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SCHWARZ, Roberto. Um romance de Chico Buarque in Sequências brasileiras

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UM ROMANCE DE CHICO BUARQUE
tJtoryo é um livro brilhante, escrito com engenho e mão leve. Empoucas liúas o leitor sabe que está diante da lóúca de u_u fo._u- a
naÍâüva corre em ritmo acelerâdo, na primeira pessoa e no presente: aação que presenciamos consiste nta, raz, vê e.imasin". A rinsuus",i: l"ïï"" ïi,ïffi'":ffi:j:"J:::ï:,
tratade ser despretensiosa _ palavras de um homem quafqu". _,'aì.
arnda asslm abeÍa para o lado menos imediato das coiìas. Acombina_
ção funciona muito e produz uma poesia especial, que é u; ;;;;.Chico Buarque. A expressão simples faz pú. O".ituuço"rrnul..iil. 
"complexas do que ela.
_ . 
O romance começa com o narrador semidormido diante do olho
mágico de um quarto-e_sala. A cara do outro lado da poÍa, ;;.;;;
cida nem desconhecida, o decide a tomar a fuga que irá movimentar oentrecho. Havia razão? Não havia? Alucinaçães e reatiAaOe receUen,tratamento literifuio igual, e têm o mesmo grau de evidência. Como aforça motivadora das primeiras é maior, o 
"ii.u 
," to-u ooiri"o 
"ìuiulizado: o futuro pode dar mais errado ai"Ou. eint"rp"n"t uça;";*;dade e imaginações, que requer boa técnica, torna os fa;. po.o;;;.Esta caraé feita de outras caras, a barbu 
"u "ont "ço 
a. out o q;ü;presente é composto de outros momentos. Orelatosecoe factui aoou"
está aí, bem como do que não está, ou da ausência na presed.;;;;
transmutação da ficção de consumo em li reratura exilente (uqu.iu qu.busca estar à altura da complexidaoe oa vroa.y.
As necessidades da fuga, com suas pressas e seus vagares, filtram
o sentimento da cidade. O Rio existe ìortemente no l;";", 
_;.;;
maneira Íntima, de relance, sem nada de cartão_postâI. Nu, 
""rurlni_
178 179
ciais háo que se poderia chamar de emoçãodatopografiae dos contras-
tcs: o narrador desce às carreiras a escada de serviço, dobra a esquina
que há um momento observara do sexto andar, corre pelo túnel na con-
tramão, emerge aliviado noutro bâirro, onde respiÍa outros ares' e
começa a subida da encosta em direção ao verde e às mansões de blin-
dex, de onde vê o oceano. O leitor conffa na imaginação a poesiadessa
seqüência.
Dependendo clo ponto de vista, o narrador é umjoão-ninguém ou
umfilho-famíliadesgarrado' O primeiro mora num quarto-e-sala, anda
de jeans, camiseta branca e tênis, bebe água na pia de mictórios fedi-
dos, e arrasta a sua mala pelas calçadas. Mas sabemos também que o
seu falecido pai tinha naturalidade para gritar com empregados; que a
mãe fica quieta quando atende o telefone, porque acha impróprio uma
senhora dizer alô; que a irmã, casada com um milionário, mora na man-
são de blindex; que o belo sítio da famflia virou plantação de maconha
e refúgio de bandidos.
Pode-se dizer também que se trata de um filho-famflia vivendo
como joão-ninguém a caminho da marginalidade. Quais os conflitos
embutidos nessa composição? Note-se que a tônica do romance não
está no antagonismo, mas na fluidez e na dissolução das fronteiÍas entre
as categorias sociais - estaríamos nos tornando uma sociedade sem
classes, sob o signo da delinqüência? -, o que não deixa de assinalar
um momento nacional. Ainda assim, não se entende o nivelamento sem
considerar as oposições que ele desmancha.
A fala em primeiro plano, muito simpática, é do homem qualçer'
cuja ética é uma estética, ou cuja birra das presunções sociais se tÍaduz'
no plano da expressão, pela exclusão de fricotes e afetações literá-rias'
Desse prisma, refinado a seu modo, e cuja data é o radicalismo estudan -
úl dos anos í), o luxo dos ricos não passade desafinação' Acasa de con-
creto e vidro está errada, os cavalheiros com caÍa de iate cìube também'
e a irmã muito produzida idem: "Eis minha irmã de peignoir, tomando
café da manhã numa mesa oval". Mas os tempos são outros, e a antrpa-
tia pelo dinheiro não impede o nâÍÍador de aproveitar uma visita paÍa
roubar asjóias que o levarão para o campo da marginiália Por seu lado
os ricos não lhe condenam o temperamento "de anista", como aliás não
antipatizam deveras com o mundo do crime. O assunto que excita o
cunhado é o estupro de que foi vítima a mulher, que entretanto flerta
com o delegado que se encarregou do caso' o qual se dá com os bandi-
dos, que podem seros do crime ou outros. Uma promiscuidade apocir
lípúca, à qual todos já parecem acostumados, e que pode ser ima ina.
ção do narrador, mas pode também não ser. Comà a geografia, a hlstr;
ria está neste livro só indiretamente, mas faz a sua força.
Numa grande cena de rua, com corre_corre, camúurões e rv, uma
baixinha com cara de índiaprocura impedir a prisão do filho, aos gritos
e com bons argumentos. O narrador sente que vai ficar a favor delal m as
logo vê que se enganou, pois a mulher pára de gritar quando percebc
que não está sendo filmada. O episódio, que o narrador preferia que não
úvesse acontecido, explica muita coisa, talvez marque umhorizãnteoe
época. O desejo de tomar o paíido dos pobres e de vê_los defender na
rua os seus direitos sobe de supetão, para se apagar em seguida. É como
um reflexo antigo, antediluviano, hoje uma reação no vazio, já que a
alegria do povo é apaÍecer na televisão. O desójo de umu.o.i"àud"
diferente e melhor parece ter ficado sem ponto àe apoio. Estaríamos
forçando a nota ao imaginar que a suspensão do júzã moral, a quase_
atoniacom que o narrador vai circulando entre as;ituações e 
", "ü...",sela a perplexidade de um veterano de 6g?
O outro local importante do livro é o velho sítio da famíia. Como
espaço da infância, da gente simples e da naturez4 pareceria um refú_gio, o remédio para os desajustamentos do narraAor. Ao chegar lá,
entretanto, este encontra um povo _ criançâs inclusive _ organizado
e_escravizado para a contravenção, siderado por videogames]motoci_
cletas, blusões e tintura para cabelos, além de preparado para negociar
com as autoridades. Ou seja, fechando o círculo, a mesma coisa ãue nu
mansão de blindex: no reservatório das vinudes anügas não há mais
água limpa.Assim, depois dos tempos em que apobrezãignorante seria
educada pela elite, e de outros tempos em que os malfeitos dos ricos
seriam sanados pela pureza popular, chegamos agora a um atoleiro deque ninguém quer saire em que todos se dão mal.
- 
Por um paradoxo profundamente modemo, a indefinição interior
dos caÌacteres tem como contrapaÍida uma visibilidade intensificada,
Gestos e movimentações têm a nitidez a que nos acostumam a históri:.
emquadrinhos, as gags de cinema, os episódios dew, bemcomo o so_
nho ou o pesadelo. Essa exatidão, muito notável, decorre em primeiro
lugar da felicidade literária e da observação segura do escritor, e tam_
bém da escola do romance policial. Mas há nela um outro aspecto, bempeÍturbador. E como se no momento ela não fosse apenas urna qualida_
180 181
de artística, mas uma aspiração real das coisas e das pessoas ao Ïrgun-
no 
"uia"ot", 
uo togotipó delas mesmas A irresistível atração da mídia
ensinâe ensaia afigura cornunicável' o comportamento que câbe nüma
fórmula simples, onde apalavrae acoisacoincidam E poresse laoo oe
.-üõuri.'i,,iti" que c;ico BuaÍque fixa as suas personag*: Á-Ï:
elesante sobe as escadas e gira o corpo' conforme o enslnamento oa
moãeto profissional; o marido desfere o saque bufando' como os 1eÌÌls-
,". .áÃi"o".t os marginais fazem roncar as suâs Ìnotos vermelhas'
Ãrnu l"ïu qo" 
"t". 
mÃrnos já viram em filme' e usam anéis enormes'
"u"ìr"t."* ""-. 
faróis. Ìrialandros, miìionários' empregados' ban-
ãiJo. 
",nututut-"nte, 
a polícia, todos participam do mundo.da ima-
g"ã, ona" Uiffturn acima de seus conflitos' que ficam relegados a um
ãstranho sursis. O acesso ao espetáculo dos circuitos e dos objetos
aoì"rno* pu.""" 
"ompensar 
de modo mâis do que suficiente a sua
substância hoÍenda.
---- 
Vi*tu no 
"oniunto' 
a linha da ação tem a força da simplilidade' aPe-
sar das alucinações. A fuga não vai a nenhuma paÍte' ou melhot o nar-
raao.-ncu uottaoOoaos mesmos lugares' São reincidências,sem Íim à
nistu, e-bora nao possam tamMm ser infinitas' pois a situação ry aqra-
"u " ""ao 
t-. N"t cenas finais o monstÍuoso toma conta' De olhar fixo
no qrotesco dos outros, que de fato é extremo' o naÌrador não nota a cros-
ta õe sujeira, hematomas, feridas e cacos dê vidro - sem menclonar a
"o"i#o 
*o*f - que acumulou e o deve estâr desfigurando' Essas
informações cabe aoleitor reunir, para visuaìizar a. personaeel l,t1 he
ìda, nao *"nos 
-ômala 
e acomoãada no intolerável que as faunas do
io*á ou ao tut-undo. A certa altura, numa de suas alucinações' incons-
.ì"ì,ãã".* 
"tp;"o, 
o narrador quer abraçar na rua um homem quejul-
sa reconhecer Èste não hesita em se defender com uma taca de cozlnna'
Ërãp"aì, 
" ""."0- 
pega o ônibus e segue viagem' pensando que tal-
ue, u 
-ae, 
um umigo, u i.aã ou u 
"*-tulherpossam 
lhe dar *um canto
oár"n* Jlát". r.,uãisposição absurda de continuarigualem circunstân-
ãias impossíueis é a fórte metáfora que Chico Buarque inventou para o
Brasil contemporâneo, cujo livro talvez tenha escúto'

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