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Vladimir Safatle -Estamos no meio de uma verdadeira epidemia mundial de depressão

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Vladimir Safatle 
[​É professor livre­docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São 
Paulo). Escreve às sextas.​] 
Estamos no meio de uma verdadeira 
epidemia mundial de depressão 
22/07/2016  02h07 
 
 
Em 1956, quando surgiu o primeiro antidepressivo, o laboratório Geigy hesitou em                       
lançá­lo no mercado por considerar a depressão um fenômeno de proporções                     
insignificantes. Hoje, 60 anos depois, a Organização Mundial da Saúde estima que                       
entre 350 e 400 milhões de pessoas sofram de alguma forma de depressão. Isso                           
representa algo em torno de 5% da população mundial. No Brasil, os números são                           
mais substantivos. Segundo o IBGE, 7,6% da nossa população foi diagnosticada com                       
depressão. Ainda segundo estudos da Fiocruz, 1 em cada 4 mulheres sofre de                         
depressão pós­parto, número maior do que a média global. 
Diante de números dessa magnitude há de se perguntar o que realmente ocorreu nos                           
últimos 60 anos. Estamos no meio de algo como uma verdadeira epidemia mundial                         
de depressão que fez números insignificantes saltarem a proporçõesmassivas. Ou, na                       
verdade, essas pessoas já estavam lá, mas não eram vistas, não eram diagnosticadas                         
de forma correta? 
Uma certa ideia de desenvolvimento científico gostaria de nos fazer acreditar na                       
segunda hipótese. Pois se trata de defender que a ciência caminharia a passos largos                           
por meio de uma correspondência cada vez maior ao mundo tal como ele é,                           
independentemente de nossa forma de descrevê­lo. Como se nossa linguagem                   
científica fosse um espelho que aos poucos poderia ser polido, limpado de suas                         
crenças e superstições a fim de alcançar uma translucidez crescente. Pois o                       
desenvolvimento de nossas categorias científicas seria baseado em refutação e                   
descoberta. Refuta­se uma descrição errada, que não corresponde a nada no real, e                         
descobre­se uma "espécie natural", ou seja, um conjunto de fenômenos cuja                     
identidade é dada pelo mundo, não por nós. 
Acreditar nessa marcha irresistível da ciência é reconfortante para alguns. Mas será                       
que esse raciocínio vale realmente para categorias clínicas, como a depressão, ou, por                         
exemplo, o transtorno de personalidade histriônica e o transtorno bipolar? É possível                       
dizer, ao contrário, que nossas categorias clínicas ligadas à descrição do sofrimento                       
psíquico, em larga medida, produzem os objetos que elas descrevem? 
Pois notemos uma diferença importante entre categorias utilizadas para descrever                   
comportamentos humanos e aquelas utilizadas para descrever fenômenos domundo                   
físico. Quando descrevemos fenômenos físicos, os objetos envolvidos não apreendem                   
reflexivamente as descrições que deles fazemos. Ao descrever a lei da gravidade,                       
temos poucas chances de uma pedra dizer para si mesma: "Então, é por isso que                             
sempre caio. Hum, interessante". 
No entanto, é isso o que acontece quando um paciente se vê como depressivo. Ele                             
apreenderá reflexivamente a categoria que o descreve, ele dirá a si mesmo, "então                         
sou um depressivo", e essa nomeação de si não será indiferente. Ela produzirá novos                           
efeitos e reorientará os efeitos passados, repetindo um fenômeno que teóricos da                       
ciência, como Ian Hacking, chamam de "nominalismo dinâmico". Pois uma doença                     
psíquica não é apenas uma descrição de fenômenos físicos agenciados em conjunto:                       
ela é uma identidade, uma identificação, e nos esquecemos disso muitas vezes. Da                         
mesma maneira como alguém muda seu comportamento e sua maneira de estar no                         
mundo quando assume para si mesmo, por exemplo, "eu sou negro, eu sou escocês,                           
eu sou judeu etc.", ele mudará quando se vir como depressivo. 
Nesse sentido, talvez possamos dizer que o fato de, ao menos segundo o saber                           
psiquiátrico reinante, não haver mais histéricas, neuróticos e paranoicos entre nós                     
(pois todas essas categorias clínicas foram abandonadas nos últimos anos) não                     
significa que o sofrimento que eles nomeavam tenha desaparecido. Significa apenas                     
que ele é narrado de outra forma. A boa questão é, pois: por que, a partir de certo                                   
momento, eles serão narrados de outra forma? Por que, a partir de certo momento,                           
preferimos narrar nosso sofrimento como "depressão"? 
Não haveria questões exteriores à clínica e próprias ao campo alargado da cultura                         
que nos levaram a preferir certas narrativas a despeito de outras? Isso nos obrigaria a                             
perguntar não apenas sobre descrições, mas sobre valores, ou seja, sobre se nossa                         
ideia de normalidade e saúde não seria portadora de valores que mudam                       
historicamente a partir de dinâmicas que não são apenas ligadas ao universo dos                         
laboratórios e dos hospitais. Mas isso exigiria uma visão do saber                     
médico­psiquiátrico que nos parece atualmente proibida.

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