Buscar

machado, roberto danação da norma medicina social e constituição da psiquiatria no brasil

Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original

Biblioteca de Estudos Humanos
Serie Saber e Sociedade (n9 3)
Diregao: Jose Augusto Guilhon Albuquerque
e Roberto Machado
Editor: Andre da Costa Santos
1978
Direitos adquiridos por EDI<;:OES GRAAL Ltda.
Rua Hermenegildo de Barros, 31-A - G16ria
20. 000 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
© Copyright by EDI<;:OES GRAAL Ltda.
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Roberto Machado
Angela Loureiro
Rogerio Luz
Katia Muricy
DANA<::AO DA NORMA
Medicina social e constituis;ao
da psiquiatria no Brasil
SERlE SABER E SOCIEDADE
Capa: SONIA MARIA GOULART
Apresentarao
SUMARIO
............................. 11
CIP-BrasiI. Cataloga9iio-na-fonte
Sindicato Naciona! dos Editores de Livros, RJ.
0175 Dana9iio da norma: a medicina social e cons-
titui9iio da psiquiatria no Brasil / Roberto
Machado. .. I et aI. I .- Rio de Janeiro :
Edi90es Graal, 1978.
(Biblioteca de Estudos humanos :
Serie Saber e Sociedade; v. n. 3)
Bibliografia
1. Medicina social - Brasi! 2. Psiquiatria
- Brasil I. Machado, Roberto II. Serie
Parte I: A ARTE DE CURAR OS MALES NA
COLONIA
Introdurao
Capitulo I: A doenra no caminho do governo
Legalizar a arte de curar
Fiscalizar os males da cidade
Socorrei as pobres e os soldados
Lepra, filha mais velha da morte 72
Peste, um inimigo na cidade 83
Capitulo 2: Da militarizarao a saLlde 105
Enquadrar urn povo mole, doente e frouxo 106
Recuperarao do soldado 122
Isolamento do 16zaro 134
Por que a cidade e doente? 142
Parte II: MELHOR PREVENIR QUE
REMEDIAR
78-0199
coo - 610.981
616.8900981
COU - 61:301(81)
616.89(81)
Introdurao .
Capitulo I: A Estrategia de wn saber .
Sob a mira da policia medica .
Desafio politico da sOl,de .o charlalao na Republica dos mMicos .
153
159
159
180
193
Medicina, teiticas e focos de poder 213
Epilogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
Capitulo 2: Nada que e urbano the e estranho 247
Por uma medicina sem fronteiras 247
A cidade no plano da norma 259
Medicalizar as institui,oes 278
Hospital 282
Cemiterio 288
Escola 295
Quartel 306
Prisiio 316
Borde! 330
Feibrica 345o negro do pensamento medico 353
Parte Ill: A MEDICINA DO
COMPORTAMENTO
Introdu,iio 375
Capitulo I: A patologia do cotidiano 382
Do delirio adoen,a moral 384
Esquirol 386
Os brasileiros 392
Moriio 404
Loucura, paixiio e sociedade 410
Capitulo 2: Aos loucos 0 hospicio 423
A pedagogia da ordem 429o isolamento 430
A organiza,iio do espa,o terapeutico 432
A vigiltmcia 435
A distribui,iio do tempo 439
Repressiio, controle, individualiza,iio. 443
Uma anomalia hospitalar lastimosa .... . . . . 447
Um espa,o caotico . . . . . . . . . . . 451
Um poder cego . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 456
Uma legisla,iio arbitreiria 473
Loucura: uma questiio de Estado 485
Bibliografia
8
-- -------
Este trabalho contou com 0 apoio financeiro.
da FINEP e 0 apoio institucional do Institu-,
to de Medicina Social da UERJ e do Depar-'
tamento de Filosofia da PUC - RJ.
Agradecemos a todos aqueles que, de diferen-
tes maneiras, contribuiram para sua reali-
zagiio. Em especial: Aurelio Guerra Neto,
Eduardo Escorel, Flavia Martins de Albuquer-
que, Georges Lamaziere, Ilmar Rohloff de
Matos, Janina Fleury, Jean-Robert Weiss-
haupt, J'Oel Birman, Jose Augusto Guilhon
Albuquerque, Julio Cesar Montenegro, Juran-
dir Freire Costa, Madel Terezinha Luz, Mar-
cos Miiller, Maria Jose Santos, Michel Fou-
cault, Regina Rocha.
9
•
APRESENTA9AO
ESludo de hisloria dos saberes, esle livro lem por
objelivo dar conta do nascimenlo de um lipo de medi-
cina caracterislico da sociedade capitalista. Ana/isa os
conceitos btisicos da medicina social e da psiquiatria
brasi/eiras; mas niio se limita a lima abordagem interna:
pretende retletiT sabre esses saberes como pTatiea social.
Estabelece uma relarao entre as teorias e as praticas
politicas naa em termos de exterioridade ou de justa-
postrao, em que 0 poder se apropriaria de uma neutra-
lidade cientifica e a utilizaria segundo objetivos que lhe
sao extrinsecos, mas de imanencia: a dimenso.o politicae constitutiva da existencia dos discursos. Nita se trata,
portanto, de julgar da cientificidade da medicina, mas
de analisar que novo tipo de saber ela representa e que
novo tipo de poder ela implica necessariamente.o objetivo do trabalho Ii compreender a figura
moderna da medicina, seu papel na sociedade, sua ambi-
90,0 como instrumento tecnico-cientijico a servi90, direta
ou indiretamente, do Estado. A nova forma de presenra
11
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
da medicina tem uma origem historica: politica e con-
ceitual.
Uma dupla relafQo se estabelece entre a historia e
a atualidade: por um lado, 0 desvelamento do passado,
do modo especifieo de emergencia das eonfiguraroes
atuais, e indispensavel para uma perCepf;QO mais lucida
do presente. No momenta em que se procuram novas
jormas de funcionamento da medicina que niio veiculem
uma domina9iio de classe, que nQO sejam uma intensifi-
earao dos dispositivos de poder criados pelo eapitalismo
como condif;QO indispensavel a sua perpertua9iio, a abor-
dagem critica da historia e urn instrumento importante
para a realiZCl9iio das experiencias que pretendem im-
pregnar ° futuro.
Por outro lado, a ida ao passado, 0 projeto de
pesquisar as origens da psiquiatria, e mais globalmente
da medicina como discurso e pratica politicos, e, ele
proprio, esclarecido pelo presente, determinado pela exi-
gencia de aprofundar sua critica e fornecer elementos
para a transformarao das eondiroes atuais de seu mo-
do de intervenrao.
Estudando a racionalidade da medicina social -
o saber da sociedade que a caracteriza, sua relafiio com
o Estado, suas tecnicas de atuafiio - trata-se basica-
mente de formular uma questiio que cada vez menos po-
dera ser evitada: que papel desempenham as institui-
sociais como meio de controle dos individuos e das
popular;oes atraves de uma afiio intrinsecamente ligada
ao saber das ciencias humanas? Como situar teorica e
politicamente a relafQO entre saude e sociedade sem
reconduzir ou aperfeifoar os mecanismos de dominafiio
burgueses que ate hoje tern encontrado resistencias e
difieuldades em se implantar no Brasil?
Pouco a pouco se comefa a olhar de modo critico° funcionamento da sociedade ao nivel do eotidiano, dos
aparellzos que assumem a gestiio de nossas vidas, das
instituiroes que produzem, aperfeiroam ou orientam nos-
12
so eomportamento. A eada dia se deseobre a rede de',
poderes que envolve nossa existencia, atinge nosso corpo!
e organiza nosso desempenho social. Cada vez mais Sf!
politiza 0 dia a dia.
Esse estudo tern a ambir;iio de contribuir para esset
critica do presente, trazendo a dimensiio da historicida-:
de dessas formas de poder contra as quais se pre:ende,
lutar. Mas nao se propoe a explicar a totalidade. Temati-i
zando a medicina, procura dar conta -da emergencia del
uma nova problematica teorica e pratica enquanto parte!
de um proeesso global que poderti ser melhor eonhecidoi,
a partir de estudos setoriais, espedficos, centrados em:
instrumentos de pader nascidos, muitas vezes, fora dos:
aparelhos de Estado, mas que desempenharam um popel'
decisivo para sua propria transformafiio. !
Do mesmo modo que 000 queremos explicar a me-t
dicina a partir do todo, tambem niio queremos tudoi
explicar atraves de uma analise da propria medicina. Mas
exibir uma pefa do mecanismo de nossas sociedades, de'
importiincia decisiva para 0 surgimento e manutenr;QO
de tecnicas normativas nascidas no bojo de um tipa·
de conhecimento que se dti como objeto a totalidade da
vida social; tecnicas que foram, pouco a pouco, se des-
loeando de seu
solo ariginario ate impregnar outros sa-
heres e outras praticas.
Na descontinuidade de traros que os doeumentos
registram revela-se 0 esquema de normaliZQqao da vida
social brasileira. Revelar este esquema, que regula a
populaqiio e disciplina 0 individuo, exige um mapeamen-
to minucioso. Esta pesquisa realiza urn primeiro levan-
tamento de terreno sob uma perspectiva especijiea: a
da estrategia de mediealizarao da sociedade empreendi-
da por uma frarao da intelectualidade da epoca. Estra-
tegia que proeura redefinir as eondifoes em que se dao
as relaroes de poder entre nos, a partir da reflexao e
da intervenrao sobre 0 esparo urbano, sua popularao e
as individualidades que a eompoem.
13
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
His/aria, jeixe de acon/ecimentos, escrita a partir
de discursos: leis, regulamentos, otzdos, cartas, jornais,
teses, panfletos. Uso da documenta<;iio disponfvel em
seu valor, Instrumental e material, de implementaqiio de
uma estrategia, isto f, na medida de sua ejicacia politica.
Historia das origens de um discurso e de uma prdtica
dominantes.
A analise evitou principios explicativos muito gerais
que viessem sujeitar 0 documento ii exigencia de uma
interpreta<;iio totalizadora; privilegiou as fontes primli-
rias porque melhor serviram iJ. reconstitui<;iio da trajeto-
ria medica e de sua articulafQO com a gestao politica
dominante da vida urbana.
Se a trama historica assim revelada mostrou-se mais
rica em sugestoes de leitura do que qualquer canone
teorico pre-estabelecido, ajudou-nos, por outro lado, a
afastar do texto a pretensiio de neutralidade, para insti-
tuf-lo como instrumento teorico-politico na rede de dis-
cursos que ele ao mesmo tempo estabelece e desfaz.o dispositivo desse trabalho a quatro miios niio es-
tabeleceu divisiio de tarefas ou hierarquia de fun<;oes.
niio separou pesquisa de documentos, analise e redaqiio
de texto. Multiplicar os autores e, paradoxalmente, con-
tribuir para sua destrui<;iio.
14
PARTE I
A ARTE DE CURAR OS MALES NA COLONIA
Geruza Valadares Souza
Geruza Valadares Souza
INTRODU<;AO
Sera a medicina social brasileira urn projeto for-
mado em determinado momenta de nossa hist6ria, tendo
urn nascimento que pode ser delimitado, ou deve ser
pensada como uma exigencia aparecida desde 0 inicio
da co!oniza9ao do Brasil, parte integrante das medidas
medicas e politicas aqui implantadas? Questao. difieil
mas essencia! na medida em que sem propor periodi-
za90es e impossive! fazer hist6ria e s6 uma hist6ria
conceitual - isto e, que seja capaz de definir seu ob-
jeto ao rnesrno tempo que 0 descreve - pode estabe-
leeer baIizamentos a partir de caracterfsticas essenciaiS.
Sen\ urn saber como a medicina pouco a pouco
definido a partir de urn nucleo basico de conceitos e
de urn sistema de praticas fundamentais que seguem no
tempo a evolu9ao de suas potencialidades? Uma hist6'-
ria factual, que recolhe, justapoe e repete os documen-
tos s6 e capaz de encontrar continuidades e registrar
a marcha ].inear de urn desenvolvimento. Ora, e ne-
cessario estabe!ecer, tanto ao nivel do saber quantq
da pratica medicos, momentos de ruptura, de constitui-
de nO\iOS conceitos, novas objetos, novas formas
de institucionaliza<;ao.
Demarcar periodos, determinar e _insep_a-
ravel da conceitua<;ao do obJeto da lllvesl1ga<;ao, nao
podendo, portanto, ser pensado de modo previa ou
aprioristico. Define-se a medida em que se desenvolve
o trabalho de pesquisa.
Quando se investiga a medicina do J?3s.s,:do
em seus textos te6ricos, regulamentos e mstltm<;oes
se delinei'a, cada vez com mais clareza, urn projeto
de medicaliza<;ao da sociedade. A medicina investe so-
bre a cidade, disputando urn Iugar entre as instancias
de controle da vida social. Possuindo 0 saber sobre a
doen<;a e a saude dos individuos, 0 medico compre-
ende que a ele deve corresponder um poder c,,"?az de
planificar as medidas a da sau-
de. 0 conhecimento de uma e11010gla soc131 da doenc;a
corresponde ao esquadrinhamento do espac;o da s,?"ie-
dade com 0 objetivo de localizar e transformar obJetos
e elementos responsaveis pela deteriora<;ao do estado
de saude das popula<;6es. Projeto, portanto, de preven-
<;ao, isto e, a<;ao contra a doen<;a antes mesmo que ela
ecloda visando a impedir 0 seu aparecimento. 0 que
tanto na existencia de um saber. _sobre
a cidade e sua popula<;ao, elaborado em Illsl1tm<;oes.
faculdades, sociedades de medicina, imprensa medIca,
etc. _ quanta na presen<;a do medico como nma auto-
ridade que intervem na vida social, decidindo,
jando e executando medidas ao mesmo tempo medICas
e· politicas. .
A existencia, no inicio do s6culo XIX, de urn tlPO
de medicina que procurou estabelecer e just.ificar
presen<;a na sociedade, atraves sobretudo da pu-
blica nao esta em continuidade coma evolu<;ao da
desde os primordios de nossa hist6ria, com--
preendida como projeto incessantemente retomado e
aperfei<;oado ou incessantemente contomado e deforma-
do, que preservaria suas caracteristicas fundamentais.
ao contrario, 0 inicio de urn perfodo que as-
smala para a medicina urn novo tipo de existencia en-
quanto saber e enquanto pratica social, que se distin-
gue e op6e as varias formas de seu passado.
A falta de uma perspectiva historica na abordagem
das questoes reIativas a medicina au mesma a visao
retrospectiva de uma hist6ria factual e linear leva a
que freqiientemente se- imagine uma continuidade entre
a tematica e a organizac;ao da saude tal como existem
em nossa modernidade e os primeiras s.eculos de nossa
hist6ria. Sem duvida, a configurac;ao atual do problema
remete ao momenta de sua ec1osao e aos caminhos de
sua forma<;ao. Por este motivo, e nao s6 possivel mas
necessaria situa-la no tempo, descrever sua genese his-
torica, distinguindo-a daquela que a antecedeu.
Dizer que a medicina social brasileira se constitui
no infcio do seculo XIX significa encontrar uma nova
modalidade de projeto teorico e pratico de medicina
que s6 sera conceituado com exatidao se puder ser dis-
tinguido de formas hist6ricas que 0 precedem. E 0 con-
ceito de sa6de, tal como se formula e se toma uma
evidencia a partir do seculo XIX, ganha uma inespe-
clareza justamente quando comparado com 0 sen-
l1do que teve esse temlo no perfodo colonial.:e preciso, portanto, nao ocultar a grande diferen<;a
entre 0 projeto historico investido nessas analises e as
hist6rias da medicina ufanistas, dispostas a celebrar 0
presente, justificando-o pela ardorosa conquista de uma
posi<;ao de racionalidade duramente realizada ou a se
realizar. E que, com esta inten<;ao, projetam sobre 0 pas-
sado as quest6es do presente, buscam continuidades
filia<;6es, parentescos de urn projeto homogeneo, habi:
tado por germens de uma verdade que pouco a pouco
se imp6e ao tempo. Projeto paradoxalmente ahistorico
nao 50 porque dominado pelo presente, que aparece
19
Geruza Valadares Souza
I
rl'te'n'0 de reabilita<;iio ou desc1assifica<;iiosempre como c 't tdo que se situa no passado, como tambem por ra
o saber medico como se este fosse desvlllculado d"
tica s6cio-politica com a qual se articula: Descn<;ao
linear de urn caminho continuo que POSSUl as normas
de urn tempo fora do tempo.
20
CAPITULO I
A DOEN<;A NO CAMINHO DO GOVERNO
Tendo como objetivo ultimo definir 0 conceito de
medicina social e sua emergencia no Brasil, no inicio
do seculo XIX, analisemos 0 modo como era coloc,ada
teorica e praticamente a questiio da saude na epoca
colonial. Quem era 0 medico, que tipo de assistencia
realizava, como e por que vinha para 0 Brasil? Que
rela<;ao pode ser estabelecida entre medicina e socie-
dade a partir da existencia de urn 6rgao propriamente
medico da administra<;ao portuguesa? Transcendendo
os
limites explicitos da medicina, ate que ponto a saude
da sociedade figurava como objeto de reflexao e inter-
ven<;ao do Estado, sendo tematizada de modo positivo,
visando a sua prodUl;ao, conserva<;ao ou aumento?
21
Qual a fun9ao basica do hospital e que vinculos man-
tinha esta institui9ao com a medicina? PrivilegLando
como exemplos a lepra e a peste, que concep9ao se
fazia aquela epoca sobre a doen9a epidemica e que meios
eram utilizados para combate-Ia? Questoes que nos per-
mitirao encaminhar 0 estudo da configura9ao da medi-
cina, de sua insen;ao na sociedade, de seus limites ou
-fronteiras e do modo como a saude, como objeto de
reflexao e se vincula as caracteristicas ge-
rais da administra9ao colonial.
Normalmente, quando se tematiza '" saude, pensa-5O
imediatamente naquele que a estuda e luta por e1a, que
procura conhece-la e instaurar 0 sen reino: 0 medico.o espa90 e a fun9ao do medico aparecem entao preen-
chidos pela saude, como se ele fosse urn dado natural
e necessario. A correla9ao medico-saude impoe-se com
evidencia tal que sujeito e objeto da medicina tornam-
se termos que adquirem urn estatuto atemporal, servindo
de paradigma para caracterizar e 0 passado. As-
sim, do mesmo modo que 0 conceito de saude nao e
tematizado em sua historicidade, tamb6m nao 0 sao a
figura do medico, sua fun9ao social, 0 lugar que ocupa
na sociedade. Nossa primeira questao e sobre quem e
o que e 0 medico na epoca colonial. E a resposta
implica em seguirmos 0 sen rastra, por institui<;5es e
acontecimentos sociais, para poder afirmar qual foi, nes-
te momento da hist6ria, 0 seu lugar. Procedimento di-
ferente, portanto, de outro tipo de hist6ria que come-
9aria por estabelecer previamente urn lugar ideal parao medico e a interpela-Io sobre onde se encontrava e
porque nao cumpriu 0 seu papel.
Durante todo 0 periodo colonial, os moradores de
cidades e vilas demandam a presem;a do medico. Car-
tas sao escritas ao Rei pedindo medico e "manifestando
22
o gra?de aperto ,em que estavam" 1 pela "grande falta
que tern de medICO e botica para haverem de ser '
curados em snas enfermidades" 2. Documento que ainda !
acrescenta. que "pareceu ao Conselho fazer presente a
Malestade, 0 que escrevem os oficiais da Camara
de Sao Paulo pOlS por esse meio se poderao conservar
aqueles moradores se tiverem quem trate de os curar
nas enfermidade,s, que por faHa de quem lhes pos-·.
sa aphcar os remedIOS necessarios morrem finitos aoHa carencia, ou melbar, quase
CJa de medICO. E a constata9ao de doen9a que muitas
vezes acarreta morte leva 0 povo a pedir as autoridades
portuguesas, urn medico presente na cidade, apontando
a morte proxIma dos suditos se ninguem puder cUfa-Ios
de suas 0 medico e, portanto, uma per-
sonagem que flgura na rela9ao entre 0 Rei e seus vas-
atraves da presen9a da doen9a e da morte. Urn
medICO. na cidade, assistindo aqueles que enfermam,
pode aludar a conserv,ar a vida dos suditos colonizado-
dores.
Se 0 e pedido pela popula9ao, ele e envia-
e confIrmado nos cargos pela instancia maxima e
ultIma de 0 Rei, a partir de uma diligencia
sobre a expenencIa, a conduta, a idade e 0 local de
estudos daque!e que podera ser 0 indicado 3. Os canais
de mforma9ao, entretanto, nao tern estatuto definido:
1 , . .do alvara por que Sua Alteza fez merce dos
OfICIOS de e Cirurgiao-mor do Estado do Brasil
doutor FrancIsco Vas Cabral", 28 de marco de 1634'
In Documentos Hist6ricos, volume 27, p. 385. •
2 "Carta dos oficiais da Camara de' Sao Paulo represen-
tando a grande falta que tern de medicos e medicamentos"
1698; In Documentos Hist6ricos, volume 93, 'p. 80.'
3. Cf. "Registro da patente de Sua aMjestade que ha sel'-
vI'do p:over ao licenciado Ventura da Cruz Arrais nos cargos
de Fisico-mor e Cirurgiao-rnor deste Estado do Brasil" 1666'
in Documentos Hist6ricos, volume 21, p. 238. "
23
Geruza Valadares Souza
i
I
.
podem 'ser os moradores do local onde eI.e exerce sua
arte, os oficiais de alguma instituir;;:ao ou mesma aquele
que e indieado. A verdade emerge de uma multiplici-
dade de locos, que ganham sentido e coesao no alo de
decisao soberana do Rei, que assinala ao medico urn'
cargo na Colonia.
Como situar 0 medico neste movimento que se lm-
cia com: uma demanda eXJplicita e termina com uma
au negac;ao? Muitas vezes e 0 proprio me-'
dico que pede para ser nomeado para determinado car-
go, mastrando a existencia de necessidades e expondo
suas proprias qualidades. Mas 0 que impena e a dificul-
dade de aehar medicos dispostos a virem para a Colo-
nia. E assim que, quando os oliciais da Cam"a de
Sao Paulo pedem urn medico ao Rei chegl3ffi mesmo a
aconselhar que "deve Vossa Majestade haver por born
de que nao havendo medico que queira ir voluntaria-'
mente para aquela conquista, se obrigue algum que nes-
ta Corte tenha menos embara90, pais alem de grande
partido que prometem fazer-lhe aquetes vassalas tern
demais que com 0 que grangearem pelas suas causas se
poderao sustentar mui largamente, principalmente em
terra onde tudo e .tao acomodado" 4.
Qualquer urn dos casos e testemunho de uma situa-
r;;:5.o geral em que a figura do medico esta ligada a urn
cargo que ocupa como pertencente 11 administra9ao ca-
lonial, de quem recebe salaria e obriga<;6es especificas.
o que laz com que durante toda essa epoca 0 medico
desempenhe urn papel de funcionario, servindo par al-
gjlns anos no Brasil, com fun9ao ligada sobretudo 11
trbpa ou 11 Camara.A quase inexistencia de medicos era causada, em·
parle, pela proibi9ao de ensino superior nas colonias.
4 "Carta dos oficiais da Camara de Sao Paulo represen-
tando a grande falta que tern de medicos e medicamentos".
1698; in Documentos Hist6ricos, volume 93, p. 80.
24
Por outro havia pouco interesse dos medicos por- I
em Vlrem para 0 Brasil. As poucas vantagens ,
que Ihes eram oferecidas agravavam-se com '
a dlfIculdade em mostrar eliciencia longe dos remedios
,europeus, POllCOS e muitas vezes deteriorados e com
o desconhecimenta da flora local. Tais fatore; fizeram
com que a correla9ao medica-doen9a fasse preterida
forn:as ,de cura referidas mais ao indfgena, ao ne-
ero, ao J:sUlt.a, fazendeiro do que ao proprio medico.o que nao slgmfIca que fosse livre 0 exerdcio da "arte
de curar" ou que C -'. ., a oroa portuguesa nao procurasse
fIscahza-lo. Como podemas ver anaJisanda os objetivos
e 0 modo de atua9ao da Fisicatura-mor do Reino.
Legalizar a arte de curar
A existenda de uma autoridade medica em Port -
gal, no dispositivo politico-administrativo
monarqUla, tern sua origem mais remota no funciona-
ment? do cargo de Cirurgiao-mor dos Exercitos,
em 1260 com a finalidade de fiscalizar 0 exer-
CICIO das artes medlcas e cirurgicas. Em 1430 R .. '-', 0 el
que todos os que praticam medicina sejam exa-
e pelo seu medico - tamhem de-
fISICO -, que Ihes concedeni carta para 0
exerClCIO arte, sem a qual serao presos e perdedio
sous bens ". Em 1448, 0 Regimento do Cirurgiao-mor
em lei do Reina, eXlplicita as encargos
fun<;ao, tals como a regulariz1c;ao do exercfcio da me-
r, . Cf. M. Ferreira da Mira, Hist6ria d dLIsboa, 1947, p. SO. a me icina portuguesa,
25
. -q
dicina e cirurgia atraves de licen,a, legaliza,ao e
inspe,ao das farmacias. A autonomia das fun,oes de
Fisico-mor e conferida pelo Regimento de 1521, em
que aparece a divisao de atribui,oes entre dois tipos de
arutoridade: a do Fisico-mor, encarregado do cantrale
da medicina, e a do Cirurgiao-mor, com poder similar
em rela,ao it cirurgia.Qual 0 tipo de poder dessas autoridades? Trata-se
de urn poder personalizado: pessoas de confian,a do
soberano, elas representam 0 prolongamento da pessoa
real no exercicio da soberania aplicada a uma area
especifica de atividade. Coereutemente com 0 modele
de governo encimado pelo Rei, a fun,ao delas e de
distribuir justi,a, baseadas em leis diretamente emana-
das do soberano.
A Fisicatura e urn tribunal, 0 Fisico-
mOf, urn juiz. Cartas de lei, al.varas, regimentos, res-
pondem a situa<;6es particulares, como as abusos do
exercfcio da medicina no Reine e posteriormente em
seus dominios, que atentam contra as interesses da .cor-
te e de seus suditos. A identifica,ao entre esses mte-
resses deve ser constantemente reafirmada,
a unidade do governo. it esfera do poder real,
a medicina ganha urn carater explicitamente poHtico.
Mas trata-se aqui de que politica? a pratica da me-
dicina que sera objeto de regulamenta,ao e de inspe,ao,
e estas se sustentam no disposi'tivo juridica, no ritual
das formalidades legais, em verdade constantemente con-
tornadas nas vilas do Reino e nas conquistas. Desse
modo, a livre pratica da medicina acarretara medidas
que venham referi-Ia ao poder soberano, atraves de seus
delegados. 0 saber medico e a produ,ao desse saber
escapam, por principio, its atribui,oes da Fisicatura.
Cabe apenas it maxima autoridade medica do Reino ra-
tificar saber e competencia, uma vez produzidos autono-
mamente na experencia.
A questao do exame junto it Fisicatura e urn exem-
plo esclarecedor. 0 Regimento de 1521 intensifica a
26
fiscaliza<;ao d? exercfcio; ?a medicina, que vai
de, tconco e pratlco diante da banca integradar
PCI? Fisico-mor, que a preside, e roais alguns medicos.!
prova ou testemunho de priitica
de dOlS, ",:OS Junto a flSICO aprovado. A avalia,ao da
competencla do candldato se da ainda atraves de visitas:
a doentes, em que 0 candidato e acompanhado por seus,
exammadores. 0 aprovado recebe carta de licerr,a se·'
lada e pubhcada, outorgada pelo Fisico-mor em nomd
do Onde naD houvesse ffsicD examinador, os que!
a arte de curar deviam requerer carta aoi
Flslco-mor, com atestado das Camaras locais que com-'
provasse sua experiencia e saber. Se aprovados em
exame, licem;a para exercer a medicina apenas:
lccahdade em que a praticavam e por tempo deter-'
rnmado, I
o exame vern conferir urn saber acumulado nai
experiencia priitica. Ele tern por objetivo garanlir, no
plano juridico, a homogeneidade entre praticantes de'
uma m,;s,;"a arte. 0 e, a1, 0 produto global de
uma pratlCa que preclsa ser comprovada por procedi-
,;"entos formais de natureza dominantemente juridica -,
Juramentos, testemunhos, assinaturas autenticas - e 6-
juIgada nao a partir de criterios universais de conheci-
mento mas em sua referencia, Iegalmente sacramentada,
ao consenso de autoridades, mestres e povo. Nao e
tarefa do poder medico do Reino, como poder integrado
as tarefas gerais de administra,ao da justi,a, promover
o saber e a pnitica medicos, nem submete-Ios a urn
contrale de tipo constante e continuo. A Fisicatura naoe .0 lugar de enuncia,ao do discurso medico que deve
a nnltica. B,Ia e unicamente 0 Ingar politico de,
p;alICa atraves de leis que visam a legi-
tlma-Ia e fIscallza-la. A fiscaliza,ao e entendida como
a fonna privilegiada de articular a atividade medica
ao poder soberano.
_Nesse sentido, 0 Regimento de 1521 preve a apli-
ca,ao de multas para quem 0 transgride e a existencia,
27
para sua execugao, de "soldados de saude" que andam
armados e prendem 0 infrator, a pedido do Fisico-mor.
as inculpados sao submetidos ao Corregedor da Corte
dos Feitos Crimes, tomando 0 Fisico·mor parte no jul-
gamento. Cabia ainda ao Fisico-mor, pelo mesmo Re-
gimento, fiscal.izar, com 0 auxflio de boticarios apro-
vados, as boticas, a qualidade e os pregos dos medica-
mentos.
A separa9ao entfe medicos e cirurgioes era com-
pleta: nero os fisicos podiam exercer a cirurgia, nero
os cirurgioes curar de medicina. A definigao dos limites
juridicos de exercfcio das atividades de fisico, cirurgiao
e boticario se acompanha do estabelecimento gradual
de uma hierarquia de importancia entre elas.
Esse 0 tipo de poder medico qne sera transpJanta-
do para 0 Brasil e que permanecera, em suas grandes
articulag6es, intocado ate 0 inicio do seculo XIX.
Desde 1521, preve-se a fungao de juizes comissa-
rios do Fisico e Cirurgiao mores para 0 Reino e seus
dominios. De que outra maneira tomar presente a au-
toridade medica em terras distantes? No momento em
que se estabelece a administragao portuguesa no Brasil,
ainda no seculo XVI, tem-se noticia da designagao, por
tempo limitado, de licenciados para 0 cargo de fisico
da cidade de Salvador. No seculo XVII, sao designados
medicos para exercer, na cidade da Bahia, os
de Fisico e Cirurgiao mores do Estado do BrasIl. as
cargos sao de carater vital.fcio, nao de direito, mas de
fato, provendo-se substituto quando do bJ:",imento d?
ocupante. E assim que, em 1665, EI-Rel faz merce
desse cargo a Ventura da Cruz Arrais, por falecimento
de Francisco do Vaz Cabral, "sem prejuizo dos cargos
de Fisico-mor e de CinlrgHio-mor destes Reinos" 0. 0
6 "Registro da patente de Sua Majestade que foi servido
prover ao licenciado Ventura da Cruz Arrais nos cargos de
Fisico-mor e Cirurgiao-mor deste Estado do Brasil", 1666:
in Docum,entos Hist6ricos, volume 21, p. 238.
28'
soberano indica, desse modo, 0 carater de dependenciJ
do cargo, em relac;:ao as autoridades supremas da Corte:
Apesar do titulo grandioso, as fungoes de Fisico-mot
do Brasil nff? deviam ser objeto de grande Da-
das condl<;ocs Colonia, 0 ambito de a950 dessa,
autondade era restnto e praticamente nula sua eficacia \,
administrativa.
A nft? observancia do Regimento da Fisicatura pa-
ter sldo a regra nos tempos coloniais, tal como
mdlca, no inicio do seculo XVIII, a ordem regia de
3 de margo de 1717 ao dr. Joao Nunes de Miranda
que servia, par comissao, de Fisico-mar na Bahia;
"Porquanto tenho notfcias que geralmente costumam
cidade da Bahia curarem os cirurgioes de medi-.
cida dando e outros remedios de que so podem
aphcar os medIcos formados na Universidade de Coim-
bra ou pelo Fisico-mor do Reino, 0 que e
em notono dano do comum e ter a experiencia mostrado
suceder e desgragas pela imprudencia
d?, clrurgioes ( ... ) '. as limites, assinalados no Re-
gimento, de exercicio das fungoes sao facilmente trans-
P?stos, 0 que leva 0 soberano a se fazer presente atra-
Ves de ordens que, reafirmando dispositivos anteriores,
procuram resolver situagoes locais de infragao as leis
do Reino.
Se 0 cirurgi6es curam de medicina os boticarios
r.eceitam por conta propria. E que dize; dos que pra-
a arte sem exame nem licenga? Quem ganha com
ISSO e quanto ganha?
Para coibir abusos desse tiro, 0 Rei ordena, em
1742, que os delegados do Fisico-mor no Brasil sejam
7 "Ordem que se remeteu ao Fisico-mor 0 doutor Joao
N_unes de Miranda para mandar aos cirurgioes desta cidade
nao ,curem de medicina, 'senao nos casos que nela se declaren
3 de man;o de 1717; in Documentos Hist6ricos volume 54 p'213. ' , .'
29
[armadas pela Universidade de Ca;rnbra e que as erno-
lumentos desse'$ comissarios sejam estipulados em regi-
menta especial, de tal farma que naa ultrapassem a
dabra das pre<;as que recebem pelas suas camissaes as
delegadas que trabalham na Reina.
Em 1744, a Fisico-mar elabara a regimenta a ser
abservada par seus representantes na Brasil. Sua im-
partancia advem da fata de ser especialmente dirigida
aos "Estados da America" e indica 0 relativo releva
que Partugal vai danda a fiscaliza<;aa das artes modi-
cas e farmaceutica e aos cuidados com os remedios. A
relativa amplitude alcan<;ada pela rede de camissarias
do Fisica-mar e seus auxiliares acampanha, par certa,
a evoluc;ao dos interesses comerciais do Reina em sua
Calonia. 0 crescimenta urbana e papulacional autariza
urn interesse maior para com a "saude dos povos". A
regulamenta<;aa das atividades da Fisicatura do Brasil,
atraves da cantrale da preparo, preserva<;aa e adminis-
trac;ao de remedios por "pessoal competente", signifi-
caria uma preocnpac;ao abrangente com a higiene pu-
blica da Calonia? Quais as caracteristicas centrais da
dacumenta de l744?o Regimenta abjetiva
regular uma situa<;aa de ex-
cessas e abusos que escapa aa cantrole da metr6pole.
Ele e urn instmmenta "para se regularem em as Estadas
da America, assim os comissarios do Fisico-mor como
tambem as seus oficiais, que nao tinham regimento, e
sem ele levavam emalumentos, e s6 par arbitrio das
mesmos comissarios que as faziam excessivos, de que
resultavam queixas das vassalas do dita Senhar, ao que
se devia dar providencias, para que a ambi<;aa nao cau-
prejuiza, nem tambem 0 experimentassem os
mesmos oficiais ( ... )" 8. Trata-se, antes de mais nada,
8 "Regimento que serve de lei que devem observar os co-
missarios delegados do Fisico-mor deste Rino nos Estados do
Brasil", Lisboa, 1745.
30
de defender os interesses fiscais da pr6pria Fisicatura
que sendo lesadas na Ca16nia distante. Os
sao 19ualmente politicas, pois os suditas prates-
am cantra a explora<;ao a que se acham submetidas.
Para nessa perspectiva, 0 significado
goral do Reglmento, e preciso analisar 0 que ele pres-
como n:odo de dos comissarios e como
ab]eto dessa mterven9ao.
.. 0 modo de atua<;ao se da de dnas maneiras' pelas
e pelos exames. Compete ao comissario' fazer
de tres em tres anos as boticas da terra e as
de dragas, e inspecionar tambem as baticas das
n.avlOs que chegassem ao parto. Sua tarefa e de ave-
nguar, por tres boticarios farmadas, as
cartas de 1Jcen<;a e os medicamentos ista e seu pre<;o
o eS,tbque de ,simples ,e eompostos para
se lIvesse bolIca aberta, a born estado deles suap - 'j'd ' pre-me um 0 a dos instrumentos que
devem estar concardes com as prescri<;aes de pesos e
pela Camara. Os objeta3 de atua<;ao
pOlS, os medlcamentos e as atividades a eles reIa-
clOnadas.
o obIetivo das visitas e, partanto, de fiscaliza<;aa.
E!a.s se.d.aa em mamentos excepcionais - e as bati-
canas _vlSltados naa devem estar advertidas delas para
que nao escondam remedios deteriorados, nao
emprestado a algum campanheira de oficia a que lhes
falta para campletar 0 estoque regulamentar de sim-
ples e campostas, etc. - sem que se garanta par ou-
tras a das medidas. Alem dissa,
estas vlsltas de mspe<;ao tern carater punitiva. As pe-
de multas, que crescem com a reinci-
denCIa. ate a suspensao das faltasas. A candena<;ao
as infra.<;6es detennina urn lange processo penal que
necessanamente deveria ser resolvido pela instancia su-
prema do Fisica-mar do Reino. Uma precisa presta<;ao
de cantas deve ser encaminhada a essa autoridade pelo
31
--_.. --
sen de1cgado, auxiliado nisto por urn escrivao e
meirinho. Diz 0 artigo 18: "0 mesmo delegado dara
conta todos os anos ao Fisico-mor do Rema de todas
as boticas que visitou, e dos autos contra os
culpados, e das que lmpos,
do juntamente certidao de seu que sera tlrada
dos livros que deve ter para este efelto, e faHand? nesta
parte, au em outra alguma ao disposto neste
sera castigada conforme a sua culpa pelo Flslco-mor
do Reino"9. . ,
Na verdade, a comissario, sens aux11iares botlca-
rios 0 escrivao e 0 rneirinho que OS acompanham :m
diligencias, constituem urn tribunal itinerante
emolumentos pelas comissaes regulares eram acrescldos
das multas aos infratores. Urn pequeno
lador do esquema de funcionam:Il;to tnbunal e
o de que uma questao de matena medIca p<;de se:
resolvida por maioria de votos, como reza 0 art.lgo 14.
"Quando nos exames das medicamentos
por bons, ou por ruins pelos votos de dOlS .dos tres
boticarios, que 0 comissario leva para. exammadores,
seraa esses medicamentos julgados por tals, s;''!' embar-
go que tenham 0 voto do terceiro em contrano., e sem
se 'admitir replica ao boticario ( ... ) 10.
Alem das visitas, compete ainda ao exa-
minar as oficiais de botica. 0 candidato devla apre-
sentar certidao que comprovasse a pratica de quatro
anos junto a mestre aprovado e urn par.ec,;r. deste sobr.e
sua competencia. Se aprovado, 0 comlssano e
examinadores the passam "certidao antentica", sob JU-
ramento dos Santos Evangelhos, para que com ela. re-
queresse carta de ao Fisico-mor do,
Repete-se 0 esquema de do exerclclo. da
arte, complementado par uma devassa anual sobre me-
9 ibidem.
10 ibidem.
32
gularidades, tais como urn cirurgiao curar de medicina
au aplicar remedios, um boticario que exorbita nos I
au se intromete a receitar, uma pessoa nao exa-
mmada que prepara e vende medicamentos.
o cuidado em distinguir e legitimar os diferentes
offci.os medicos, fiscalizando sen exercicio, parece re-
sumlr a tarefa da medica do Reino para
com os povos da Colonia. A Fisicatura procura se fazer
proxima e presente, atraves de urn pesado dispositivo
burocratico, na qualidade de instilncia ultima de deci-
sao. Mas, de fato, essa da na area
gira em .torno da questao dos emolumentos que
e, alIas, 0 motivo central que determina a
do Regimento de 1744. Trata-se de fiscalizar os fiscali-
zadores, de punir nao apenas os infratores mas os seus
juizes. Uma de desmando da propria admi-
que contraria os interesses da Corte, esta na
origem das do Regimento.
Desta maneira, 0 Regimento fixa os emolumentos
que devem ser percebidos pelas diferentes autoridades
em cada exame e em cada visita regular. Como exem-
plo, 0 pagamento do exame, § 20: "Tera 0 mesmo co-
missario do Fisico-mor de cada exame que fizer de boti-
cario mil e seiscentos reis, e cada urn dos !res botica-
rios examinadores oitocentos reis, ainda que 0 exami-
nado nao saia com porque deve depositar
antes do ato do exame, nao s6 estes emolumentos, mas
tambem os do Fisico-mor do Reino, e dos seus oficiais,
que importam nove mil cento e vinte reis, a saber qua-
tro mil e oitocentos para 0 Fisico-mor, quatrocentos e
oitenta reis para cada urn dos cinco examinadores da
corte, quatrocentos e oitenta reis para 0 escrivao do
juizo, e cargo do dito Fisico-mor do Reino, quatrocen-
los e oitenta reis para 0 meirinho do juizo, e quatro-
centos e oitenta para 0 escrivao da vara do mesmo
meirinho, e quatrocentos e oitenta de esmola para os
33
santos Cosme e Dami;io, por ser este 0 estilo praticado
Ih "11sempre em serne' antes exames. .. .
Para que se cumpram as medi?a.s, e preclso preyer
e aliciar interesses particulares1 cOlblf seus excessos e
articuhi-Ios hierarquicamente com outras esferas .do mes-
mo dispositivo juridico-administrativo. Pode:se,
tar neste sentido 0 § 22: "E porque a dele-
gada e seus oficiais poderiio faltar ao cumpnmento do
que neste Regimento se Ihe ordena, ocultando as aut?s
dos culpados, ou nao as lan<;ando nos IIvros, au as
condenac:;6es e visitas que fizerem, ou excedendo a sll.a
comissao au levando mais do conteudo neste RegI-
mento. 6 Ouvidor geral do distrito inquirini na Correi-
<;ao sobre estes procedimentos, e achando os culpados,
remeteni a culpa ao Fisico-mor., assim como deve fe-
meter as culpas dos que curam sem carta, sem licen<;a
do Fisico-mar notificando-os para que em certo tenno
se venham liv;ar perante a dito Fisico-mar ( ... ) "'2.
Por outro lado, cabe ao Governador do distrito em
que atuam os delegados da Fisicatura
mais aptos e doutos a as de, VISI-
tadores e examinadores, pennltindo asslm, atraves de
pessoas de confian<;a tanto como do, ]J0vo,
o melhor aproveitamento da fIscalIza<;ao do exerClClO da
arte de carar e de seus beneficios financeiros.
A lei de 1744 repete, na maioria de seus paragra-
fos, disposi<;6es encontradas apenas trans-
ladando e explicitfrndo para 0 BrasIl aquele modelo de
autoridade medica hierarquizada, dotada legalmente de
instrumentos punitivos e cujo funcionamento baseava-
se em regras gerais que se como ,::sposta
ao aparecimento de situa<;6es de megulandade. Nao tern
por objetivo promover a sau.de. da . como
todo ou a fonna<;ao de profIsslOnals da saude, mas lffi-
11 ibidem.
12 ibidem.
34
pedir casas particulares de abuso de atribui<;6es. a pro-
blema da doen<;a, que 0 exercicio irregular da arte oca-
siona au agrava - par exemplo, pela administra<;ao de
medicamentos inadequados ou corrompidos _ so se-
cundariamente se encontra tematizado, submetido que
esta as exigencias fiscalizadoras da administra<;ao. As
determina<;6es devem ser lembradas e cumpridas uma
vez constatadas irregularidades e reclamadas providen-
cias. a modo de atua<;ao e os objetos que essa atua<;ao
privilegia, previstos pelo Regimento, sao coerentes com
o modo de exercicio de poder e 0 tipo de coloniza<;ao
a que 0 modelo administrativo deve servir.
Esse tipo de lautoridade encarregada da fiscaliza-
<;ao doexercicio da medicina, cirurgia e farmacia nao
parece, entretanto, ter tido maior exito. Em 1782, D.
Maria I criou a Junta do Proto-Medicato para cumprir
essas fun<;6es, dando como justificativa, na propria lei
que a institui, os "muitos estragos que, Com irreparaveI
prejuizo da vida de meus vassalos, tern resultado do
pernicioso abuso e extrema facilidade com que muilas
pessoas faltas de principios e conhecimentos necessa-
rios se animam a exercitar a faculdade de medicina e
arte de cirurgia e as freqUentes e lastimosas desordens
praticadas nas boticas destes Reinos e meus Dominios
Ultramarinos, em razao de que maitos boticarios igno-
rantes se empregam neste exercicio, sem terem procedi-
do aos exames e licengas necessarias para poderem usarda sua arte"13.
a Proto-Medicato representa uma centraliza<;ao dos
poderes individuais dos Fisico e Cirurgiao mores em urn
Conselho ou Tribunal, composto de sete deputados, de
natureza consultiva e deliberativa, tendo sempre como
13 Cita,do por Eduardo Augusto Pereira de Abreu, "A Fisica-
tura-mor e 0 Cirurgiao-mor dos Exercitos no Reino de
tugal e Estados do Brasil". in Revista do Instituto HistOrico
e Geogrcifico Brasileiro. tomo LXIII, parte I, 1901. p. 189.
35
..-
objetivo a fiscaliza9ao do da .. <?on-
trolava 0 exerdcio da medlCma e clrurgla permltmdo
a obten9ao de diploma de Iicenciado a quem apresentas-
se certidao de exercicio medico ou cinirgico em qualquer
hospital. do Reino, passado por medico e
fosse aprovado em exame teorico que ele reahzava: Con-
trolava tambem a venda de medicamentos, obngando
todo boticario a tirar Iicen9a da Junta que, esse
objetivo, mandava urn visitador averiguar .a eXlstencla,
os pesos e medidas, a .de utensih?s e 0 bom
estado dos medicamentos, prOlbmdo tambem a venda
de remedios secretos.
Nao houve, portanto, grande modifica9ao com a
passagem da Fisicatura ao Proto-Medicato. Os dOiS
tipos de poderes procuram, parece que. re-
sultados, fiscalizar 0 exercicio da clrurgIa e
farmacia' alem dessa continuidade de obJetlvos, os car-
gos de Fisico e Cirurgiao mores naD desapareceram, na
medida em que os dois faziam parte da Junta como
deputados natos. .
A nao diferen9a essencial entre Proto-Medlcato e
Fisicatura fica tambem patente pelo fato de em 1808
D. Joao, reeem-chegado ao Brasil, ter
cargos de Cirurgiao e Fisico abolmdo defml-
tivamente a Junta do Proto-Medlcao em 180?
dan9a que inclusive parece ter-se dado pela lmpossl-
bilidade de uma transferencia imediata da Junta para
o Brasil, que passava a ser sede d? Reino,. dada a ur-
geucia de aqui instalar uma autondade medIca, como
tamrem pelo fato de D. Joao com a presen9a
no Brasil do Cirurgiao-mor dos Exercltos, que 0 acom-
panhou na viagem e que era, portanto, urn dos depu-
tados natos da Junta.
Cada urn desses cargos funcionava com seus .res-. . e tmhapectivos escrivaes meirinhos, urn JUlZ assessor
delegados de seu' poder nas principais do pais.
Os delegados do Cirurgiao-mor dos Exercltos .conlro-
36
lavam 0 exerC1ClO da cirurgia realizado pelos sangra-
dores, parteiras, dentistas, pelos que aplicavam ventosas
e sanguessugas e pelos que consertavam bra90s e per-
nas, enquanto que os delegados do Fisico-mor do Reino
controlavam os boticarios, droguistas, curandeiros, etc.
Existe, deste modo, nao so uma continuidade entre
as diversas medidas assumidas pelo poder medico ca-
racterizado pela Fisicatura e 0 Proto-Medicato, mas
tambem uma correspondencia de fun90es de controle
entre 0 Fisico e 0 CirLtrgiao mores.
A analise da organiza9ao e do funcionamento des-
ta instiincia medica suprema permite portanto afirmar
que, curiosamente, a Fisicatura naD tern nenhuma rela-
9ao com a problematica da higiene publica. Se e ver-
dade que e um poder medico, isso nao significa que
se exerce com rela9ao a sociedade no sentido preciso
de organizar medidas de control" do espa90 social. Nao
se pode dizer que haja incidencia de seu poder sobre
o ambiente da cidade ou a popula9ao com 0 objetivo
de criar melhores condi90es de saude ou destruir, no
espa90 social, tudo que pode ser causa de doen9a. Seu
objetivo nao e a sociedade em geral, mas a propria
medicina.
:E urn orgao de tipo corporativo encarregado de
fiscalizar 0 exerdcio das profissoes medicas. Orgao de
tipo burocratico-administrativo para quem regularizar
era legalizar. Esp6cie de tribunal da medicina que jul-
gava e punia quem transgredisse seus regulamentos no
exercicio da "arte de curar". portanto, limitada
ao interior da propria medicina e assim mesmo de tipo
juridico e punitivo.
Sendo um poder restrito a regulamenta9ao da pro-
fissao, nao hi em suas atribui90es nada que a aproxime
da problematica da medicina social. A9aO punitiva e
nao positiva, transformadora. Punir os infratores com
o objetivo de reservar para a medicina 0 espa90 da
doen9a.
37
Integrada ao exerCIClO da soberania, a Fisicatura
por sua vez testa sua fun,ao de integrar 0 exercicio da
medicina a essa politica. Ela nao oculta 0 fato de ser
urn dos instrumentos, e naG dos mais importantes, do
poder soberano. Sua existencia nao revela., de modo
algum, a origem ainda confusa da medicina como esfera
anti'moma e especifica de conhecimento e a,ao a que
o poder politico central, como principio heterogeneo,
deve recorrer. E a medicina do seculo XIX - com
seus novOs modos de atua,ao sobre novos objetos e
como urn dos suportes normalizadores fundamentais do
governo moderno - que .lara decorrer sua pertinencia po-
litica de outro tipo de condi,6es: os principios univer-
sais da razao, da ciencia e do progresso.
Fiscalizar as males da cidade
Obviamente, uma investiga,ao sobre a questao
saude e sua rela,ao com a administra,ao colonial nao
pode se restringir a urn estudo da Fisicatura. Nao so
porque ele ja encaminha para 0 fato que
o ambito da interven,ao terapentlca nao se lrmltou
as fronteiras da medicina como corpo organizado, como
tambem porque a Fisicatura so representa uma face d?
problema, pelo tipo de interven,ao
juridica do que medica que a caractenza. Reduzlda_a
legaliza,ao da pratica curativa, a a?ao
politica soberana no campo especlfIco da
cirnrgia e farmacia, a Fisicatura nao e capaz de cobn:
os varios aspectos da questao da saude tal como .101
colocada e encaminhada durante essa epoca.
38.
. Dai, portanto, a necessidade de, depois de ter ana-:
hsado a que bpo de organiza,ao deviam estar submetidos!
aqueles que desejassem' exercer a "arte de curar"
como foi ,:oIocada a questao da saude
poJ?ula,oes, dos habltantes da cidade, da sociedade"
enfIm, :omo urn passe para a caracterizaC;ao da :
con.cep,ao de saude que esta explicita ou implicita nestepenodo. I
Sabe-s: da presen,a do tenno saude em documen. :
tos .das Municipais, de outras instancias da
admllllstr.a,ao colonial e do proprio Rei de Portugal.
Que e dada a este tenno pelas leis e regu-
lamentos admmlstralivos e de que tipo sao as medidas
p.revlstas executadas que the dizem respeito? Ques-
tao essenclal para 0 objetivo a que nos propomos de
estabelecer uma descontinuidade entre a medicina social
d.o .seculo XIX e os tres primeiros seculos de nossa his-
que diz respeito it fun,ao social da medi-
cma, temabzada com rela,ao ao tipo de terapeuta e de
da profissao e ao modo de presen,a da me.
na no tocante ao encargo doa saude
coletiva, a partir das medidas de interven,ao no espa,o
SOCial,
aos cmdados individuais e a organiza,ao do es-
pa,o hospitalar.
se procura estabelecer a rela,ao entre sau-
de e socledade, 0 fio condutor da analise, no caso da
Camara Mnnicipal, e 0 terna da sujeira e 0 correlato
encargo de velar pela limpeza da cidade. E assim que,
ao nivel mais global, as Ordena,6es Filipinas de 1604,
que reglam todas as Camaras Municipais das cidades
e vi.las de Portugal e colonias, fixando as atribui,6es
gerais dos municipios, situam a limpeza como urn de
seus encargos, nos termos precisos que: nao se deverao
fazer esterqueiras; esterco au outro lixo nao deverao
ser ao redor do muro; nao se entupirao os
canos da vIla nem a servidao das aguas; locais deverao
39
ser determinaAlos pelos vereadores da Camara para
que, uma vez por mes., hi se esvaziem as esterqueiras,
devendo-se fazer cada urn limpar, ante as suas portas
da rna, os estercos e os mans cheiros; naD se consenti-
faD que se lancem na vila bestas, dies., gatos, nem Qn-
tras coisas sujas e de mau cheirol4•
Atribuigoes que, portanto, apontam os estercos, as
aguas, os animais como objetos da agao da Camara
orientada para a limpeza e que tern como caracteristica
a pluralidade de locais a que dizem respeito; pluralida-
de duplicada de generalidade de aplioagao e que faz
da limpeza tambem uma generalidade: as regras a serem
observadas sao as mesmas para todos os lugares.
Nao basta, entretanto, investigar as Ordenagoes
para delimitar a amplitude e a significagao geral do
conjunto de objetos que permitirao definir os encargos
da Camara do ponto de vista da satide, na medida em
que elas se completam por alvaras, portarias, cartas re-
gias, etc., que nos apresentam novos aspectos da pro-
blematica.
];assim que tambem 0 comerclO de alimentos apa-
rece como objeto da fiscalizagao que se deve realizar.
Uma prova esta na ata da Camara de Salvador que as-
sinala urn requerimento do juiz do povo sobre 0 assunto:
"Em 21 de julho de 1657, apareceu 0 juiz do povo no
Senado em verean9a e requereu aos oficiais em nome
de todo 0 povo, que em casa de urn flamengo se estava
vendendo bacalhau muito podre e corrupto com grande
dano e prejuizo da Republica" e para certificar
esse estado foi ver 0 bacalhau com 0 Fisico-mor
"0 qual posta por sua fe ser 0 dito bacalhau corrupto
e prejudicial Ii saMe, 0 que visto pelos ditos oficiais
14 Cf. Filipinas, livro 1, titulo 68, 1604.
40
da Camara no requerimento, mandaram e assentaraIri
que se langasse ao mar este bacalhau e tudo 0 mais
que se achasse de sua qualidade"15. Verificagao da
dade das mercadorias que esta em continuidade com a
agao da Camara no que diz respeito Ii sujeira, que
caso se relaciona com a possibilidade de doenga naO
s6 porque produz "man cheiro", "infecciona" e "corroml.
pe" os ares, mas tambem pela-possibilidade de serem.
ingeridos em estado de deterioragao. A fiscalizagao dos
alimentos chegou mesmo a se estender Ii conservagao
da carne dos gados abatidos nos currais, "porquanto se
mata muitas vezes carne ( ... ) em tal estado que se
entende que, a comer, 0 povo hi! nele muitas doengas"16:
Urn local da cidade e tambem ErivilegiaAlo cornel
objeto da agao municipal: trata-se do porto, local de
us "Requerimento do juiz do pavo sabre bacalhau padre"; in
Atas da Camara de Salvador, volume 3, p. 352. E importante
assinalar que 0 juiz do pOVO DaD era urn funcionario da Ca-
mara. como 0 juiz de fora, 0 juiz ordinaria e os oficiais.
que sao os tres vereadores e 0 procurador. Era 0
tante eleito dos mestres, por sua vez eleitos entre os oficiais
mecanicos da cidade, como era costume nas cidades e vilas
notaveis de Portugal. Cargo cuja cria9ao representou uma ten-
tativa da Camara de Salvador, em 1641, de melhorar a admi-
nistra9ao da cidade fazendo cessar "a queixa que 0 povo ti-
nha de andar esta Republica tao mal governada sem que
os almotaces possam acudir a emenda dos vendeiros que em
tanta soltura nao dao provimento digo nao dao cumprimen-
to as portarias das Camara nem dos almotaceis ( ... )", ata
da sessao da Camara de 21 de maio de 1641; Arquivo His-
t6rico da cidade de Salvador. Em 1713, a pedido da propria
Camara e par haver inspirado "motins na cidade, 0 Rei ex-
tingue 0 juizado do povo". Sobre a organiza9ao judiciaria e
administrativa no Brasil Colonia, ver Auguste de Saint-Hilai-
re, Viagem pelas provincias do Rio de Janeiro e Minas Gerais
tomo I, capitulo XV. '
16 Ata da Camara de Salvador, 16 de novembro de 1672.
41
contato entre 0 interne e 0 externo, via de penetra9ao
de pestes. Fiscaliza9ao de embarque e desembarque
que se relaciona com 0 aumento de importancia dos
portos como locais onde as mercadorias ficarn it espera
da partida das frotas de comercio e que tern como obje-
tivo principal detectar doentes de urn mal considerado
contagioso e que pode propagar sua doen9a pela cidade
ou exporta-Ia para 0 Reino. Fiscaliza9ao que atinge,
portanto, 0 proprio doente.
"Nao deixem desembarcar pessoa alguma sem
que primeiro sejam visitadas e desimpedidas pela saude.
Para os oficiais poderem melhor tomar as informa90es
necessarias, e Ihes constar 0 estado da saude em que
ficararn as capitanias de que vern as ditas frotas man-
dareis tarnbem notificar os capitaes e mestres dos navios
que tragarn certidao de saude passada pelos oficiais
dessa cidade, em forma publica, para que por elas
conste se nelas hi doen9as ou nao e a qualidade delas"17.
"Tenho resoluto que os onze doentes pertencentes equi-
pagem do navio frances de guerra que aqui se acha vao
para os quarteis do Rosario e porque e conveniente que
antes disso se examine a qualidade da doen9a. 0 Pro-
vedor de Saude, com os medicos e cirurgioes que costu-
mam fazer semelhantes diligencias, na forma do estilo,
vao ao meio-dia a ribeira das naus fazer este exame
porque a essa hora hao de chegar os ditos doentes, e do
que resultar me vira logo dar conta"".
17 "Carta de Sua ajestade sobre os capitaes e mestres dos
navios que deste porto sairern para 0 de Portugal sejam
notificados para que nao desembarquem sem primeiro serem
visitados pela saude", dirigida ao Governador geral do Es-
tado do Brasil, 4 de mart;o de 1690; in Documentos Hist6ricos;
volume 68, p. 238.
18 Carta para 0 Provedor-mor de Saude, 13 de julho de
1724, Bahia; in Documentos Hist6ricos, volume 87, p. 198.
42
Finalmente, e precise salientar que tambem se en-
contra sob a fiscaliza9ao da Camara 0 proprio exercf-
cio da profissao medica. 0 que significa que, a1em dos
diplomas conferidos pela Fisicatura, os que exerciam a
Harte de curar" estavam obrigados a se inscrever na
Camara da cidade ou vila onde praticavarn 0 seu olicio,
alem de que esta tarnbem proibia a venda de remedios
sem sua expressa autoriza9ao que era dada sob forma
de Iicen9a. Conhecem-se varios casos em que medicos,
cirurgi6es e boticarios sao notificados para que apre-
sentem it Camara suas cartas de habilita9ao sob pena
de suspensao de suas fun90es, prisao ou outras repre-
salias legais.
A considera9iio tanto da cidade quanta do porto,
do ponto de vista da doen9a possivel, adquire sua signi-
fica9ao mais profunda no quadro da polftica metropoli-
tana, que procura maior controle comercial e militar
da Colonia, na medida em que se articula com a defesa
da riqueza e do territorio em que ela e produzida. .f:
freqUente nos documentos a enfase dada ao particular
cuidado de Sua Majestade com a saude dos povos e
conserva9ao do Estado. A popula9ao, vital para de-
fender a terra e faze-l a produzir, aparece como elemento
a ser preservado em vida, como vassalos do Rei, povoa-
dores de uma terra disputada e produtora. .f: neste con-
texto que sujeira e doen9a articularn-se como bin6mio
a ser evitado.
Como tarnbem e a partir dele que se explica 0 medo
e 0 perigo da peste, na medida em que ela dizima as
popula90es a ponto de paralizar a cidade e mesmo de
diminuir a mao-de-obra. .f: assim que em carta ao Rei
sobre uma peste
na cidade da Bahia em 1686, 0 Go-
vernador geral diz que "os neg6cios se suspenderam e
se, fechararn os tribunais, que nao havia ministro da
Rela9ao dos quais morreram quatro ( ... ) e enferrna-
43
I';:.,. I
ram os mais, como tamoom OS oficiais da Camara, Casa
dos Contos e alfandega para despacharem, nem pessoas
que neles pudessem requerer, porque tudo esta pros-
trado"".E uma carta dos oficlais da Camara da Bah!a
em 1681 sobre uma epidemia de bexiga afirma 0 "mise-
ravel estado em que se acha aquela cidade e seu recon-
cavo ocasionando os limitados rendimentos dos sens, . ,frutos e 0 pouco valor dela, do qual nasc!a uma ruma
geral a todos aqueles moradores. E sabre ele 0 estrago
que este ano fizeram as bexigas que reputaram por
peste, com as quais ficaram as fabricas dos engenhos
e fazendas de cana muito diminutas e sobretudo 0 que
mais depressa havia de acabar e destruir aquela
eram as cobran9as que se faziam arremetendo-se os
generos da terra por menos de cinquenta por cento do
seu valor":"'''O. Documento, al6m do mais, interessante par
referir a a politica, relacionando a peste com a
do Rei, no caso a dificuldade da
de impostos. E isso em dois sentidos diferentes: !denl1-
ficand<:> peste e a partir da ideia de
e as opondo, na medida em que a peste provoca para-
e, portanto, dificuldade de
Se sao esses portanto os objetos, elementos, locais
e mesmo atividades que estiveram sob a
das Camaras Mnnicipais, dos Govemadores e Vice-reis
durante 0 periodo colonial isso nao significa dizer
assim se mantiveram permanentemente ou mesmo eXlS-
tiram nas varias cidades ou vilas. Constituidos de for-
19 "Carta do Governador geral do Estado do Brasil, dando
conta a Vossa Majestade da rigorosa epidemia que sc: alas-
trou na cidade da Bahia", 23 de outubro de 1685; In Do-
cumentos Hist6ricos, volume 89, p. 54.
20 "Carta do Conselho Ultramarino ao Rei de Portugal, co-
municando carta dos oficiais da Camara da Bahia", Usboa,
14 de outubro de 1681; in Documentos Hist6ricos, volume 88,
p. 211.
44
rna fragmentada no tempo e no esses objetos
indicam urn dos aspectos da que 0 govemo
portugues estabeleceu entre a saude dos habitantes e a
socied:ide: eles DUDca se impnseram como alva de uma
reflexao ou constante do poder. A razao aparece
daramente quando se analisa 0 aspecto complementar
desta 0 tipo de que caracteriza,
durante todo esse tempo, a existencia das Camaras.
Ja nas podemos ver como a
de suas no que diz respeito as Camaras,
e definida de modo geral, como regra para todas as
cidades e vilas, como tambem acontecia com rela9aa aos
objetos sobre os quais deviam as Camaras intervir para
evitar sujeira, podridao e, conseqiientemente, doen9a. E
esta diz sobretudo respeito a urn membro da
Camara que e 0 almotace. 0 cumprimento ou nao das
posturas municipais e verificado atraves do passeio rea-
lizado pelos almotaces na cidade ou vila e da denuncia
efetuada pelos proprios habitantes da localidade que
tomam conhecimento das posturas atraves de preg6es;
nmitas sao estabelecidas para 0 caso de sen nao-cumpri-
mento, sendo 0 proprioalmotace sujeito a mulla, caso
nao cumpra suas e no caso de a multa incidir
sobre urn habitante, ela sera dividida entre 0 denun-
ciante e a Camara". A das de-
pende em grande parte da almotace-habitante.
qnase que de momentos. Momentos que impli-
cam em descontinuidade e se duplicam de No
emaranhado desta rede - cujos fios sao denlincia, veri-
- se situa a limpeza da cidade.
As oaracteristicas da tematica da limpeza, quando,
aparecem nas sao suficientemente gerais.
para que sejam aplicaveis a toda e qualquer localidade.
Tais caracteristicas nao se modificam quando se trata
21 Cf. Ordenafoes Filipinos, livro 1, titulo 68;
45
II!'I
de determina,6es locais, que procuram resolver proble-
mas, surgidos em determinados momentos f muitas vezes
a partir de reclama,6es dos pr6prios moradores. Mesmo
quando situada ao nivel da especificidade, a questao da
limpeza nunca apareee como tema de urn saber que
localiza, nomeia, circunscreve e analisa sen objeto para
que a interven,ao e a conseqiiente transforma,ao passom
se exereer.
o que senota de fundamental em toda ossa pro-
blematica e 0 fato de a sujeira da cidade ser sempre
tematizada em fun,ao do nao-cumprimento das Orde-
na,6es Filipinas. E neste sentido as determina,6es e os
cargos que the dizem respeito tern como objetivo Unico
retirar da cidade as sujeiras vistas como prejudiciais a
vida. A cidade, com suas mas, beeos e pra9as, apareee
nos diseursos como objeto de urn conhecimento e uma
pratica motivados pela retirada ou elimina,ao do quee tido como desvirtuamento de uma situac;ao anterior,
originaria, e ditados pela nao-observancia das posturas;
nao se constitui como objeto passivel de sofrer uma
intervenC;ao que signifique nao 0 conserto, a restaura-
<;ao, mas a transforma,ao.
o que explica a inexistencia, durante toda essa
epoca, de urn planejamento global e minucioso da Ca-
mara que integrasse os diversos objetos atingidos por seu
raia de agao ao mesmo tempo que as circunserevesse
e analisasse. Embora deerete posturas, nao faz parte de
sua modalidade de interven,ao organizar urn C6digo
de Posturas, como 0 que sera criado no seculo XIX.
E tambem expliea porque a questao da limpeza depende
nao so do nao-eumprimento das Ordena,6es e da nao-
observancia das posturas, como tambem da propria insu-
ficiencia da a,an do enearregado de fiscalizar sua manu-
ten,ao. atraves da eompreensao do tipo de rela<;a.o
entre a fiscal e 0 habitante que se pode ver com mms
clareza em que eonsistia a espeeificidade do modo de
a<;ao da Camara no que tange a saude da popula<;ao.
46
GeraJmente era 0 almotaee que tinha entre suas
atribui,6es a inspe<;ao desses objetos que dizem res-
peito a saude, embora sejam tamb6m eneontrados em
determinados momentos e loealidades cargos como 0
de Provedor de Saude e 0 de almotaee de limpeza.
• . A r.resen<;a do Provedor de Saude apareee ligada
a mspe<;ao do porto atraves das visitas de saude aos
navIOS. Em 1682, por exemplo, a Camara de Salvador
nomeia oficiais de saude para fisealizar as embarea<;6es
visando evitar a entrada de pestes. 0 Governa,dor gerai
aprova a nomea<;ao: "Recebi a carta de Yassa Merces
com 0 aviso da nomea<;ao dos oficiais para a saude
pois tanto convem haver dele pela entrada na
Madre de Deus que veio da Mina a esta Bahia e cheia
de bexigas, para destrui,ao deste povo"". Em 1714, em
portaria para a Senado da Camara le-se que: "Porqumto
os navios que a,o presente chegarem a esta Bahia, vindos
de Lisboa, Ilha Tereeira e Porto deram noticia que em
portos da Europa havia mal contagioso, e para
evltar que este nao infeecione esta cidade ordeno aos
oficiais do Senado da Camara dela que nas visitas de
saude que Ihe e encarregado e hao de fazer em todas
as embarca<;6es que daqui em diante vierem a este porto
ponham particular cuidado em que as ditas visitas se
fa<;am com toda a exa<;ao, averiguando-se mui miuda-
mente tao importante negocio e de tao grandes conse-
qiieneias a este Estado""". Em 1724, afirrna nova por-
taria para 0 Senada da Camara de Salvador: "0 Sena-
22 "Carta para os oficiais da Camara sobre os oficiais de
saude", 28 de agosto de 1682; in Documentos Historicos, volu
me 86, p. 231. Cf. tambem "Offcio do Conselho Ultramarino
ao Rei de Portugal", 15 de dezembro de 1704; in Arquivo do
Conse/ho Ultramarino, volume 23, p. 166-167.
23 "Portaria para 0 Senado da Camara sobre as visitas de
saude", 28 de agosto de 1682; in Documentos Historicos,
saude", Bahia,17 de abril de. 1714; in Documentos Historicos,volume 87, p. 109.
47
II'I!
do da Camara ordenara ao Provedor de SaUde visite
as logo que chegarem de mar em fo-
ra ( ... )24.
Seria monotone continuar estas encon-
tranamos a de urn mesmo tipo de
o importante e apreender seu significado: a inexistencia
de urn controle continuo do porto e
dos navios no que
diz respeito a saude. Varias vezes 0 govemo portugues
ordena que cada navio, alem de receber a visita dos
oficiais ou provedores, devera apresentar uma certidao
de saude que declare 0 estado do local de origem, se
havia mal contagioso e qual a sua qualidade, 0 que
facilitaria 0 trabalho dos encarregados das visitas as
- urn oficial da Cilmara assessorado por
medico e cirurgiao. A dos navios nao foi, po-
rem, uma norma da colonial. 0 lazareto,
local onde a do navio ficasse em
s6 no s6culo XIX se tomou realidade no BrasIl. A
dos navios nao Se .reaIizava habitualmente,
mas unicamente em momento de perigo manifesto, des-
pertado pela de A peste 0
momento extraordimirio em que a cldade era obngada
a sentir 0 perigo da entre 0 intemo e
para se defender ou proteger os outros. A da ,<:;a-
mara se apresenta assim como lacunar, fragmentana,
nao orientada para urn controle continuo da cidade, 0
pr6prio cargo de Provedor de Saude tendo tido uma
existencia provis6ria ou esporadlca.
o mesillo se repete com a sujeira da cidade:
dependente da entre almotace e - a
se exercendo por denUncia dos moradores
ou pelo olhar direto dos almotaces em passeio pelas
24 "Portaria para 0 Senado da Cftmara sobre a visita da
saude", Bahia, 19 de fevereiro de 1724; in· Documentos Hist6-
ricos, volume 87, p. 194.
48
mas da cidade - a das posturas da Camara
nao pode deixar de apresentar urn cumprimento frag-
mentario.
Entre a denuncia dos habilantes e as possibili-
dadeS de dos diferentes cargos se situa 0 modo
proprio de da Camara no que diz respeitoa saUd'e. A inicia:tiva de organizar 0 espac;o social, vi-
sando a impedir doem;as ou a aumentar 0 nivel de saude,
parece nao fazer parte da deste tipo de
poder. A Camara sObretudo responde a uma constata-
de desordem em que 0 proprio habitante desem-
penha urn papel fundamental. A queixa aciona urn
processo que tambem depende do habitante na medida
em que muitas vezes a Camara e incapaz de realiza-lo
eficazrnente.
Isso se pode ver claramente analisando a
do cargo de almotace de limpeza, em 1672, por reque-
rimento do juiz do povo a Camara de Salvador, a se-
do que havia no Reino. 0 pedido parte
justamente de uma de desordem e ineficien-
cia: por ser a "cidade muito populosa e (porgue) 0
servic;o se fazia todo par escravos e sabre a Iimpez1
dela nao Se pudera ate agora conseguir 0 meio para
fazer, e das muitas imundicies que se lanc;am pelas ruas
e dela se entendia que resuItam muitas doonc.s
agudas que nela havia, havendo sido antigamente muito
sadia"; pela ineficacia dos almortaces existentes no cuida-
do com 0 asseio das ruas, pais "pelo muito que tern
que fazer na assistencia dos e com as mais
de seu ofielo, nao podem enlender de Iim-
p.z:Z3. da cidade"25.
Ora, e a mesma de desordem e inefi-
cieuela que vai se repetir com ao almotace de
Iimpeza e decretar sua da imun-
:.!5 Ata da Camara de Salvador, 16 de novembro de 1672.
49
dicie das mas "de cujos vapores se infeccionavam 0')
ares e corrnptos produziam doen9as de que
padecia este povo ( ... )"; como tambern. da mefIcacIa
dos almotaces de Iimpeza, por "serem sUJellos de
condi9ao a quem nao se tinha respeito". A solU9ao
apontada sera sua substitui9ao pelo juiz mals velho.
"( ... ) convem a seu real servi90 e bern publico dela
que 0 efeito e disposi9ao dele se e?carreg,;e aos mesmos
oficiais do Senado da Camara, a cup autondade e ordens
obedecerao as moradores das rnas ( ... )2"-
Esses limites da interven9ao da Camara no cumpri-
menta de suas atribui90es, que dependem de denuncia
dos habitantes, a9ao pessoal de urn inspetor capaz de
fazer impor medidas e da condi9ao social do
tor levam ate mesmo a Camara a apelar ,para 0 ReI. f:
assim que, por exemplo, em 1759, sentindo-se incapazes
de ver acatada urna ordem sua a respeito de
mento de agua que inundava as rnas .dlf;,-
cultando a passagem e prejudicando a pubhca ,
os oficiais da Camara "recorrem a Vossa
que se digne mandar que os senhono: dos ed,fl-
cios, que tiverem canos que desaguam para
a rna sejam obrigados a subterra-Ios por forma que
fique 'a cidade livre dos maus halitos, que resultan; de
semelhantes imundicies, ficando aos moradores 0 transl-
to liver nao s6 nOs atos particulares, mas ainda n..,as
un90es de procissoes e saidas do Sacramento (. ',' )_7.o que levou a Rei a reponder ao VIce-ReI Marques do
:.:6 "Ordem que se mandou aos JUizes Antonio Teles de .Me4
neses e Gonl;alo Ravasco Cavalcante e e aos ve-
readores Antonio Machado Velho, Francisco.
e Bartolomeu Soares sobre a limpeza da clda'd.e, BahIa, 21
de agosto de 1694; in Documentos Hist6ricos, volume 86. p.
252·253. . .
21 Affonso Ruy de Souza, Hist6ria Politica
tiva da cidade de Salvador, 1949, p. 299-300; e Hlstona da Cd-
mara Municipal de Salvador, 1953, p. lS()..151.
50
Lavradio atraves do Conselho Ultramarino mandando
"que os senhorios de casas cujos edificios tern canos
que desaguam nas rnas publicas sejam obrigados a man-
darem subterni-Ios e mete-los nos canas reais em forma
que fiquem as ditas rnas Iivres das imundicies dos des-
pejos das mesmas casas ( ... ) 28.
Tudo isso mostra nao s6 os Iimites da interven9ao
da Camara e da administra9'0 colonial, como tambem
o significado especifico de suas atribui90es que nao <liz
respeito a uma politica de saude capaz de organizar, a
partir de urna reflexao e de medidas de tipo positivo,
o funcionamento da cidade. A saude da popula9ao esta
na dependencia da presen9a de obstaculos; quando apa-
recem e sao sentidos pelos habitantes como algo nefasto,
a ser proscrito e portanlO denunciado, ,ao afrontados
pela Camara de modo local, disperso e sem continuida-
de. A presen9a de urn perigo dita medidas de defesa
que nao implicam a ideia de periculosidade e 0 projeto
de preven9'0,
Dai 0 carMer punitivo da a9'0 da Camara. Nao
se pode assegurar a eficacia e a continuidade das medi-
das, visto que ha dependencia nao s6 da coopera9ao
dos habitantes, acatando ordens ou nao, denunciando
infratores, como tambem da pr6pria verea9ao, que e
eletiva, nao garantindo a continuidade das portarias. A
popula9ao nao e 0 objeto de uma interven9ao que asse-
gure 0 aumento de seu nivel de saude. Atraves de uma
a9ao pontilhada, pensa-se em evitar a doen9a, retirando
a sujeira: interven9ao que depende, entretanto, da a9iio
privada.
Urn ultimo aspecto, da maior importancia para 0
aprofundamento do tipo de rela9ao que procuramos es-
tabelecer entre a administra9ao colonial e a questao da
sociedade, precisa ainda ser analisado: 0 da figura do
medico, nao do medico em geral, mas daquele que esteve
51
diretamente vinculado a camara. Varios documentos
assinalam que nao s6 a existencia como tambem as
alribui<;6es da que denaminam "medica da cidade",
"medico da Camara" au mesmo "medico da cidade c
Camara"; e issa desde 1553, pauca depais da funda<;aa
da cidade de Salvadar.
Qual e a raia de alua<;aa desle medica que recebo
salaria fixo, saido dos vencimentos da Camara? Sc
em certos documentos sua importancia enquanto medico
que assisle a papula<;aa da cidade e de seu lerma e
colacada"" em aulros docurnenlos suas abriga<;6es naa
dizem respeito, como atividade inerente ao cargo, a as-
sislencia da papula<;aa. Num "lerma que mandaram
fazer as aficiais da Camara da sahiria que se M de
pagar aa licenciada Ventura da Cruz medica
desla cidade e Camara na farma da pravIsaa de Sua
Majeslade Deus a guarda"SO, de 22 de. ,;,ar<;a de
as abriga<;6es ciladas saa: curar e vIsIlar as aflCIaIS
da Camara e suas familias tadas as vezes que a cha-
marem, sem par issa levar mais que a salaria;
if aas navios e barcos que vierem com notICIa de mal
cantagiasa; vir aa Senada ladas as vezes que far cha-
mada.
o medico aparece fundamenlalmente cama urn
assessar urn cansultar da Camara; cama aquele que Vat
curar daenles, que alesla a daen<;a, que e consullada
em delerminadas acasi6es e que recebe
ardens. Sua
a9ao se concentra, principalmente, em uma
de tipo e sem nenhuma
direla sabre a vIda da cldade cama urn tada. 0 medIca
da cidade e Camara" naa e alguem encarregada de
clirigir au arienlar os encargas de saude - e, na ma-
Zl' "Carta dos oficiais da Camara da vila de S. Francisco
de Sergipe do Conde", 12 de novembro de 1712; in Documentos
Historicos, volume 96, p. 77.
30 in Documentos Historicos, volume 4, p. 227.
52
ximo, assessor da Camara nas "visitas de saude" aos
navios, feitas sobretudo quando ha ,perigo de peste _ mas
apenas urn medico que dela recebe ordenado para assis-
tir a papula<;aa, em uma epoca de proibi<;aa de ensina
universitario no Brasil e conseqliente escassez de medi-
cos, que devem vir de Partugal. Se e passivel dizer que
a Camara tern atribui<;6es para tamar medidas que im-
plicam a rela<;aa entre a daen<;a e as candic6es da
cidade, isso nao significa, parem, que 0 medico, atraves
de seu saber ou seu poder, dirija au mesmo oriente esta
a<;8:o da Camara. 0 que se nota, ao contrario, e a pre-
de urn saber sabre a daen<;a nas instancias palitica-
adm1ll1stratlvas - ° Rei, 0 Conselho Ultramarino, 0
Governador as .Camaras Municipais, etc. _ que
como obJetlvo onentar a a9ao fragmentaria, puni-
tI.va, restauradora e a16m disso independente da medi-clna.
Tuda issa e muita pauea para que se passa falar
de medlcma Par urn lada, naa M presen<;a da
saber da medlcma, nem do medico como uma
nas que dizem respeita a uma a<;aa
pal,:tlca s,abre. a tenda vista a saude da papu-
la,aa. Sa a 111l:aa retrospectlva das histariadares, que
buscam c?ntmllldades sem respeitar 0 tempo proprio
das canceJtos, pade falar de higiene publica durante tada
esse periada. A higiene sera urn tipa de interven<;aa
earacterfstica de uma medicina que coloea em primeira
pIana a qucstaa de sua fun<;aa social; que produz can-
celtos e programas de aGuo atraves de que a sociedade
aparece como 0 novo objeto de suas atribuiGoes e a
saude das indivfduas e das popllla<;6es deixa de signifi-
car unicamente a l.uta contra a. doen9a para se tamar
a earrelata de urn madela medica-palitica de cantrale
contfnuo. A higiene publica e uma face da medicina
sacial. Par autra lada, tambem naa se pode falar na
existencia de llma higiene desmedicalizada. E isso porque
o pader palitica-administrativa naa samente vai pauca
53
de uma simples de que a sUJelra urbana
e responsavel por doe.nc;as, como DaD realiza urn con-
trole continuo da cidade. As Camaras se limitam a res-
ponder a que relacionam suieira e
atraves de que reafirmam as posturas
e de cargos que duplicam ou completam outros existen-
tes, sem entretanto planejar ou executar urn trabalho
sanitaria preventivo.
Que e possivel estabelecer entre Fisicatura
e Camara no que diz respei.to a maneira como as insti-
coloniais realizam os "encargos de saude"? A
Fisicatura, como vimos, e dominada pelo obietivo, que
se expressa. de maneira negativa, de caibir os abusos,
runir os excessos, delimitar 0 ambito de de ,c"'!a
tipo de "profissional de saude" e Impedlr a eXlstenCIa
nao legal de qualquer pessoa nas mesmas E
as Camaras respondem a dentincias de SUJelra e podn-
dao ou a sua eventual descoberta, atraves da fragmen-
pratica de e reparac;ao, onde na maiaria
das vezes nem mesma aparece referencia a doem;a.
sempre realizada depois do aparecimento de algum
fato que dificulta 0 funcionamento da am',!!al
morto nas ruas ou solto pela c[{Jade, d agua Im-
pedindo a passagem, aIimentos deteriorados vendidos
no mercado, etc.
o que caracteriza, portanto, essas inshtmc;oes e a
atribuic;ao de fiscalizar seja 0 exercicio da medicina,
seia 0 born funcionamento da cidade baseada em de-
nuncia de irregularidade, visando a impedir que urn mal
se propague atraves da de leis e
dos infratores. a posteriori que, no melhor dos
casos, se repete monotonamente depois de cada caSo
de desordem, sem obedecer ao estabelecimento de con-
globais indispensaveis a da vida
da e que, por conseguinte, se define mais
pela do que peIa saude.
54
Basicamente, uma se encarrega de fiscalizar a me-
dicina em tOOo que diz respeito il de seu
exercicio enquanto as outras se voltam para os obietos
e elementos que, no meio urbano, estao efetivamente
a vida. 0 que nao signifiea que haia uma
perfeita simetria na divisao dos encargos. Os medicos
sao consultados pelas Camaras para dar parecer sobre
que grassam nas cidades ou sao chamados
como as.seSSores nas visitas ao navios quando ha perigo
de p.::ste, OU aDs mercados, para julgar da deteriora93o
de alimentos. As Camaras nao ficam alheias a tarefa
de fiscalizayao da medicina, cirurgia e farmacia, na
medida em que, para exercer a profissao em determ1-
nad0 lugar, 0 mooico, 0 cirurglao e 0 Ecenciado, alem
de receberem 0 titulo junto a Fisicatura, tamb"m ne-
cessitam estar inscritos nas Camaras; do mesmo modo
estas proibem que se vendam remedios sem !icen,a
especial, precisando par isso as boticas serem licencia-
das como estabelecimentos comerciais.
Para se compreender 0 estatuto da problematica
da saude durante 0 periodo e necessario afirmar que
alem de uma heterogeneidade, que nem sempre e towl,
entre os obietos que fazem parte do raio de da
Fisicatura e das Camaras, M uma perfeita homogenei-
dade no modo como atuam essas duas A
fiscalizayao que elas realizam se processa da mesrna
maneira, denotando urn tipo de exercicio do poder quee fundamentalmente proibitivo, repressivo, punitivo. 0
que permite afirmar que a sociedade colonial nao se
arma com medidas capazes de enfrentar 0 perigo da
morbidade e da mortalidade acionando dispositivos ca-
pazes de preveni-Io.
A administrac;ao portuguesa DaD se caracteriZQli.
pelo menos ate a segunda metade do s.:culo XVIII,
pela do social visando a urn ataque
planificado e continuado as causas de agindo
55
I
,I
por isso de modo muito mais negativo do que positivo
no que diz respeito a saude... .o que basicamente se eVldencla na ,dos do-
cumentos deste penodo que se refcrem a saude dos
vassalos", "saude dospoVQS", "saude da p,opulac;ao" :
mesmo "saude publica", e que 0 termo saude c
tematizado em si mesmo, nunea e definido ou
Nem a reflexao medica nem a pratica politica se orgam-
zam no sentido de fazer da saude urn objetivo
tal de sua especialidade. Isto nao significa que nao hap
uma preocupa<;ao com a saude, interesse para com eIa,
ou que nao seja percebida como valor. Entretan,to, 0
que se constitui explicitamente como problema e seu
inverso sua marca neoativa, a doenc;a e a marte.
mais "de combater 0 mal do que de
cultivar urn bern. A saude nao aparece como algo que
possa ser produzido, incentivado,
tado. Embora encerre 0 maximo de so e
percebida negativamente pela presen9a da reahdade re-
prcsentada pela doen9a.
Mesmo quando em seus pianos aparece a preo;
cupa9ao com 0 aumento da popula9ao, isto e
enfocado com relac;ao a saude. E como se vIda e. .e
. - . por urn racloClnlOfcssem pensadas como smommas,. ,
nao explicitado, e se afigurasse como lmpensavel 0 ?r.?-
jeto de awnentar a saude da popula9ao como
de conseguir 0 seu desenvolvimento. 0 que aparece c
sobretudo 0 medo de que uma doen9a acarrete sua
devasta9ao. Medo que se expressa, por exemplo, na n;a-
neira como sobretudo as pestes durante esse peno-
do sao consideradas como as e
contra as quais e organizado urn dlSPOSlt;V?
medico de combate. Como situa9ao esporadlca, proVl-
sOria e de excec;ao, as pestes atacam a e
a estabilidade da sociedade, diminuem e deblhtam as
e irnpedem 0 comercio. . ' .
Vma prova da inexistcncla e da tmposslb.l-
lidade de urn projeto continuo de medldas no que dlz
56
respeito aos varics aspectos da politica colonial IS a
centralizac;ao dos mecanismos administrativos, que exigia
que toda questao referente a vida da Colonia e ao seu
funcionamento pOlitico-economico dependesse direta-
mente do Rei de Portugal ou quando muito de seus

Teste o Premium para desbloquear

Aproveite todos os benefícios por 3 dias sem pagar! 😉
Já tem cadastro?

Outros materiais

Materiais relacionados

Perguntas relacionadas

Perguntas Recentes