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apenas de elaborar outras categorias lou existenciaisl para descrever esse ente cuja existência caracteriza seu modo de ser, mas também de entrar em guarda frente a toda reintrodução subreptícia, uía naturalismo principalmen te, da ontologia da presença à vista (Vorhandenhelfl. Tal é precisamente a tarefa da qual se encarrega a analítica existencial e a l)aseínsanáZÍse. em 1964". Antes, então, de se chegar à questão sobre o que significa isso que Heidegger chama de "analítica do Daseín"" ou "analítica existencial"", é necessário começar esclarecendo a própria noção de -Daseín, palavra que Heidegger escolheu para designar o ser do homem e que, assim, pode-se dizer, representa o que o pensa- mento heideggeriano trouxe de mais novo no contexto fenomenológico. Como ele explicou na introdução que acrescentou em 1949 a seu curso inaugural de 1929 em Freiburg sob o título "0 que é a metaHisica?", "toda a reflexão se interrompe, se se contenta com constatar que no lugar de Bewusstseln (consciências emprega-se em Ser e Tempo a palavra Daseín. Como se o debate se tratasse do uso de palavras diferentes"". Não se tratava, para Heidegger, em 1927 de realizar uma simples mudança terminológica, mas, ao contrário, de propor uma nova concepção do ser do homem B. Analítica existencial e l)aseínsaná/ise O termo "Daseínsaná/fse" nào aparece em Ser e Tempo, obra maior de Heidegger, mas é em referência à problemática da "análise fundamental preparatória do Dasefn" que aí se expõe, que Binswanger a emprega. Esse termo foi inicialmente traduzido em francês por "anaZgse eMstentíerle" (análise existencialj" nas primeiras tradu- ções que foram feitas das obras de Binswanger". Mas essa denominação é em sua origem um contrassenso sobre o sentido original que Heidegger deu ao termo l)aseín: é a razão pela qual se passou a conservar o termo alemão Daseín nas traduções francesas da obra de Heidegger. Essa palavra, que significa literalmente ser (Seinl aí jcZal, foi traduzida de diferentes maneiras em francês: de início por "réaZíté-humaÍne" (realidade humanas, nas primeiras traduções feitas de alguns capítulos de Ser e Tempo por Henry Corbin em 1938"; depois por "être-là" jser-aí) na primeira tradução, de Rudolf Boehm e Al- phonse De Waelhens, da primeira seção de Ser e Tempo 1. A concepção heideggeriana do ser do homem A palavra Daseín aparece na língua alemã no século XVlll, no momento em que se buscou traduzir a palavra latina exlsfenfla. Nesse contexto, ela tem o sentido de o "ser aí" ou "estar aí" de algo, ou seja, de sua presença efetiva e de sua factualidade, em oposição à sua "quididade" ou essência, segundo a oposição tradicional que a filosofia grega clássica estabeleceu entre existência e essência. Heidegger, porém, que designa com essa palavra exclu- 65. Para diferenciar o termo eMstentíe!(EãsterizÍeZ{ em alemãol do eMs- fentíaZ IEMsterlzíaÜ, nós os traduziremos respectivamente por eMstencfáHo e eMstenclaZ. IN.T.j 66. L. Binswanger, AnaZyse exístentíeZZe et psychanaZyse ./}euciÍenne. Discours, parcours et Freud. \Analise existencial e psicanálise .freudiana. Discurso, percurso e n'eucÜ. Trad. fr. R. Lewinter, Paria, Gallimard, 1970 e Introductlon à Z'anaZyse exlsfeníÍeZie, trad. fr. J. Verdeaux e R. Kuhn Paria, Êditions de Mnuit, 1971 67. M. Heidegger, Qu'est-ce que Ja métaphysÍqzze ? suíuí d'extraíts sur !'être et !e fer7zps et cí'une cora/érence sur }íéiZderZín, trad. par H. Corbin Paria, Gallimard, 1938. Ver o prefácio do tradutor, p. 13. 68. M. Heidegger, Qu'est-ce que Za métaphysique? Suíu{ d'extraÍís sur I'êfre et ie femps et d'une cor!/érence sur l ÕZderZtn, trad. de H. Corbin Paras, Gallimard, 1938. Cf. Prefácio do tradutor, p. 13 69. M. Heidegger, Être et 7'emps, trad. de F. Vezin, Paras, Gallimard, 1986, g9, p. 73 l4 11. Nós nos permetiremos modiâcar essa tradução seja por nossa própria conta, seja nos apoiando na primeira tradução de R Boehm e A, De Waehlens ou na tradução fora de catálogo publicada em 1965 por Emmanuel Martineau pela Éditions Authentica. A paginação do texto original alemão está indicada na margem nas três traduções. 70. üió., S l i, p. 83 (501 71. HEIDEGGER, Questtons J; Paria, Gallimard, 1958, p. 32 34 35 vivamente o ser do homem, Ihe dá um novo sentido, em que o acento não se põe mais no simples fato de ser aí, mas na relação intrínseca do homem com o ser, de modo que o homem pode ser compreendido como o "aí" ou o "sítio" da compreensão de ser". Essa é a razão pela qual Heidegger se opôs à tradução literal de DaseÍn por "ser-aí", como ele já tinha explicado numa carta a Jean Beaufret em novembro de 1945: "Da-sem é uma palavra chave de meu pensamento, ela também dá lugar a graves erros de interpretação. 'Da-sela' nào significa para mim 'eÍs-me', mas, se eu puder me exprimir num francês sem dúvida impossível: être-le-là (ser-o-aí) e Ze là é precisamente aZêtheÍa: desvelamento - abertura" ". E no seminário que ele realizou em colaboração com Eugen Fink durante o inverno de 1966-1967, ele explicou novamente que, com tal tradução, "tudo o que tinha sido conquistado em Ser e tempo como nova posição se perdeu"". Relembrando que nessa obra Dasefn vem escrito Da-sem, ele sublinha que o "da" (o aí) "é a clareira e a abertura do ente onde o homem se expõe"". A questão para ele era arrancar esse termo do sentido que ele tem na língua alemã corrente, na qual ele designa a presença efetiva de algo, a íim de Ihe dar a nova significação do ser aberto ao ser do homem. O objetivo que Heidegger procurava alcançar em Ser e tempo consistia, na verdade, em pensar de maneira nova o ser do homem, cujas definições tradicionais Ihe pareciam insuficientes no que diz respeito ao que consti- tui a verdadeira especificidade do ser humano. E a razão pela qual ele começa a rechaçar todos os nomes que foram utilizados na tradição hlosófica para designar o que constitui o próprio do homem. Assim, ele declara que os termos "sujeito", "alma", "consciência", "espírito", "pessoa" "denominam todos setores determinados do fenómeno" em questão, mas que "seu emprego anda sempre de mãos dadas com um notável esquecimento da necessidade de põr em questão o ente assim designado"". É isso que explica que esses termos devam ser evitados, assim como as ex- pressões "vida" e "homem" "para designar o ente que nõs mesmos somos"". O principal cuidado de Heidegger nessa primeira seção da obra, consagrada à "análise fundamental preparatória do Daseln", é delimitar o Dasein com relação à antropologia, à psicologia e à biologia. Esses domínios de pesquisa, cujos fundamentos permanecem não esclareci- dos e que não respondem à questão do modo de ser do ser humano. Não há, na verdade, nenhuma ambiguidade aí: o que Heidegger busca como objetivo final de sua pesqui- sa não é a determinação do ser do homem. Ao contrário, como ele cuidara de precisar em seguida, a analítica do Daseín é uma interpretação ontológica do ser do homem como Baseia que não tem seu fim em si mesmo, mas que permanece, ao contrário, "a serviço da questão condutora à verdade do ser"". Isso não é claramente percebido por todos que condenam Heidegger por não ter levado em conta em Ser e ter7tpo todos os aspectos da existência humana e de ter se silenciado sobre este ou aquele fenómeno julgado por eles essencial para a compreensão do ser do homem. No entanto, Heidegger deixou claro e explícito em Ser e ter7tpo que a analítica do DaseÍrt não tem como objetivo estabelecer as bases ontológicas da antropologia, mas tem unicamente como flm a ontologia fundamental", a saber, o estabelecimento da base ontológica com o fundamento na qual as ontologias regionais podem em seguida se es- tabelecer". Como explica Heidegger, dado que "ao Baseia pertence ser num mundo", a compreensão disso que é DaseÍn envolve igualmente a compreensão do mundo e do 72. Cf. ÊLre et [emps, g3, p. 32 (91 anotação b (tradução modiâcada).Essas anotações foram acrescentadas por Heidegger entre 1929 e os últimos anos de sua vida no seu exemplar pessoal. 73. HEIDEGGER, Letfre sur i'humanÍsme, p. 183- 185. 74. HEIDEGGER, FINK, /]éracZífe, trad. do J. Launay e P. Lévy, Pauis, Gallimard, 1973, XI, p. 174 75. JÓIA., P. 175. 76. Être et tempo, S 10, p. 78 (46). 77. Ibid 78. HEIDEGGER, Quesfíons J, p. 32. 79. Être et tempo, g 42, p. 250 12001. Cf. DASTUR, Heídegger ef {a quesüon anfhropoZoglque(Heidegger e a questão antropolõgical, Louvam-Paras, Peeters, 2003 80. BÍd., g 4, P. 37 (13) 36 37 ser dos entes pertencentes ao mundo, de modo que "as antologias que têm por tema o ente cujo modo de ser não é da ordem do l)aseín" são, consequentemente, fundadas sobre a estrutura deste último' A analítica do l)aseÍn tem como objetivo explicitar a constituição ontológica do homem, mas, como o que há de decisivo nessa constituição ontológica é a compreensão do ser, essa análise preparatória de um ente determina- do, o Z)aseln, pode permitir liberar o horizonte de uma compreensão e de uma explicitação do ser enquanto tal. A incompletude da analítica do Z)aseín, ou seja, o fato de que ela não se prende à explicação da totalidade das estruturas do ser do l)aseín", não poderia ser reprovada como um defeito, porque é por princípio que ela se limita à explicação apenas dos existenciais que servem diretamente para a elaboração da questão do ser. A análise do Z)aseln tem, assim, a sua maior importância no que reconhece ao l)aseln, entre todos os entes, o privilégio de poder com- preender o ser. O que o distingue de uma simples coisa é o fato de que "ele se relaciona em seu ser com esse ser mesmo" ". E é esse ser mesmo com o qual ele se relaciona sempre de uma maneira ou de outra que Heidegger chama de "existência" (EMsferl.zl, reservando, assim, esse termo à designação do modo de ser do homem. Como Heidegger explica novamente na sua introdução de 1949 a "0 que é a metaHisica?", existência designa em Ser e tempo "a es- sência extática do DaseÍn", dando, assim, a essa palavra o sentido que já Ihe reconhecia Schelling. E é justamente por conta dessa noção, que Schelling se opunha a Hegel, ao sublinhar a natureza extra-lógica da existência. Schelling, contudo, não empregava esse termo para designar uma dimensão fundamental do ser humano, ele o aplicava, ao contrário, a Deus, que, para ele, não se contenta em ser, a título de fundamento primeiro, mas existe, no sentido de que Schelling faz Deus agir fora de si mesmo para cumprir sua essência, de modo que a criação deva ser considerada como uma autorrevelação de Deus e não como a fabri- cação do grande obreiro, como se pensa habitualmente e, portanto, falsamente, assimilando o ato criador à arte humana". É se referindo a Kierkegaard, que frequentou as aulas de Schelling em Berlim em 1841-42 e que será o primeiro a aplicar esse termo ao ser humano, que Heide- gger sublinha, ele também, que se trata de entender esse termo em seu sentido literal de ser (stsferel fora de si(e4. No entanto, é preciso não se deixar equivocar com o que Heidegger quer dizer aqui, lembrando que ele sempre se recusou a ver seu pensamento elencado sob o rótulo de "filo- sofia da existência" ao lado de Kierkegaard, Jaspers e Sartre" C) que caracteriza de maneira prímordia] o Dasdn é o fato de que "a compreensão de ser é ela mesma uma determinação do ser do l)asdn"". Mas, tendo assim a capacidade de compreen- der a si mesmo em seu próprio ser, o Dasdn tem no mesmo larlce a capacidade de compreender o ser dos outros entes. É isso que Heidegger sente a necessidade de deixar bem claro, de modo a eliminar qualquer ambiguidade, numa anotação adicionada à margem de seu exemplo' pessoal de Sc?re tempo, sublinhando que "ser não se restringe aqui ao ser do homem jexistência)", pois "o ser-no-mundo inclui em sí a relação da existência com o ser em seu todo: compreensão de ser" ". Compreendendo seu próprio ser, o Daseín não está fechado em si mesmo, mas, ao contrário, justamente por isso, ele está aberto ao ser do ente que ele não é. O homem é, para Heide- gger, portanto, esse ser que está constantemente em relação com o ser de tudo o que é. Ê essa a razão pela qual ele só pode se definir no modo do ser fora de si, isto é, como ex-stsfenoz. 84. Cf. F. W. J. Sche]]ing, Oeuures ]WétaphysÍques Cobras ]WetaPsícas), Paras, Gallimard, 1980, p. 181 85. Eis o que ele escreveu em 1937 a Jean Wahl: "Devo dizer mais uma vez que minhas tendências filosóâcas, ainda que se trate em Ser e tempo de EHstenz e de Kierkegaard, não podem ser classiâcadas como l:xísterzzphílosophÍe (...). A questão que me preocupa não é a da existência do homem; é a do ser no todo e enquanto tal". BuZZetÍn de Za Socíeté./tançaíse de phlioso/lpÍe, 1 937, n' 5, p. 193 86. Être et tempo, g, p. 36 (12) (trad. mod.) 87. /bld. , anotação a. (trad. mod.) 8 1. Cf. üíd. 82. Cf. capítulo 11, parte B, que trata de Boas. 83. /bÍd., S4, p. 36 (12) (tradução modiâcadal. 38 39 l i«le-se, a partir dai, deõnir a compreensão efetiva que l l /)íoflpi tem (le si mesmo como uma compreensão eüsíen- r'ü\rifa. Mfls isso que Heidegger chama de análise eMsfencíaZ nulo sc situa no nível simplesmente "existenciário" do com- portamento individual concreto, mas no da explicitação e da tematizaçào da estrutura ontológica da existência. A tarefa da analítica eMstencíaZ consiste, assim, em distinguir e analisar as modalidades de ser fundamentais do l)aseüb cujo conjunto constitui o que Heidegger chama de adstencladdade". Como ele cuida muito bem de sublinhar, esses modos de ser do Z)aseín ou ensfencíals "devem ser claramente separados das determinações de ser do ente que não é da ordem do l)aseín que chamamos de cafegoHas'h'. A diferença entre existencial e existenciário deve ser particularmente sublinhada: não há de modo nenhum um nível existencial sem fundamento exis- tenciário, isto é, sem a compreensão que tem de sua própria existência um l)aseín a cada vez particular. Mas a analítica existencial, por não visar a nenhum Baseia particular, mas ao Baseia enquanto tal, constitui o que Heidegger chama de onfoZogta.@ndamenfaZ. É, de fato, como já vimos, a análise desse modo de ser específico do homem, que é a existência, que serve de base a todas as ontologias regionais cuja tarefa é elucidar o modo de ser dos outros entes que não o l)aseín, daqueles que advêm do ambito da "natureza" ou do da "vida". O que se desenvolve de tal orientação ontológica da problemática de Heidegger em Ser e ter7zpo é que a analítica do Z)aseln recebe aí uma função puramente metodológica. Dizendo de outro modo, éjustamente por ser o próprio Baseia que põe a questão do ser que o que está em questão para ele aí, inicialmente, é se compreender a partir de seu próprio ser. Como Heidegger explica desde as primeiras páginas da intro- dução, a elaboração da questão do ser implica que um ente, precisamente aquele que questiona, se torne transparente a si mesmo em seu ser, e é esse ente que nós mesmos somos, que tem, entre outras coisas, a possibilidade essencial de questionar, que é designado do ponto de vista terminológico I'omo l)aseím'. Não se trata aqui de dar um ponto de partida lirbitrário à análise onto1(5gica, nem mesmo de proceder à t'acolha de um ente exemplar sobre o qual se precisaria "ler" o sentido do ser enquanto tal'-, mas de tomar como ponto de l)artida não termos isolados entre os quais se poderia estabe It'cer uma relação - o sujeito, de um lado, o objeto de outro -. mas antes a relação entre o homem e o ser, relação essa que Heidegger chama aqui de Da-sdn. Este é o "estado de coisas" simp]es do qual parte Ser e tempo, tal como Heidegger f)rotura explicar em 1962 em sua carta ao padre Richard- son. Nessa carta, ele aârma que, "em Ser e fer7tpo, a própria posição da questão a partir do domínio da subÜetividade se vê desconstruída e toda problemática antropológicaeliminada" de modo que "o ser que o questionamento de Ser e ter7zpo busca alcançar não pode ser posto pelo sujeito humano"" Que esse ser não seja "posto" pelo sujeito humano não implica, entretanto, que ele pennaneça inacessível: se deve haver aí, como não cansa de sublinhar Heidegger, uma compreensão pré-ontológica do ser, isto é, anterior a toda elaboração filosóâca de uma ontologia, é necessário, então, romper com a ideia kantiana de um ser ou de uma coisa em si incognoscível, para pensar, ao contrário, uma abertura essencial e recíproca do l)aseln ao ser. E isso que Heidegger traduz com o termo Ersc/zZossen/zaf, para o qual as diversas traduçõesjá propostas, "revelação" IBoehm e De Waelhens) , "abertura" (Martineau), inclusive "abertidade" joueüudel IVezin), não chegam realmente a dar conta, por causa de seu duplo sentido. O termo significa que o ser "se revela" ao l)aseín enquanto é "revelado" por este último. Que o ser possa se revelar vem do fato de que o l)aseín é esse ente que "comporta em seu ser o mais propriamente possível o caráter do não fechamento(t./nz.'erscmossen/teíZj"; a palawa "da" jaí) "signiâ- cando essa abertura essencial", de modo que, como Heidegger ressalta bem, "graças a ela, esse ente (o Daseínl está aí para si mesmo e forma uma coisa só com o Da-sem do mundo"" 90. níó., S p. (71. 91. /bíd., anotação c. 92. Heidegger, QuestÍorLS IK País, Gallimard, 1976, p. 186 93. Être et temps, g 28, p. 176 (1321 jtrad. mod.l S8. ibid, S 4 p. 37 (i2). 89. 1z,íó., g 1 1, p. 7õ (44) 40 41 Compreende-se melhor a partir daí a identidade do ser e do fenómeno do qual parte Heidegger e sua afirmação categórica no final do g7: "A ontologia nào é possível senão como fenomenologia"". Heidegger, remontando à noção grega de phaínomenon, dá à ideia de fenómeno um signi- ficado de todo novo em relação à tradição. Segundo seu sentido grego em questão, phaÍnomenon significa "aquilo que se mostra por si mesmo". E a partir dessa definição formal que é possível distinguir o fenómeno da aparência, a qual é uma "modificação privativa" do fenómeno em que a coisa se mostra como ela não é, ao passo que, no fenómeno, a coisa se mostra tal como ela é. Fenómeno e aparência (em alemão Phãnomen e Scheín) designam os dois a manifestação seja positiva seja negativa de uma coisa. Isso já não vale para o termo Erschefnung, aparição, que designa, ao contrário, uma não-manifestação. O que aparece não se mostra, mas se anuncia através de outro fenómeno que tem a função de indicar o que nào pode se mostrar em pessoa. Não se deve, então, confundir o fenómeno", que significa "um modo de encontro insigne de alguma coisa", e a aparição, que indica uma relação de envio a outra coisa que não essa que se manifesta. Conforme essa definição formal do fenómeno, Heidegger caracteriza a fenomenologia como tentativa de "fazer ver o que se mostra por si mesmo tal como se mostra a partir de si mesmo"", o que não é nada senão, ressalta ele, aquilo que expressa a máxima husserliana exortando a ir "diretamente às coisas mesmas"". Pode-se certamente perguntar se se deve necessariamente "fazer ver" o que se mostra por si só, e se, portanto, para o fenómeno assim deânido como "o que se mostra por si mesmo", cabe re- almente uma fenómeno-logra, ao que Heidegger responde que pode acontecer de isso que é o fenómeno estar oculto e, então, não imediatamente acessível. Esse fenómeno oculto é o que Heidegger chama de "ser" e que deve se (distinguir do ente que é apenas imediatamente acessível. Mas não nos encontramos na perspectiva tradicional da diferença entre ser e aparecer, que compreende o ser como o que está "atrás" do que aparece e pertence a um mundo transcendental com relação a esse, pois o ente não é uma 'aparição" que anunciaria um ser não suscetível de levar a si mesmo ao aparecer. O ser é fenómeno e não aparição IPhãnomen, não Erschelnungl e deve, portanto, poder se mostrar sem a ajuda de outro fenómeno que o anunciaria, evitando, assim, todo recurso à distinção entre o "interior" e o "exterior" de uma coisa ou entre sua essência e sua existência, pois essas distinções implicam que haveria 'atrás" da aparência de uma coisa sua verdadeira natureza. 2. Os dois níveis da analítica existencial O objetivo de Heidegger em Ser e tempo é, tal como ele explica no prefácio, "a interpretação do tempo como horizonte possível de toda compreensão do ser em geral"". A obra deveria compreender duas partes, como o indica o plano que conclui a introdução", mas só as duas primeiras seções da primeira parte seriam publicadas em 1927. Essas duas primeiras seções têm exclusiva- mente como objeto a analítica do Daseín, que estabelece que o cuidado, cujo sentido é a temporalidade, é o ser do Baseia, enquanto a terceira seção teria como tarefa chegar a mostrar que o horizonte da compreensão do ser "em geral" é o tempo. A analítica do Z)aseÍn tem, assim, de acordo com o prometo ontológico buscado por Heidegger, um caráter preliminar. Ela consiste, num primeiro momento, em analisar a existência debata do Baseia, sem partir de uma essência pressuposta ou de um ideal pré-delineado dele, mas deixando-o se mostrar tal como ele se apresenta na cotidianidade mediana, isto é, tal como ele de fRíGio e rla mafoHa tias vezes é. Este é o que constitui o objeto da 94. üíó., g7, p. p. õ3 (351 95. ]bíd. g 7, p. 61-62 (34) (trad. mod.) 96. /bíd., g7, p. 62 (341. Ver, quanto a isso, Dastur, Martin Heidegger, /ntroductíon â Za phénoménoZogie (/ntrodução à JenomenoZogÍal, sob a direção de Ph. Cabestan, Pauis, Ellipses, 2003, pp. 37-61 97. /óid., p. 2i li) 98. Ibid., g 8, p. õ7 (39) 42 43 primeira seção, intitulado "a analítica fundamental prepa- ratória do Z)aseín". Em seguida é possível, num segundo momento, "repetir" essa análise preparatória: é isso que tem lugar na segunda seção que, sob o título de "Baseia e temporalidade", exp]icita o sentido temporal dos existenciais apresentados na primeira seçào. A análise conduzida na primeira seção não pôde, de fato, dar conta do l)asetn em sua "autenticidade", isto é, no que ele tem de próprio, pois ela se situa no nível da cotidianidade mediana. E por isso que é necessário deixar o solo fenomenal da cotidianidade para compreender o l)aseín em sua originariedade. vida mundana e cotidiana que permanece, em seu exercí- cio, cega para si mesma. Husserl se engaja desse modo na busca genealógica de retorno a uma experiência originária do mundo não mediatizado pelas idealizações provenientes da ciência moderna que encontra sua origem na matema- tização galileana da natureza, busca essa que implica a Ábbau, a desconstrução metódica da epísteme, a fim de a reconduzir à sua fonte originária na doze. Isso porque se trata, sob o nome de "experiência pré-predicativa"-", de legitimar esta última e de nào a considerar como um domínio de evidências de estatuto inferior às da ciência. O que se deve elucidar (au!/k/ãrenl são os pressupostos ocultos sobre os quais repousam as idealizações cien- tíficas. Husserl, com sua réplica (Rüc;c#age), propõe-se simplesmente a nos fornecer uma compreensão do ideal científico, o que implica que ele se disponha a retraçar o itinerário total que leva da evidência pré-predicativa à evidência predicativa:". É, portanto, sempre a partir do domínio do que se revelou pelo método filosóâco que a cotidianidade se vê elucidada. Para Heidegger, por outro lado, nào se trata de partir de uma ideia filosófica abstrata da existência, mas do Z)aseln sob a forma indiferente na qual ele aparece inicialmente e o mais frequentemente, pois "essa indife- rença da cotidianidade do Dasetn pião é um nada, mas é, ao contrário, um caráter fenomênico positivo desse ente" porque "é a partir desse modo de ser e em íàzendo um retorno a ele que todo existir é como é" «. Sendo assim, é o ser ordinário e médio, a l)urcfzschníttZfchkeÍf do Daseln, que se deve antesde tudo analisar, o que não é fácil, como o observa Heidegger, na medida em que é justamente o lugar da cotidianidade média constituinte do que o l)aseín inicialmente é que não cessa e não cessou por todo o percurso da história da filosofia de se perder de vista. a. Ser-no-mundo e cotidianidade Nessa primeira seção, que tem como objeto a análise do Baseia cotidiano, Heidegger retoma, mas de maneira nova, o prometo husserliano de uma fenomenologia do "mundo da vida" que é o mundo da cotidianidade". É preciso esperar a Última fase da âlosoâa de Husserl para aí encontrar o que ele chamará, em .ExpeHêncla e ./uízo, um livro publicado alguns meses depois de sua morte, de uma "legitimação da doía" enquanto o "domínio das evi- dências originais últimas"-". A ideia, de origem platónica e cartesiana, de uma filosofia que rompe radicalmente com a experiência cotidiana, comandava ainda o projeto husserliano de uma fenomenologia concebida como filo- sofia primeira, e é esse o prometo que o Husserl da Crise das cfêncías europeias será levado a põr em questão. No entanto, não devemos nos deixar enganar, pois isso não significa o abandono da redução fenomenológica, nem do idealismo que ela implica, mas simplesmente uma recom- preensão profunda de uma e de outra, por meio da qual fica claro que a fllosoâa não é, no final das contas, a perda de evidências da vida natural, mas, ao contrário, a conquista delas; ou seja, uma recompreensão do sentido pleno da 101. Cf. Dastur, l,eprobZême de Z'eapéHence arttéprédÍcatiue (HusserZ)(O problema da e#)erfênda arztepredícaflual, Lap/zénoménoZogíe en quesflon, Pm'is, Vrin, 2004, p. 49-64 [02. ]õíó., Si], p. 55. 103. Être et temps, S 9, p. 75 (431 jtrad. mod.l 99. HUSSERL, La case..., g 9h, p. 57 et g28, p. 1 19. 100. HUSSERL, Experiência et.@gemenfe, trad. fr. ]). Souche-Dagues, Pauis, PUF, 1970, g 10, p. 53. 44 45 É por isso que a tarefa ontológica consiste precisamente em torna-la acessível, caracterizando-a de forma positiva: "nela, e mesmo no modo da impropriedade, reside a pdoH a estrutura da existenciariedade"-". De fato, é a partir de seu ser impróprio que o l)aseÍn pode realmente começar a se encontrar a si mesmo como ser pr(5prio. Isso porque, como é necessário sublinhar sempre de novo, as expressões EigentZicllkelt-t/netgentZÍchkeít, que se traduzem o mais fre- quentemente por autenticidade-inautenticidade, mas que significam mais precisamente ser próprio e ser impróprio , não têm, sob a pena de Heidegger, significação moral no sentido habitual do termo. O que o l)aseín é inicialmente e o mais frequentemente é um si mesmo no modo da dispersão, um si mesmo coletivo e anónimo, um "a gente", que, enquanto tal, não conhece a distinção entre o eu e os outros. Ê unicamente sobre essa base que a existência pode se tornar um ser si mesmo propriamente, pois este último, Heidegger deixa claro, "não repousa sobre nenhum estado de exceção que ocorreria a um sujeito liberado do a gente, mas é, ao contrário, uma modificação existencial do a gente, o qual é um existenciário essencial"-". E o "a gente" da cotidianidade que constitui a determinação pri- meira e fundamental de toda existência singular. Certamente, nesse primeiro nível, o existente se compreende a si mesmo a partir das coisas com as quais ele entra em relação de troca, ele se compreende como uma coisa presente à vista (uorhanden)-", e é precisamente isso que constitui sua impropriedade. Esse ser cotidiano é em si mesmo uma maneira de ser no mundo que se caracteriza pelo fato de que ele é, assim, inteiramente absorvido pelas coisas com as quais ele se ocupa. E esse ser absorvido pelo mundo:" de sua ocupação que Heidegger chama de Vez:áar/erLhdt, decadência. No entanto, essa palavra não tem o sentido de uma "queda" a partir de um estado mais original, porque é precisamente esse estado de absorção que é, ele sim, o estado original do ser humano-". Em seu ser cotidiano, o existente não cessa de ser-no-mundo, ainda que ele sqa cego para a transcendência que ele é e que ele nào consegue deixar de ser sem se negar a si mesmo como ex-istente. A possibilidade positiva da deca- dência enquanto imersão no mundo encontra sua origem na fuga do l)aseín diante de si mesmo e de seu poder ser si mesmo propriamente«'. Mas é precisamente aqui que não se deve confundir existenciário e existencial: do ponto de vista existenciário, o l)aseírt, na fuga, se fecha a si mesmo para o Daseln próprio; mas no nível existencial, esse fechar a si mesmo para o modo próprio permanece ainda uma abertura, ainda que sob o modo da privação, porque o l)aseín foge de sí mesmo, isto é, de sua própria singularidade. Não obstante, fugir de si mesmo é ainda estar confrontado consigo mesmo, pois, como sublinha Heidegger, "no que foge disso de que foge, o Baseia acaba precisamente correndo 'atrás' de si mesmo"--'. Se essa confrontação consigo mesmo não é ainda, no nível da cotidianidade, nem percebida nem compreendida, o que escapa aí, a saber, o Baseia no que ele tem de próprio, "não está menos aí, já que ele se revela por esse desvio com relação a sí mesmo"::.. É exatamente na "decadência" da cotidianidade, nessa familiaridade que o liga às coisas de seu entorno, que o Baseia pode encontrar a possibilidade de se abrir ao que Ihe é próprio, ou soja, um ser jogado no mundo, cujo modo existencial original é não estar em casa em lugar nenhum--. É, pois, esse sentimento de estrangeiridade que está no fundamento da tomada de consciência de sua singularidade. l08. /óíó. g 38 p. (176) 109. /btd., S 40, p. (1841 l lo. /bíd 1 1 i. /óló., g 40, p. (i85) 1 12. /óló., ê, p. 189 104. /bÍd., 76 (44). i05. /óíó., S 27, p. li30l 1 06. ÜÍd. 107. Ibid., $ 38 P. (175). 46 47 b. O ser do Dízseín como cuidado é ao mesmo tempo entregue. É por isso que "a angústia singulariza e isola o Daseírt no seu ser-no-mundo mais próprio"--'. A angústia isola no sentido de que ela singulariza o Baseia, no que ela realiza essa modihcação existencial pela qual o si mesmo como "a gente", como impessoal, se transforma em si mesmo "autêntico" Não é de modo nenhum com o mundo que o Baseia rompe na angústia, mas apenas com a jamí/{arídacíe que caracteriza o ser-no-mundo cotidiano. É essa ligação com o mundo que sofre uma modihcação: o ser-em, que vimos ter na cotidianidade o sentido de um habitar, adquire a modalidade existencial do não-em-casa (C/n-zuhause), o que implica que a experiência de não estar em casa, da "estrangeiridade" (Unhelmlfchkelt), ainda é uma maneira de ter uma relação essencial com o mundo. Essa maneira de ser-no-mundo sob o modo da estrangeiridade é, no entanto, do ponto de vista existencial e ontológico, "o fe- nómeno mais original"--,, a partir do qual pode haver algo como um ser-no-mundo sob o modo da familiaridade. A fuga que caracteriza o ser-caído é, então, fuga em dlreção à familiaridade diante da estrangeiridade do l)aseín en- quanto dançado no mundo. É diante disso que o Z)aseín se angustia, diante de seu ser-lançado-no-mundo; é por isso que ele se angustia, por seu poder-ser-no-mundo. O que permite aparecer o fenómeno da angústia tomado em seu todo é inicialmente a inseparabilidade desses dois existenciais que são o ser-jogado (Gewopyêrlheífl e o prometo (Entwurg, e que Heidegger nomeia agora como facticidade e existencialidade:", enquanto estruturas de ser-no-mundo compreendidas agora como estruturas do cuidado definidas por ele da seguinte forma: "antecipar- -se-a-si-mesmo-já-sendo-em-(mundos como ser-junto ao lente intramundano que vem ao encontros":". Se a essa estrutura, que articula os três existenciais fundamentais jexistencialidade, facticidade e decadência) num fenómeno E na angústia e por meio dela que tem lugar essa tomada de consciência. A angústia é, na verdade, uma disposição afetiva particular que se distingue do medo por seu caráter absolutamente indeterminado, nosentido de que isso que angustia não pode ser referido a nenhum ente presente no mundo. No entanto, se na angústia o ente no seu conjunto perde toda significação, se ele não se apresenta mais como um ente apreensível, isso não quer dizer que a angústia seja a experiência niilista do nada absoluto, mas, ao contrário, que ela é a experiência desse "algo" no sentido mais original que é o mundo en- quanto tal -'. Se, por um lado, na cotidianidade, o mundo pode "se anunciar" exatamente quando a ocupação -- que sempre tem de tratar com um complexo de entes remetendo uns aos outros, com um conjunto de "utensílios" - se vê impedida, porque o utensílio se revela como inutilizável, como ídtante ou com impertinente"', por outro lado, nessa disposição que a angústia é, o mundo se abre original e diretamente enquanto mundo. E, na verdade, próprio da disposição enquanto um existencial poder abrir o Daseín ao mundo na sua totaZícíade mais originalmente do que o poderia o olhar teórico: a disposição, essa que Heidegger nomeia como Be/indZíchkelf, termo que tem em alemão o duplo sentido de estar e de se sentir situado, é um modo fundamental de abeüura do l)aseÍn ao mundo, ao seu próprio ser e aos outros Dasejn. A primeira descoberta do mundo, devemo-la à disposição. E a angústia é essa disposição insigne em que advém "a identidade existenciária do abrir e disso que se abre"--', porque ela não é somente, enquanto disposição, angústia diante do ser-no-mundo, mas é também angústia para o ser-no-mundo como tal. A angústia é, com efeito, sempre angústia diante de uma Ifberdade à qual o l)aseÍn i13. /óÍd., g 40 p. 236-237(1871. 1 14. /btd., S 16. 1 15. /bíd., g 40, p. 237 (1881 (traí. mod.) 1 16. ibid., 237 (187) (traí. mo(í.) 1 17. JbÍd., P. 239 (189). 118. Jóia., S 41, p. 241(191)(trad. mod.l 1 19. /bíd., p. 242 (1921 (traí. mod.l 48 49 unitário, Heidegger dá o nome de cuidado (Soryel, é com o intento de despojar esse termo de toda conotação existencial e moral, e de o tomar exclusivamente num sentido ontoló- gico e existencial. Essa escolha não é, porém, arbitrária, pois ela pode se defender por meio de uma "autoexplicação pré-ontológica do l)aseÍn"-", que atesta o fato de que ele se compreende a si mesmo como cuidado para além de toda interpretação teórica. O testemunho disso, Heidegger o encontra numa obra poética, numa fábula do poeta latino Hygin que já tinha chamado a atenção de Herder e de Goethe, e na qual nào apenas o cuidado é visto como isso que possui o homem por toda a sua vida, mas onde ele aparece também em conexão com a concepção do homem como um composto de matéria jde terra) e de espírito. Além disso, o latim cura apresenta o mesmo duplo sentido de cura e de cuidado que o alemão Sorgo, e Heidegger vê aí a designação da consti- tuição una da estrutura essencialmente dupla do projeto jogado- . A luz desse testemunho pré-ontológico, a definição tradicional do homem como anlmaZ raffonaZe aparece como não originária, pois ela concebe o homem, de maneira me- taHisica, como um composto de sensível e inteligível e não como um todo. Essa definição determina já de antemão a essência do homem a partir de um domínio particular do ente, a animalidade. Decide-se, assim, de antemão a essência do homem que se propõe a definir acrescentando uma diferença específica, a do pertencimento à razão. Mas a partir do momento em que o homem é pensado como pertencente à ordem da animalidade, nenhuma diferença específica que se possa acrescentar a ele poderá faze-la desaparecer. Como Heidegger sublinha na Carta sobre o hz.{manísmo, tal definição do homem que o posiciona no reino animal não pode chegar a pensar o que constitui verdadeiramente sua humanidade-". Por outro lado, Hei- degger se esforça para mostrar, no g41 , que o cuidado é ontologicamente anterior ao querer, ao desejo, ao impulso t' à propensão, isto é, a essas pulmões que se consideram características do vivente em geral. Ao aârmar que não é sobre a base de uma consideração do que é próprio à vida que se poderá compreender o l)asefn e seu cuidado, Heidegger rompe com a filosofia da vida que caracteriza n tendência mais marcante do pensamento alemão desde o romantismo. Ao fazer isso, Heidegger afirma com muita ênfase que a análise do l)aseín não poderia partir de uma biologia geral que compreenderia, a título de subconexões, a antropologia e a psicologia:". O biologismo não pode certamente em nenhum caso dar conta do que constitui a humanídacíe do homem. É a biologia, ao contrário, que se funda na ontologia do l)asein, o que implica que uma antologia da vida não possa jamais ser realizada senão pela via de uma interpretação privativa que teria como tarefa determinar o que é unicamente vivente a partir da experiência que o Daseín tem de sua própria existência-" 3. Daseírzsaná/íse e psiquiatria Como relembra Ludwig Biswanger no texto inti- tulado "Analítica do l)asetn e psiquiatria" publicado em 1951, é em 1946 que o psiquiatra suíço utiliza pela pri- meira vez o termo Daseínsaná/íse na comunicação que faz diante da sociedade suíça de psiquiatria sobre "A direção da pesquisa DaseínsanaZítica em psiquiatria". Essa co- municação será seguida em 1949 de um texto sobre "A importância da analítica do l)asefn de Martin Heidegger para a psiquiatria", publicado na coletânea de homena- gens a Heidegger-". Nesse texto, ele deixa claro que, pela "analítica do .Daselrl, conduzida por Martin Heidegger", 120. /bíd., g 42 (trad. mod.) 121. /bÍcÍ., P. 249 li991. 122. HEIDEGGER, l,effre sur J'humanísme (Carta sobre o humanismo) , p. 57: "A metaâisica pensa o homem a partir da artímaZÍtas, ela não pensa o homem em direção a sua humanífas". i23. /óió., gio, p. 82 (49) 124. /bÍcÍ., P. 82 IS01 125. L. Binswanger, AnaZyse exísterifíeZie et psychanaZyse .P'eudíenne, op. Cít., p. 85. Mantemos a cada vez no lugar de "analítica existecial" o termo alemão OaseÍnsanaZyse(OaseínsanáZísel . 50 51 ele entende "a clarificação filosófico-fenomenológica da estrutura a pHoH ou transcendental do Daseln como ter- no-mundo", e, por l)aseÍnsanáZfse, "a análise empírico- fenomenológica, científica, de modos e estruturas do Z)aseín de fato", sublinhando que é a primeira que "torna possível e funda" a segunda'". Vê-se, então, que é uma relação de fundação que une, segundo Binswanger, a analítica do Baseia, empreendida com vistas a um ob- jetivo estritamente ontológico, a essa ciência empírica e antropológica que é aquela que ele mesmo nomeia como "I)asetrlsaná/lse". Mas se ele sublinha que as "intenções de Heidegger" são diferentes das suas, Binswanger não conclui daí que isso de que trata a analítica do l)aseln seja ainda o "problema da subjetividade". Além disso, mesmo que essa subjetividade esteja descolada da relação sujeito- objeto e situada "sobre o vasto terreno do ser-no-mundo como transcendência""', a interpretação de Ser e Tempo levada a termo por Binswanger se mantém no âmbito da fenomenologia transcendental husserliana. E isso que explica que, nos últimos encontros dos seminários que Heidegger realizou entre 1959 e 1965 na casa de Boss em Zollikon, ele tenha experimentado a ne- cessidade de voltar à questão da diferença entre analítica do Z)asefn e l)aseÍnsanã/{se, fazendo, porém, abstração da analítica psiquiátrica do l)aseín de Binswanger, que permanece orientada pela fenomenologia husserliana da consciência«'. Mostra-se realmente necessário redefinir com precisão o sentido plurívoco do termo DaseínsanáZí- se. Para tanto, ele precisava explicar o que entendia em Ser e 7'empa por DaseinsartaZytík e lembrar-se de que ela consiste numa interpretação do ser-homem como BaseIE, mas que só explicita o ser e a constituição do homem na perspectiva da questão do ser. No entanto, o que há de decisivo na constituição do homem é a "compreensão de ser", isto é, o fato de que ele esteja aberto ao ser e que nele "se tratedo ser". Heidegger relembra que a analítica do Daseín não consiste, portanto, numa elaboração de estruturas antológicas do Z)aseín, mas num questiona- mento "das determinações que caracterizam o ser do Daseín na sua relação com o ser em geral', acrescentando que o que constitui "a diferença com relação a Husserl" é precisamente a definição do ser humano como Baseia e não como "subjetividade e consciência transcendental do ego"-'. Heidegger ressalta mais uma vez que a Única tradução adequada em francês para Dasefrt deveria ser "être Ze là" (ser o aí), e não "être là" (ser aí), pois na palavra Daseín não se deve acentuar a segunda sílaba, o "sela", pois o "aí" não visa de modo nenhum a uma simples "in- dicação local", mas a "uma abertura onde o ser humano mesmo pode entrar em presença"-". Em Ser e Tempo, a elaboração da analítica do .Daseín, âcando presa apenas à relação com a questão do ser e estando "a seu serviço"-'-, é limitada e deixada sabidamente incompleta, pois apenas as estruturas da existência (os "existenciais"), que servem à elaboração dessa questão, alcançam explicação, já que a tarefa essencial buscada por Heidegger é a interpretação do ser do l)aseÍrt como cuidado e temporalidade. Ela não constitui, assim, uma analítica completa do Daseín que poderia servir de base a uma antropologia filosófica. Heidegger distingue em seguida três significados diferentes do termo l)aseínsanáZÍse.' 1. Em Ser e tempo, a expressão "análise do l)aseín" designa "o põr às claras as determinações do l)aseín", ou sqa, os existenciais, como "a compreensão", a "disposição", a "de- cadência" etc. Como Heidegger tinha explicitado anterior- mente, ele não dá ao termo "análise" seu sentido científico moderno de recondução aos elementos, nem seu sentido freudiano de dissolução dos sintomas em elementos expli- cativos, mas seu sentido kantiano de recondução a uma unidade sistemática, já que o objetivo de Kant na "analítica 126. JbÍd., P. 86. 127. ibid., p. 93 e 9 1 128. M. Heidegger, Sémínaíres de Züdch, trad. de C. Gros, Paras, Galli- mard, 20 10, p. 182. 129. /bÍd., P. 182 130. üÍd. 131. /bÍd., P. 188 52 53 transcendental" era íàzer aparecer a unidade originária da função do entendimento"'. Não se trata certamente de considerar que a analítica do Daseln seja apenas um desenvolvimento da posição kantiana, mas Heidegger não deixa de reconhecer que é de Kant que ele tomou o termo "analítica" presente na expressão "analítica do l)aseín". No entanto, na perspectiva kantiana, analisar significa certamente decompor, mas com o objetivo de reconduzir isso que tinha sido decomposto à unidade. A analítica não é, então, "uma dissolução em elementos, mas a articulação da unidade de um conjunto estrutural":". Eis aí precisa- mente o objetivo que buscava Heidegger em sua analítica do l)asefn, mostrando o enraizamento dos existenciais na estrutura unitária do cuidado. Vê-se bem, então, que "o conceito de T)aseíns-análise' íàz ainda parte da analítica do l)asein, e, consequentemente, de uma ontologia""-. Por outro lado, os dois outros significados de DaseÍnsanáZfse não fazem mais parte de uma ontologia do Daseín, mas se encontram numa relação de fundamento com ela. modo global a um existencial"-". Não se trata simplesmente de subsumir os fenómenos particulares que concernem a um paciente sob este ou aquele existencial, é preciso, ao contrário, como Heidegger explica na sua entrevista com Boss em 27 de setembro de 1968, que o médico leve em consideração e trate de seu paciente "à luz de uma proÜeção do ser humano como l)a-sair", pois o que se exige de um médico é "o mais diHicil", a saber, "a passagem do projeto de ser humano enquanto vivente racional a ser humano enquanto Dasefn":". Heidegger de fato sublinha que, "para o cientista hoje, mas também para aquele que está fami- liarizado com o prometo a que visa o l)a-sair", "deixar ser esse ente (o homeml à luz do l)a-sair é algo que permanece extremamente diHlcil, incomum e sempre remete mais uma vez à necessidade da prova""'. O único meio de afastar as representações inadequadas que se íàzem do ser humano como ser vivente racional no conjunto da tradição filosófica, como sujeito na relação sujeito-objeto na filosofia modema ou como vivente que se produz a si mesmo no marxismo, só se tornará possível "quando se conseguir, com paciên- cia e persistência, entrar na experiência do ser humano como Z)a-sela e quando toda a pesquisa concernente ao ser humano, em plenas condições ou doente, se esclarecer antecipadamente a partir daí" n 2. O segundo sentido de DaselnsanãZíse é o que a define como o revelar e o descrever de fenómenos que se mostram concretamente junto a um Daseín particular. Trata-se aqui da DaseírtsartáZíse médica, aquela praticada pela medicina e o analista na sua relação com um paciente. Essa análise, dirigida a um existente singular, se orienta necessariamente a partir dos existenciais revelados na analítica do Baseia. Há, então, uma relação de ./izndaçâo entre a Z)asdnsanáZfse ontológica de Ser e tempo e a l)aseln- sanáZíse médica. O que importa aqui é que "os fenómenos que aparecem a cada vez na relação do analisando e do analista sejam trazidos à palavra a partir deles mesmos em seu teor fenomenológico, o que implica que se tenha conta aí do fato de que eles são remetidos sempre a tal ou qual paciente concreto" em vez de "serem reconduzidos de 3. No entanto, ao lado da l)aseÍnsanó/{se médica propria- mente dita, pode-se ainda dar a esse termo um terceiro sentido, segundo o qual ele designa "o conjunto de uma possível disciplina que tem como objetivo expor de maneira coerente os fenómenos existenciais que se podem revelar no l)aseÍn sócio-histórico e individual, no sentido de uma antropologia õntica marcada pela analítica do Baseia":" Trata-se de uma antropologia existencial que interpreta os fenómenos existenciários do Z)aseín a partir do horizonte 135. Ibid., p. 187 jtrad. mod.) 136. Ibid., p. 280 jtrad. mod.l 137. Ibid., p. 310 jtrad. mod.l 138. ibid. (trad. mod.). 139. JbÍd., p. 189 jtrad. mod.) 132. üíd., P. 174-175. 133. ]bld., P. 176. 134. /bÍd. P.188. 54 55 da analítica existencial do l)asetn e que substitui, assim, a antropologia tradicional fundada sobre a interpretação do homem como animal rafíona/e. Semelhante antropologia conforme à analítica existencial pode ser dividida em an- tropologia da normalidade e em patologia DaseírlsanaZíflca. Heidegger mostra de modo preciso que a elaboração de uma "DaseÍnsartáZzse" antropológica não pode consistir numa simples clarificação dos fenómenos considerados, mas deve, na verdade, permanecer constantemente orientada pela existência histórica concreta do homem de hoje, isto é. do homem das sociedades industriais. Heidegger explica que a Z)aselnsaná/íse médica se apoia sobre os elementos fornecidos pela DaseínsanãZise antropológica, sendo dessa a realização concreta. Todavia, enquanto prática terapêutica, ela não se confunde com a l)aselnsanálíse antropológica, porque ela constitui uma tarefa propriamente científica, que pode, por sua vez, ser considerada como a realização concreta da l)aselnsanáZíse no primeiro significado, aquela à qual Heidegger dá uma conotação onto1(5gica:" No exame crítico da DaseírlsanáZíse psiquiátrica de Binswanger que ele protagoniza nos Seminários de Zuríque, Heidegger sublinha, como veremos em seguida, a importân- cia da compreensão de ser como base e traço fundamental do Dasefn. Todos os existenciais são apenas características da compreensão de ser, embora o que Binswanger tenha retido de Ser e (er7zpo tenha sido o ser-no-mundo, sem perceber que esse existencial está fundado sobre a compre- ensão de ser: ele não entendeu que não é o ser-no-mundo que é a condição do BaseIE, mas que é o contrário que se dá, que é o Da-sela que, enquanto compreensão de ser, é por isso mesmo no-mundo. Isso significa,aos olhos de Heidegger, que a Daselnsaná/íse psiquiátrica de Binswan- ger não está fundada sobre uma plena compreensão da analítica do Baseia, e que ela permanece consequente mente uma interpretação exístencíária do l)aseÍrt desato. Capítulo ll Os fundadores 140. Sobre a relação de analítica do Daseírz e de l)aseínsanáZíse nos Semí- náhos de Ztzdch, ver o artigo muito esclarecedor de F. W. von Herrmann, DaseínsanáZÍse e pensamento do Eretgnís", trad. de B. Richter com a colaboração de F. Dastur, l,'Hrt du corrtprencíre, n' 5/6, dezembro 1996. 56 57 EDIÇÃO Monica Casa Nova REVISÃO Marco Antonio Casanova CAPA E PROJETO GRÁFICO Giovana Paape DIAGRAMAÇÃO Alexandre Sacha Paape Casa Nova IMAGEM DE CAPA Alberto Giacometti - A floresta j19501 DASEINSANÁLISE FENOMENOLOGIA E PSICANÁLISE D255e Françoise Dastur e Philippe Cabestan DASEINSANALISE: FENOMENOLOGIA E PSICANÁLISE Tradução: Alexander de Carvalho; Revisão: Marco Casanova l ed. Rio de Janeiro: Via Venta - 2015 Tradução de: Daseinsanalyse: Phenomenologie et Psychanalise 255 p. ; 14x23 cm. Françoise Dastur e Philippe Cabestan ISBN: 9788564565319 1. Psicologia, Psicanálise. 2. Fenomenologia - 1. Título 432C I' edição Rio de Janeiro, 2015 !E:ilíil:ãà.aa7 í;isn.=B='"; ; Tel.:Jardim Botânico - Rio de Janeiro, RJ, 22460-1 80 www.viaverita.com.br editorial@viaverita.com.br institutodasein(@institutodasein.org
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