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� LÉA BEATRIZ TEIXEIRA SOARES ! TERAPIA OCUPACIONAL Lógica do Capital ou do Trabalho? ! Retrospectiva histórica da profissão no Estado brasileiro de 1950 a 1980 ! EDITORA HUCITEC São Paulo, 1991 !! DEDICO ESTE TRABALHO ! À dúvida e resistência de terapeutas ocupacionais que, apesar da alienação de sua prática e do espaço institucional, souberam abrir o debate e aprofundá-lo fora do espaço terapêutico específico. À luta dos trabalhadores em assumir a direção da história pelo aprendizado da reflexão e ação sobre os conflitos a serem superados. Àqueles que direta e indiretamente permitiram que este trabalho existisse, em especial à Camila e ao Zenon. !! INTRODUÇÃO ! O presente trabalho se originou da crise do papel profissional desempenhado pela terapia ocupacional no Brasil nos anos 80. A fundamentação clínica, advinda da formação técnica e reducionista hegemônica nos cursos de graduação em saúde, não conseguia justificar os fracassos em programas reabilitacionais nem tampouco subsidiar a emergente intervenção em programas educativos e de promoção da saúde. A superação dessa crise, sob nosso ponto de vista, só pode advir do reconhecimento das raízes da atual conjuntura, ou seja, da inserção histórica e social da terapia ocupacional nas políticas sociais brasileiras, que delinearam determinadas práticas institucionais e enfoques terapêuticos. A alienação da categoria a respeito de seu próprio percurso histórico é fruto tanto da limitada literatura nacional (Arruda, 1962; Cerqueira, 1967; Gonçalves, 1964; Lemos, 1985; Silveira, 1976), dos conflitos e ruptura ocorridos nesta trajetória, quanto pelo fato de a constituição histórica existente ser factual, quase independente e autônoma do movimento da sociedade e de suas contradições. A literatura na área, primordialmente produzida nos Estados Unidos e Inglaterra (Hopkins, 1983; MacDonald, 1972; Mosey e Rerek, 1979; Reed e Sanderson, 1980; Scullin, 1975), fundamenta a constituição profissional como decorrência dos incapacitados da Primeira e Segunda Guerras Mundiais e do avanço das práticas médicas. Para estes autores não existe a produção social das doenças, o governo é um "mediador neutro" e a clientela não é observada enquanto classe social. Assim, o reconhecimento das tendências e conflitos contemporâneos esteve prejudicado pela ausência de uma cons- trução histórica não fragmentada e globalizante. Pretende-se, com este trabalho, ultrapassar a visão instantânea da realidade para a identificação da inserção da terapia ocupacional com seus múltiplos fatores intervenientes na política de saúde brasileira. No Brasil a terapia ocupacional iniciou sua intervenção nos anos 40 com doentes mentais, e na década seguinte, com incapacitados físicos objetivando a remissão dos sintomas patológicos e a reabilitação social e econômica dessa clientela. Para tanto, utilizou-se o trabalho, a recreação e o exercício como meio de desenvolvimento e adaptação do homem à sociedade. A vinculação destas três formas de atividade humana numa abordagem terapêutica em resposta a demandas sociais específicas constituiu historicamente a terapia ocupacional. "O termo 'ocupação' tem sido desde muito reconhecido como um requisito para a sobrevivência e, em graus variados, como uma fonte de prazer. O termo 'terapia ocupacional' [...] é [...] o uso do trabalho, exercício e jogo como formas de tratamento" (Hopkins, 1983:1). A terapia ocupacional vem intervir no binômio trabalho- saúde e, sob nosso ponto de vista, assume, enquanto base fundamental, o caráter subjetivo/objetivo do trabalho como realização da capacidade humana e inserção do indivíduo à sua realidade material. Os terapeutas ocupacionais brasileiros, ao se engajarem no mercado de trabalho, têm convivido com a crítica realidade da assistência à saúde : verbas reduzidas para as medidas 1 preventivas de caráter coletivo e atendimento às populações marginais; a crise de insolvência dos serviços hospitalares e ambulatoriais particulares ou estatais mantidos pela Previdência Social, e a política de subvenção às entidades beneficentes ou particulares voltadas à reabilitação conveniadas ao sistema público. A terapia ocupacional, profissão historicamente ligada à reabilitação de pessoas portadoras de déficit ou incoordenação motora (oriundos de traumatismos, doenças incapacitantes ou degenerativas), problemas psíquicos ou deficiência mental, vive o dia-a-dia das instituições conveniadas ou, em menor escala, os programas públicos ambulatoriais e hospitalares de saúde mental, hanseníase e reabilitação profissional. A contradição Este trabalho focaliza o período de 1950 a 1980; não inclui, portanto, as modificações 1 advindas como Sistema Único de Saúde. principal no meio terapêutico ocupacional é a falta de condições de se concretizar o objetivo último da categoria: a autonomia do indivíduo em suas atividades de vida diária e sua absorção ao mundo do trabalho. Das instituições conveniadas, inúmeras entidades beneficentes se mantêm em decorrência do vínculo ao sistema de saúde previsto na Portaria Interministerial 186, de 1978, MEC-MPAS (Ministério da Educação e Cultura e da Previdência e Assistência Social: Brasil, s.d.:754). Esta portaria regulamenta o atendimento a excepcionais e determina os critérios de classificação para a dotação de verbas, de acordo com os recursos humanos e instalações, correspondente a cada tipo de clientela. Assim, no item recursos, o pessoal técnico recebe pontos segundo uma proporção prevista entre o número de clientes e a problemática atendida. A desatualização e fiscalização dos recursos governamentais face à recessão e injunções políticas têm favorecido a insolvência das entidades beneficentes que a enfrentam com campanhas de doação, sócios-contribuintes, promoções especiais, redução do quadro de pessoal, achatamento salarial e "superlotação" do atendimento. Assim a terapia ocupacional realizada na maioria destas entidades focaliza a orientação de professores, o tratamento neurológico e o treinamento de habilidades motoras e perceptivas. O enfoque profissionalizante é raramente abordado por requerer maior infra-estrutura, com programa a longo prazo e de natureza mais complexa. Nas clínicas, consultórios ou escolas particulares observa-se, como tendência, a sofisticação de técnicas e recursos, requisitando dos profissionais uma constante modernização. Nestes locais, apesar de a clientela ser de maior poder aquisitivo, aí também os profissionais necessitam atender mais pacientes em seu tempo de serviço ou ampliar a jornada de trabalho para manter seu próprio padrão de consumo e atualização. O trabalho do terapeuta ocupacional nas entidades particulares também se assemelha quanto aos objetivos, e às vezes até quanto à forma, ao planejado nas entidades beneficentes. A distinção se dá quanto às maiores chances de concretização deste programa terapêutico nas instituições particulares. Por sua vez, a população doente mental é atendida, se for previdenciária, em hospitais particulares conveniados, ou, então, em hospitais estatais e, mais recentemente, nos ambulatórios. O sistema de convênio hospitalar do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social) também prevê um sistema de classificação segundo as instalações e recursos humanos, o RECLAC. Aqui as distorções também ocorrem. Por exemplo, um terapeuta ocupacional para cinqüenta pacientes, numa jornada de vinte horas semanais, vale quarenta pontos, número máximo atingido por esta classificação. Agora, a contratação do profissional não é obrigatória, pois "os mesmos quarenta pontos podem ser obtidos em espécie (geladeiras, por exemplo)" (Hahn, 1983:5). Em geral, existe somente um terapeuta ocupacional contratado em um hospitalde 250 leitos, cujo trabalho é a ocupação terapêutica de pequena parcela dos internos sem uma intervenção mais específica e individualizada sobre o distúrbio afetivo e práxico do indivíduo (cotidianidade, relacionamento social, prática profissional). O trabalho ocupacional objetiva basicamente a redução da sintomatologia do paciente, lidando com os aspectos mais gerais do indivíduo. Os Centros de Reabilitação Profissional do INAMPS contam em sua equipe profissional com terapeutas ocupacionais para tratamento e avaliação para o trabalho. No entanto, as perspectivas do previdenciário acidentado (80% dos casos elegíveis em São Paulo), ao ser recuperado, são, de imediato, a suspensão do auxílio-doença, sem a respectiva recolocação no mercado de trabalho. Em contrapartida, o acidentado não reabilitado vem somar um subemprego ao auxílio-doença, o qual, geralmente, é superior ao salário original, sem o risco da rotatividade de mão-de-obra no mercado de trabalho, cuja flutuação é elevada entre os incapacitados. Essa contradição promove o abandono do atendimento pelo acidentado ou ainda seu desestímulo pelo programa de reabilitação. Esse breve panorama da reabilitação no Brasil, com suas distintas e díspares instituições, tem como pano de fundo a mesma realidade: a inexistência de uma política governamental de reabilitação comprometida e sistemática para a área integrada aos demais níveis de atenção à saúde e a uma política de pleno emprego. O presente trabalho busca estabelecer um estudo sobre a constituição da terapia ocupacional no Estado brasileiro no período de 1950 a 1980, adotando o referencial materialista dialético. Por este referencial, foram relacionadas as políticas de saúde do século XX na sociedade brasileira, particularizando as medidas voltadas para a atenção terciária de saúde. Uma outra parte, imbricada a esta, foi a análise dos dados coletados e das entrevistas realizadas. O fenômeno da constituição de uma prática social pode ser estudado por diferentes óticas. Uma das formas propostas por Willeski (apud Tambini, 1979:5-6) divide o processo de constituição de uma profissão em cinco etapas. A primeira delas se dá com o surgimento de um grupo ocupacional cujo trabalho responde a necessidades sociais específicas; a segunda ocorre a partir da definição sobre o processo de seleção e formação deste grupo ocupacional; a terceira é a constituição de uma entidade da categoria; a quarta se manifesta na busca da legitimação oficial, do reconhecimento público e controle do ingresso e exercício profissional e, por último, na elaboração de um código de ética. Essa visão, que parte da necessidade social e percorre um caminho intrínseco à própria categoria ora constituída, apesar de lógica e seqüencial, não esclarece o movimento mais amplo entre a emergência de determinadas necessidades na sociedade, a luta política por seu reconhecimento, a reorientação do conhecimento científico para alguma destas necessidades, a constituição de novas modalidades ocupacionais a partir da revolução técnico-científica e a absorção e institucionalização dessas novas modalidades ao conjunto de medidas hegemônicas do Estado. A complexidade desta última abordagem exigiu o estudo de parte da literatura marxista sobre a estrutura da sociedade de classes; a historicidade das necessidades humanas e do próprio homem; as contradições imanentes a esse processo e sua superação; as transformações do modelo econômico e suas repercussões na saúde dos trabalhadores; as necessidades de saúde da população e as respostas do Estado via políticas sociais; e o papel econômico, político e ideológico imbricado nas práticas de saúde. Por este prisma, o caminho especificamente traçado por uma dada profissão, a terapia ocupacional, adquire uma nova dimensão: de síntese das múltiplas determinações a que está sujeita e sobre as quais exerce influência. Sob este mesmo enfoque outras profissões já foram analisadas, como a medicina, o serviço social e a pedagogia (vide, respectivamente, Gonçalves 1979; Verdes-Leroux, 1986 e Carvalho, 1989). A partir da literatura à qual tivemos acesso novas questões se colocaram: quais teriam sido os determinantes econômicos, político-ideológicos e as necessidades sociais que vieram constituir, no Brasil, a terapia ocupacional, uma outra profissão na área de saúde? A quais necessidades sociais estará a terapia ocupacional respondendo atualmente? Qual a função político-ideológica contemporânea desta prática de saúde? A terapia ocupacional responde ou pode vir a responder às necessidades da classe trabalhadora? A problematização desses pontos, que dão rumo a este trabalho, redimensionou a coleta de dados sobre o processo de constituição e desenvolvimento dos serviços e cursos de formação de terapeutas ocupacionais no Brasil. Para tanto foram levantados dados junto às treze coordenações de cursos de terapia ocupacional do país e foram realizadas entrevistas com pessoas que tiveram destaque no processo de formação de terapeutas ocupacionais em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, visando resgatar a história não documentada dos cursos pioneiros. A maior parte das entrevistas, ao fornecer elementos da realidade profissional, veio alimentar esta análise. O presente trabalho incorporou alguns depoimentos dos entrevistados, que aparecem diretamente no texto. As entrevistas na íntegra, no entanto, foram transcritas e permanecem à disposição dos interessados. O Anexo II lista a totalidade das entrevistas. A reflexão sobre o processo brasileiro ainda não atingiu um grau de explicitação que permita uma análise mais profunda, constituindo um impasse a ser enfrentado por este e tantos outros trabalhos que estejam sendo realizados. Tentou-se homogeneizar a linguagem, ainda que, por exemplo, os termos louco, insano, alienado surjam em vários pontos alternados, sem a precisão lingüística adequada. Pela complexidade dos fatores que envolvem a relação trabalho e saúde, e, especificamente, como o referencial teórico adotado neste trabalho ainda é pouco veiculado em terapia ocupacional, decidimos por fazer uma exposição de caráter introdutório para aqueles que necessitem se inteirar do método materialista dialético, no Capítulo I, e das políticas de saúde no Brasil, no Capítulo II. A originalidade deste trabalho se encontra nos Capítulos III e IV. Para tanto, no Capítulo I, apresentamos os conceitos básicos envolvidos nesta análise: a concepção histórico-material de homem e sociedade, o caráter de desenvolvimento e de alienação da atividade humana; as necessidades de saúde e respectivas respostas do Estado, e as funções que a medicina, como prática hegemônica da saúde, cumpre no Estado monopolista brasileiro. No Capítulo II buscamos retratar o movimento entre as transformações da base econômica sobre as políticas sociais do Estado brasileiro no século XX, destinadas à classe trabalhadora e às populações marginais, ressaltando as medidas vinculadas à reabilitação física e mental. No Capítulo III, o processo de implantação de serviços de reabilitação e respectivas instituições no Brasil, no período de 1950 a 1980, são analisados segundo sua independência e articulação com as políticas sociais do país e do movimento internacional de reabilitação e revolução técnico-científica no setor saúde. No Capítulo IV, buscamos retratar a formação do terapeuta ocupacional no Brasil, os modelos técnico-científicos da profissão nos diversos espaços institucionais resultantes de seu entrelaçamento com as políticas sociais. Este percurso, sobre a historicidade do emprego de atividades com os indivíduos doentes, visa resgatar os elementos constitutivos de uma visão globalizante, unitária, da práxis humana, que supere a visão reducionista de homem-saúde-atividadee seja engajada no movimento de construção de uma nova sociedade. O presente trabalho não pretende encontrar saídas e concluir etapas. Ao contrário, quer ser uma contribuição à reflexão e problematização dessa prática social, ao resgatar o percurso de constituição da terapia ocupacional no Brasil, seu caráter assistencialista e suas contradições intrínsecas. Assim, ao se buscar reconhecer as funções econômicas, políticas e ideológicas cumpridas por esta prática profissional pretende-se pôr um pouco mais às claras as contradições da sociedade capitalista no que tange aos mecanismos de sujeição das classes populares intermediadas pelas instituições de saúde, visando corroborar com o processo mais amplo de emancipação dos trabalhadores. !!!! 1 TRABALHO, CAPITAL E SAÚDE ! O presente capítulo trata das relações entre o trabalho humano, o sistema capitalista e a forma histórica social que a necessidade de saúde assume e é satisfeita no bojo da sociedade de classes. Esses pressupostos imbricam-se com o problema particular a ser tratado nesta investigação: a constituição de uma determinada prática social, a terapia ocupacional, no interior da divisão do trabalho em saúde na sociedade brasileira. A caracterização social da clientela neste século pertence primordialmente ao exército industrial de reserva e às populações marginais. O surgimento da terapia ocupacional na segunda década deste século nos Estados Unidos, em nosso ponto de vista, ocorreu no período de pico da produção industrial, quando a lógica economicista do capital requisitava a absorção de incapacitados à força de trabalho. Assim, criaram-se serviços de reabilitação física e oficinas de trabalho nos hospitais para a recuperação de inválidos. Já sua continuidade decorreu da adequação desta prática profissional, e dos serviços de reabilitação, ao processo global de divisão do trabalho na área de saúde, da realização de interesses político- ideológicos das classes hegemônicas com estas parcelas da população e do atendimento de determinadas necessidades de saúde que não encontravam respostas na exclusiva intervenção médica. A sociedade brasileira, onde se desenvolve o capitalismo tardio, estruturou de maneira tênue e paulatina um sistema de saúde para a população, que inclui os serviços de prevenção, tratamento e reabilitação. A partir do início do século e sobretudo no Estado Novo, similar ao processo europeu, que teve início no século XIX, a saúde dos trabalhadores tornou- se tarefa do Estado, "instância da sociedade historicamente responsabilizada pelas condições de saúde da força de trabalho, [...] através de suas instituições médicas" (Luz, 1979:54). A identificação das condições de saúde como presença/ausência relativa de doenças na população tem sido adotada, aqui e nas demais sociedades capitalistas, de maneira a não se questionar a determinação que as condições globais de vida têm sobre a saúde da população. A análise que Madel T. Luz (1979) faz sobre as instituições de saúde brasileiras demonstra que a "crise da saúde do povo", resultante das duras condições de vida das classes populares no modo capitalista de produção, é "recuperada" segundo o discurso estatal ao implantarem-se medidas de saúde para a população, mas, na prática, estas vêm beneficiar, a nível institucional, os interesses das classes dominantes. O Estado brasileiro assume a centralização e o planejamento da saúde como mais um eixo de poder disciplinador da sociedade. A intervenção direta, maciça e organizada da estrutura governamental sobre a sociedade, após a Segunda Guerra Mundial, é fruto da concentração do capital. A autora fala do poder disciplinador da saúde: "Ora, uma das formas institucionais mais importantes de controle das classes pelo Poder dominante faz-se, segundo Foucault, através da manipulação dos corpos. Para a quase totalidade das camadas sociais o corpo é, primordialmente, neste modo de produção, instrumento de trabalho. As instituições vinculadas à Saúde e instituições médicas converteram-se progressivamente, desta forma, em todo o mundo capitalista, em instrumento fundamental de enquadramento político das classes e, indiretamente, de manutenção do sistema de produção" (Luz, 1979:50). ! As instituições vinculadas à saúde exercem, então, o papel regulador entre as classes sociais ao definirem a rotina diária: alimentação, higiene, moradia, os hábitos sociais, as condutas corretas com a doença, até a avaliação da doença como fator que permite/impede a execução do trabalho. Como a sociedade capitalista não é um modelo pronto, acabado, mas, ao contrário, realiza-se diferenciadamente em várias nações, com nuanças próprias e contradições internas, locais e internacionais, então o processo de intervenção do Estado capitalista sobre as instituições de saúde não pode ser analisado de maneira estanque, indiscriminada de uma nação para outra, ou, ainda, autônoma em relação às demais. As mudanças no modo de ação do Estado capitalista — de uma postura liberal, antiintervencionista, a uma intervenção articulada da economia às instituições da sociedade civil — e, concomitantemente, as várias representações que são formuladas em cada momento histórico, todas estas questões são resultantes, fundamentalmente, do modo como os homens vivem e se relacionam entre si, ou seja, do modo de produção da sociedade. A cada modo de produção da vida social e a cada etapa do processo de transformação deste modo de produção correspondem relações, estruturas sociais e representações específicas a este modo de vida que, por sua vez, são determinadas pelabase econômica, e, ao mesmo tempo, exercem influências sobre ela. Portanto, para se dimensionar uma questão específica da sociedade, particularmente o modo como a saúde/doença é concretizada numa determinada época e contexto social, relacionando as condições de saúde desta comunidade com as determinações da base econômica da sociedade e as iniciativas da sociedade civil e política em sua complexidade, faz-se neces- sário explicitar a relação entre os pressupostos fundamentais desta pesquisa: a concepção histórico-material do homem e da sociedade; as contradições intrínsecas a cada modo de produ- ção; o trabalho como elemento de desenvolvimento e alienação do homem; a historicidade da necessidade de saúde em particular; a divisão técnica do trabalho irradiando-se às práticas de saúde e às funções ideológicas e econômicas imbricadas nesse modo de concretização da saúde/doença. ! A CONCEPÇÃO HISTÓRICO-MATERIAL DE HOMEM E SOCIEDADE A principal premissa adotada é a de que o homem é um ser essencialmente social e histórico. O ato histórico que distingue os seres humanos de outros animais é a produção de seus meios de vida. Ao responderem coletivamente a suas necessidades e interesses, os homens produzem sua existência e, ao produzi-la, condicionam sua própria organização física. Agora, se para os animais a luta pela existência requer um desgaste de forças que é determinado por sua estrutura orgânica, a organização física do homem é que exerce influência decisiva sobre a luta pela preservação da existência. Inicialmente, a mão foi para o homem seu primeiro instrumento, a primeira ferramenta de que se valeu na luta pela preservação. A fabricação de outros instrumentos e a estruturação em grupos permitiram ao homem prescindir da transformação orgânica corporal para então exercer um domínio sobre a natureza. ! "Para ele [Marx] o homem não é uma coisa dada, acabada. Ele se torna homem a partir de duas condições básicas: "1. o homem produz-se a si mesmo, determina-se, ao se colocar como um ser em transformação, como ser da práxis; "2. a realização do homem como atividade dele próprio só pode ter lugar na história. A mediação necessária para a realizaçãodo homem é a realidade material" (Gadotti, 1982:42 — grifo do autor). ! A práxis, o trabalho humano O homem, diferentemente das outras espécies, é um ser em constante transformação, decorrente não mais de sua estrutura biológica, orgânica, mas fundamentalmente do trabalho humano, da produção material da sua existência. As transformações promovidas pelo homem e sobre o próprio homem se realizam a partir do e no processo do trabalho humano. O homem, a partir de sua prática, antecipa-se a ela, prevê, planeja sua ação e a modifica no contato direto de sua ação sobre a realidade material. Ao final deste processo prático- reflexivo-prático, o homem modifica seu próprio plano, incorporando os dados adquiridos na experiência prática, ou melhor, tanto a realidade material (o que é dado) pode ter sido transformada quanto as relações sociais, as concepções, ou ainda o próprio homem. A colocação de finalidades é que caracteriza a práxis, a at ividade propriamente humana e essencialmente transformadora (Cf. Vasquez, 1975: 185-194). A práxis, por ser o mecanismo de transformação do homem, ao se concretizar na produção material da existência atinge sua máxima potência. A atividade prodiitiva humana, também chamada trabalho, como forma original da práxis, por sua dinamicidade, foi o cerne do processo de hominização, ou seja, de criação da espécie humana. ! O processo de hominização" O processo de hominização de nossos primatas surgiu com o advento do trabalho e, a partir desta base, edificou-se a sociedade. No momento em que os macacos passam a fazer uso premeditado de um osso ou madeira para alcançar alimentos à distância ou para se defender, que passam a usar sistematicamente as patas dianteiras como garras, especializando o uso das mãos e, principalmente, à medida que, ao antecipar sua necessidade de alimentação, proteção e preser- vação, chegam a construir instrumentos, estes primatas adquirem qualidades e condições que irão modificar estruturalmente a sua relação com o meio natural adverso. Esse grupo de símios passa a se adaptar às variações dos meios naturais, a sobreviver às intempéries, a coletivizar sua experiência, a transformar a sua vida material, a transformar sua própria estrutura biológica, sensorial e a criar necessidades novas ao seu agrupamento. A linguagem se constitui a partir da necessidade de troca de experiências e aprendizagens, de explicitar melhor as antecipações e construções práticas. A atividade produtiva torna-se a base sobre a qual se assenta a hominização. ! "O aparecimento e o desenvolvimento do trabalho, condição primeira e fundamental da existência do homem, acarretaram a transformação e hominização do cérebro, dos órgãos de actividade externa e dos órgãos dos sentidos. 'Primeiro o trabalho, escreve Engels, depois dele, e ao mesmo tempo que ele, a linguagem: tais são os dois estímulos essenciais sob a influência dos quais o cérebro de um macaco se transformou pouco a pouco num cérebro humano'" (Leontiev, 1978:70). ! Nessa perspectiva teórica, na qual a hominização é o resultado da passagem à vida numa sociedade organizada na base do trabalho, as leis que determinam este desenvolvimento não são as leis biológicas mas as leis sócio-econômicas. Sobre este processo Leontiev (1978:264) conclui: "A hominização, 2 enquanto mudanças essenciais na organização física do homem, termina com o surgimento da história social da humanidade". Essa idéia aparentemente paradoxal contém a noção de que só é possível ao homem e às condições materiais continuarem modificando-se num outro processo, o de humanização, a partir da criação da cultura material e intelectual, e após a superação do processo de criação da espécie humana, ou seja, da hominização. ! O trabalho humano Sobre o processo de desenvolvimento da espécie humana leia-se Aléxis Leontiev, 2 1978:259-84. As aquisições culturais e sociais engendradas no processo de humanização são transmitidas de geração em geração, através da cultura material e intelectual, numa forma particular, específica à espécie humana — o trabalho. ! "Esta forma particular de fixação e transmissão às gerações seguintes das aquisições da evolução deve seu aparecimento ao facto, diferentemente dos animais, de os homens terem uma actividade criadora e produtiva. E antes de mais nada o caso da actividade humana fundamental: o trabalho" (Ibid.:265 — grifo do autor). ! Cada geração de homens apreende a realidade objetiva a partir de necessidades socialmente determinadas, a partir dos produtos (materiais e intelectuais) e de fenômenos historicamente desenvolvidos na atividade das gerações precedentes. E pelo trabalho que o homem historicamente transmite a sua produção anterior e engendra elementos para a criação do novo. Nesse sentido é que Engels (in Marx & Engels, II, s.d.:269) afirma: "O trabalho criou o próprio homem". E que Leontiev (1978:70) alerta: '"Ele [o trabalho] criou também a consciência do homem". Através do trabalho os homens produzem o seu meio de vida, a sua existência, sua consciência, a sua história e a própria superação destas condições. ! A produção da existência humana O modo de produção da existência humana se concretiza a partir: — dos meios de produção, constituídos pelos recursos materiais e instrumentais existentes e a se reproduzir e pela forma determinada da atividade produtiva dos homens; — das relações de produção, da mediação estruturada entre os homens pautada na divisão do trabalho e da propriedade dos meios de produção. O homem é a síntese da sua produção: do que e como produz. A cada modo de produção, ou seja, das condições materiais da existência, consubstancia-se um determinado homem. Ao desenvolvimento das forças produtivas correspondem novas condições de produção da existência, de onde a criação de novos materiais e instrumentos, o domínio sobre os diferentes elementos da natureza e o surgimento de novas necessidades sociais vêm constituir, posteriormente, nova estrutura de produção, novas relações de poder (imbricadas nesta nova estrutura) e, conseqüentemente, novas formas de existência. Intrínseca à divisão do trabalho corresponde a forma de propriedade sobre o material, instrumental e produto do trabalho, simultânea à etapa de desenvolvimento das forças produtivas. ! "As diferentes fases de desenvolvimento da divisão do trabalho são outras tantas formas diferentes de propriedade; ou seja, cada uma das fases da divisão do trabalho determina também as relações dos indivíduos entre si no que respeita ao material, ao instrumental e ao produto do trabalho" (Marx & Engels, 1981:24). ! A historicidade do modo de produção A vinculação do modo de produção com as relações intrínsecas a ele deve ser dimensionada a cada período histórico. Por exemplo, no período medieval, quando a produção material era baseada primordialmente no consumo, a propriedade da terra era o elemento fundamental da divisão do trabalho. De um lado, estão as classes aristocráticas, proprietárias de terras, de outro lado, os servos da gleba. Os instrumentos, a terra, os animais, os servos eram tidos como entes "naturais" de uma realidade desigual. A desigualdade, por sua vez, era tida como "racional". Neste modo de produção, o desenvolvimento das forças produtivas é limitado à condição de os servos e aristocratas estarem atados à terra, da realização primitiva e artesanal do trabalho e da produção voltadas ao estrito consumo do feudo, sem excedentes. A representação do trabalho era intimamente 3 ligada a esta forma de organização social. ! "[...] o trabalho humano só podia ser concebido como estigma fatal ou castigo. Em outras palavras, o trabalho só poderia ser mesmo um TRIPALIUM [três paus], ou seja, um verdadeiro instrumento de castigo" (Nosella, 1986:5). ! Concomitantea cada modo de produção, correspondem contradições internas à coletividade, que se materializam em discrepantes condições de existência dos homens. O tecido social constitui-se, então, de distintas camadas e classes sociais. As camadas e classes sociais se discriminam quanto à propriedade do material, instrumentos e produto do trabalho, assim como pelas relações sociais de produção. ! O modo de produção capitalista No capitalismo, a propriedade dos meios e do produto do trabalho social pelo capitalista determina uma relação de poder autoritário sobre os assalariados. Cabe ao capitalista gerir a produção em sua forma e conteúdo assim como contratar a força de trabalho. Cabe ao assalariado vender a sua força de trabalho e se organizar coletivamente para conquistar melhores condições de existência, bem como a gestão do processo produtivo. À estrutura do modo capitalista de produção correspondem duas classes com interesses antagônicos e ao mesmo tempo complementares; neste modo de produção, as relações de troca A representação é constituída a partir do movimento real que ocorre entre os 3 indivíduos e a sociedade, na produção de sua vida material e social. Karel Kosik, no livro Dialética do Concreto (1976:15), afirma que "a representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas". (Grifo do autor.) entre os homens são mediatizados pela mercadoria. Dois fatores são significativos na constituição destas duas classes: a apropriação pela burguesia do controle do processo produtivo e do produto do trabalho social; e a alienação da força de trabalho pela classe assalariada. Ao trabalhador, espoliado de qualquer propriedade dos meios de produção e do produto de seu trabalho, restou alienar sua única propriedade, a força de trabalho. Ao capitalista coube o comando industrial e a compra da força de trabalho, transformada em mercadoria, que se submete às leis de circulação e do valor. Contra a concepção aristocrática medieval da propriedade sobre a terra e o trabalho que nela se realizasse de natureza mística, metafísica, emergiu a concepção burguesa de propriedade sobre o próprio corpo e o fruto do trabalho. Locke, no século XVII, no período de ascensão da burguesia inglesa ao poder político, afirmava: ! "Cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele" (1978:45). ! O conceito de propriedade a partir do próprio corpo e do fruto do trabalho, ao mesmo tempo em que transforma o servo da gleba em trabalhador livre-proprietário de sua força de trabalho, transforma o mestre de ofício em capitalista- proprietário dos meios de produção e do fruto do trabalho realizado na manufatura. A burguesia chama a si a propriedade sobre o seu próprio trabalho e daqueles que nele se engajam gerando e ampliando o capital. A forma de organização do trabalho na manufatura possui a peculiaridade de gerar valor, já que o tempo excedente à manutenção e reprodução da força de trabalho, ou seja, a mais- valia, é apropriado pelo capital. É neste processo que se assenta a fonte de acumulação do capital a partir da qual, de um lado, a burguesia amplia a jornada de trabalho, ou a intensifica, para obter mais tempo excedente e, portanto, mais capital, e, de outro lado, a força de trabalho tem o seu valor oscilante segundo os meios necessários à sua existência e a luta política entre trabalhadores e capitalistas. ! "Como qualquer outra mercadoria, a força de trabalho tem um valor, e como qualquer outra mercadoria, seu valor está determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção; em outras palavras, o valor dos meios de vida necessários para sua subsistência e reprodução do trabalhador" (Cortazzo, 1984:10). ! A força de trabalho, diferentemente de outras mercadorias, requer o consumo de meios de vida (alimentação, moradia etc.) que são mutáveis assim como o modo de elas serem atendidas. Além disso, as próprias necessidades da força de trabalho transformam-se segundo o momento histórico e a situação espacial (meio físico, cultural etc.). Com isto, o valor da força de trabalho tampouco é estável e existente a priori, no que concerne aos meios de vida por ela consumidos, assim como às relações de classe presentes na sociedade. A partir do processo produtivo, não só estão definidas as relações quanto à propriedade, mas também as relações sociais de produção. ! "El resultado general a que llegué [...] puede resumirse así: en la producción social de su existencia, los hombres contraem determinadas relaciones necesarias y independientes de su voluntad, relaciones de producción que corresponden a una determinada fase de desarollo de sus fuerzas productivas materiales" (Marx, s.d.:69). ! Como nos afirma Marx, as relações de produção são determinadas pelo estágio das forças produtivas, por sua materialidade, que intrinsecamente inclui o grau de consciência e representação dos homens a respeito delas. O seu desenvolvimento é, então, impulsionado pela necessidade de ultrapassar as condições materiais objetivas e contraditórias presentes na sociedade de classes. O desenvolvimento das forças produtivas é impulsionado, então, pela necessidade de ultrapassar as condições materiais objetivas existentes na sociedade de classes. As condições de existência de cada classe social materializam-se não somente por sua respectiva capacidade de consumo de bens materiais, cujas necessidades são intrínsecas à sua práxis social, mas também pelas relações sociais (dominação/submissão/ igualitárias) estabelecidas nas várias instâncias da superestrutura. O conjunto de relações de produção condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral — "as relações de produção determinam todas as outras relações que existem entre os homens na sua vida social" (Plekanov, 1980:33 — grifo do autor). A base econômica que cimenta este homem, ao mesmo tempo raiz e fruto de sua produção material, determina a sua existência social, política e intelectual. Essa existência se manifesta na superestrutura da sociedade. ! A superestrutura da sociedade A existência social dos homens realiza-se em determinado bloco histórico, ou seja, na relação orgânica entre a base econômica que os cimenta e as superestruturas da sociedade. A direção cultural (hegemonia) e a coerção são garantidas através dos aparelhos culturais, políticos e econômicos que coesionam os interesses contraditórios de capitalistas, operários e camponeses. ! "A estrutura e a superestrutura formam um 'bloco histórico', isto é, o conjunto complexo — contraditório e discordante — das superestruturas é o reflexo conjunto das relações sociais de produção" (Gramsci, 1981:52). ! Os interesses antagônicos de classe perpassam as superestruturas e nos Estados mais desenvolvidos estão presen- tes em duas instâncias do Estado. Gramsci, pensador italiano do século XX, ampliou a teoria marxista do Estado ao distinguir as duas instâncias: a sociedade política e a sociedade civil. A primeira delas — a sociedade política, classicamente conhecida como Estado ou governo — é o aparelho de poder que se mantém pela coerção (síntese da repressão com a violência), por intermédio das forças armadas, polícia, administração, tribunais, burocracia (cf. Buci-Gluckmann, 1980:126). A segunda instância — a sociedade civil — é constituída pelos aparelhos "privados" de hegemonia (o consenso obtido pela persuasão) como sindicatos, Igreja, escola, família, através dos quais a direção intelectual e moral da classe dominante obtém o consentimento e a adesão das classes subalternas. Algumasorganizações do Estado tanto podem ser ligadas à sociedade civil ou política como, por exemplo, o sistema escolar, ou, ainda, podem ser ligadas a ambas como é o caso do parlamento. ! "[..,] neste sentido, poder-se-ia dizer que o Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia revestida de coerção" (Gramsci, 1980:149). ! A hegemonia enquanto direção política é mantida na sociedade civil a partir da ideologia do grupo dirigente. A ideologia , 4 apesar de hegemônica, não é assimilada em sua totalidade A ideologia é a concepção de mundo que liga o corpo social (cf. Gramsci) ou, ainda, 4 segundo Saviani (1980:28), é a estrutura organizada de princípios, objetivos e ações orientados ao final de um processo reflexivo. pelos demais grupos sociais, que, de fato, a partir das relações e de sua práxis social, estruturam também suas concepções de mundo. A consciência dos homens advém da função, justaposição e contraposição das várias concepções de mundo: das anteriormente dominantes, da atual e da que está sendo forjada com vistas à constituição de um novo bloco histórico. Agora, como nos delimita Marx: ! "Não é a consciência do homem que determina o seu ser mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência" (Marx & Engels, v. I, s.d.:301). ! Ou seja, são as condições objetivas, materiais, que constituem a consciência dos homens de uma coletividade e não supostamente o seu inverso, a consciência que determina o seu ser, a existência. A ideologia dominante vem cimentar a consciência e a práxis social da coletividade buscando encobrir as contradições da estrutura social ou apresentá-las como naturais, abstratas, anistóricas. Assim ocorre com as representações acerca do trabalho, tema central para a presente investigação. !!! As representações acerca do trabalho Na sociedade capitalista, onde o trabalho da classe dominante é gerir a produção, atividade abstraída do ato de produzir, do contato direto na transformação material, a ideologia burguesa, de um lado, supervaloriza a atividade do capitalista, caracterizando-a como "trabalho intelectual" e, de outro, desqualifica o trabalho operário, daquele que mantém contato direto com o material, caracterizando-o como "trabalho manual". É claro que, em ambos os trabalhos, o do capitalista e o do operário, tanto a habilidade motora quanto a capacidade mental estão sendo empregadas em sua execução; no entanto, o que se passa na consciência dos homens na sociedade capitalista é que a hegemonia burguesa na sociedade civil divulga maciçamente sua representação social quanto ao trabalho burguês e operário, a ser assimilada ao conjunto de outras representações e concepções de mundo vigente — do TRIPALIUM, já mencionado anteriormente, ao trabalho criativo, não alienado. Agora, se a ideologia burguesa consegue, de um lado, encobrir a interdependência e os antagonismos das classes sociais, não consegue, de outro, mascarar as contraditórias condições de existência das classes. Ora, se os bens materiais e culturais são produzidos a partir do trabalho e não estão ao alcance de quem os realiza, da classe trabalhadora em particular, essa contradição fundamental é que move as relações e o modo de produção capitalista. !!! O caráter alienado do trabalho e suas contradições Outra das contradições produzidas no desenvolvimento das forças produtivas foi a alienação do homem em sua atividade prática. As relações de produção desiguais e a apropriação por uma classe de produtos do trabalho social têm provocado a separação entre as aquisições do desenvolvimento histórico daqueles que criam este desenvolvimento. ! "Esta separação", afirma Leontiev (1978:275), "toma antes de mais nada uma forma prática, a alienação econômica dos meios e produtos do trabalho em face dos produtores directos. [...] Ela é, portanto, engendrada pela acção das leis objectivas do desenvolvimento da sociedade que não dependem da consciência ou da vontade dos homens" (grifos do autor). ! Do processo de produção realizado nas corporações de ofícios medievais à manufatura, e desta à grande indústria, o trabalho foi sendo paulatinamente parcelado, simplificado, substituído por instrumentos de produção, pela maquinaria, de maneira que foi possibilitado o aumento da produtividade, o atendimento de necessidades sociais novas e a extração de mais-valia da força de trabalho. No entanto: ! "A separação do trabalhador das condições objetivas da produção, ou seja, da terra, do conjunto dos meios de produção e dos meios de subsistência, gera a abstração do caráter humano da produção, coisificando o trabalhador. A sujeição física e mental do operário ao capital se efetiva através das condições de trabalho que a ele são imputadas" (Ferreira, 1983:29). ! A abstração do caráter humano da produção, o seu parcelamento, tem gerado a alienação do homem em sua ativi- dade produtiva, negando o elemento subjetivo do trabalho, coisificando o homem. A racionalização do processo de pro- dução advém da divisão do trabalho em condições de concor- rência cujo "[...] resultado é a difusão da maquinaria industrial e a mecanização do trabalho humano" (Lukács, 1981:129). Essa lógica do capital vai permeando as representações e atividades realizadas na superestrutura. Desta forma, encontramos a atividade material e intelectual, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo cada vez mais separados e pertencentes a diferentes homens. De um lado, a concentração de riquezas na classe dominante, acrescida da concentração da cultura intelectual e, de outro lado, a massa da população com acesso ao mínimo de desenvolvimento cultural necessário à produção de riquezas materiais, no limiar das funções que lhe foram socialmente atribuídas. A alienação concretiza-se para a maioria dos homens, não é "privilégio" de uma classe social ou de outra, de uma categoria profissional ou de outra, tampouco é específica ao trabalho, estando igualmente presente no não-trabalho, no tempo livre, no qual a indústria cultural participa da veiculação de padrões de consumo de mercadorias e concepções necessárias ao amálgama das classes como um todo social harmônico. Resulta que as necessidades não satisfeitas no espaço e tempo de trabalho desenvolvem tensões nos indivíduos que o dirigem à realização de atividades "compensatórias" no seu tempo livre. O trabalho realizado no tempo livre, ou o não-trabalho como também é chamado, não assume necessariamente a condição de alienação, ao mesmo tempo que é fortemente determinado pela alienação do processo produtivo . A luta social pela redução da 5 jornada de trabalho, de liberação do trabalhador das condições alienadas de produção e, conseqüentemente, de maiores condições de usufruir o progresso socialmente produzido torna- s e , mu i t a s ve z e s , " a ú n i c a f o rma p o s s í ve l d e resistência" (Nosella, op. cit.:16). A alienação do homem em suas atividades irá repercutir fundamentalmente nas práticas sociais que se utilizam da atividade humana, tanto no espaço educacional quanto no espaço terapêutico, como ocorre com a terapia ocupacional. Ora, se o tempo livre do homem for objetivado em atividades práxicas, criadoras e não se transformar em atividades "compensatórias" à divisão social de produção poderá remeter 6 o seu realizador à questão essencial: por que o trabalho produtivo tem de ser parcelar, numa estrutura autoritária, vertical, à base da disciplina e coação? Não será possível ao homem objetivar-se, ultrapassando os limites e contradições atuais destas relações de produção, deste modo de produção? A alienação, para ser superada, depende da superação das dicotomias entre teoria e prática, entre a propriedade dos meios Sobre a alienação no trabalho e no lazer ler Georges Friedman. O trabalho em 5 migalhas.São Paulo, 1972:155-229; István Mészáros, Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro, Zahar, 1981:87-133 e Harry Braverman. Trabalho e capital monopolista. 1981:15-69. 6 O sistema de produção contemporâneo, da divisão do trabalho no monopólio, pode ser aprofundado em Braverman (op. cit.:359-379). e produtos do trabalho de seus realizadores, entre o domínio técnico-científico do processo de trabalho e o corpo coletivo que o realiza. A alienação somente será totalmente superada através do controle do trabalho sobre a produção, num novo modo de produção: ! "Assim, um autêntico controle pelo trabalhador tem como seu requisito a desmistificação da tecnologia e a reorganização do modo de produção" (Braverman, 1981:376). ! A participação dos trabalhadores, através da autogestão, no ponto de vista acima, significa ainda pouco em relação a uma verdadeira democracia dos trabalhadores na fábrica. No entanto, ao se inserirem no poder participativo , os 7 trabalhadores vão dimensionar ainda mais a necessidade do domínio técnico como instrumento de luta na superação da alienação do trabalho produtivo e, portanto, no rumo da desalienação da sociedade como um todo. Assim, a divisão do trabalho poderá vir a ser superada pelo desenvolvimento das forças produtivas, com a automação absorvendo a especialização das atividades alienadas antes realizadas pelo homem, numa condição nova, a de liberação do homem no trabalho parcelar numa estrutura de poder igualitária, num novo modo de produção, o comunismo. ! "Portanto, se o 'ethos' da era conhecida e antevista por Smith [Adam — autor de A Riqueza das Nações] estabelecia corretamente as virtudes da especialização, da divisão, devemos, na era que se aproxima, reservar um lugar igualmente consagrado para as Sobre o tema ler Dominique Pignon e Jean Querzola, "Democracia e autoritarismo na 7 produção", in: Stephen Marglin et alii. Divisão social do trabalho, ciência, técnica e modo de produção capitalista, 1974. E sobre a crítica à visão romântica dos "grupos semi-autônomos" ler Benedito R. •de Moraes Neto e Felipe L. G. da Silva. "A linha de montagem no final do século". Revista de Administração de Empresas, 26(4): 45-6, out./ dez., 1986. vantagens da amplitude, da síntese" (Weiss, 1976:15 — grifos do autor). ! Ao mesmo tempo que o desenvolvimento das forças produtivas irá emancipar o homem do trabalho alienado parcelar, a coerção existente, no bojo do processo produtivo, será também ultrapassada. A tecnologia produzida historicamente, a compreensão científica e tecnológica da cultura moderna, torna possível a liberdade ao homem sem os riscos de uma recaída histórica a níveis mais baixos de produtividade (cf. Weiss, 1976:12). A liberdade da escolha da atividade a ser realizada pelo homem, a oportunidade de ampliar suas atividades produtivas não impedirão a necessidade de também as pessoas contribuírem de maneira ordenada à comunidade. O trabalho coletivizado, o domínio do processo de funcionamento de todo o complexo técnico-social, a abrangência do entendimento e a criatividade são os desafios colocados ao novo modo social de produção da sociedade, o comunismo. Se, de um lado, é fundamental a transformação da base econômica para revolucionar a organização social, de outro, anterior e simultâneo a este período, uma nova concepção de homem e sociedade se tornará hegemônica nesta formação social. A "crise de hegemonia", na concepção de Gramsci, ocorre quando um determinado grupo social, ainda não dominante, consegue atingir um consenso entre os demais grupos, coesionando o corpo social e dando-lhes a direção política e cultural. Essa situação somente ocorre no período de agudização das contradições, quando a classe dominante lança mão da força para assegurar o poder e evitar que um determinado grupo consciente desse processo instaure um novo bloco histórico, uma nova estrutura orgânica entre a base econômica e a superestrutura. O grupo social que conquistar a adesão de outros segmentos sociais pode obter a hegemonia anterior à conquista do aparelho governamental. A crise de hegemonia emerge quando a ideologia da classe dominante não consegue coesionar a "opinião pública" e se manter sólida entre as organizações que compõem a sociedade civil e política em contraposição à ideologia e ação da classe ascendente, que passa a assumir a direção política. A solidez da hegemonia da classe dominante depende do desenvolvimento de ambas as instâncias da sociedade e de sua íntima vinculação. Em formações sociais cuja sociedade civil é umbilicalmente ligada e dependente da sociedade política, a luta de classes volta-se para a conquista e conservação do Estado no sentido clássico (cf. Coutinho, 1985:65), ou seja, a classe dominante se mantém no poder através de governos autoritários e centralizados e a luta de classes se volta diretamente para a conquista do aparato governamental e não das "frágeis" instituições da sociedade civil. Em formações sociais do tipo ocidental, onde há o equilíbrio entre a sociedade civil e a política, a luta de classes se trava nas e pelas instituições hegemônicas do Estado: ! "[...] numa conquista progressiva — ou processual — de espaços no seio e através da sociedade civil" (Ibid: 65 — grifo do autor). ! No processo de conquista de espaços na sociedade civil, na obtenção do consenso e na luta pela hegemonia nas organizações estatais, sindicais, nos conselhos de fábrica, nas organizações e nos movimentos populares é função do Partido , 8 no sentido mais amplo de direção de classe, incentivar e Ao definir a função do Partido e o seu processo de transformação Gramsci declara: "O 8 Partido representa não só as massas mas também urna doutrina, a doutrina do socialismo, e por isso luta para unificar a vontade das massas no sentido do socialismo, embora actuando no terreno real do que existe, mas que existe movendo-se e desenvolvendo-se" (1978:50 — grifo do autor). direcionar essas lutas com vistas à obtenção do espaço gover- namental para o exercício do poder vinculado a uma trans- formação radical da base econômica. A luta pela hegemonia não é exclusividade do espaço partidário , sendo também dependente da conquista da direção 9 nas organizações privadas do Estado. A direção política de um grupo social realiza-se através do intelectual orgânico que catalisa o desvelamento da ideologia dominante e de suas representações e gera ações eficazes sobre os principais con- flitos deste grupo social. ! "Nesse sentido é que a tarefa do intelectual é decisiva já que cabe a ele assumir a direção orgânica do grupo no qual atua" (Oliveira, 1980:41). ! O papel do intelectual orgânico em seu grupo social, conforme a concepção gramsciana, é fundamental no direcionamento, organização e síntese das necessidades e contradições internas ao seu agrupamento. Ao se estudar um problema da realidade social não basta identificar as suas contradições internas, tem-se também que 10 estabelecer a sua interdependência. Ao se dimensionar as forças contrárias a um dado problema, é possível estabelecer modos de intervenção globalizantes, totalizadores, que atendam às demandas internas a esse fenômeno. ! A SAÚDE NA SOCIEDADE DE CLASSES Nessa perspectiva, Gruppi argumenta: "Nunca Gramsci pensou que a classe operária 9 pudesse conquistar o poder só com o partido; ela deve ter outras ligações, outras organizações, deve estar presente nas instituições estatais além de nas de massas" (1980:86.) O termo contradição é aqui empregado no sentido dialético de elementos internos, 10 inerentes aos fenômenos e que apesar da polaridade são complementares, não podendo ser negados na análise dos fenômenos. A análise até aqui realizada da concepção de homem, estrutura social e trabalho permite agora enfocar uma questão específica,a saúde humana, a ser organicamente dimensionada no interior da sociedade capitalista. A espécie humana, que se organiza e desenvolve a partir do trabalho, transforma a necessidade de saúde e o modo de ela ser satisfeita segundo a sua estrutura econômica e o momento histórico desta sociedade. Então, faz-se necessário entender as contradições inerentes ao atendimento da necessidade de saúde no modo de produção capitalista. A saúde é uma necessidade humana que historicamente tem se transformado tanto ao nível conceituai, ou seja, das representações que se formam sobre o que é saúde, quanto nas formas como ela é administrada e legitimada socialmente. Por exemplo, o conjunto de necessidades denominadas doenças inicialmente relacionava o instinto e a sensibilidade do próprio indivíduo que sofre, antes mesmo de expandir-se a uma rede de relações sociais. ! "As experiências advindas destas relações", relata-nos Arouca (1978:133), "eram comunicadas às outras pessoas, de pais a filhos, constituindo quase uma experiência coletiva diante do sofrimento." ! A divisão do trabalho não atingia ainda o nível de especializar e circunscrever o saber sobre a saúde numa única prática social. Foucault, em seu livro O Nascimento da Clínica, a partir de uma perspectiva arqueológica, analisa o processo de concentração do saber clínico que constituiu a Medicina. Na Antiguidade, durante o período da propriedade tribal, quando a divisão do trabalho era pouco desenvolvida e se limitava à divisão entre os membros da família, os chefes, patriarcas da tribo, realizavam todos os cultos e tinham poderes totais sobre os membros da família. A explicação dos fenômenos era mística e as medidas clínicas adotadas contra a doença ocorriam nos rituais religiosos. É somente após a organização das tribos, fratrias e cúrias nas cidades, quando a divisão social do trabalho se desenvolve e uma nova ordem social se estrutura, com novos valores e necessidades, que o saber clínico veio a ser desmistificado, transformando-se numa atividade leiga, um trabalho prático, experimental. Nesta etapa a dissecação e as cirurgias se tornam medidas incorporadas à prática clínica. Zilboorg, na História da Psicologia Médica (1968:34), comenta esta mudança no espírito grego. ! "O espírito não permaneceu atado muito tempo a sua própria mitologia [...]. A princípio do século VI a.C., o espírito grego se voltou para as observações e até um certo grau de experimentação." ! Assim, no campo da saúde, a experiência do sofrimento requer agora a intervenção de um indivíduo cujos conhecimentos possam cuidar deste sofrer. A especialização em uma determinada prática social, a Medicina, cria também novas formas de formação e transmissão desse saber, inicialmente não institucionais, mas vinculadas aos praticantes dessa modalidade de trabalho. A concentração desse saber provocou, em contrapartida, o desconhecimento da comunidade como um todo de medidas próprias para o combate às doenças, que ao ser assistida recebe o cuidado em si e não o conhecimento sobre o processo saúde/doença/cuidados de saúde. Nessa perspectiva, Arouca, no artigo "O trabalho médico, a produção cap i ta l i s t a e a v iab i l idade do mode lo preventista" (1978), expõe que: ! "[...] médicos e pacientes encontram-se em relação de troca em que um é portador de necessidades e o outro de conhecimentos. Mas o que o primeiro recebe não é o conhecimento e sim o cuidado, forma instrumental deste conhecimento monopolizado" (p. 133, grifos nossos). ! Historicamente, esta relação de troca entre o especialista e o indivíduo portador de necessidade foi se substantivando numa atividade econômica determinada, a medicina, corroborando a divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, entre as aquisições do desenvolvimento técnico-científico da sociedade e o afastamento das camadas populares desta produção. Na sociedade capitalista, onde a força de trabalho tornou- se a única propriedade do trabalhador, a saúde, por seu turno, se transforma numa qualidade da força de trabalho que lhe possibilita maior produtividade e o próprio consumo no processo de extração da mais-valia. Como nos declara Arouca (1978:143): ! " [ . . . ] a saúde, como valor biológico, pode ser considerada como um atributo da força de trabalho para que ela melhor possa ser consumida no processo produtivo. Porém, paradoxalmente, a força de trabalho como mercadoria incorpora para sua manutenção um 'quantum' de trabalho, cujo efeito não é aumentar o seu valor, mas sim possibilitar o aumento da sua exploração"(grifos nossos). ! A ausência temporária ou não do atributo saúde penitencia duplamente o trabalhador: de um lado, pelo sofrimento decorrente do processo patológico e, de outro, pela privação econômica resultante do não consumo de sua força de trabalho. No processo capitalista de produção, o cuidado de saúde se transforma de necessidade em meio de vida, similar à moradia e alimentação; e, como meio de vida, cumpre a função de garantir a subsistência e reprodução da força de trabalho. A medida que avança a acumulação do capital, torna-se mais complexa a sua composição técnica, devido à centralização e transformação tecnológica originada pelo próprio trabalho. Este processo traz conseqüências diretas para o presente estudo, podendo ser sintetizadas em: 1º) A revolução técnico-científica da produção incide diretamente sobre as condições de saúde do trabalhador. 2º) A mudança da composição técnica do capital provoca a diminuição crescente (em relação ao capital total) da demanda de trabalho, ampliando o exército de reserva e as massas marginais. 3º) A expansão do capital para o setor terciário introduz a divisão técnica na área de saúde. ! 1º) A revolução técnico-científica e a saúde A interferência da revolução técnico-científica na produção sobre a saúde do trabalhador se processa através da racionalização do trabalho com a crescente simplificação, parcelamento e coisificação das atividades para a maioria dos trabalhadores da produção e do escritório e através da gerência, no planejamento e abstração de atividades para um certo grupo de empregados. A racionalização do sistema produtivo promove: a aceleração da produção; a determinação do ritmo de trabalho pelo tempo da máquina ou da linha de montagem; a transformação dos elementos subjetivos em fator humano (mensurável e previsto tecnicamente); a realização do trabalho em condições adversas do meio físico; a alienação do homem em sua atividade produtiva. A contrapartida ao sistema produtivo assim estruturado se manifesta a nível individual por meio de: absenteísmo e "turn- over", ainda como expressões individuais de "resistência" ao desconforto do trabalho; acidentes de trabalho; doenças ocupacionais (silicose, asbestose e outras); doenças incapacitantes, cuja ordem de incidência junto à Previdência Social em 1975 (Cf. DIESAT, 1984:6) são as neuroses, hipertensão arterial, osteoartrose, epilepsia e tuberculose. Essas manifestações, mesmo quando interferindo na produtividade (por exemplo, o absenteísmo), ou ainda que asso- ciadas, direta ou indiretamente, às condições e ambientes de trabalho, não produzem modificações no processo de trabalho, que historicamente se consolida como forma irreversível da produção. De outro lado, a legislação previdenciária, que pode absorver itens relativos a segurança e higiene no trabalho, somente se transforma nos momentos de intensa mobilização social. A forma de o capital lidar com a força de trabalho já era explicitada por Marx, ao final do século passado, em O Capital, Livro I, Vol. I: ! "A produção capitalista, que essencialmente é produção de mais-valia, absorção de trabalho excedente, ao prolongar o dia de trabalho, não causa apenas a atrofia da força humanade trabalho, à qual rouba suas condições normais, morais e físicas de atividade e de desenvolvimento. Ela ocasiona o esgotamento prematuro e a morte da própria força de trabalho. Aumenta o tempo de duração do trabalhador num período determinado, encurtando a duração da sua vida" (1982:301). ! As manifestações da intensidade da exploração da força de trabalho evidenciam-se pelos índices de mortalidade e morbidade assim como pela taxa de criminalidade, retratando a "racionalidade" do sistema produtivo. O antagonismo de interesses das classes sociais, face ao poderio político-econômico da burguesia, tem provocado, de outro lado, a resistência e organização dos trabalhadores. As bandeiras de luta do movimento sindical, segundo o grau de consciência de classe do conjunto dos assalariados, avançam dos estritamente econômicos (aumento salarial, índice de produtividade, descanso semanal remunerado) para os de cunho político mais acentuado (redução da jornada de trabalho, proteção ao trabalho do menor, condições de segurança contra acidentes e insalubridade, co-gestão). Nesse contexto se estabelece uma forma específica de medicina, intimamente ligada à indústria, seja ela assalariada pela própria indústria ou por uma empresa de prestação de serviços médicos. As atribuições desta prática médica se estendem desde seleção de mão-de-obra saudável a ser contratada, o controle do absenteísmo pela constatação ou não de ocorrência de doenças/ acidentes que impeçam a realização do trabalho, o diagnóstico, a possível medicação até o desligamento do trabalhador de acordo com um quadro "nosológico" (de uma gravidez, às doenças ocupacionais, crônicas e incapacitantes). Os casos mais complexos, que requeiram longo tratamento, são geralmente encaminhados à Previdência Social. A lógica desse sistema pauta-se na recuperação do trabalhador na quantidade necessária que garanta a produtividade e a extração do trabalho excedente. ! "Não se trata de uma garantia de condições gerais de saúde ao trabalhador, segundo um conceito ideal de saúde e sim de mantê-lo em condições mínimas de saúde para a produção, reduzindo o impacto do desgaste na produção sobre o organismo" (Possas, 1981:XXVI — grifos da autora). ! Os cuidados médicos destinados ao nível "necessário" de saúde aos trabalhadores da empresa, ao serem incorporados à estrutura produtiva, como um novo elemento na revolução técnico-científica, favorecem a assimilação da força de trabalho pelo capital e, paradoxalmente, o atributo de saúde "necessário" aos trabalhadores exclui da produção parcelas da força de trabalho caracterizadas como inaptas ao ingresso ou à permanência no sistema produtivo. Os assalariados não incluídos no atendimento de empresas médicas conveniadas ou pelo médico assalariado da própria indústria são atendidos pela rede previdenciária de assistência à saúde. O trabalho médico realizado na rede previdenciária, ao atender a força de trabalho e o exército de reserva, cumpre a mesma função do médico assalariado da indústria ou empresa de saúde, ou seja, de recuperar, manter e reproduzir a força de trabalho. ! "Assim, selecionando, mantendo e recuperando a força de trabalho, aumentando a sua produtividade, diminuindo os riscos a que ela está submetida, a Medicina participa da organização do processo produtivo, diminuindo o tempo de t r aba lho nece s sá r io e aumentando a ma i s - va l i a produzida" (Arouca, 1978:143). ! O trabalho do médico e das demais profissões de saúde, ao se realizar nos serviços beneficentes, centros ou postos de saúde, que atendem ao exército de reserva e às populações marginais, está ligado à superestrutura, cumprindo um papel político- ideológico significativo, ao disciplinar e controlar a população excedente do capital. ! 2º) A revolução técnico-científica e a população excedente Na fase monopolista, o aumento da concentração do capital permite, através da racionalização, mecanização e automação, a revolução técnico-científica na indústria, na incessante busca do aumento de produtividade. Essas medidas provocam a redução na taxa de absorção da força de trabalho, proporcionalmente ao volume de capital acumulado. Ou seja, a revolução técnico-científica, introduzida na indústria ao final do século passado, diminuiu a força de trabalho contratada por ela própria. Este fato, às vezes, é encoberto com a expansão da produção de seus bens ao mercado consumidor, que resulta no aumento global do número de assalariados, mas a uma proporcionalidade reduzida. O processo de liberação contínua da força de trabalho reduz o número de trabalhadores realmente produtivos, amplia o número de trabalhadores do exército de reserva, aumenta a utilização do trabalhador em empregos ociosos ou nenhum emprego. Braverman (1981:204-5), ao analisar os dados do censo do Departamento de Estatística do Trabalho dos Estados Unidos, verificou que do universo de trabalhadores não agrícolas no período de 1920 a 1970 houve uma redução na porcentagem de trabalhadores contratados pelas indústrias fabris, de construção e outras "fabricantes de bens". Em relação ao número total de trabalhadores não agrícolas, a porcentagem de trabalhadores contratados era de 46,6% em 1920, passando a 33,0% em 1970. De fato, considerando-se a fonte idônea, pode-se constatar uma redução no índice de assimilação de trabalhadores na indústria, apesar do aumento absoluto da população trabalhadora ocupada na fabricação de bens. A outra face do deslocamento da população está ligada ao aumento absoluto e relativo do setor terciário. O excedente de trabalhadores liberados da indústria vai ser absorvido em novas ocupações, transformando-se a estrutura ocupacional da classe trabalhadora. Muitas destas ocupações vão surgir no setor terciário, responsável pela assimilação de parcelas cada vez maiores da força de trabalho. O setor terciário, funcionando a uma taxa de exploração maior que a da indústria, também introduz em determinados setores a racionalização do trabalho, liberando novo contingente de trabalhadores. Parte desse contingente liberado, amplamente não sindicalizada e retirada da reserva de pauperizados da sociedade, é assimilada por novos setores de baixa remuneração, que são menos suscetíveis à mudança tecnológica e requerem pequeno capital inicial. A intensidade da exploração e opressão nestes setores é imensamente maior que nos setores mecanizados da produção. Outra parcela desse contingente de trabalhadores vai ampliar o exército de reserva ou população excedente relativa na sua forma flutuante e na forma estagnada. 11 A primeira delas, a forma flutuante, é constituída pelos trabalhadores que vão de função a função e segundo os movimentos da tecnologia e do capital, sendo contratados é depois descontratados. O desemprego entremeia esses períodos de ascenso e refluxo do setor industrial e de serviços. Nos países onde se estabeleceu o seguro-desemprego ele funciona como um salário reduzido, a partir das contribuições cobradas durante os períodos de emprego. ! "[...] o sistema de seguro-desemprego [...]; é em parte uma garantia contra o desemprego prolongado, em parte o reconhecimento dos papéis desempenhados pelos trabalhadores, ora como parte dos empregados ora como parte das reservas do trabalho" (Braverman, 1981:327). ! A outra forma, a população excedente relativa estagnada, é empregada de maneira irregular, eventual, marginal e se mistura com outro sedimento da população que vive em condições de miséria — as populações marginais. A concentração do capital cria (e recria) uma massa de trabalhadores desempregada, o exército de reserva, que exerce pressão sobre o mercado de trabalho, puxando para baixo a massa de salários e desempenhando, por isso, um importante papel no processo de acumulação. “Todotrabalhador dela faz parte durante o tempo em que está desempregado ou parcialmente empregado" (Possas, 1981:48). Marx (1982, Livro I, V. 11:743-52) distinguiu três formas do exército de reserva, 11 incluindo, além das duas supramencionadas, a forma latente, que está fora do movimento de trabalho, e é aquela que se encontra nas zonas agrícolas, resultado da falta de movimentos de atração compensatórios à repulsão dos "liberados" pela revolução tecnológica agrícola. Ela não contém os contingentes liberados das cidades e zonas metropolitanas. Em outro trecho de seu livro Saúde e Trabalho, Cristina Possas amplia o conceito: ! "Assim, o trabalho excessivo da parte empregada da classe trabalhadora engrossa as fileiras de seu exército de reserva, enquanto inversamente a forte pressão que este exerce sobre aquela, através da concorrência, compele-a ao trabalho excessivo e a sujeitar-se às exigências do capital" (p. 54-5). Assim, percebe-se que a existência do exército de reserva não ocorre somente por necessidade de se manter baixa a massa de salários, mas também de sua sujeição às condições adversas de ritmo, insalubridade, jornada de trabalho, alienação, ou seja, da produtividade planejada para o setor. Outra parcela da população categorizada como "excedente" aos interesses do capital são as populações marginais, pauperizadas. A acumulação do capital e o progresso técnico criam e ampliam essa faixa da população que, por sua vez, está cronicamente afastada do sistema produtivo, cuja participação na economia somente ocorre em picos de aceleração do processo de acumulação. Nela estão os indivíduos alijados pela divisão do trabalho: os que ultrapassam a idade normal de um trabalhador, as vítimas da indústria, os deficientes, enfermos, viúvas etc. Marx inclui o pauperismo como categoria autônoma a ser analisada na superpopulação relativa: ! "Finalmente, o mais profundo sedimento da superpopulação relativa vegeta no inferno da indigência, do pauperismo. [...] O pauperismo constitui o asilo dos inválidos do exército ativo dos trabalhadores e o peso morto do exército industrial de reserva" (Marx, L. I, V. II, 1982:746-7). ! A "massa marginal", o pauperismo, é ampliada ainda mais nos países dependentes que, pela industrialização tardia, tendem a liberar mão-de-obra do campo e das formas de produção anteriores sem haver a expansão acentuada de empregos no mercado de trabalho. Elas vêm engrossar as massas humanas na periferia das cidades. A proletarização e pauperização de contingentes mais amplos da sociedade acarretam, por conseqüência, a elevação das taxas de morbidade (doenças) e a redução do tempo de vida médio da população. A miséria e a insegurança tornam-se permanentes no seio das nações capitalistas, extrapolando a capacidade das entidades filantrópicas privadas de controlá-las (cf. Braverman, op. cit.:244). O papel do Estado no capitalismo m onopolista é ampliado de modo a. interferir nas lacunas e contradições mais agudas da acumulação do capital, tornando-se complexo e requintado. Ele intervém no processo de concentração do capital de universalização d a economia através de medidas econômicas e políticas, trabalha com um orçamento absoluto e relativo ampliado e se efetiva pelos mecanismos repressivos e coercitivos, e pelos mecanismos político-ideológicos, que se concretizam, por meio de um discurso igualitário e universal, nas instituições escolares, de saúde, de comunicações e outros serviços. ! "E muitos desses 'serviços' como prisões, polícia e 'assistência social' expandem-se extraordinariamente devido à amargurada e antagonística vida social das cidades" (Braverman, 1981:245). ! Minimizando as precárias condições de vida da população, o Estado capitalista implanta serviços de saúde pública e atendimento de urgência visando à erradicação e controle das doenças de massa a partir das ações de saúde sobre os membros da comunidade. O caráter social da doença não é absorvido pelo Estado. Berlinguer (1980:41) explicita esta determinação: ! "A doença é um sofrimento individual, como sinal de um sofrimento coletivo, é assim como um sinal de alerta de que algo não vai bem com a coletividade. Se se cuida unicamente do sofrimento individual, ela vai se repetir em outros representantes da comunidade, pois a causa social não foi abolida." ! Ao contrário da perspectiva apontada por Berlinguer, de transcender o atendimento individual, dirigindo-se da célula às causas sociais que adoecem o tecido social, as ações de saúde implementadas pelo Estado capitalista objetivam manter viva a força de trabalho necessária ao capital, aliviar a insegurança social, conter as tensões nas populações marginais e encobrir os imensos contrastes na existência dos homens, por meio de um discurso igualitário e universal e uma ação atenuante e pontual. Assim, de um lado, preserva-se a hegemonia burguesa sobre a sociedade civil, com a criação de instituições públicas de saúde, a subvenção a instituições asilares filantrópicas e entidades privadas, enfim, desenvolve-se um conjunto de medidas que serão chamadas de políticas sociais; de outro lado, atende-se a reivindicações e anseios das massas populares quanto à melhoria em suas condições de vida expressas em movimentos organizados ou em manifestações espontâneas de descontentamento que, por vezes, são violentas. O governo brasileiro, ao formular suas políticas sociais, como veremos em maior profundidade no capítulo seguinte, contribui para a acumulação do capital, também a partir do e no próprio sistema por ele planejado. De forma indireta, controlando e mantendo a força de trabalho irá gerar mais- valia ao capitalista e, diretamente, através da inclusão das empresas privadas de saúde no sistema previdenciário. As medidas de saúde pública, de assistência curativa individualizada e de reabilitação de incapacitados e deficientes vão se articulando no Brasil de maneira paulatina e contraditória. Urbach (in Moraes, 1973:140) nos alerta: ! "Quanto maior o desenvo lv imento econômico , e conseqüentemente quanto maior a complexidade social, maior é a importância da estrutura médica como elemento sustentador do edifício social." ! 3º) A divisão técnica na área de saúde As determinações da base econômica não se dão apenas na forma de assimilação do cuidado de saúde ou das relações de poder institucionais, mas também na estratificação dos serviços e do acesso aos cuidados de saúde pelas distintas classes sociais. A estrutura de saúde, seja a diretamente mantida pelo Estado, seja a sustentada pelas empresas médicas ou por entidades filantrópicas, incorpora a revolução técnico-científica da produção. Ao racionalizar, especializar e tecnicizar as práticas de saúde introduz novas modalidades ocupacionais: de um lado, os enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, e, de outra parte, os auxiliares, técnicos, atendentes de enfermagem, psicologia, terapia ocupacional, fisioterapia etc. Assim, o trabalhador individual é transformado em força socialmente combinada, em processo de trabalho coletivo. O espaço institucional torna-se mais hierarquizado ainda numa estrutura ocupacional que vai do atendente ao administrador, numa multiplicidade de instituições como os centros de saúde, ambulatórios, hospitais, centros de reabilitação, asilos etc. A hierarquia, em alguns setores, permanece confusa e descontrolada, pela transformação de profissionais liberais em assalariados e pelas disputas interdisciplinares quanto à supremacia médica e às áreas de fronteira . A medicina, 12 entretanto, ainda é a prática hegemônica na área de saúde, cuja autoridade lhe foi conferida historicamente. Sobre a expansão de catorze profissões da área de saúde, a legislação específica e as 12 áreas de conflito, ver Mary Jane
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