saísse naquele momento daria a entender que estava se acovardando e isto era inconcebível. Na verdade, ninguém queria admitir, mas o clima ficou muito tenso naquele recinto, desde a chegada de Ulisses. Não era segredo para ninguém o quanto ele estava revoltado por ter sido trocado por um "forasteiro", apelido que dera a Juliano pelo fato de o moço não ter nascido naquela cidade. Todos sabiam da paixão doentia que ele nutria por Flora e certamente aquele encontro tinha tudo para terminar muito mal. Após tomar um pouco mais de aguardente, Ulisses se aproximou da mesa de bilhar. Juliano também tratou de beber um pouco mais. Os dois buscavam no álcool o encorajamento para o inevitável confronto que se desenhava. Juliano sentiu um calafrio perturbador no momento em que Ulisses pousou pesadamente a mão em seu ombro e, fazendo-o virar o rosto em sua direção, rosnou, com os olhos injetados de raiva: —Você é um homem morto, rapaz! Ao ver o ódio estampado na face de Ulisses, Juliano sentiu a vista escurecer e uma onda de antipatia, até então reprimida em seu íntimo, eclodiu de modo espetacular, provocando-lhe um arrepio febril que percorreu toda a extensão da espinha dorsal e o colocou no mesmo nível mental de seu adversário. — Quem esteidiota pensa que é, para ficar me perseguindo e ameaçando o tempo todo? — disse para si mesmo, com a voz opressa pela indignação. Naquele momento, lembrou-se da possível arma que o adversário trazia na cintura e se convenceu de que a única maneira de sair com vida daquele confronto seria não dando a ele qualquer chance de empunhá-la. E foi assim que, empurrando Ulisses com muita força, Juliano o afastou o suficiente para conseguir erguer o taco de bilhar a certa altura. Usando a extremidade de apoio da peça, que era bastante grossa e envolvida por um pesado barrete de metal, desferiu em seu crânio um único, porém violento, certeiro e definitivo golpe. Tudo isto aconteceu num átimo de tempo. Muitos dos que se encontravam presentes só perceberam a gravidade do fato no momento em que o rapaz, sem emitir um gemido sequer, quedou pesadamente no piso do bar. Ao cair, sua camisa se ergueu e todos puderam ver que a saliência que se projetava da cintura de Ulisses era promovida por um revólver, devidamente municiado. Após alguns segundos de silenciosa e tensa expectativa, um homem que era enfermeiro e estava bebericando no bar, pôs o copo no bal- cão, agachou-se sobre o corpo inerte de Ulisses e, tentando inutilmente auscultar-lhe o coração, exclamou com voz desanimada, enquanto meneava negativamente a cabeça e dava estalidos com a língua: — Está morto! 2 Tristezas "Amemo-nos uns aos outros e façamos aos outros o que gostaríamos que nos fizessem. Toda religião e toda moral se encontram nesses dois ensinamentos. Se eles fossem seguidos aqui na Terra, seríeis todos perfeitos, sem ódios, sem conflitos" E.s.E — Cap. XIII; item 9 Juliano estava com as pernas trêmulas e o coração batia em total descompasso. O estômago revirava-se em fortes contrações e sua vista, após haver passado por um breve período de turvação, ia muito vagarosamente voltando à normalidade. E foi em meio a esta apatia que ele sentiu uma mão firme agarrar o seu braço e praticamente arrastá-lo para fora do bar. Era Reinaldo, irmão de Flora, que tentava tirá-lo dali. -Vamos embora, Juliano! Daqui a pouco a polícia vai estar aqui, rapaz! Totalmente desnorteado, Juliano se deixou arrastar e ser colocado dentro do carro do cunhado, que saiu em disparada, perdendo-se na escuridão da noite. * * * Reinaldo dirigia em silêncio e Juliano também não dizia nada. Estava completamente apático, confuso, sem conseguir ordenar os pensamentos. Um mal-estar terrível o envolvia inteiramente. De repente, como se houvesse despertado daquele transe, perguntou ao cunhado: — Para onde estamos indo? — Sei lá! — respondeu Reinaldo. — Para qualquer lugar... O importante é irmos o mais longe possível. Juliano voltou a ficar em silêncio por alguns segundos. Depois, com convicção, praticamente ordenou: — Pare o carro, Reinaldo. — Você está louco, rapaz? E possível que a essas alturas já tenha uma viatura da polícia atrás de nós... —Pare o carro, por favor! — insistiu Juliano. Mesmo contrariado, Reinaldo estacionou na estrada deserta. Desligou o motor e apagou os faróis do veículo. — Está tudo errado... — É claro que está! Você acabou de matar um homem, a polícia o deve estar procurando, e nós aqui, parados... — O que está errado é esta tentativa de fuga, Reinaldo. Eu não vou fugir das minhas responsabilidades e, muito menos, complicar a sua vida. — Minha vida? Quem está com a vida complicada é você, rapaz! Eu só estou lhe ajudando... — E, com isto, está também cometendo um crime. Está me oferecendo fuga. — E daí? Eu não estou preocupado com isto. Ninguém vai querer me prejudicar por tirar você dessa enrascada... — Não seja ingênuo, Reinaldo! Muita gente nos viu saindo juntos no seu carro. E natural que testemunhem contra você. Por favor, manobre o carro e vamos voltar para a cidade. — Mas, vão lhe prender em flagrante! A situação vai ficar muito mais complicada... — Não importa, Reinaldo. Agradeço de coração, por sua tentativa em me ajudar, mas não quero fugir. Quero voltar para a cidade, pre- ciso me apresentar ao delegado e responder pelo crime que cometi. — Mas, e a Flora? Vocês estão de casamento marcado... — Mais um motivo para não levar esta fuga adiante. Não quero passar o resto da vida fugindo como um covarde. Deste modo, como poderia oferecer um futuro digno à sua irmã? E os dois permaneceram um pouco mais em silêncio, ouvindo apenas o ruído noturno que sapos e grilos promoviam ao redor do veículo. Reinaldo suspirou fundo e quebrou finalmente o silêncio: — Eu ainda acho que devemos... — Não! — interrompeu Juliano. — Por favor, manobre o carro e volte para a cidade. Sem mais condições de contra-argumentar, o irmão de Flora ligou o carro, fez a manobra e pegou o caminho de volta. Nada mais disseram um ao outro durante o percurso. * * * Reinaldo estacionou o carro em frente à dei egacia, onde já havia um grande alvoroço, em função do assassinato que acabara de acontecer. Juliano se apresentou ao delegado, dizendo que queria responder pelo crime cometido e, imediatamente, recebeu voz de prisão. Os próximos dias foram repletos de tristeza e de humilhações para Juliano. Mas, o que mais o desalentava era presenciar o desespero de Flora, chorando inconsolada, com seus olhinhos ariscos e sempre anuviados por uma sombra de desesperança. O casamento tão desejado teria de esperar, pois deixou de ser prioridade. Não bastassem todos esses infortúnios, Juliano ainda foi ameaçado de morte pelo pai de Ulisses, que estava inconformado com o assassinato de seu único filho, com pouco mais de 26 anos. Por meio de comentários, ficou sabendo que Peixoto, demonstrando total descontrole emocional, ajoelhou-se diante do caixão do filho, durante o velório e, chorando copiosamente, prometeu: - Meu querido Ulisses! Esteja onde estiver, quero que você descanse em paz, porque eu vou vingar a sua morte, meu filho! Esse assassino que tirou a sua vida há de pagar muito caro pelo que fez! Dolores, embora corroída por dor e revolta, reprovava a atitude do marido. Também estava sofrendo muito com a morte do filho, mas pensava diferente. Era uma mulher religiosa, prestimosa colaboradora da igreja católica e amiga pessoal do padre Juan. Acreditava na justiça divina e achava que as desavenças dos homens deveriam ficar sempre sob o julgamento de Deus. — Quando chegar o dia do juízo final e os anjos soarem suas trombetas, nenhum pecador ficará impune! — assegurava. — Até os que estiverem mortos terão de deixar seus túmulos e se apresentarem diante de Deus, para o julgamento dos seus pecados. Mas, para Peixoto, que apregoava não possuir qualquer resquício de fé, deveria prevalecer a lei do "olho por olho". Juliano pagaria muito caro pelo malfeito, mas acertaria contas com ele e não com a divindade invisível e silenciosa à qual a esposa se referia como autoridade máxima universal. * * * Enquanto aguardava julgamento, Juliano ficou detido numa pequena cela da delegacia local. Como praticamente não ocorriam crimes naquele bucólico município, passava a maior parte do tempo sozinho. A delegacia situava-se num bairro periférico, distante da agitação das ruas centrais, onde os dias eram terrivelmente silenciosos. Flora sempre o visitava e, nessas visitas, reforçava o desejo de se casar com ele. Juliano protestava, dizendo que agora era um assassino, que não sabia por quanto tempo permaneceria preso, que ela deveria tocar a vida, encontrar outra pessoa... Mas, nesses momentos, Flora colocava o dedo indicador em seus lábios e, carinhosamente, fazia-o silenciar. — Não importa quanto tempo leve! Você é o único homem com quem pretendo me casar. Portanto, se está pensando em escapar de mim, desista. Eu estarei lá fora lhe esperando, custe o quecustar — dizia, tentando impor à voz um tom brincalhão, para descontraí-lo. Sua atitude deixava Juliano extremamente emocionado. Flora percebia a reação do noivo, abraçava-o, beijava-lhe a face e, olhando profundamente em seus olhos, reafirmava: — Eu o amo, muito, Juliano! Aconteça o que acontecer, nunca vou desistir de você! Reinaldo, que era sócio de Juliano numa próspera marcenaria, também o visitava regularmente, mantendo-o informado sobre as atividades na empresa. Apesar do escândalo provocado pelo trágico acontecimento, os negócios seguiam relativamente bem. Quanto a isto não havia motivo algum para se preocupar. Nessas visitas, Reinaldo supria Juliano das coisas que ele precisava para se manter na prisão com um mínimo de conforto e dignidade. 3 Cárcere "O homem pode suavizar ou agravar a amargura de suas provas pela maneira de encarar a vida terrena. Ele sofre mais quando acredita numa duração mais longa do seu sofrimento. Porém, se encara a vida terrena pelo lado da vida eterna do Espírito, ele a entende como um ponto no infnito e compreende o quanto é breve, dizendo a si mesmo que esse momento difícil vai passar bem depressa." E.s.E — Cap. V; item 13 Durante o período solitário em que esteve a delegacia, aguardando o julgamento, Juliano cava durante horas olhando o retângulo vertical formado pela única e pequenina janela, protegida por grades, localizada na parede oposta ao catre. A cela ficava no terceiro piso de um velho edifício e, através da pequena janela, o prisioneiro podia ver um retalho de céu e fragmentos de telhados descorados, de onde brotavam diminutos canteiros de musgos e trepadeiras. Via a cena pobre e insossa dos casebres rústicos de paredes cinzentas que ladeavam as ruas estreitas, íngremes e empoeiradas; entrecortadas pelas valas que as enxurradas escavavam em época de grandes chuvas. Na parte da manhã, as colinas ficavam iluminadas pelo sol nascente e o pequeno bairro parecia risonho, feito uma criança que, fechada em um quarto sombrio, tem projetado no rosto a luz dourada de uma lanterna. No fim da tarde, a nódoa escura, formada pela sombra das encostas, projetava-se sobre o casario, por causa do posicionamento do sol poente, dando ao lugarejo um aspecto frio e desolador. Os dias de prisão naquela pequena cela eram completamente desprovidos de novidades. Depois, vinha a noite e, com ela, o sono. Juliano dormia com relativa facilidade e acordava quando a luz da nova manhã penetrava a cela pela janelinha e pelas frestas existentes no antigo telhado, pro- vocando estalidos secos no emaranhado de telhas, caibros e vigas, que, como um fantasma atento e silencioso, observava-o do alto. Rotineiramente aparecia um policial para cuidar das necessidades do prisioneiro, mas estava sempre apressado e se comunicava em monossílabos. Na maior parte do tempo, entregue à solidão do cárcere, Juliano permitia-se viajar à infância. Era lá, na antiga fazenda onde fora criado, entre árvores, rios, campos e bichos que se reconhecia como verdadeiramente era: um menino ingênuo que corria pelos prados, sentindo o vento no rosto. A criança simples e obediente que sempre ouvia com respeito e acatava os conselhos dos mais velhos. Todas as vezes que pensava na infância, antes de qualquer outra imagem, vinham-lhe à memória as nuvens brancas que, em dias de céu limpo, des-iizavam suavemente bem próximas de sua cabeça. Em sua meninice, Juliano ficava estirado na relva, imaginando figuras aladas que se formavam e se transformavam sob a ação do vento. A antiga imagem daquelas nuvens que se metamorfoseavam diante dos seus olhos tinha uma conotação poética que marcara profundamente sua deslumbrada alma de menino da roça. Em torno da casa, num diversificado pomar, distribuíam-se as árvores frutíferas: laranjeiras, goiabeiras, caquizeiros, e, princi- palmente, as amoreiras que havia ali em grande quantidade. Os gorjeios do batalhão de pássaros que se infiltravam entre os ramos iniciavam-se de madrugada e se estendiam até as horas cre- pusculares, numa inesgotável e festiva anarquia de cantos e rufiar de asas. Lembrava-se também do jardim, criado e muito bem cuidado por sua mãe. Nele, rosas, cravinas, dálias e margaridas confundiam-se em fragrâncias e cores, promovendo um inesquecível cenário, onde borboletas e colibris exibiam-se em desfiles multicoloridos. Do pai, recordava apenas das suas broncas, do seu perene mau humor e da espessa barba que ocultava boa parte do rosto. Da mãe, Juliano guardara a recordação do carinho a ele dedicado, a carícia nos cabelos enquanto o sono não chegava e o beijo morno, cuja agradável sensação durava horas em sua face. * * * Juliano não sentiu o tempo passar e os anos alegres de sua meninice distanciarem-se lentamente, como a paisagem que permanece estática enquanto o veículo segue viagem. Distraído, não percebeu os familiares envelhecerem precocemente; a mãe caducar e o pai morrer de bebedeira, após haver perdido a fazenda herdada dos ancestrais, em jogatinas e orgias mundanas. O menino cresceu sem se dar conta de que crescia. Muito cedo, a vida lhe imputou responsabilidades das quais não pôde fugir. De repente, havia perdido o conforto, a alegria e a paz. Estava necessitando de amparo e comida, arrastando consigo o fardo pesado que acabou se tornando a mãe dementada. Foi forçado a abandonar os estudos e emprestar-se a terceiros. Gastou o que havia sobrado da adolescência a lavrar terras alheias, a partilhar migalhas e favores com gente estranha e nem sempre bem educada. Para sobreviver, teve de superar obstáculos e dividir com a genitora desorientada o pouco que conseguia. * * * Estava para completar 18 anos quando, numa manhã em que foi acordar a mãe, encontrou-a morta. A mulher havia falecido durante a noite, silenciosamente. Seria falso se dissesse que lamentou a sua morte. Na verdade, embora a amasse, sentiu-se liberto daquele pesado compromisso. Não pôde evitar que lágrimas de pesar banhassem o rosto e que uma forte sensação de vazio lhe invadisse a alma, mas não havia mais o que fazer. Enterrou a genitora, plantou cravinas sobre a terra fértil que acobertava o esquife, fincou uma cruz de madeira sobre a sepultura, pegou os poucos pertences que possuía e ganhou o mundo. 4 Afinidades "Pela reencarnação no mesmo globo, quis Deus que os mesmos Espíritos se reencontrassem e pudessem ter oportunidade de reparar os erros que cometeram entre si. Tendo em conta suas relações anteriores, quis estabelecer e fixar os laços de família sobre uma base espiritual e, sobre uma lei natural, apoiar os princípios de solidarie- dade, de fraternidade e de igualdade" E.s.E — Cap. IV; item 25 O trem que seguia por entre serras e campinas, lançando espirais de fumaça pelos ares, fazia para o jovem rapaz um caminho sem volta. Carregando uma bagagem pobre, numa velha mala, via ° torrão natal ficar cada vez mais distante. Levava no pensamento projetos de trabalhar e crescer, de se tornar alguém na vida. Tinha disposição para a labuta braçal e acreditava na capacidade de crescimento dos homens honestos e trabalhadores. Desembarcou na cidade grande, centenas de quilômetros distante do lúgubre recanto onde nascera, cheio de esperanças. Mas, logo passou a se sentir um peixe fora d'água. Percebeu que sua ingenuidade contribuía para que se tornasse vítima de explorações e desaforos. Nas poucas ocupações que conseguiu, trabalhou muito e não ganhou quase nada. Os patrões o exploravam inescrupulosamente e o dispensavam à menor contrariedade. Juliano se sentiu só, abandonado e ludibriado pela gente da cidade. Além disso, a poluição do ambiente, o barulho infernal promovido por motores, buzinas e apitos; o aperto que enfrentava em todosos lugares, as filas intermináveis, a dificuldade de se locomover; a indiferença das pessoas.. .Tudo isto o surpreendeu negativamente. Sentia-se zonzo no meio das multidões, constantemente trombando em pessoas e postes, como se estivesse diuturnamente bêbado. Muito cedo, descobriu que não era um homem urbano. * * * Um dia, Juliano se cansou de tudo aquilo. Abandonou a metrópole e seguiu viagem; desta vez a pé, ou de carona. Ganhou o campo, percorreu a paisagem com que se familiarizava. Cada vez mais distante das terras de sua infância, passou por diversos vilarejos, onde sempre arranjava alguns afazeres para ganhar uns trocados, alimentar-se, comprar algumas peças de roupa e seguir em frente. Um ano e meio após haver enterrado o corpo da mãe e abandonado sua terra natal, chegou, quase por acaso, a uma cidade situada no extremo norte do estado mineiro. Ali pretendia, como das vezes anteriores, trabalhar, arranjar algum dinheiro e seguir viagem. Entretanto, conheceu Domingos, um velho marceneiro que o contratou para o que deveria ser apenas um trabalho temporário e que acabou se tornando um emprego estável, já que um forte elo de simpatia os uniu de modo surpreendente. * * * Domingos era muito querido naqueles arredores, não só por ser um competente e responsável profissional, mas também por seu modo alegre e educado de tratar as pessoas. Nascera no Maranhão e estava estabelecido há mais de três décadas naquele município. Chegara numa época em que a localidade passava por um acelerado processo de desenvolvimento econômico, devido à descoberta de valiosos minérios no subsolo das serranias que a circundavam. Aproveitando a excessiva demanda de mão de obra especializada, já que muitas residências estavam sendo construídas para abrigarem os funcionários de uma mineradora que se instalou na região o marceneiro começou a desenvolver o ofício que havia aprendido com um padrinho. Assentando portas e janelas, erguendo telhados, construindo portões... Enfim, desenvolvendo qualquer tarefa que se referisse a lidar com madeiras, deu a sua contribuição para o crescimento do município e conquistou ali um importante espaço. Foi também ali, já na maturidade dos quarenta e poucos anos, que conheceu Francisca, uma professora dez anos mais jovem, com a qual se casou e constituiu família. Do bem-sucedido matrimônio nasceram os filhos Flora e Reinaldo. Anos mais tarde, quando o ritmo das construções havia se desacelerado, e a mineração já não era a fonte principal de rendas do município, Domingos estava razoavelmente estabilizado e possuía a sua bem estruturada oficina. Edificada num movimentado bairro comercial, logo a marcenaria se tornou um conceituado ponto de referência naquela região. * * * Com o passar do tempo, o marceneiro começou a sentir o peso da idade subjugando-lhe o organismo. Foi então que passou a considerar a possibilidade de se aposentar. No entanto, não concebia a ideia de deixar o povo, que tão bem o acolhera, órfão de um profissional competente e responsável como ele. Domingos sabia da importância do seu trabalho e tentara, debalde, encontrar alguém disposto a substituí-lo. Quando o candidato tinha interesse, não possuía habilidade para o ofício. Quando possuía habilidade, não era suficientemente responsável e confiável. Seu filho Reinaldo, além de muito jovem, foi um dos que não apresentou dotes para o ofício, para grande decepção de Domingos. Foi por este motivo que ele ficou tão eufórico ao perceber que Juliano reunia todas as virtudes que vinha procurando em um possível sucessor, e insistiu para que o rapazinho permanecesse ao seu lado. Como o novo auxiliar não tivesse onde ficar, Domingos o hospedou num pequeno apartamento construído nos fundos da marcenaria. Eram acomodações simples, porém aconchegantes e razoavelmente confortáveis. Brotou entre os dois uma profunda e sincera amizade, alicerçada no respeito mútuo e na disposição que ambos possuíam para o trabalho. E era tão verdadeira essa afinidade, que Domingos passou a tratar o jovem amigo como se fosse um filho adotivo. Juliano se afeiçoou ao ofício de seu protetor e, como um atento e disciplinado discípulo, foi absorvendo o aprendizado que lhe era ministrado, cotidianamente. 5 O amor "Não acrediteis na secura e no endurecimento do coração humano. Ele cede, mesmo a contragosto, ao verdadeiro amor. E como se fosse um ímã ao qual não se pode resistir. O contato desse amor vivifica e fecunda os germens dessa virtude que estão nos vossos corações adormecidos." E.s.E — Cap. XI; item 9 Um dia, Domingos chamou Juliano para consertarem o telhado de sua própria residência; uma casa elegante e muito bonita; que se situava numa das ruas centrais do município. A esposa do marceneiro era uma mulher extremamente simpática e acolheu o novo auxiliar do marido com muita afabilidade: —Ah! Vejo que finalmente o meu esposo arranjou um substituto! — gracejou, enquanto cumprimentava Juliano. —Graças a Deus! — respondeu o marceneiro, erguendo as mãos para o céu. — O Criador resolveu ouvir as minhas preces e me mandou este moço de presente. E um ótimo rapaz e chegou na hora certa, pois a idade está castigando cada vez mais o meu pobre esqueleto. Os dois começaram a rir e Juliano, um pouco constrangido, acabou rindo também. Antes de iniciarem os trabalhos, dona Francisca serviu-lhes um farto café da manhã e reclamou das goteiras. Disse que o temporal que havia caído na semana anterior, tinha danificado a cumeeira e desordenado algumas telhas. — Casa velha, meu filho, é igual a gente velha. Está sempre precisando de reparos — comentou bem-humorada, provocando risos em Juliano. — Não se preocupe, querida! — sossegou-a Domingos. — Tudo o que eu precisava era de um auxiliar competente. E, agora que o tenho, a cobertura da nossa casa vai ficar novinha! E em pouco tempo estavam em cima do telhado, consertando-o. Mas, o que em princípio parecia uma tarefa simples, acabou se mostrando bem mais complicado. O experiente marceneiro percebeu que toda a estrutura de sustentação do telhado estava comprometida. Vigas e caibros encontravam-se apodrecidos, por causa da umidade que se infiltrava pelas rachaduras das telhas. Sua avaliação foi bastante negativa e o trabalho levou quase três meses para ficar pronto. * * * Foi neste ínterim, que Juliano e Flora se conheceram e, desde o primeiro instante em que se viram, encheram-se de encantos; numa inequívoca reciprocidade de sentimentos. A moça, que estava com pouco mais de 17 anos, apesar de possuidora de uma natural timidez, não conseguiu disfarçar por muito tempo a atração que passou a sentir pelo ajudante de seu pai. Aliás, ninguém naquela casa deixou de perceber o quanto os dois se sentiram atraídos. Juliano era um rapaz de aparência agradável. Possuía um corpo atlético, de médio porte, a pele morena, harmonizando-se com os negros cabelos ondulados, e com um par de olhos amendoados, de onde brotava um brilho enigmático, sugerindo tratar-se de uma alma pacífica e, ao mesmo tempo, triste. Flora vivenciava os anos dourados da transformação física. Seu corpo adolescente começava a desabrochar para a juventude, ganhando contornos encantadores. Seu rosto era de uma beleza singular, a pele clara, os olhos verdes, altivos e, a emoldurar-lhe o belo rosto, uma ruiva e farta cabeleira, cujos cachos repousavam delicadamente sobre os ombros. Reinaldo, dois anos mais novo que a irmã, também se simpatizou muito com Juliano. O rapaz recém-chegado à cidade, com seu jeito simples e educado, tinha o dom natural de cativar as pessoas e conquistou os corações dos familiares de Domingos. E foi assim, sob as bênçãos da família de Flora, que os dois iniciaram um tímido namoro,promovido por um sentimento puro e sincero que aqueceu seus jovens corações e que foi se fortalecendo, à medida que o tempo passava. Começaram a passear juntos nos finais de semana, frequentando os poucos lugares onde dois jovens enamorados podiam se divertir naquela cidade: uma pequena sala de projeção cinematográfica; uma praça arborizada, com bancos de mármore, que ficava defronte à igreja; e um pequeno parque onde as crianças brincavam, e um velhinho de longas barbas brancas, empurrando um carrinho multicolorido, vendia pipoca e algodão-doce, repetindo uma cantilena nostálgica, enquanto badalava um pequeno sino: — Guloseimas do vovô Anastácio! Quem vai querer provar! Não demorou muito para que se espalhasse pelos quatro cantos do município que a filha de dona Francisca estava de namoricos com o "moço que veio de fora", como tratavam o ajudante do marceneiro Domingos. Esse foi um período de muitas alegrias para os jovens enamorados; um tempo de felizes descobertas que aqueciam suas almas e faziam vibrar cada fibra dos seus corações. Para Juliano, a presença de Flora representava um mar de calmaria e suavidade, fazendo-o esquecer os antigos percalços que antecederam o surgimento da namorada em sua vida. Para ela, Juliano representava a esperança de um futuro afetivamente promissor. 6 Ciúmes "...Se fôssemos humildes, não sofreríamos as decepções do orgulho ferido; se praticássemos a lei da caridade, não seríamos nem maledicentes, nem invejosos, nem ciumentos e evitaríamos as desavenças e as discussões; se não fizéssemos mal a ninguém, não temeríamos as vinganças." E.s.E-Cap. XXVII; item 12 Mas o namoro entre Juliano e Flora não foi comemorado por todos os moradores daquela cidade. Juliano tomou conhecimento deste fato, num dia em que foi interpelado de forma agressiva por um rapaz um pouco mais velho que ele, e que disse se chamar Ulisses. O sujeito estava completamente descontrolado quando o abordou: - E bom você saber que a Flora é minha prometida, desde a infância. E comigo que ela vai se casar e não com um "forasteiro" que veio parar aqui sem ser convidado. Portanto, é melhor que você não se meta com ela! Aliás, faria um grande favor a todos, se voltasse para o inferno de onde veio. — disse com truculência, olhando com raiva nos olhos de Juliano. O namorado de Flora não se sentiu intimidado, mas percebeu que precisava tomar cuidado com aquele sujeito. Embora nunca o tivesse visto antes, a sensação que experimentou ao se deparar com Ulisses foi tremendamente desagradável, obrigando-o a buscar na memória um resquício qualquer de lembrança, para desvendar de onde o conhecia. Tentou encontrar no passado uma razão qualquer que justificasse tamanha adversidade, mas concluiu que aquele jovem truculento era-lhe totalmente desconhecido. De qualquer modo, sentiu-se incomodado com o episódio e resolveu tirar a história a limpo com a única pessoa que verdadeiramente o interessava. Mas, Flora garantiu que não havia nada entre ela e Ulisses. —Ao que parece, esse rapaz tem algum tipo de complicação mental — disse a moça. — Ele alimenta a tola ilusão de que somos namorados, desde a infância; só porque, um dia, minha mãe brincou com a mãe dele, dizendo que nós dois formávamos um belo par. Foi uma brincadeira inocente, pois na época, eu tinha apenas 8 anos. Mas, para o Ulisses, o comentário ingênuo de mamãe tornou- se uma obsessão, e ele passou a me considerar sua prometida. Mas o único sentimento que esse rapaz desperta em mim é de medo. —Você tem medo dele? Por quê? — Sei lá! Fico apavorada com o jeito como ele me olha. No fundo, parece-me que sente muito mais ódio de mim, do que qualquer outra coisa. O demente já criou várias confusões, chegando ao absurdo de agredir alguns garotos, só por desconfiar que estivessem interessados em mim. — Puxa, que fixação... — observou Juliano, demonstrando contrariedade. Flora não conseguiu conter o riso. — O que foi, Juliano? Você está com ciúmes do Ulisses? — E não é para ter? — E claro que não, seu bobinho! Eu nunca dei qualquer motivo para que ele se sinta no direito de agir assim. Se até hoje não me preocupei com isto, foi porque sua atitude não me incomodava. Mas, agora é diferente. Nós estamos juntos e eu não vou admitir que ele atrapalhe a nossa relação. — O mais estranho é que... Juliano iniciou um comentário, mas subitamente interrompeu a frase, deixando Flora curiosa. — O que é "mais estranho"? — inquiriu a moça, imitando a voz do namorado. Juliano fez um gesto de desdém. — Nada, não. Esquece! — Ah, não vou esquecer, mesmo! — insistiu Flora, apoiando as mãos na cintura. — Começou, termina. Juliano procurou sossegá-la. — Calma, Flora! Não é nada com você, não. Certamente é só uma bobagem; uma coisa sem importância... — Mais um motivo para você me dizer do que se trata. — E que eu tive a sensação de que já conheço esse Ulisses. E provável que sim. Afinal, você já está morando aqui há algum tempo. Deve ter se esbarrado com ele por aí. — Aí é que está o mistério. Daqui, eu tenho certeza que não é. Eu nunca o vi nesta cidade. Se o conheço, deve ser de outro lugar. Flora fez um ar de descrença. — Isto é praticamente impossível. O Ulisses é um sujeito muito acomodado. Vive enfiado no sítio dos pais, ou perambulando pelas ruas, sem objetivos na vida. Certamente nunca saiu desta cidade. Você deve ter conhecido alguém parecido com ele. — E, Flora, você tem razão. Devo ter confundido o seu apaixonado com outra pessoa. Flora deu um leve tapa no braço de Juliano, em repreensão ao comentário provocativo. — Olha, lá como fala, hein! — exclamou, fazendo um muxoxo de contrariedade. — Nunca dei liberdade para aquele tolo achar que tem direitos sobre mim. E quer saber mais? — decretou: — Chega de falar dos outros! Vamos falar de nós dois, e fazemos muito melhor. Juliano abriu um largo sorriso e a abraçou. — Você está certíssima, meu amor! Vamos deixar esses fantasmas bem longe de nós. * * * Começaram a rir, descontraidamente, mas uma sombra de preocupação passou a rondar a mente de Flora, a partir daquele dia. Suas faculdades premonitórias começavam a dar sinais de que alguma coisa desagradável estava por acontecer. A partir daquele dia, passaria a ter sonhos inquietantes, onde sempre via Ulisses e Juliano se confrontando. A namorada de Juliano passou a evitar qualquer proximidade com Ulisses. Quando o encontrava em algum lugar, afastava-se imediatamente e rechaçava qualquer tentativa de aproximação que o rapaz ensaiasse. Porém, tais atitudes só serviram para despertar ainda mais a ira de Ulisses. A partir de então, o rapaz passou a provocar Juliano onde quer que o encontrasse, deixando claro que não facilitaria em nada a sua vida. Espalhou pela cidade que jamais admitiria um compromisso mais sério entre os dois e que tomaria drásticas medidas, caso Juliano tivesse o topete de pedir Flora em casamento. Mas, independentemente de tudo aquilo, os jovens enamorados se mantiveram firmes no propósito de oficializarem o namoro. Seu Domingos, dona Francisca e Reinaldo não colocaram qualquer objeção, já que todos nutriam uma profunda simpatia por Juliano. 7 Recompensa "O desapego aos bens terrenos consiste em apreciar a riqueza no seu justo valor, saber usufruir dela em benefício de todos e não somente para si, em não sacrificar por sua causa os interesses da vida futura e, se Deus a retirar, perdê-la sem reclamar." E.s.E - Cap. XVI; item 14 O tempo passou célere e Juliano, cada vez mais dedicado às funções executadas na marcenaria, recebeu uma ótima notícia, quase três anos após ter iniciado o aprendizado com Domingos. O marceneiro o procurou, numa tarde e, muito eufórico, disseque finalmente havia conseguido a tão sonhada aposentadoria. —Agora, vou poder descansar meu velho esqueleto! — disse, com imensa alegria, exibindo os documentos que confirmavam a realização de seu sonho. Embora estivesse feliz por causa dele, Juliano não conseguiu evitar que uma ruga de preocupação se delineasse em sua fronte. Domingos percebeu a insegurança de seu pupilo e arrematou: — Está preocupado com o quê, meu rapaz? Acha que eu seria capaz de deixá-lo sem assistência? Acha que não pensei também no seu futuro? Juliano limitou-se a encará-lo, com resignação. No fundo, achava que Domingos já havia lhe oferecido muito. Afinal, dera-lhe emprego e moradia durante todo aquele período. Não tinha obrigação nenhuma de ajudá-lo. No entanto, uma vez mais, o marceneiro o surpreendeu positivamente. Apoiou a mão em seu ombro e, olhando-o com profunda ternura, explicou: — Juliano, você não representa para mim apenas um companheiro de trabalho. Tenho por você uma grande estima e não ficaria em paz se o deixasse desamparado. Ao longo desses anos de trabalho, ajuntei algumas economias, afinal, nunca fui de gastar muito. Além disso, de agora em diante, terei o meu salário de aposentado até o fim da vida. Como não pretendo mais trabalhar profissionalmente, não precisarei das ferramentas e dos maquinários da marcenaria. Se você quiser, pode ficar com tudo e continuar tocando a sua vida, dando continuidade ao trabalho que aprendeu a desenvolver aqui e que, aparentemente, lhe agrada tanto. Juliano o olhou boquiaberto, como se duvidasse do que estava ouvindo. Mas, antes que dissesse qualquer coisa, Domingos completou: - E claro que não lhe darei nada de mão beijada. Afinal, não estou tão bem assim de bolso — disse, sorrindo, enquanto esfregava o dedo indicador no polegar. — Além disso, tenho certeza de que você mesmo não aceitaria algo que soasse como uma esmola. — Naturalmente — disse, o rapaz. — Só poderei aceitar se for uma transação comercial e, e claro, se estiver ao meu alcance. Juliano, conheço as suas limitações financeiras e só estarei sendo honesto, se fizer uma proposta que lhe seja viável. De outro modo, estaria sendo hipócrita e você já me conhece o suficiente para saber que não sou. Juliano deu um profundo suspiro e meneou a cabeça, sem saber o que falar. Estava apreensivo demais, pois sentia que, de certo modo, seu futuro estava nas mãos daquele homem. Domingos abriu um largo sorriso, com o propósito de acalmá-lo. Mostrou uma relação dos valores de tudo o que havia na marcenaria, incluindo o próprio imóvel. O rapaz arregalou os olhos quando o marceneiro concluiu o somatório. Era dinheiro demais para as suas modestas condições. No entanto, Domingos já tinha tudo planejado e, com muita convicção, explicou: — A proposta que lhe faço é a seguinte: você continua trabalhando aqui, tocando as atividades da oficina, da maneira que achar melhor. Naturalmente, se precisar de orientação, estarei à sua disposição, mas não conte mais comigo para o trabalho braçal. À medida que for obtendo resultados financeiros, você vai me repassando uma parcela do faturamento, até chegarmos a um terço do valor de todos esses bens que estou lhe vendendo. — Um terço do valor? Mas, e os outros dois terços? Como vou lhe pagar? perguntou, com voz aflita. Domingos voltou a sorrir. Encarou-o e explicou: - O restante é um presente de casamento, antecipado. Juliano ficou perplexo diante da generosa proposta. Titubeou: — Seu Domingos, não posso aceitar... Assim o senhor vai ficar no prejuízo... — Meu filho, entenda uma coisa — respondeu Domingos, com voz pausada, porém firme —, as últimas três décadas da minha vida foi nesta oficina. Ganhei muito dinheiro aqui e tudo o que quero agora é que ela permaneça nas mãos de uma pessoa que fará bom proveito, e que dará continuidade ao trabalho que desenvolvi neste município, que tão bem me acolheu. Aproximou-se de Juliano e o olhou afetivamente. — Além disso, sei que você e a minha filha têm planos de se casarem e isto me deixa muito feliz! Este empreendimento vai ajudá-los a concretizar o seu projeto e poderá oferecer uma vida digna para vocês e, é claro, para os meus netinhos — acrescentou piscando o olho. Juliano se sentiu constrangido, quis dizer qualquer coisa, mas Domingos o interrompeu e decretou: — A menos que você me convença que possui planos mais interessantes para o seu futuro, não aceito recusa. Juliano o abraçou, emocionado. Como não encontrasse palavras para descrever o que sentia, permaneceu quieto. Domingos deu-lhe um tapinha nas costas e, afastando o moço com delicadeza, falou: — Agora, chega de lorota! Vamos providenciar a documentação e comemorar, porque, a partir de agora, pretendo ficar bem longe desta oficina e desfrutar o repouso a que tenho direito. * * * Ironicamente, Domingos nem chegou a receber o primeiro salário de aposentado. Para imensa tristeza da família e dos incontáveis amigos que possuía, sofreu um infarto fulminante e morreu durante o sono. O episódio ocorreu três semanas após haver comemorado a tão sonhada aposentadoria. 8 Prosperidade "Eis a missão das grandes fortunas: gerar trabalhos de toda a espécie e executá-los; e ainda que dessa atividade resulte um legítimo ganho em favor dos que assim as empregam, o bem não deixaria de existir, pois o trabalho desenvolve a inteligência e eleva a dignidade do homem..'.' E.s.E — Cap. XVI; item 13 Embora abalado com o desencarne do grande amigo e protetor, Juliano assumiu a direção da marcenaria. Graças à generosidade de Domingos, sua vida daria um salto espetacular, a partir de então. A primeira atitude do novo empreendedor foi convidar Reinaldo para associar-se a ele. O cunhado não atuaria em tarefas braçais, como pretendera Domingos, mas no setor administrativo; função para a qual Reinaldo reunia todas as qualidades que lhe faltavam como marceneiro. Com uma visão vanguardista para os negócios e contando com o prestimoso reforço do cunhado, Juliano não se limitou a dar continuidade ao trabalho de Domingos e implantou novas atividades na oficina. Aproveitando a ótima localização do imóvel, que permitia um fácil escoamento de produtos, por encontrar-se à margem de importante rodovia, decidiu investir na fabricação de móveis. O empreendimento foi tão positivo, que dois anos após haver adquirido a marcenaria, ele já havia quitado toda a dívida — pois fez questão de pagar à dona Francisca cada centavo do que fora estipulado por Domingos — e ampliado bastante a empresa, que contava com quase 20 funcionários. Com o sucesso da pequena indústria, Juliano que a cada dia se sentia mais ligado afetivamente à Flora, decidiu investir seriamente na relação. Comprou um terreno bem localizado, numa das ruas centrais, e contratou um arquiteto para projetar a casa onde pretendia viver com sua eleita. Flora, imensamente feliz, ajudou no projeto, dando palpites sobre o que considerava detalhes importantes para o conforto dos dois, além dos quatro ou cinco filhos que pretendiam conceber. Seguindo os passos da mãe, a filha de Domingos se tornou uma dedicada professora primária, muito amada por seus pequenos alunos. Alma sensível e talentosa, sobressaiu-se também no campo da música, tornando-se uma excelente pianista. * * * Acompanhando tudo à distância, vendo o "forasteiro" prosperar economicamente e tornar a relação com Flora cada vez mais consistente, Ulisses sentia crescer dentro de si uma grande revolta. Ele não era uma pessoa empreendedora; possuía limitações intelectuais, tanto que não havia sequer concluído os estudos primários. Era detentor de uma natureza preguiçosa, devotada ao desânimo e à falta de perspectivas. Muito cedo, desistiu de estudar e nunca demonstroudisposição para o trabalho, passando a viver em função dos rendimentos auferidos na pequena propriedade rural de seus pais. Passava a maior parte do tempo sem fazer nada; ou melhor, em atividades de lazer que nada acrescentavam à sua vida. Sob a complacência do pai e a proteção exagerada da mãe; que tudo faziam para proteger o filho único, Ulisses jamais sentiu o desconforto de um desejo não atendido, ou o constrangimento de ser repreendido por uma má ação praticada. Tudo era compreensível; tudo era desculpável, desde que não contrariasse os interesses do "pobrezinho". Peixoto e Dolores viviam em função do filho, satisfazendo-lhe todas as vontades, defendendo-o energicamente de qualquer situação que pudesse tirar o sossego do rapaz. E foi justamente por estar tão desacostumado de ser contrariado em seus interesses, que ele não se conformava com a recusa de Flora e com o sucesso de Juliano, que lhe soavam como uma inaceitável afronta; uma provocação difícil de ser digerida. Ulisses sonhava constantemente com os dois e, nesses sonhos, Juliano e Flora debochavam dele; chamavam-no de analfabeto; provocando-o de várias formas e terminavam sempre se beijando na frente dele, para desespero daquele moço caprichoso e destemperado. Foi em meio a esse desvario incontrolável que tomou conhecimento do noivado, e soube que o "forasteiro" estava construindo uma belíssima casa, onde o casal viveria após o casamento, que ocorreria em pouco tempo. Algumas pessoas, sendo naturalmente maldosas, intensificavam os sentimentos de revolta que infestavam o íntimo do rapaz, tecendo comentários perniciosos, com o objetivo de provocá-lo. No fundo, sentiam prazer em vê-lo humilhado. Cada informação, sobre o casal, que chegava ao conhecimento de Ulisses era como uma punhalada que lhe desferissem no coração. Toda vez que ouvia os nomes de Juliano e Flora, sentia os bati- mentos cardíacos se acelerarem, como se tivesse levado um grande susto. Passou a dormir mal; a se alimentar muito pouco, e aumentou o consumo de bebidas alcoólicas, para as quais já tinha uma boa dose de inclinação. Naquele sábado, quando tomou conhecimento de que o noivado estava sendo oficializado, Ulisses, que havia bebido durante o dia todo, sem saber exatamente por qual motivo, pegou o revólver do pai, municiou-o, colocou-o na cintura e saiu sem destino certo. Não fazia a menor ideia de que naquela noite não voltaria para casa. SEGUNDA PARTE 9 Sombras "Quando o Espírito deixa a Terra leva consigo as paixões ou as virtudes de sua natureza e vai para o Espaço se aperfeiçoar, ou permanece estacionário até que deseje esclarecer-se. Alguns partiram cheios de ódios violentos e desejos de vingança insatisfeitos." E.s.E — Cap. XIV; item 9 Ulisses acordou com uma tremenda dor de cabeça. Julgou ser fruto da bebedeira da noite anterior. Sem conseguir abrir os olhos doloridos, tateou no escuro, buscando o interruptor do abajur que ficava na cabeceira de sua cama, mas não o encontrou. Aliás, não encontrou também o colchão, o travesseiro, nem o cobertor. Notou que estava deitado em solo pedregoso, sobre uma rala e áspera vegetação. Assustado, fez grande esforço e, com muito sacrifício, conseguiu entreabrir os olhos, que estavam tremendamente doloridos. Havia um breu intenso à sua volta. Com movimentos lerdos, ergueu a mão direita e tocou o alto da cabeça. Percebeu uma protuberância, exatamente no local onde a dor era mais forte. Depois, deixou a mão deslizar suavemente pelo rosto e sentiu que seus olhos estavam com as órbitas saltadas para fora, sugerindo em seu semblante um aspecto aterrador. Tentou organizar os pensamentos, lembrar-se do que havia acontecido, mas não conseguia encontrar uma explicação para o fato de se encontrar num lugar tão esquisito, sentindo tanta dor. Quanto mais forçava a memória, mais sua cabeça latejava, o que o obrigou a se manter completamente estático.2 Vozes estranhas, grunhidos, imprecações e choros misturavam-se ao ruído de um frio e incessante vendaval. Sombras misteriosas movimentavam-se numa cadência lenta e anônima. 2 O tempo que dura a confusão que sofre a alma, após a separação do corpo, depende da elevação de cada indivíduo. O homem que se encontra mais preso às questões materiais e aos sentimentos inferiores permanecerá por um período mais longo nesse estado. N. do A. Ulisses foi acometido de invencível apatia. Lembrou-se dos pais e desejou estar com eles, sob a zelosa proteção que sempre lhe dispensavam, mas não fazia a menor ideia de onde seus genitores se encontravam. Teve vontade de chorar, mas parecia completamente desprovido de lágrimas, como se estivesse ressecado por dentro. * * * Foi desse modo que o filho de Peixoto e Dolores permaneceu por um longo período, sem conseguir reverter o doloroso quadro. Entre constantes desmaios e breves instantes de lucidez, amargou o delírio febril e agonizante de um morto-vivo, subjugado por sofrimento e incerteza. Num daqueles raros momentos em que se mantinha desperto, sem ter a menor noção do que estava acontecendo e de quanto tempo havia se passado, sentiu que uma mão delicada acariciava-lhe os cabelos, enquanto uma suave voz feminina o chamava pelo nome: — Ulisses! Ulisses, você pode me ouvir? Foi a primeira vez que despertou sem dores. Com sacrifício, conseguiu abrir os olhos feridos e, aos poucos, vislumbrou ao seu lado uma mulher de aspecto agradável, olhar compassivo, vestida com uma longa túnica branca. Estava inteiramente envolvida por suave claridade que parecia brotar de seu próprio corpo, permitindo que fosse vista em detalhes, apesar da escuridão reinante naquelas paragens. Ulisses tentou falar qualquer coisa, mas não conseguiu articular as palavras. A mulher, percebendo sua dificuldade, olhou-o com brandura e sussurrou, enquanto encostava o dedo indicador em posição vertical, à frente dos lábios: — Calma, meu querido! Você não precisa falar nada. Apenas pense nas palavras que deseja pronunciar, para que eu possa compreendê- lo. Muito confuso, mas aliviado por estar momentaneamente livre das dores de cabeça, Ulisses se concentrou e pensou: —“ Quem é você?” A mulher sorriu e respondeu, amável: — Alguém que o estima muito e que lhe deseja o melhor. — "Não me lembro de você. Qual é o seu nomer — O fato de não se lembrar é o que menos importa, no momento. Mas, pode me chamar de Efigênia. Estou aqui para lhe ajudar. Para lhe socorrer e levá-lo a um bom lugar, onde será medicado e orientado. — "Realmente, eu não conheço nenhuma Efigênia" — prosseguiu Ulisses, em diálogo mental. — "Mas gostei da sua carícia em minha cabeça, porque conseguiu aliviar as dores que estavam quase me enlouquecendo." Efigênia voltou a sorrir. — Que bom! Fico muito feliz em poder ajudá-lo! Mas, de repente, Ulisses foi tomado de uma grande inquietação. Sentiu necessidade de saber o que havia acontecido. Acreditando que Efigênia pudesse lhe tirar as dúvidas, firmou o pensamento nas perguntas que pretendia fazer e indagou, curioso: — "O que aconteceu comigo, Efigênia? Por que não estou na minha casa? Por que minha cabeça está ferida?" Notando a súbita agitação do rapaz, a bondosa mulher procurou acalmá-lo, tornando ainda mais brando o seu tom de voz. — Calma, meu filho! Esta agitação não o ajudará em nada. Infelizmente, aconteceu uma coisa desagradável com você e, quanto a isto, nada mais poderá ser feito. Mas, na hora certa, você terá todas as informações de que necessita. O importante agora é tirá-lo deste lugar. Você não gostaria de vir comigo, para receber tratamento e se livrar dessas dores? Mas, Ulisses não estava mais conseguindo se manter sereno. Algo dentro dele começava a se manifestar negativamente, de modoincontrolável. — "Não vê que estou impossibilitado? Que não consigo me mover?" — respondeu, revoltado, em atitude tão hostil que, embora dita em linguagem mental, assemelhava-se a gritos. Era a sua natureza embrutecida que começava a aflorar, voltando a comandar os seus pensamentos. Sem perder a serenidade, Efigênia apontou para uma direção e disse: — Eu não estou sozinha, Ulisses! Somos um grupo de trabalhadores e viemos preparados para socorrê-lo, sem que você precise fazer qualquer esforço. Basta que tenha o desejo sincero de ser auxiliado. Ulisses firmou os olhos inchados na direção que a mulher havia apontado e visualizou quatro jovens, todos vestidos de roupas brancas e possuidores daquela mesma tênue claridade que envolvia Efigênia. Seus semblantes eram suaves, seus lábios ostentavam cândido e sincero sorriso. Carregavam uma espécie de padiola. — Como vê — continuou Efigênia —, você não precisará fazer nada. Esses companheiros irão colocá-lo na maca e nós o levaremos a um lugar confortável, onde você receberá o tratamento necessário para a sua recuperação, além de esclarecimentos sobre tudo o que lhe aconteceu. Durante todo o tempo, a mulher continuava acariciando a cabeça de Ulisses, que agora já não apresentava nenhum sintoma de dor. Por um lado, ele queria dizer a Efigênia que estava tudo bem, que tinha vontade de seguir com o grupo, mas não conseguia fazê-lo com a convicção necessária. Alguma coisa dentro de si relutava em aceitar ajuda. Ulisses não conseguia entender o que se passava em seu interior, mas um sentimento de raiva ia aos poucos o envolvendo em grande inquietação. Parecia estar sendo atraído para o centro de vertiginoso redemoinho, do qual não conseguia escapar. Olhou a face serena de Efigênia e buscou se fortalecer no halo de complacência que emanava daqueles olhos translúcidos. Mas, de repente, tudo aquilo lhe pareceu ridículo. Sentiu-se diminuído, frágil, dependente... Teve ódio daquela sensação. Agora, os sorrisos amorosos daquelas pessoas que ali estavam para socorrê-lo, pareciam-lhe risos sarcásticos, como se debochassem do seu sofrimento, da sua fraqueza. O orgulho, que sempre havia norteado as suas atitudes, voltava a dominá-lo inteiramente.3 Ulisses sentiu raiva de tudo aquilo. Precisava reagir, mostrar-se forte e decidido, como sempre fora. Segurou com força a mão de Efigênia e, num gesto brusco, afastou-a de sua cabeça. Nesse momento, sentiu a dor voltar com maior intensidade. Uma forte vertigem quase o fez desmaiar, mas conseguiu se manter lúcido. Sentiu que estava finalmente retomando o controle de suas próprias ações e esta percepção o encorajou muito. 10 O justiceiro "A vingança é o último vestígio abandonado pelos costumes bárbaros que tendem a desaparecer dentre os homens. Ela é, juntamente com o duelo, um dos últimos vestígios desses costumes selvagens que Jaziam a Humanidade sofrer no início da era cristã." E.s.E — Cap. XII; item 9 3. A mudança de caráter do indivíduo ocorre por meio da conscientização e não pelo simples fato de haver desencarnado. N. do A. Enquanto lutava consigo mesmo, procurando manter-se firme diante daquela confusão mental e das dores que haviam retornado com grande intensidade, Ulisses ouviu uma voz grave ecoar, em meio às trevas. — Ulisses! Ulisses! Onde está você, meu rapaz? A voz soava do lado oposto de onde estavam Efigênia e seu grupo. Ulisses olhou com ansiedade para aquela direção e se deparou com um homem alto, de semblante grave. Vestia-se com uma grossa capa cinzenta. Ao vê-lo, o homenzarrão ensaiou o que deveria ser um sorriso e comemorou: — Ah, você está aí, meu garoto! Até que enfim o encontrei. Venha, vamos embora daqui. Cada vez mais confuso, Ulisses tentou novamente articular umas palavras, dirigindo-se ao recém-chegado, mas não conseguiu. — O que foi? Quer falar alguma coisa? — perguntou o estranho. Novamente ele tentou falar, mas não obteve sucesso. O homem abaixou-se e, encostando o ouvido à boca de Ulisses, pediu: —Vamos, faça um esforço. Você consegue. Com muita dificuldade, Ulisses balbuciou: — Quem é você? — Ah, vejo que você ainda está sob o efeito da lei do esquecimento. Sou um grande amigo do passado. Alguém que o conhece há muito tempo e que lhe tem grande estima. Meu nome é Adamastor e estou aqui para ajudá-lo. — Não me lembro de conhecê-lo — sussurrou Ulisses. — Mas, é claro que não! Você passou por maus momentos e é natural que fique desmemoriado por algum tempo. Mas, pode confiar em mim. Sou seu amigo e desejo o melhor para você. — Ela também veio me ajudar... Disse as mesmas coisas... — cochichou Ulisses, apontando na direção de Efigênia. Adamastor franziu o cenho e levantou-se de punhos cerrados, em atitude agressiva. Olhou atentamente, procurando distinguir qualquer coisa em meio à escuridão, mas não conseguiu enxergar nada. No fundo, sabia que não podia visualizar o grupo de benfeitores, em função de sua baixa vibração mental. Não havia como alcançar, ainda que visualmente, a dimensão espiritual em que os outros se situavam, por estarem moralmente bem mais elevados que ele. — Você deve estar falando de umas pessoas metidas a boazinhas, não é? Umas que falam manso e carregam uma padiola, oferecendo ajuda. Dizem que vão levá-lo para um lugar confortável, que vão cuidar de você, e até conseguem passar a sensação de que suas dores acabaram. Ulisses acenou a cabeça, num gesto de afirmação. Nesse momento, Efigênia interferiu com educação, com a mesma serenidade na voz: — Não dê ouvidos a ele, Ulisses. Este homem não poderá lhe ajudar, porque não consegue ajudar nem a si. E um infeliz, um revoltado, que insiste em permanecer no erro e no sofrimento, em vez de procurar a libertação por meio do amor, do perdão e da caridade. Venha conosco! Deixe-nos cuidar de você... — São uns fingidos! Uns mentirosos, hipócritas! — gritou Adamastor, demonstrando profunda irritação; parecendo ter percebido de algum modo o apelo de Efigênia. — Não dê atenção a eles, Ulisses, pois o que querem é convencê-lo a perdoar o seu assassino, o miserável que desgraçou a sua vida. — Assassino? _ balbuciou o enfermo, curioso. — Sim! Por acaso, já contaram o que lhe aconteceu? Já lembraram que você foi assassinado covardemente por aquele tal Juliano? Que o maldito arrebentou a sua cabeça? Que agora o caminho dele está livre para se casar com a Flora? Ao ouvir os nomes de Juliano e Flora, Ulisses sentiu um baque imenso. A revolta que se manifestava em seu íntimo eclodiu de modo espetacular, provocando-lhe uma espécie de colapso. Começou a tremer, numa agitação agônica incontrolável. — Estou aqui, por que não acredito nessa tal justiça divina que os covardes insistem em evocar, simplesmente por não terem coragem de enfrentar os seus inimigos. Acredito, sim, na justiça feita pelas mãos de quem sofre um prejuízo. Acredito no "olho por olho" e estou aqui para lhe ajudar a se vingar do Juliano! — vociferou Adamastor. — Calma, Ulisses! — implorou Efigênia, em tom clamoroso. — Não dê vazão à revolta. Não vá com este pobre infeliz, que só o ajudará a se complicar ainda mais. Por favor, venha conosco! — Não! Nunca! — bradou Ulisses, agora sem se importar com a dor dilacerante que sentia, enquanto gritava. — Eu não vou a lugar algum com vocês. Não posso confiar em quem mente para mim. Você, Efigênia, que fingiu ser minha amiga, recusou-se a me lembrar do que havia acontecido. Só posso supor que você e seu grupo, sejam amigos daquele maldito que me destruiu; que estavam me levando para algum lugar, onde pudessem impedir a minha vingança. — Não! Não é nada disto... — tentou insistir Efigênia, inutilmente. — Está decidido: eu vou com o Adamastor — decretou o rapaz. — Muito bem! — festejou o homenzarrão,encorajando-o. — Assim é que se fala, meu bom Ulisses. Esses intrometidos se fazem de bonzinhos, mas no fundo, o que querem é proteger os malfeitores e impedirem que seja feita justiça. — Já decidi, Adamastor! — disse, ainda com mais convicção. — Eu quero ir com você. Exibindo um sorriso triunfante, o grandalhão abaixou-se, ergueu Ulisses e o apoiou em seus ombros. Mesmo demonstrando uma dificuldade imensa para caminhar, o rapaz se deixou arrastar por uma estreita vereda e infiltrou-se na bruma escura que dominava o lúgubre ambiente. Com os olhos lacrimejantes voltados para o alto, Efigênia ergueu os braços e pediu, em comovente oração: — Oh, Pai de eterna bondade! Perdoa a ignorância e a fraqueza deste Teu pobre filho que, algum dia, vencido pelo sofrimento, há de implorar a Tua clemência e reconduzir-se aos Teus braços... Aos poucos, aquela diáfana criatura e os companheiros benfeitores que a acompanhavam foram se afastando, e a densa região voltou a mergulhar em trevas. 11 Acolhida Só é verdadeiramente grande aquele que, considerando a vida como uma viagem que o deve levar a um destino certo,Jaz pouco caso das contrariedades do caminho e dele nunca se desvia. E.s.E — Cap. XII; item 11 Após longa e extenuante caminhada, com o corpo cheio de dores, mas fortalecido pelo implacável desejo de vingança, Ulisses vislum- brou uma clareira mal iluminada, com pálidas tochas dispersas, que bruxuleavam presas a estacas, a imitação de rústicos postes de iluminação. O cenário, que tinha o aspecto de uma aldeia rudimentar, era formado de um pátio redondo, circundado por diversas cabanas que lembravam iglus, construídas a partir de uma mistura de capim seco e argila. Não possuíam janela, apenas uma pequenina porta, voltada para o centro do terreiro. A paisagem era desalentadora, tomada inteiramente por espessa e cinzenta cerração, cercada por serras escarpadas, cujos cumes se perdiam entre as brumas enegrecidas. O solo pedregoso lembrava as paisagens áridas das regiões mais desérticas da Terra. O ar era pesado, abafadiço; e um desagradável odor de putrefação dificultava ainda mais o simples ato de respirar. Umas 20 figuras povoavam o ambiente; sentadas no meio do pátio, em torno de um braseiro, entretidas em animada conversação. A passagem dos dois homens, algumas, curiosas, os olharam, mas a maioria se manteve indiferente. Ulisses estava se sentindo tão cansado e com tanta dor de cabeça, que não prestou atenção a quase nada. Adamastor o conduziu a uma daquelas cabanas, introduziu-o pela portinhola e o acomodou sobre uma espécie de catre, forrado com ásperas folhagens, de aroma desagradavel-mente ácido. Mas bastou aquela mínima condição de conforto para que Ulisses voltasse a desmaiar, vencido pela exaustão da sacrificante caminhada. * * * Depois de um certo período em que Ulisses continuou alternando momentos de inquietante sono e breves fases de lucidez, Adamastor invadiu a cabana com seu jeito extravagante. Portava uma grande tigela de barro, contendo uma espécie de sopa rala que fumegava, exalando um cheiro pouco atrativo ao paladar. — Vamos lá! Vamos lá! — bradou, com sua rouquenha e grave voz de trovão. — Vai passar a eternidade dormindo? Experimente a melhor Jguaria da nossa culinária. E estendeu a vasilha na direção do rapaz. Ulisses se ergueu com dificuldade e sentou-se, recostando-se na parede da cabana. Apoiou a tigela no colo e, com uma rústica colher de pau, começou a tomar a sopa. Como teve uma reação de desagrado à primeira colherada, Adamastor perguntou: — O que foi? Não aprovou o sabor? O rapaz sorriu sem graça, e nada respondeu. — Pois eu vou lhe dizer — garantiu Adamastor —, que esta sopa é um verdadeiro manjar. Ela é feita de uma espécie muito rara de cogumelos que brotam nos troncos decompostos. Como aqui quase não há umidade, precisa-se fazer uma longa e difícil caminhada para encontrá-los. E a minha contribuição para a recepção de boas- vindas — completou, com humor sarcástico. Ulisses se manteve em silêncio, mas pensou que se o prato mais concorrido daquela região era aquela sopa insossa, com gosto de madeira podre, deveria iniciar uma dieta bem radical. Mas, à medida que se alimentava, sentia-se revigorado e, embora a cabeça continuasse a latejar incessantemente, a sonolência foi desaparecendo. Adamastor, que acompanhava todos os seus movimentos, pareceu satisfeito com o resultado. -Ah! Vejo que, finalmente, vamos começar a agir — comentou, com certo entusiasmo. Ulisses, que já havia ingerido toda a sopa, olhou-o com curiosidade e, percebendo ter recuperado a capacidade de falar, sem que isto lhe causasse tanto sofrimento, perguntou: — O que está acontecendo, Adamastor? Que lugar é este? Por que você me trouxe para cá? Calma, meu rapaz! Com tantas perguntas de uma única vez, você acaba me confundindo. Em princípio, acho que deveria agradecer por ter saboreado aquela sopa. Afinal, comida de boa qualidade nesta região é coisa muito rara. — Desculpe o mau modo! — exclamou Ulis-ses. — E que ainda me sinto bastante aturdido com tudo o que está acontecendo. Agradeço pelo que você tem feito por mim, mas preciso de respostas. .. Estou muito confuso... — Bem, vamos aos esclarecimentos — disse Adamastor, saindo da cabana e fazendo um sinal para que Ulisses o acompanhasse. * * * Do lado de fora da cabana, Ulisses se espreguiçou demoradamente, respirando o ar saturado de fumaça e desagradáveis odores. O pátio estava deserto, envolto em penumbras, mal iluminado pelas tochas tremulantes. O rapaz deduziu que naquele local não havia a divisão entre dia e noite, já que aparentemente os raios solares nunca atravessavam a espessa cerração. A temperatura era sempre fria, provocando um tremendo desconforto que parecia ampliar a dor aguda, com a qual parecia ir se acostumando aos poucos. 12 A aldeia "O amor aos bens terrenos constitui um dos mais fortes entraves ao vosso adiantamento moral e espiritual. Pelo apego à posse de tais bens, destruís as vossas faculdades de amar, com as aplicardes todas às coisas materiais." E.s.E- Cap. XVI; item 14 Adamastor e Juliano sentaram-se numas pedras arredondadas que serviam de bancos, em torno do pequeno braseiro, mantido constantemente aceso no centro do pátio. Reativando as brasas com uma vareta, o hospedeiro perguntou: — Por onde você quer começar a sessão de perguntas? — Gostaria de saber que lugar é este e quem são as pessoas que vivem aqui. Sem desviar os olhos do braseiro, Adamastor respondeu: — A única pessoa que vive aqui sou eu. Ou melhor, agora somos nós dois. — Mas, de quem são essas cabanas? Quem eram as pessoas que vi em torno deste braseiro, no dia que você me trouxe? Adamastor abriu os braços efusivamente e, olhando nos olhos do rapaz, disse: — Ulisses, o lado de cá não é muito diferente do lado de onde você veio. Há aqui lugares tão sinistros, quanto lá. Recantos destinados a encontros furtivos, a reuniões sigilosas... Isto acontece, porque os habitantes dos dois planos, em sua maioria, compartilham os mesmos desejos secretos, as mesmas necessidades fugazes, as mesmas falsidades... Aqui é uma espécie de... Deixe-me pensar num termo bem apropriado. Humm... Refúgio! Eu acho que é a palavra que melhor explica esta aldeia. — Refúgio? Mas, para quem? — Lugares como este servem para as pessoas realizarem aquilo que, por força das circunstâncias, não podem fazer do lado de lá. Aquelas pessoas que você viu, no outro dia, pertencem a um grupo político que atualmente detém grande poder e administra muito dinheiro público. — Políticos? — Sim. Eles se reúnem sempre aqui, para planejarem os melhores meios de desviarem verba pública para as contas do partido
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