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TEMPO INTEGRAL COMO POLÍTICA PÚBLICA EM EDUCAÇÃO: DILEMAS DA UNIVERSALIZAÇÃO E DA EDUCAÇÃO PRIORITÁRIA MARIA CELESTE REIS FERNANDES DE SOUZA EIXO: 1. EDUCAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS O artigo coloca em debate a universalização e a educação prioritária como políticas de educação no tempo integral. As reflexões são respaldadas por um estudo que investiga as relações que estudantes dos anos finais estabelecem com o saber e com a escola em tempo integral. O referencial teórico toma como referência as contribuições de Bernard Charlot sobre relação com o saber, em diálogo com estudos sobre ampliação da jornada escolar. O material de análise foi produzido por meio dos balanços de saber e entrevistas. Os resultados apontam o descompasso entre o tempo integral e os outros tempos de vida dos/das estudantes; a contradição entre o mais tempo na escola para quem não deseja mais escola; e o mais tempo para quem encontra dificuldades na escola e considera importante nesse tempo a mais a presença do professor, mas perde, com o Programa Mais Educação, justamente essa presença. Palavras Chave: Tempo Integral, Relação com o Saber, Políticas Públicas. Introdução Na última década temos acompanhado no cenário nacional o fortalecimento das discussões e estudos sobre a ampliação da jornada escolar, especialmente após a instituição do Programa Mais Educação – PMEd, ação do Ministério da Educação – MEC para educação integral e tempo integral, cuja intencionalidade é induzir políticas públicas de tempo integral no País. Este texto insere-se nesse campo de debates ao apresentar Pág.1/15 reflexões sobre o tempo integral, como política pública em educação, respaldadas por uma pesquisa que investiga a relação que estudantes do Ensino Fundamental estabelecem com o saber e a escola, no tempo integral. O contexto do estudo é uma rede municipal de educação que universalizou em 2010 a jornada escolar para 8 horas de atividades diárias, em um turno único, nas 49 unidades educacionais, da cidade e do campo, que atendia, no ano supracitado, a cerca de 18 mil estudantes no ensino fundamental. A proposta de Escola em Tempo Integral – ETI, política de educação municipal, investiu na elaboração de um currículo no qual o/a estudante vivencia em um turno único (de 7h às 15h) atividades relacionadas às disciplinas tradicionalmente propostas nos currículos (história, matemática etc.), e atividades artísticas e culturais, incorporadas por meio do PMEd. Nos ano subsequentes esta política foi mantida, e embora o número de escolas tenha sido ampliado para as atuais 54 escolas, o número de estudantes no ensino fundamental foi se reduzindo ano a ano, especialmente no último ano do ensino fundamental (9º ano). A busca pela compreensão da saída dos/das estudantes da ETI motivou este estudo, cujo aporte teórico e metodológico são as contribuições de Bernard Charlot relativas à relação com o saber (CHARLOT, 2000, 2001, 2005, 2009). Para o estudo foram selecionadas três escolas que apresentavam um maior índice de saída dos/das estudantes na transição do 8º para o 9º ano, e os sujeitos são estudantes do último ano do ensino fundamental. O material empírico foi produzido por meio de dois instrumentos: balanços de saber e entrevistas. O balanço de saber, instrumento proposto por Charlot (2009), consiste na elaboração de um texto no qual o/a estudante é convidado a produzir um inventário de suas aprendizagens desde que nasceu (na escola, na rua, em outros lugares) e o que considera importante nessas aprendizagens. Para este estudo foi feita uma adaptação no balanço original e os estudantes foram convidados a elaborar um texto sobre as suas aprendizagens na ETI: o que desejam aprender no mais tempo na escola e o que aprenderiam em outros lugares, se ficassem menos tempo na escola. Os balanços foram produzidos por 114 estudantes e participaram das entrevistas 22 estudantes (11 do sexo feminino e 11 do sexo masculino). Se os balanços de saber permitem traçar um quadro mais geral sobre o conjunto dos estudantes com relação a ETI, busca-se com as entrevistas compreender como os sujeitos singulares vivenciam a experiência do tempo integral. Tendo como referência resultados deste estudo selecionamos como eixo de discussão para nossas reflexões, neste texto, as tensões postas na universalização do tempo escolar, portanto obrigatória para todos/as os/as estudantes, e o tempo integral como política de educação prioritária, destinado a um grupo específico de estudantes. Pág.2/15 Universalização do tempo integral versus política de educação prioritária O mundo dos adultos criou a escola como uma das instituições responsáveis por educar a cria do homem o que compreende apresentar a ela o que a humanidade produziu ao longo do tempo, e torná-la um ser humano adequado, para viver em seu próprio tempo. De um ponto de vista antropológico a cria do homem, tem pois o direito a educar-se, e portanto o direito à escola. A obrigação e o direito de aprender para ser, para apropriar-se de uma parte do patrimônio legado pelas gerações humanas precedentes, para tornar-se membro de uma sociedade (desigual) de uma cultura, para construir-se como sujeito insubstituível. (CHARLOT, 2013, p. 49). Assim, é a partir desse ponto de vista que olhamos o movimento de ampliação da jornada escolar desencadeado no Brasil, na última década, especialmente após a emergência do PMEd. Uma pergunta que nos parece central é “por que se busca ampliar a jornada escolar no Brasil? ” Uma análise dos documentos editados pelo Ministério da Educação sobre o PMEd mostra que a ampliação da jornada no Brasil se norteia por uma perspectiva de inclusão social e educacional. Esta preocupação legítima encontra-se definida no Manual Operacional do Programa, na orientação feita às escolas para a seleção dos/das estudantes preferenciais para o tempo integral: Estudantes que apresentam defasagem idade/ano; Estudantes das séries finais da 1ª fase do ensino fundamental (4º e/ou 5º anos), onde existe maior saída espontânea de estudantes na transição para a 2ª fase; Estudantes das séries finais da 2ª fase do ensino fundamental (8º e/ou 9º anos), onde existe um alto índice de abandono após a conclusão; Estudantes de anos/séries onde são detectados índices de evasão e/ou repetência; Estudantes beneficiários do Programa Bolsa Família. (BRASIL, MEC, 2014, p.18) A educação integral se configura nas orientações do MEC com nuances de Política de Educação Prioritária (PEP), destinadas “a certas categorias da população com o propósito de reduzir as desigualdades de escolarização e sucesso escolar (...) por meio de um tratamento preferencial que consiste em dar mais (ou melhor, ou de outra maneira) aos que possuem menos” (ROCHEX, 2011, p.1, grifos do autor). No cenário brasileiro esse parece ser um direcionamento para os próximos anos, se Pág.3/15 considerarmos que a educação integral comparece como uma das metas do Plano Nacional de Educação – PNE(2014-2024), em uma perspectiva de não universalização: “o atendimento a no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas do país e o atendimento a pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos(as) alunos(as) da educação básica (BRASIL, 2014, p. 12)”. A educação integral que visa a uma formação integral, a multidimensionalidade do sujeito, o acesso a diferentes espaços culturais, a vivência de outras experiências culturais, artísticas, desportivas, a mudanças curriculares, dentre outros propósitos como se encontra posto na literatura brasileira sobre o tema (COELHO e CAVALIERE, 2002; COELHO, 2009 a; COELHO, 2009b), não será para todos – mas, para alguns. A ampliação da jornada escolar não se faz sem tensões. Assim, tanto a universalização do tempo de atividades diárias (em um turno único, ou no contra turno escolar), tanto as propostas que se alinham à perspectiva de educação prioritária destinadas a alguns estudantes, apresentam dilemas específicos,como discutiremos a seguir. Dilemas postos na universalização do tempo integral Na proposta da ETI o tempo integral foi pensado para todos/as os/as estudantes, pela Secretaria Municipal de Educação, considerando-se a questão do direito à educação e a da vulnerabilidade – em sua grande maioria as escolas municipais encontram-se situadas em bairros nos quais crianças e adolescentes encontram-se expostos aos territórios do tráfico. De modo geral, “retirar crianças e jovens da rua” é uma justificativa que comparece como lugar comum ao se colocar em debate o tempo integral, e uma das tendências presentes nesse debate na contemporaneidade é o binômio educação/proteção (COELHO, 2009b) que atribui à escola um papel fundamental de guarda e vigilância. É esse binômio, aliado à questão do direito, que justifica a universalização do atendimento em tempo integral na ETI: “a necessidade de constituir uma ampla rede de proteção e educação exigia que a escola de tempo integral fosse para todos.” (UFMG, 2012, p. 21). Entretanto, a universalização nem sempre é bem vinda para os/as estudantes dos anos finais. Nos balanços de saber e nas entrevistas eles/elas afirmam que o tempo integral é bom “para as crianças”, “bom para as mães”, “lugar para deixar os filhos”, “cuidar das crianças para as mães trabalharem”, “devia ser para os menores para as mães trabalharem, mas não para nós”. Com relação aos jovens ele/elas justificam a importância do tempo integral afirmando que ele “faz bem aos jovens, porque não ficam na rua”, “retira o jovem da rua”, mas, questionam a efetividade da proposição do tempo integral como cuidado e proteção. O Pág.4/15 tom dos balanços de saber é dado por este viés da proteção e do cuidado e, comparece nos balanços, mesmo quando os/as estudantes dizem gostar do mais tempo na escola, a interferência das 8 horas na escola sobre seus projetos pessoais: “está atrapalhando muito” (Estudante, 14 anos, sexo masculino), “esse tempo ocupa demais o nosso tempo” (Estudante, 15 anos, sexo feminino) Os excertos abaixo, transcritos de dois balanços de saber, expõem a fragilidade do binômio proteção/educação e mostram o tempo integral interceptando projetos, interesses e necessidades pessoais: E o combinado era que de 7h às 11:30h seria aulas normais e depois seria lazer. Disseram que isso era para tirar os jovens e adolescentes das ruas, mas isso não resolveu o problema, porque os meninos (jovens e adolescentes) saíram das escolas e foram virar “vagabundos”. Eles não cumpriram o combinado que fizeram e muitos estão tendo que estudar à noite, e eu já presenciei porque muitos de meus colegas foram pra noite e voltaram a estudar de manhã, ou de noite. Eu acho que eles tinham que liberar, ou criar uma licença para quem está trabalhando ou fazendo cursos. (Estudante, 15 anos, sexo masculino, aspas do original). Tem o seu lado bom como tirar jovens imprudentes das ruas (isto é os que estão matriculados), oficinas, entre outros; mas como “boa” aluna eu tenho que confessar que também tem o seu lado ruim, por exemplo: não é possível conciliar escola, curso, trabalho; se quiséssemos fazer cursos, sem contar que chega a um ponto em que ficamos cansados de maneira geral, cansados de ficar tanto tempo em um lugar só, cansados da cara dos professores etc. (Estudante, 14 anos, sexo feminino, aspas do original). O texto desses dois excertos apresentam a reinvindicação do/da estudante de um tempo para outras necessidades – como o trabalho, por exemplo, ou a preparação para o trabalho por meio de cursos. Esta é uma reivindicação que possui um peso no conjunto dos balanços de saber – os/as estudantes se ressentem de não poderem participar de programas como o Menor Aprendiz, ou fazer cursos que propiciariam a realização de atividades de trabalho – conciliadas com a escola – , como aprendizes de cabeleireiro, mecânico, eletricista, pintura etc. Se ressentem, também, de não poderem participar de outros espaços nos quais aprendiam – como programas desenvolvidas por igrejas, Organizações não Governamentais, ou o Programa Fica Vivo, dos quais participavam. Pág.5/15 Se eu não ficasse no tempo integral eu aprenderia bem mais coisas no Fica Vivo que incentiva o jovem ou adolescente a não ir para o lado ruim. Afinal, na rua aprendemos mais do que na escola. São praticamente duas vidas devido a convivência. (Estudante, 15 anos, sexo masculino). Não só aprende coisas boas na escola, mas também fora dela. Aprenderíamos várias outras coisas importantes na vida também. (Estudante, 14 anos, sexo feminino). Charlot em diferentes escritos vai alertar para uma certa arrogância da escola por se considerar a mais importante e exclusiva instituição possibilitadora de outras aprendizagens. Na escola, aprende se coisas específicas e importantes, mas aprende-se, também, coisas importantes, em outros lugares, com outras pessoas. A escola não é o único lugar em que se aprende. Fora dela aprendem-se outras coisas que valem a pena ser aprendidas. Desse ponto de vista, a escola deve prestar bastante atenção para não ceder a uma certa tentação de arrogância em relação a outras formas de aprender (CHARLOT, 2008, p. 177) Assim, um dos dilemas postos pela universalização do tempo integral é o reconhecimento de que os/jovens aprendem coisas interessantes fora da escola, que estabelecem metas, desenham seus projetos pessoais e não estão necessariamente ociosos, e que precisam do tempo integral para o preenchimento de lacunas temporais em seu cotidiano. Outro dilema posto é a questão das aprendizagens escolares, da especificidade do saber escolar, e do que se encontra envolvido no ato de aprender. Charlot propõe, em seus estudos, uma sociologia do sujeito: não há saber sem que um sujeito singular estabeleça uma relação com o aprender e o saber. (CHARLOT, 2000). A relação com o saber é, portanto, constituída por um conjunto de relações empreendidas com diversas formas de aprender que variam de acordo com a situação colocada pelo tipo de saber e pelas circunstâncias nas quais ocorrem a aprendizagem. Essa noção opõe-se a uma análise “negativa”, aquela que identifica os elementos que “faltam” ao sujeito para atingir a atitude adequada em relação à aprendizagem. Charlot, também, esclarece que a relação com o saber é uma relação de sentidos e que o aprender supõe a mobilização do sujeito. O sentido, liga-se à mobilização – “mobilizar-se é pôr-se em movimento” (CHARLOT, 2000, p. 54). O sujeito se mobiliza para aquilo que faz sentido para ele cujas referências ele encontra em sua história pessoal e social – “porque existem boas razões para fazê-lo”( CHARLOT, 2000, p. 55). Sentido e mobilização são referenciais importantes para se pensar o tempo integral. Pág.6/15 Amplia-se o tempo por motivos alheios aos estudantes, mas como se sentem os/as estudantes? Caio, um estudante de 15 anos, apresenta em sua entrevista diferentes dilemas relacionados a aprendizagem e que envolvem mobilização, sentido e o modo como é considerado pela escola, com relação aos estudos: Pesquisadora:- A partir de 2010 você começou estudar em tempo integral não foi? Foi uma surpresa boa? Caio: -Não. Foi esse ano, foi no meio do ano passado. Pesquisadora: - Ah é você veio de uma escola que não era tempo integral pra uma escola que é tempo integral e aí? O quê que você achou? Caio: - Pra mim foi péssimo, foi a treva porque eu estudava só quatro horas, de 7h as 11: 15h. Aí do nada eu estudar de 7h as 3h da tarde. Eu falei assim: nossa, isso é horrível! Eu odiava. Eu fiquei uma semana sem vir na aula só de pirraça. Eu voltei e fiquei na casa de um colega meu onde que eu morava, uma semana lá, porque eu não queria ficar aqui de jeito nenhum. Pesquisadora: - Lá na outra cidade? Caio: -Eu odiava esse lugar. Aí até hoje eu não gosto muito daqui, eu fico pensando e lembrando dos momentos que eu ficava lá. Pesquisadora: - Então não foi uma surpresa boa estudar emtempo integral? Caio: - Não. É horrível pra mim. Foi. No começo foi ruim demais. Agora, também, fiz novos amigos. Um dos dilemas é a falta de opção desses/as jovens, pois o tempo a mais na escola não é uma escolha deles, ou de suas famílias. A escola mais próxima de sua casa, portanto viável de frequentar por não ter custos com o deslocamento, funciona em tempo integral. Para Caio a permanência no tempo integral, que considera horrível, é atenuada pelo encontro com “novos amigos” Ao traçar planos para o futuro, Caio expõe o tempo interceptando seus projetos e as necessidades de realização de algum trabalho para ajudar a família. Cursar o Ensino Médio para ele no próximo ano, possibilita um retorno à realização de outras atividades e aprendizagens. Pág.7/15 ...nesse tempo que eu vou estudar meio período eu vou trabalhar no outro período. Eu vou estudar um período, e vou trabalhar o outro. Porque eu sempre fui de trabalhar. Desde pequeno eu sempre trabalhava, vendia picolé, trabalhava em mecânica, lava-jato, sempre tive um meio de ajudar meus pais, sempre ajudando. Na mecânica, eu limpava a oficina e ajudava, também, tipo desmontar um motor uma coisa assim, eu ia aprendendo, mesmo contratado pra limpar a oficina, só que como eu sou curioso demais eu ficava lá aprendendo, ficava lá... é até uma parte boa mas é ruim ser muito curioso porque tudo que tá fazendo tô em cima lá querendo aprender. Eles estão mexendo lá e eu tô olhando, tô tentando fazer, pega uma coisa, vou tentar fazer, aí é isso. Como é o estudante Caio na escola? Caio, se define como curioso: “gosto de criar, fazer, montar e desmontar. Para mim mexer com elétrica é tudo.”. Entretanto, essa curiosidade não chega à escola. Afirma não ter dificuldades em aprender as matérias, mas se define como “bagunceiro”, e relata durante a entrevista que a escola não o considera um bom aluno “por não querer estudar e fazer bagunça”. Ficou retido um ano na escola e teme ser retido novamente, ao final do ano. Se interessa mais pelas aulas de Ciências e Matemática e realiza em casa diversas experiências que vê nos livros didáticos, ou em vídeos no YouTube, mas a escola desconhece essa sua curiosidade. Sobre a aprendizagem no tempo integral reflete: Caio: ... porque não basta ter só o professor, a competência do professor pra explicar a matéria, você tem que ter vontade de próprio de aprender. Porque não adianta você tá explicando uma coisa e não querer entender, entra num ouvido e sai no outro. Pesquisadora: - Você acha então, já que você tem essa experiência recente de estudar no tempo que não é integral. O quê que você acha, o tempo integral é mais cansativo, menos cansativo? Como que é isso aí? Caio: - É mais cansativo. Porque ficar lá oito horas também sentado ou então... é complicado. É diferente né! Você ficar sentado ali oito horas né olhando... que a gente... Pág.8/15 os quatro primeiros horários é normal porque eu já acostumei, mas depois dos quatro, os últimos pra lá a cabeça dói, fica enjoativo, cansativo, o professor falando. É diferente. Até hoje não me acostumei assim. Ampliação da jornada escolar para todos? Com que objetivos e propósitos? Como é a vida de crianças e adolescentes nos bairros nos quais as escolas se inserem? Que redes de proteção à infância existem nesses bairros? O tempo integral deve se organizar do mesmo modo para as crianças e para os/as adolescentes? Como o tempo a mais pode contribuir para que os/as professores/as conheçam melhor os/as estudantes, como o Caio, por exemplo? Essas são algumas das questões necessárias a se responder na proposição de universalização do tempo integral. Uma outra questão urgente e necessária ao debate é que não basta ampliar o tempo desta mesma escola, “dobrar os horários” de aula, sem colocar em pauta outros desenhos curriculares nos quais os/as estudantes se sintam envolvidos e possam se mobilizar em direção ao aprender. Dificilmente, um estudante que permanece “oito horas sentado, olhando”, como relata Caio, aprenderá – aprender supõe a atividade do sujeito (CHARLOT, 2013). Dilemas postos pela educação prioritária A ampliação da jornada escolar pelo viés de educação prioritária também não se faz sem tensões. Uma das tensões é o olhar posto sobre os estudantes considerados prioritários (os defasados, os repetentes, os beneficiários do bolsa família – os “pobres”) A noção de relação com o saber possibilita desmistificar o que denominamos muito fortemente no campo da educação brasileira, especialmente, nos anos de 1980/1990, como “fracasso escolar”. Ao argumentar sobre as impossibilidades de existência de um objeto chamado “fracasso escolar”, (CHARLOT, 2000) e dos perigos de tais estudos sobre esse “objeto”, que pode nos conduzir “ao olhar da falta”, o autor propõe a “análise da relação com o saber [que] implica ao contrário uma leitura ‘positiva’ dessa realidade: liga-se à experiência dos alunos, à sua interpretação do mundo, à sua atividade” (CHARLOT, 2000, p. 30, aspas do autor). A relação com o saber é, portanto, constituída por um conjunto de relações empreendidas com diversas formas de aprender que variam de acordo com a situação colocada pelo tipo Pág.9/15 de saber e pelas circunstâncias nas quais ocorrem a aprendizagem. Essa noção opõe-se à análise “negativa”, aquela que identifica os elementos que “faltam” ao sujeito para atingir a atitude adequada em relação à aprendizagem. Sobre a “análise negativa”, Arroyo (2012) alerta que, nas proposições do tempo integral, é preciso superar visões negativas persistentes na educação que toma as infâncias- adolescências populares como atrasados mentais, com problemas de aprendizagem, lentos, desacelerados, consequentemente, classificados no percurso seletivo escolar como reprovados, repetentes, defasados, incapazes de seguir com êxito o percurso normal de aprendizagem, logo fracassados escolares e sociais. (ARROYO, 2012, p. 37). Nesse sentido, a noção de relação com o saber nos convoca a questionar o que denominamos “evasão escolar” e a olhar de outro modo o público preferencial do PMEd. Desafia-nos a construir perspectivas positivas sobre esses sujeitos e a considerar os diferentes espaços, situações e interações envolvidos no processo educativo do qual essses sujeitos participam. A análise do material empírico desta pesquisa possibilitou identificar dois tipos de estudantes que seriam considerados como prioritários para o tempo integral: os que não gostam de estudar, e os que encontram dificuldades na escola. Para os estudantes que não gostam de estudar (e não estudam e que, portanto, apresentam uma baixo rendimento escolar) a ampliação da jornada escolar não é bem-vinda, pois se “Eu não gosto do tempo integral, porque eu não gosto de estudar de 7h às 11:30h, imagine se eu vou gostar de estudar mais? " [no tempo integral]. (Estudante do sexo masculino, 15 anos). Para este grupo de estudantes que não entraram efetivamente na atividade escolar (CHARLOT, 2013) a ampliação do tempo por si só já apresenta uma contradição: mais escola para quem na verdade deseja menos escola. Por sua vez, para o grupo de estudantes que encontra dificuldades na escola a ampliação do tempo é bem recebida. Eles/elas veem no tempo a mais possibilidades de recuperar um tempo que consideram perdido por não terem aprendido: Esse horário integral você pode aprender o que você não aprendeu antes. Se você fica de 7h às 12h você não vai aprender muitas coisa, e de 7h as 15 você vão aprender o que não aprendeu antes a gente vai chegar no 1º grau [ensino médio] sabendo todas as matérias (João, 14 anos). Pág.10/15 Eu era ruim demais em matemática. O professor perguntava a tabuada pra mim e eu não sabia, agora as coisa que eles passam eu já aprendo rápido já estou dominando melhor. Se não fosse o horário integral eu estava ruim em matemática até hoje. (Hugo, 15 anos). O que faz diferença nesse tempo a mais,para esse grupo de estudantes? O tempo a mais com o/a professor/a que não “precisa correr com a matéria”, “pode tirar dúvida na carteira”, “tem tempo para gincana, aula light”, “conhece melhor a gente”, como salientam nos balanços de saber. A ação docente faz diferença para a aprendizagem e para a relação com o tempo escolar, portanto uma das contradições nas propostas de educação prioritária que seleciona alguns estudantes para o turno extra, como propõe o PMEd, é a ausência do professor. A matriz de referência do PMEd indica que a escola deve-se abrir para outros saberes e coordenar a entrada desses saberes advindo de outros espaços. Propõe que os/as estudantes aprendam sobre o meio ambiente, esporte e lazer, direitos humanos, cultura e arte, cultura digital, prevenção e promoção a saúde, comunicação e uso das mídias e torna obrigatório atividades de acompanhamento pedagógico (BRASIL, 2014b). Em sua proposição, estabelece uma “nova lógica da relação entre as esferas pública e privada” (CAVALIERE, 2014) que além de convocar a escola para a entrada de outros saberes, provoca a entrada de outros sujeitos que serão responsáveis por conduzir as atividades educativas: os agentes educativos, voluntários. Corre-se, portanto, o risco de que os/as estudantes prioritários sejam relegados a um tratamento assistencialista, com pessoas que embora conhecedoras do “seu ofício”, desconhecem os objetivos e propósitos da educação. Estudos que investigam a ampliação do tempo e aprendizagens, demostram que a ação docente no acompanhamento das atividades extraescolares faz diferença na aprendizagem dos/das estudantes ( SACRISTÁN, 2008). Portanto, para quem a ação docente faz diferença, suprime-se esta ação ao destiná-la a outros profissionais. É preciso atentar, ainda, para o sentido supletivo dessas atividades. De um lado, há a necessidade de atenção aos estudantes com dificuldades na escola, de outro há uma escola que por destinar essa atenção a um programa prioritário permanece em uma zona de conforto e não coloca em pauta questões próprias da cultura escolar que perpetuam as desigualdades de aprendizagem. Conclusão Pág.11/15 Neste texto que toma como base de reflexão um estudo cujo cenário é o da universalização do tempo integral, buscamos apontar alguns dilemas para a ampliação da jornada escolar que se apresentam tanto na universalização, quanto na educação prioritária. O mais tempo na escola para todos/as apresenta suas próprias contradições – a ocupação diária de grande parte do tempo dos estudantes e os descompassos com os outros tempos, nos quais ele/ela faz coisas interessantes, necessárias e que considera importante para seus projetos pessoais. Por sua vez, o tempo a mais para alguns, tem também, seus próprios dilemas – mais tempo para quem não se identifica com a escola e deseja, na verdade, menos tempo; mais tempo para quem encontra dificuldades na escola e considera importante o tempo a mais com o professor, e perde, com o PMEd, justamente a presença do professor. Para as duas situações um dilema comum: como construir com os/as estudantes o sentido de aprender, de estar na escola e, portanto, desejar estar mais tempo na escola? Uma leitura da realidade brasileira e dos modos como as políticas em educação são historicamente conduzidas, em especial a da ampliação da jornada escolar, aponta para um cenário de não universalização do tempo integral, pelo menos nos próximos 10 anos, conforme dispõe o PNE. É preciso ter clareza de que o tempo integral requer mais investimento em educação. Nesse sentido é importante observar que mesmo com o aumento de 25% (vinte e cinco por cento) do repasse de recursos do FUNDEB para matrículas em tempo integral no ensino fundamental, há limites financeiros. O tempo integral, supõe recursos para alimentação, melhoria dos espaços escolares, investimento na carreira docente, laboratórios, bibliotecas, dentre outras condições pedagógicas já tão distantes da educação pública. Corre-se, portanto, o risco de uma oferta em tempo integral, precarizada, como estudos têm demostrado (BRASIL, 2010a; BRASIL, 2010b, UFMG, 2012). Portanto, ampliar a jornada escolar é colocar em debate os propósitos e intenções do tempo integral, questões prementes no estabelecimento de toda a política educacional. Referências ARROYO, Miguel Gonzaléz. O direito a tempos-espaços de um justo e digno viver. In: MOLL, J. [et al.]. Caminhos da educação integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Penso, 2012, p. 33-45. BRASIL. Ministério da Educação. Educação integral/educação integrada e(m) tempo Pág.12/15 integral: concepções e práticas na educação brasileira. Mapeamento das experiências de jornada escolar ampliada no Brasil: estudo quantitativo. Brasília: MEC, 2010a. Disponível em: < http:// portal.mec.gov.br .> Acesso em: 05 dez. 2014. ______Ministério da Educação. Educação integral/educação integrada e(m) tempo integral: concepções e práticas na educação brasileira. Mapeamento das experiências de jornada escolar ampliada no Brasil: estudo qualitativo. Brasília: MEC, 2010b. Disponível em: < http:// portal.mec.gov.br .> Acesso em: 05 dez. 2014. _______ BRASIL, Ministério da Educação. Plano Nacional de Educação. Lei n. 13.005 de 25 de Junho de 2014. Brasília, DF: MEC, 2014a. ______.Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Manual Operacional de Educação Integral. Brasília, 2014b. Disponível em: < portal.mec.gov.br /index.php .> Acesso em: 19 dez. 2014b. CAVALIERE, Ana Maria Villela. As zonas de educação prioritária francesas: repercussões e paralelos no Brasil. In: MAURÍCIO, Lúcia Velloso(org). Tempos e espaços escolares: experiências, políticas e debates no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Ponteio: FAPERJ, 2014. CHARLOT, Bernard. Da Relação com o Saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. ______, Bernard. (Org.). Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001. ______, Bernard. Relação com o saber, Formação dos Professores e Globalização. Questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005. _______, Bernard. Fundamentos e usos do conceito de relação com o saber. In: DIEB, Messias (org.). Relações e saberes na escola: os sentidos do aprender e do ensinar. Belo Pág.13/15 Horizonte: Autêntica Editora, 2008. – ( Coleção Leitura, Escrita e Oralidade, p. 173-181) ______, Bernard. A Relação com o saber nos meios populares. Uma investigação nos liceus profissionais de subúrbio. Porto: Livpsic, 2009. _______, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo: Cortez, 2013. COELHO, Ligia Martha Coimbra da Costa; CAVALIERE, Ana Maria Villela. (Orgs.). Educação Brasileira e(m) tempo integral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. COELHO, Ligia Martha Coimbra da Costa (Org.). Educação Integral em tempo integral: estudo e experiências em processo. Petrópolis, RJ: DP ET Alii, Rio de Janeiro: FAPERJ, 2009a. ______, Ligia Martha Coimbra da Costa. História(s) da Educação Integral. Em aberto. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, v.22, n.80, p. 83-96, abr. 2009b. ROCHEX, Jean-Yves. As três idades das políticas de educação prioritária: uma convergência europeia? . Educação e Pesquisa, Brasil, v. 37, n. 4, p. 871-881, dez. 2011. ISSN 1678-4634. Disponível em: www. revistas.usp.br /ep/article/view/28307>. Acesso em: 14 Mai. 2015. SACRISTÁN, J. G. El valor del tiempo en educación. Madrid, España: Editorial Morata, 2008. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG. Faculdade de Educação. GRUPO TEIA – Territórios, Educação Integral e Cidadania. Relatório do Projeto de Avaliação e Monitoramento do Programa Escola de Tempo Integral (ETI) da Secretaria Municipal de Educação de Governador Valadares – MG. Belo Horizonte, 2012, 128, p. [1] Sobre o Programa Mais Educação conferirpublicações disponíveis em http:// portal.mec.gov.br . Acesso em 13/05/2015. [1] Os balanços de saber não foram nominais. Foi indicado o sexo e idade dos Pág.14/15 participantes. Neste texto, fizemos as correções ortográficas necessárias nos excertos discursivos extraídos dos balanços de saber. [1] O programa Fica Vivo tem por objetivo controlar e prevenir a ocorrência de homicídios dolosos em áreas com altos índices de criminalidade violenta em Minas Gerais, melhorando a qualidade de vida da população, por meio de acompanhamento especializado. Oferece cerca de 600 oficinas voltadas para o esporte, a arte e a cultura para jovens de 12 a 24 anos em situação de risco social. Informações disponíveis: https://www. seds.mg.gov.br . Acesso em 03/05/2015. [1] Os nomes dos entrevistados é fictício para preservar a identidade dos sujeitos. Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Pós Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, sob orientação do prof. Bernard Charlot, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CPNq). Pág.15/15
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