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Heidegger e Daseinsanalyse

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apenas de elaborar outras categorias lou existenciaisl para
descrever esse ente cuja existência caracteriza seu modo
de ser, mas também de entrar em guarda frente a toda
reintrodução subreptícia, uía naturalismo principalmen
te, da ontologia da presença à vista (Vorhandenhelfl. Tal
é precisamente a tarefa da qual se encarrega a analítica
existencial e a l)aseínsanáZÍse.
em 1964". Antes, então, de se chegar à questão sobre
o que significa isso que Heidegger chama de "analítica
do Daseín"" ou "analítica existencial"", é necessário
começar esclarecendo a própria noção de -Daseín, palavra
que Heidegger escolheu para designar o ser do homem
e que, assim, pode-se dizer, representa o que o pensa-
mento heideggeriano trouxe de mais novo no contexto
fenomenológico. Como ele explicou na introdução que
acrescentou em 1949 a seu curso inaugural de 1929 em
Freiburg sob o título "0 que é a metaHisica?", "toda a
reflexão se interrompe, se se contenta com constatar que
no lugar de Bewusstseln (consciências emprega-se em Ser
e Tempo a palavra Daseín. Como se o debate se tratasse
do uso de palavras diferentes"". Não se tratava, para
Heidegger, em 1927 de realizar uma simples mudança
terminológica, mas, ao contrário, de propor uma nova
concepção do ser do homem
B. Analítica existencial e l)aseínsaná/ise
O termo "Daseínsaná/fse" nào aparece em Ser e
Tempo, obra maior de Heidegger, mas é em referência à
problemática da "análise fundamental preparatória do
Dasefn" que aí se expõe, que Binswanger a emprega. Esse
termo foi inicialmente traduzido em francês por "anaZgse
eMstentíerle" (análise existencialj" nas primeiras tradu-
ções que foram feitas das obras de Binswanger". Mas essa
denominação é em sua origem um contrassenso sobre o
sentido original que Heidegger deu ao termo l)aseín: é a
razão pela qual se passou a conservar o termo alemão
Daseín nas traduções francesas da obra de Heidegger.
Essa palavra, que significa literalmente ser (Seinl aí
jcZal, foi traduzida de diferentes maneiras em francês:
de início por "réaZíté-humaÍne" (realidade humanas, nas
primeiras traduções feitas de alguns capítulos de Ser e
Tempo por Henry Corbin em 1938"; depois por "être-là"
jser-aí) na primeira tradução, de Rudolf Boehm e Al-
phonse De Waelhens, da primeira seção de Ser e Tempo
1. A concepção heideggeriana do ser do homem
A palavra Daseín aparece na língua alemã no século
XVlll, no momento em que se buscou traduzir a palavra
latina exlsfenfla. Nesse contexto, ela tem o sentido de o "ser
aí" ou "estar aí" de algo, ou seja, de sua presença efetiva
e de sua factualidade, em oposição à sua "quididade" ou
essência, segundo a oposição tradicional que a filosofia
grega clássica estabeleceu entre existência e essência.
Heidegger, porém, que designa com essa palavra exclu-
65. Para diferenciar o termo eMstentíe!(EãsterizÍeZ{ em alemãol do eMs-
fentíaZ IEMsterlzíaÜ, nós os traduziremos respectivamente por eMstencfáHo
e eMstenclaZ. IN.T.j
66. L. Binswanger, AnaZyse exístentíeZZe et psychanaZyse ./}euciÍenne.
Discours, parcours et Freud. \Analise existencial e psicanálise .freudiana.
Discurso, percurso e n'eucÜ. Trad. fr. R. Lewinter, Paria, Gallimard, 1970
e Introductlon à Z'anaZyse exlsfeníÍeZie, trad. fr. J. Verdeaux e R. Kuhn
Paria, Êditions de Mnuit, 1971
67. M. Heidegger, Qu'est-ce que Ja métaphysÍqzze ? suíuí d'extraíts sur
!'être et !e fer7zps et cí'une cora/érence sur }íéiZderZín, trad. par H. Corbin
Paria, Gallimard, 1938. Ver o prefácio do tradutor, p. 13.
68. M. Heidegger, Qu'est-ce que Za métaphysique? Suíu{ d'extraÍís sur
I'êfre et ie femps et d'une cor!/érence sur l ÕZderZtn, trad. de H. Corbin
Paras, Gallimard, 1938. Cf. Prefácio do tradutor, p. 13
69. M. Heidegger, Être et 7'emps, trad. de F. Vezin, Paras, Gallimard,
1986, g9, p. 73 l4 11. Nós nos permetiremos modiâcar essa tradução seja
por nossa própria conta, seja nos apoiando na primeira tradução de R
Boehm e A, De Waehlens ou na tradução fora de catálogo publicada em
1965 por Emmanuel Martineau pela Éditions Authentica. A paginação
do texto original alemão está indicada na margem nas três traduções.
70. üió., S l i, p. 83 (501
71. HEIDEGGER, Questtons J; Paria, Gallimard, 1958, p. 32
34 35
vivamente o ser do homem, Ihe dá um novo sentido, em
que o acento não se põe mais no simples fato de ser aí,
mas na relação intrínseca do homem com o ser, de modo
que o homem pode ser compreendido como o "aí" ou o
"sítio" da compreensão de ser". Essa é a razão pela qual
Heidegger se opôs à tradução literal de DaseÍn por "ser-aí",
como ele já tinha explicado numa carta a Jean Beaufret
em novembro de 1945: "Da-sem é uma palavra chave de
meu pensamento, ela também dá lugar a graves erros de
interpretação. 'Da-sela' nào significa para mim 'eÍs-me',
mas, se eu puder me exprimir num francês sem dúvida
impossível: être-le-là (ser-o-aí) e Ze là é precisamente
aZêtheÍa: desvelamento - abertura" ". E no seminário que
ele realizou em colaboração com Eugen Fink durante o
inverno de 1966-1967, ele explicou novamente que, com
tal tradução, "tudo o que tinha sido conquistado em Ser e
tempo como nova posição se perdeu"". Relembrando que
nessa obra Dasefn vem escrito Da-sem, ele sublinha que o
"da" (o aí) "é a clareira e a abertura do ente onde o homem
se expõe"". A questão para ele era arrancar esse termo do
sentido que ele tem na língua alemã corrente, na qual ele
designa a presença efetiva de algo, a íim de Ihe dar a nova
significação do ser aberto ao ser do homem.
O objetivo que Heidegger procurava alcançar em
Ser e tempo consistia, na verdade, em pensar de maneira
nova o ser do homem, cujas definições tradicionais Ihe
pareciam insuficientes no que diz respeito ao que consti-
tui a verdadeira especificidade do ser humano. E a razão
pela qual ele começa a rechaçar todos os nomes que
foram utilizados na tradição hlosófica para designar o que
constitui o próprio do homem. Assim, ele declara que os
termos "sujeito", "alma", "consciência", "espírito", "pessoa"
"denominam todos setores determinados do fenómeno"
em questão, mas que "seu emprego anda sempre de mãos
dadas com um notável esquecimento da necessidade de põr
em questão o ente assim designado"". É isso que explica
que esses termos devam ser evitados, assim como as ex-
pressões "vida" e "homem" "para designar o ente que nõs
mesmos somos"". O principal cuidado de Heidegger nessa
primeira seção da obra, consagrada à "análise fundamental
preparatória do Daseln", é delimitar o Dasein com relação
à antropologia, à psicologia e à biologia. Esses domínios de
pesquisa, cujos fundamentos permanecem não esclareci-
dos e que não respondem à questão do modo de ser do ser
humano. Não há, na verdade, nenhuma ambiguidade aí:
o que Heidegger busca como objetivo final de sua pesqui-
sa não é a determinação do ser do homem. Ao contrário,
como ele cuidara de precisar em seguida, a analítica do
Daseín é uma interpretação ontológica do ser do homem
como Baseia que não tem seu fim em si mesmo, mas que
permanece, ao contrário, "a serviço da questão condutora
à verdade do ser"". Isso não é claramente percebido por
todos que condenam Heidegger por não ter levado em conta
em Ser e ter7tpo todos os aspectos da existência humana e
de ter se silenciado sobre este ou aquele fenómeno julgado
por eles essencial para a compreensão do ser do homem.
No entanto, Heidegger deixou claro e explícito em Ser e
ter7tpo que a analítica do DaseÍrt não tem como objetivo
estabelecer as bases ontológicas da antropologia, mas tem
unicamente como flm a ontologia fundamental", a saber,
o estabelecimento da base ontológica com o fundamento
na qual as ontologias regionais podem em seguida se es-
tabelecer". Como explica Heidegger, dado que "ao Baseia
pertence ser num mundo", a compreensão disso que é
DaseÍn envolve igualmente a compreensão do mundo e do
72. Cf. ÊLre et [emps, g3, p. 32 (91 anotação b (tradução modiâcada).Essas anotações foram acrescentadas por Heidegger entre 1929 e os
últimos anos de sua vida no seu exemplar pessoal.
73. HEIDEGGER, Letfre sur i'humanÍsme, p. 183- 185.
74. HEIDEGGER, FINK, /]éracZífe, trad. do J. Launay e P. Lévy, Pauis,
Gallimard, 1973, XI, p. 174
75. JÓIA., P. 175.
76. Être et tempo, S 10, p. 78 (46).
77. Ibid
78. HEIDEGGER, Quesfíons J, p. 32.
79. Être et tempo, g 42, p. 250 12001. Cf. DASTUR, Heídegger ef {a quesüon
anfhropoZoglque(Heidegger e a questão antropolõgical, Louvam-Paras,
Peeters, 2003
80. BÍd., g 4, P. 37 (13)
36 37
ser dos entes pertencentes ao mundo, de modo que "as
antologias que têm por tema o ente cujo modo de ser não
é da ordem do l)aseín" são, consequentemente, fundadas
sobre a estrutura deste último'
A analítica do l)aseÍn tem como objetivo explicitar
a constituição ontológica do homem, mas, como o que há
de decisivo nessa constituição ontológica é a compreensão
do ser, essa análise preparatória de um ente determina-
do, o Z)aseln, pode permitir liberar o horizonte de uma
compreensão e de uma explicitação do ser enquanto tal.
A incompletude da analítica do Z)aseín, ou seja, o fato
de que ela não se prende à explicação da totalidade das
estruturas do ser do l)aseín", não poderia ser reprovada
como um defeito, porque é por princípio que ela se limita à
explicação apenas dos existenciais que servem diretamente
para a elaboração da questão do ser. A análise do Z)aseln
tem, assim, a sua maior importância no que reconhece ao
l)aseln, entre todos os entes, o privilégio de poder com-
preender o ser. O que o distingue de uma simples coisa
é o fato de que "ele se relaciona em seu ser com esse ser
mesmo" ". E é esse ser mesmo com o qual ele se relaciona
sempre de uma maneira ou de outra que Heidegger chama
de "existência" (EMsferl.zl, reservando, assim, esse termo
à designação do modo de ser do homem. Como Heidegger
explica novamente na sua introdução de 1949 a "0 que é
a metaHisica?", existência designa em Ser e tempo "a es-
sência extática do DaseÍn", dando, assim, a essa palavra
o sentido que já Ihe reconhecia Schelling. E é justamente
por conta dessa noção, que Schelling se opunha a Hegel, ao
sublinhar a natureza extra-lógica da existência. Schelling,
contudo, não empregava esse termo para designar uma
dimensão fundamental do ser humano, ele o aplicava, ao
contrário, a Deus, que, para ele, não se contenta em ser,
a título de fundamento primeiro, mas existe, no sentido de
que Schelling faz Deus agir fora de si mesmo para cumprir
sua essência, de modo que a criação deva ser considerada
como uma autorrevelação de Deus e não como a fabri-
cação do grande obreiro, como se pensa habitualmente
e, portanto, falsamente, assimilando o ato criador à arte
humana". É se referindo a Kierkegaard, que frequentou
as aulas de Schelling em Berlim em 1841-42 e que será o
primeiro a aplicar esse termo ao ser humano, que Heide-
gger sublinha, ele também, que se trata de entender esse
termo em seu sentido literal de ser (stsferel fora de si(e4.
No entanto, é preciso não se deixar equivocar com o
que Heidegger quer dizer aqui, lembrando que ele sempre se
recusou a ver seu pensamento elencado sob o rótulo de "filo-
sofia da existência" ao lado de Kierkegaard, Jaspers e Sartre"
C) que caracteriza de maneira prímordia] o Dasdn é o fato de
que "a compreensão de ser é ela mesma uma determinação do
ser do l)asdn"". Mas, tendo assim a capacidade de compreen-
der a si mesmo em seu próprio ser, o Dasdn tem no mesmo
larlce a capacidade de compreender o ser dos outros entes. É
isso que Heidegger sente a necessidade de deixar bem claro,
de modo a eliminar qualquer ambiguidade, numa anotação
adicionada à margem de seu exemplo' pessoal de Sc?re tempo,
sublinhando que "ser não se restringe aqui ao ser do homem
jexistência)", pois "o ser-no-mundo inclui em sí a relação da
existência com o ser em seu todo: compreensão de ser" ".
Compreendendo seu próprio ser, o Daseín não está fechado
em si mesmo, mas, ao contrário, justamente por isso, ele está
aberto ao ser do ente que ele não é. O homem é, para Heide-
gger, portanto, esse ser que está constantemente em relação
com o ser de tudo o que é. Ê essa a razão pela qual ele só pode
se definir no modo do ser fora de si, isto é, como ex-stsfenoz.
84. Cf. F. W. J. Sche]]ing, Oeuures ]WétaphysÍques Cobras ]WetaPsícas),
Paras, Gallimard, 1980, p. 181
85. Eis o que ele escreveu em 1937 a Jean Wahl: "Devo dizer mais
uma vez que minhas tendências filosóâcas, ainda que se trate em Ser
e tempo de EHstenz e de Kierkegaard, não podem ser classiâcadas
como l:xísterzzphílosophÍe (...). A questão que me preocupa não é a da
existência do homem; é a do ser no todo e enquanto tal". BuZZetÍn de Za
Socíeté./tançaíse de phlioso/lpÍe, 1 937, n' 5, p. 193
86. Être et tempo, g, p. 36 (12) (trad. mod.)
87. /bld. , anotação a. (trad. mod.)
8 1. Cf. üíd.
82. Cf. capítulo 11, parte B, que trata de Boas.
83. /bÍd., S4, p. 36 (12) (tradução modiâcadal.
38 39
l i«le-se, a partir dai, deõnir a compreensão efetiva que
l l /)íoflpi tem (le si mesmo como uma compreensão eüsíen-
r'ü\rifa. Mfls isso que Heidegger chama de análise eMsfencíaZ
nulo sc situa no nível simplesmente "existenciário" do com-
portamento individual concreto, mas no da explicitação e da
tematizaçào da estrutura ontológica da existência. A tarefa da
analítica eMstencíaZ consiste, assim, em distinguir e analisar
as modalidades de ser fundamentais do l)aseüb cujo conjunto
constitui o que Heidegger chama de adstencladdade". Como
ele cuida muito bem de sublinhar, esses modos de ser do
Z)aseín ou ensfencíals "devem ser claramente separados das
determinações de ser do ente que não é da ordem do l)aseín
que chamamos de cafegoHas'h'. A diferença entre existencial
e existenciário deve ser particularmente sublinhada: não há
de modo nenhum um nível existencial sem fundamento exis-
tenciário, isto é, sem a compreensão que tem de sua própria
existência um l)aseín a cada vez particular. Mas a analítica
existencial, por não visar a nenhum Baseia particular, mas
ao Baseia enquanto tal, constitui o que Heidegger chama de
onfoZogta.@ndamenfaZ. É, de fato, como já vimos, a análise
desse modo de ser específico do homem, que é a existência,
que serve de base a todas as ontologias regionais cuja tarefa
é elucidar o modo de ser dos outros entes que não o l)aseín,
daqueles que advêm do ambito da "natureza" ou do da "vida".
O que se desenvolve de tal orientação ontológica da
problemática de Heidegger em Ser e ter7zpo é que a analítica
do Z)aseln recebe aí uma função puramente metodológica.
Dizendo de outro modo, éjustamente por ser o próprio Baseia
que põe a questão do ser que o que está em questão para ele
aí, inicialmente, é se compreender a partir de seu próprio ser.
Como Heidegger explica desde as primeiras páginas da intro-
dução, a elaboração da questão do ser implica que um ente,
precisamente aquele que questiona, se torne transparente a
si mesmo em seu ser, e é esse ente que nós mesmos somos,
que tem, entre outras coisas, a possibilidade essencial de
questionar, que é designado do ponto de vista terminológico
I'omo l)aseím'. Não se trata aqui de dar um ponto de partida
lirbitrário à análise onto1(5gica, nem mesmo de proceder à
t'acolha de um ente exemplar sobre o qual se precisaria "ler"
o sentido do ser enquanto tal'-, mas de tomar como ponto de
l)artida não termos isolados entre os quais se poderia estabe
It'cer uma relação - o sujeito, de um lado, o objeto de outro
-. mas antes a relação entre o homem e o ser, relação essa
que Heidegger chama aqui de Da-sdn. Este é o "estado de
coisas" simp]es do qual parte Ser e tempo, tal como Heidegger
f)rotura explicar em 1962 em sua carta ao padre Richard-
son. Nessa carta, ele aârma que, "em Ser e fer7tpo, a própria
posição da questão a partir do domínio da subÜetividade se vê
desconstruída e toda problemática antropológicaeliminada"
de modo que "o ser que o questionamento de Ser e ter7zpo
busca alcançar não pode ser posto pelo sujeito humano""
Que esse ser não seja "posto" pelo sujeito humano
não implica, entretanto, que ele pennaneça inacessível: se
deve haver aí, como não cansa de sublinhar Heidegger, uma
compreensão pré-ontológica do ser, isto é, anterior a toda
elaboração filosóâca de uma ontologia, é necessário, então,
romper com a ideia kantiana de um ser ou de uma coisa em
si incognoscível, para pensar, ao contrário, uma abertura
essencial e recíproca do l)aseln ao ser. E isso que Heidegger
traduz com o termo Ersc/zZossen/zaf, para o qual as diversas
traduçõesjá propostas, "revelação" IBoehm e De Waelhens) ,
"abertura" (Martineau), inclusive "abertidade" joueüudel
IVezin), não chegam realmente a dar conta, por causa de seu
duplo sentido. O termo significa que o ser "se revela" ao l)aseín
enquanto é "revelado" por este último. Que o ser possa se
revelar vem do fato de que o l)aseín é esse ente que "comporta
em seu ser o mais propriamente possível o caráter do não
fechamento(t./nz.'erscmossen/teíZj"; a palawa "da" jaí) "signiâ-
cando essa abertura essencial", de modo que, como Heidegger
ressalta bem, "graças a ela, esse ente (o Daseínl está aí para
si mesmo e forma uma coisa só com o Da-sem do mundo""
90. níó., S p. (71.
91. /bíd., anotação c.
92. Heidegger, QuestÍorLS IK País, Gallimard, 1976, p. 186
93. Être et temps, g 28, p. 176 (1321 jtrad. mod.l
S8. ibid, S 4 p. 37 (i2).
89. 1z,íó., g 1 1, p. 7õ (44)
40 41
Compreende-se melhor a partir daí a identidade do
ser e do fenómeno do qual parte Heidegger e sua afirmação
categórica no final do g7: "A ontologia nào é possível senão
como fenomenologia"". Heidegger, remontando à noção
grega de phaínomenon, dá à ideia de fenómeno um signi-
ficado de todo novo em relação à tradição. Segundo seu
sentido grego em questão, phaÍnomenon significa "aquilo
que se mostra por si mesmo". E a partir dessa definição
formal que é possível distinguir o fenómeno da aparência,
a qual é uma "modificação privativa" do fenómeno em
que a coisa se mostra como ela não é, ao passo que, no
fenómeno, a coisa se mostra tal como ela é. Fenómeno e
aparência (em alemão Phãnomen e Scheín) designam os
dois a manifestação seja positiva seja negativa de uma
coisa. Isso já não vale para o termo Erschefnung, aparição,
que designa, ao contrário, uma não-manifestação. O que
aparece não se mostra, mas se anuncia através de outro
fenómeno que tem a função de indicar o que nào pode
se mostrar em pessoa. Não se deve, então, confundir o
fenómeno", que significa "um modo de encontro insigne
de alguma coisa", e a aparição, que indica uma relação
de envio a outra coisa que não essa que se manifesta.
Conforme essa definição formal do fenómeno, Heidegger
caracteriza a fenomenologia como tentativa de "fazer ver
o que se mostra por si mesmo tal como se mostra a partir
de si mesmo"", o que não é nada senão, ressalta ele,
aquilo que expressa a máxima husserliana exortando a
ir "diretamente às coisas mesmas"". Pode-se certamente
perguntar se se deve necessariamente "fazer ver" o que se
mostra por si só, e se, portanto, para o fenómeno assim
deânido como "o que se mostra por si mesmo", cabe re-
almente uma fenómeno-logra, ao que Heidegger responde
que pode acontecer de isso que é o fenómeno estar oculto
e, então, não imediatamente acessível. Esse fenómeno
oculto é o que Heidegger chama de "ser" e que deve se
(distinguir do ente que é apenas imediatamente acessível.
Mas não nos encontramos na perspectiva tradicional da
diferença entre ser e aparecer, que compreende o ser como
o que está "atrás" do que aparece e pertence a um mundo
transcendental com relação a esse, pois o ente não é uma
'aparição" que anunciaria um ser não suscetível de levar
a si mesmo ao aparecer. O ser é fenómeno e não aparição
IPhãnomen, não Erschelnungl e deve, portanto, poder se
mostrar sem a ajuda de outro fenómeno que o anunciaria,
evitando, assim, todo recurso à distinção entre o "interior"
e o "exterior" de uma coisa ou entre sua essência e sua
existência, pois essas distinções implicam que haveria
'atrás" da aparência de uma coisa sua verdadeira natureza.
2. Os dois níveis da analítica existencial
O objetivo de Heidegger em Ser e tempo é, tal
como ele explica no prefácio, "a interpretação do tempo
como horizonte possível de toda compreensão do ser em
geral"". A obra deveria compreender duas partes, como o
indica o plano que conclui a introdução", mas só as duas
primeiras seções da primeira parte seriam publicadas
em 1927. Essas duas primeiras seções têm exclusiva-
mente como objeto a analítica do Daseín, que estabelece
que o cuidado, cujo sentido é a temporalidade, é o ser
do Baseia, enquanto a terceira seção teria como tarefa
chegar a mostrar que o horizonte da compreensão do ser
"em geral" é o tempo. A analítica do Z)aseÍn tem, assim, de
acordo com o prometo ontológico buscado por Heidegger, um
caráter preliminar. Ela consiste, num primeiro momento,
em analisar a existência debata do Baseia, sem partir de
uma essência pressuposta ou de um ideal pré-delineado
dele, mas deixando-o se mostrar tal como ele se apresenta
na cotidianidade mediana, isto é, tal como ele de fRíGio e
rla mafoHa tias vezes é. Este é o que constitui o objeto da
94. üíó., g7, p. p. õ3 (351
95. ]bíd. g 7, p. 61-62 (34) (trad. mod.)
96. /bíd., g7, p. 62 (341. Ver, quanto a isso, Dastur, Martin Heidegger,
/ntroductíon â Za phénoménoZogie (/ntrodução à JenomenoZogÍal, sob a
direção de Ph. Cabestan, Pauis, Ellipses, 2003, pp. 37-61 97. /óid., p. 2i li)
98. Ibid., g 8, p. õ7 (39)
42 43
primeira seção, intitulado "a analítica fundamental prepa-
ratória do Z)aseín". Em seguida é possível, num segundo
momento, "repetir" essa análise preparatória: é isso que
tem lugar na segunda seção que, sob o título de "Baseia e
temporalidade", exp]icita o sentido temporal dos existenciais
apresentados na primeira seçào. A análise conduzida na
primeira seção não pôde, de fato, dar conta do l)asetn em
sua "autenticidade", isto é, no que ele tem de próprio, pois
ela se situa no nível da cotidianidade mediana. E por isso
que é necessário deixar o solo fenomenal da cotidianidade
para compreender o l)aseín em sua originariedade.
vida mundana e cotidiana que permanece, em seu exercí-
cio, cega para si mesma. Husserl se engaja desse modo na
busca genealógica de retorno a uma experiência originária
do mundo não mediatizado pelas idealizações provenientes
da ciência moderna que encontra sua origem na matema-
tização galileana da natureza, busca essa que implica a
Ábbau, a desconstrução metódica da epísteme, a fim de
a reconduzir à sua fonte originária na doze. Isso porque
se trata, sob o nome de "experiência pré-predicativa"-",
de legitimar esta última e de nào a considerar como um
domínio de evidências de estatuto inferior às da ciência.
O que se deve elucidar (au!/k/ãrenl são os pressupostos
ocultos sobre os quais repousam as idealizações cien-
tíficas. Husserl, com sua réplica (Rüc;c#age), propõe-se
simplesmente a nos fornecer uma compreensão do ideal
científico, o que implica que ele se disponha a retraçar
o itinerário total que leva da evidência pré-predicativa à
evidência predicativa:". É, portanto, sempre a partir do
domínio do que se revelou pelo método filosóâco que a
cotidianidade se vê elucidada.
Para Heidegger, por outro lado, nào se trata de
partir de uma ideia filosófica abstrata da existência, mas
do Z)aseln sob a forma indiferente na qual ele aparece
inicialmente e o mais frequentemente, pois "essa indife-
rença da cotidianidade do Dasetn pião é um nada, mas é,
ao contrário, um caráter fenomênico positivo desse ente"
porque "é a partir desse modo de ser e em íàzendo um
retorno a ele que todo existir é como é" «. Sendo assim, é
o ser ordinário e médio, a l)urcfzschníttZfchkeÍf do Daseln,
que se deve antesde tudo analisar, o que não é fácil, como
o observa Heidegger, na medida em que é justamente o
lugar da cotidianidade média constituinte do que o l)aseín
inicialmente é que não cessa e não cessou por todo o
percurso da história da filosofia de se perder de vista.
a. Ser-no-mundo e cotidianidade
Nessa primeira seção, que tem como objeto a análise
do Baseia cotidiano, Heidegger retoma, mas de maneira
nova, o prometo husserliano de uma fenomenologia do
"mundo da vida" que é o mundo da cotidianidade". É
preciso esperar a Última fase da âlosoâa de Husserl para
aí encontrar o que ele chamará, em .ExpeHêncla e ./uízo,
um livro publicado alguns meses depois de sua morte, de
uma "legitimação da doía" enquanto o "domínio das evi-
dências originais últimas"-". A ideia, de origem platónica
e cartesiana, de uma filosofia que rompe radicalmente
com a experiência cotidiana, comandava ainda o projeto
husserliano de uma fenomenologia concebida como filo-
sofia primeira, e é esse o prometo que o Husserl da Crise
das cfêncías europeias será levado a põr em questão. No
entanto, não devemos nos deixar enganar, pois isso não
significa o abandono da redução fenomenológica, nem do
idealismo que ela implica, mas simplesmente uma recom-
preensão profunda de uma e de outra, por meio da qual fica
claro que a fllosoâa não é, no final das contas, a perda de
evidências da vida natural, mas, ao contrário, a conquista
delas; ou seja, uma recompreensão do sentido pleno da 101. Cf. Dastur, l,eprobZême de Z'eapéHence arttéprédÍcatiue (HusserZ)(O
problema da e#)erfênda arztepredícaflual, Lap/zénoménoZogíe en quesflon,
Pm'is, Vrin, 2004, p. 49-64
[02. ]õíó., Si], p. 55.
103. Être et temps, S 9, p. 75 (431 jtrad. mod.l
99. HUSSERL, La case..., g 9h, p. 57 et g28, p. 1 19.
100. HUSSERL, Experiência et.@gemenfe, trad. fr. ]). Souche-Dagues,
Pauis, PUF, 1970, g 10, p. 53.
44 45
É por isso que a tarefa ontológica consiste precisamente
em torna-la acessível, caracterizando-a de forma positiva:
"nela, e mesmo no modo da impropriedade, reside a pdoH
a estrutura da existenciariedade"-". De fato, é a partir de
seu ser impróprio que o l)aseÍn pode realmente começar
a se encontrar a si mesmo como ser pr(5prio. Isso porque,
como é necessário sublinhar sempre de novo, as expressões
EigentZicllkelt-t/netgentZÍchkeít, que se traduzem o mais fre-
quentemente por autenticidade-inautenticidade, mas que
significam mais precisamente ser próprio e ser impróprio ,
não têm, sob a pena de Heidegger, significação moral no
sentido habitual do termo. O que o l)aseín é inicialmente
e o mais frequentemente é um si mesmo no modo da
dispersão, um si mesmo coletivo e anónimo, um "a gente",
que, enquanto tal, não conhece a distinção entre o eu e
os outros. Ê unicamente sobre essa base que a existência
pode se tornar um ser si mesmo propriamente, pois este
último, Heidegger deixa claro, "não repousa sobre nenhum
estado de exceção que ocorreria a um sujeito liberado do
a gente, mas é, ao contrário, uma modificação existencial
do a gente, o qual é um existenciário essencial"-". E o "a
gente" da cotidianidade que constitui a determinação pri-
meira e fundamental de toda existência singular.
Certamente, nesse primeiro nível, o existente se
compreende a si mesmo a partir das coisas com as quais
ele entra em relação de troca, ele se compreende como uma
coisa presente à vista (uorhanden)-", e é precisamente isso
que constitui sua impropriedade. Esse ser cotidiano é em si
mesmo uma maneira de ser no mundo que se caracteriza
pelo fato de que ele é, assim, inteiramente absorvido pelas
coisas com as quais ele se ocupa. E esse ser absorvido
pelo mundo:" de sua ocupação que Heidegger chama de
Vez:áar/erLhdt, decadência. No entanto, essa palavra não
tem o sentido de uma "queda" a partir de um estado mais
original, porque é precisamente esse estado de absorção
que é, ele sim, o estado original do ser humano-". Em seu
ser cotidiano, o existente não cessa de ser-no-mundo,
ainda que ele sqa cego para a transcendência que ele é
e que ele nào consegue deixar de ser sem se negar a si
mesmo como ex-istente. A possibilidade positiva da deca-
dência enquanto imersão no mundo encontra sua origem
na fuga do l)aseín diante de si mesmo e de seu poder
ser si mesmo propriamente«'. Mas é precisamente aqui
que não se deve confundir existenciário e existencial: do
ponto de vista existenciário, o l)aseírt, na fuga, se fecha a
si mesmo para o Daseln próprio; mas no nível existencial,
esse fechar a si mesmo para o modo próprio permanece
ainda uma abertura, ainda que sob o modo da privação,
porque o l)aseín foge de sí mesmo, isto é, de sua própria
singularidade. Não obstante, fugir de si mesmo é ainda
estar confrontado consigo mesmo, pois, como sublinha
Heidegger, "no que foge disso de que foge, o Baseia acaba
precisamente correndo 'atrás' de si mesmo"--'. Se essa
confrontação consigo mesmo não é ainda, no nível da
cotidianidade, nem percebida nem compreendida, o que
escapa aí, a saber, o Baseia no que ele tem de próprio,
"não está menos aí, já que ele se revela por esse desvio com
relação a sí mesmo"::.. É exatamente na "decadência" da
cotidianidade, nessa familiaridade que o liga às coisas de
seu entorno, que o Baseia pode encontrar a possibilidade
de se abrir ao que Ihe é próprio, ou soja, um ser jogado
no mundo, cujo modo existencial original é não estar em
casa em lugar nenhum--. É, pois, esse sentimento de
estrangeiridade que está no fundamento da tomada de
consciência de sua singularidade.
l08. /óíó. g 38 p. (176)
109. /btd., S 40, p. (1841
l lo. /bíd
1 1 i. /óló., g 40, p. (i85)
1 12. /óló., ê, p. 189
104. /bÍd., 76 (44).
i05. /óíó., S 27, p. li30l
1 06. ÜÍd.
107. Ibid., $ 38 P. (175).
46 47
b. O ser do Dízseín como cuidado é ao mesmo tempo entregue. É por isso que "a angústia
singulariza e isola o Daseírt no seu ser-no-mundo mais
próprio"--'. A angústia isola no sentido de que ela singulariza
o Baseia, no que ela realiza essa modihcação existencial
pela qual o si mesmo como "a gente", como impessoal, se
transforma em si mesmo "autêntico"
Não é de modo nenhum com o mundo que o Baseia
rompe na angústia, mas apenas com a jamí/{arídacíe que
caracteriza o ser-no-mundo cotidiano. É essa ligação com
o mundo que sofre uma modihcação: o ser-em, que vimos
ter na cotidianidade o sentido de um habitar, adquire a
modalidade existencial do não-em-casa (C/n-zuhause), o
que implica que a experiência de não estar em casa, da
"estrangeiridade" (Unhelmlfchkelt), ainda é uma maneira
de ter uma relação essencial com o mundo. Essa maneira
de ser-no-mundo sob o modo da estrangeiridade é, no
entanto, do ponto de vista existencial e ontológico, "o fe-
nómeno mais original"--,, a partir do qual pode haver algo
como um ser-no-mundo sob o modo da familiaridade. A
fuga que caracteriza o ser-caído é, então, fuga em dlreção
à familiaridade diante da estrangeiridade do l)aseín en-
quanto dançado no mundo. É diante disso que o Z)aseín
se angustia, diante de seu ser-lançado-no-mundo; é por
isso que ele se angustia, por seu poder-ser-no-mundo.
O que permite aparecer o fenómeno da angústia tomado
em seu todo é inicialmente a inseparabilidade desses
dois existenciais que são o ser-jogado (Gewopyêrlheífl e
o prometo (Entwurg, e que Heidegger nomeia agora como
facticidade e existencialidade:", enquanto estruturas de
ser-no-mundo compreendidas agora como estruturas do
cuidado definidas por ele da seguinte forma: "antecipar-
-se-a-si-mesmo-já-sendo-em-(mundos como ser-junto ao
lente intramundano que vem ao encontros":". Se a essa
estrutura, que articula os três existenciais fundamentais
jexistencialidade, facticidade e decadência) num fenómeno
E na angústia e por meio dela que tem lugar essa
tomada de consciência. A angústia é, na verdade, uma
disposição afetiva particular que se distingue do medo
por seu caráter absolutamente indeterminado, nosentido
de que isso que angustia não pode ser referido a nenhum
ente presente no mundo. No entanto, se na angústia o
ente no seu conjunto perde toda significação, se ele não
se apresenta mais como um ente apreensível, isso não
quer dizer que a angústia seja a experiência niilista do
nada absoluto, mas, ao contrário, que ela é a experiência
desse "algo" no sentido mais original que é o mundo en-
quanto tal -'. Se, por um lado, na cotidianidade, o mundo
pode "se anunciar" exatamente quando a ocupação -- que
sempre tem de tratar com um complexo de entes remetendo
uns aos outros, com um conjunto de "utensílios" - se vê
impedida, porque o utensílio se revela como inutilizável,
como ídtante ou com impertinente"', por outro lado, nessa
disposição que a angústia é, o mundo se abre original e
diretamente enquanto mundo.
E, na verdade, próprio da disposição enquanto
um existencial poder abrir o Daseín ao mundo na sua
totaZícíade mais originalmente do que o poderia o olhar
teórico: a disposição, essa que Heidegger nomeia como
Be/indZíchkelf, termo que tem em alemão o duplo sentido
de estar e de se sentir situado, é um modo fundamental
de abeüura do l)aseÍn ao mundo, ao seu próprio ser e aos
outros Dasejn. A primeira descoberta do mundo, devemo-la
à disposição. E a angústia é essa disposição insigne em
que advém "a identidade existenciária do abrir e disso que
se abre"--', porque ela não é somente, enquanto disposição,
angústia diante do ser-no-mundo, mas é também angústia
para o ser-no-mundo como tal. A angústia é, com efeito,
sempre angústia diante de uma Ifberdade à qual o l)aseÍn
i13. /óÍd., g 40 p. 236-237(1871.
1 14. /btd., S 16.
1 15. /bíd., g 40, p. 237 (1881 (traí. mod.)
1 16. ibid., 237 (187) (traí. mo(í.)
1 17. JbÍd., P. 239 (189).
118. Jóia., S 41, p. 241(191)(trad. mod.l
1 19. /bíd., p. 242 (1921 (traí. mod.l
48 49
unitário, Heidegger dá o nome de cuidado (Soryel, é com o
intento de despojar esse termo de toda conotação existencial
e moral, e de o tomar exclusivamente num sentido ontoló-
gico e existencial. Essa escolha não é, porém, arbitrária,
pois ela pode se defender por meio de uma "autoexplicação
pré-ontológica do l)aseÍn"-", que atesta o fato de que ele
se compreende a si mesmo como cuidado para além de
toda interpretação teórica.
O testemunho disso, Heidegger o encontra numa
obra poética, numa fábula do poeta latino Hygin que já
tinha chamado a atenção de Herder e de Goethe, e na qual
nào apenas o cuidado é visto como isso que possui o homem
por toda a sua vida, mas onde ele aparece também em
conexão com a concepção do homem como um composto
de matéria jde terra) e de espírito. Além disso, o latim cura
apresenta o mesmo duplo sentido de cura e de cuidado que
o alemão Sorgo, e Heidegger vê aí a designação da consti-
tuição una da estrutura essencialmente dupla do projeto
jogado- . A luz desse testemunho pré-ontológico, a definição
tradicional do homem como anlmaZ raffonaZe aparece como
não originária, pois ela concebe o homem, de maneira me-
taHisica, como um composto de sensível e inteligível e não
como um todo. Essa definição determina já de antemão
a essência do homem a partir de um domínio particular
do ente, a animalidade. Decide-se, assim, de antemão a
essência do homem que se propõe a definir acrescentando
uma diferença específica, a do pertencimento à razão. Mas
a partir do momento em que o homem é pensado como
pertencente à ordem da animalidade, nenhuma diferença
específica que se possa acrescentar a ele poderá faze-la
desaparecer. Como Heidegger sublinha na Carta sobre o
hz.{manísmo, tal definição do homem que o posiciona no
reino animal não pode chegar a pensar o que constitui
verdadeiramente sua humanidade-". Por outro lado, Hei-
degger se esforça para mostrar, no g41 , que o cuidado é
ontologicamente anterior ao querer, ao desejo, ao impulso
t' à propensão, isto é, a essas pulmões que se consideram
características do vivente em geral. Ao aârmar que não
é sobre a base de uma consideração do que é próprio à
vida que se poderá compreender o l)asefn e seu cuidado,
Heidegger rompe com a filosofia da vida que caracteriza
n tendência mais marcante do pensamento alemão desde
o romantismo. Ao fazer isso, Heidegger afirma com muita
ênfase que a análise do l)aseín não poderia partir de uma
biologia geral que compreenderia, a título de subconexões,
a antropologia e a psicologia:". O biologismo não pode
certamente em nenhum caso dar conta do que constitui
a humanídacíe do homem. É a biologia, ao contrário, que
se funda na ontologia do l)asein, o que implica que uma
antologia da vida não possa jamais ser realizada senão
pela via de uma interpretação privativa que teria como
tarefa determinar o que é unicamente vivente a partir da
experiência que o Daseín tem de sua própria existência-"
3. Daseírzsaná/íse e psiquiatria
Como relembra Ludwig Biswanger no texto inti-
tulado "Analítica do l)asetn e psiquiatria" publicado em
1951, é em 1946 que o psiquiatra suíço utiliza pela pri-
meira vez o termo Daseínsaná/íse na comunicação que faz
diante da sociedade suíça de psiquiatria sobre "A direção
da pesquisa DaseínsanaZítica em psiquiatria". Essa co-
municação será seguida em 1949 de um texto sobre "A
importância da analítica do l)asefn de Martin Heidegger
para a psiquiatria", publicado na coletânea de homena-
gens a Heidegger-". Nesse texto, ele deixa claro que, pela
"analítica do .Daselrl, conduzida por Martin Heidegger",
120. /bíd., g 42 (trad. mod.)
121. /bÍcÍ., P. 249 li991.
122. HEIDEGGER, l,effre sur J'humanísme (Carta sobre o humanismo) ,
p. 57: "A metaâisica pensa o homem a partir da artímaZÍtas, ela não pensa
o homem em direção a sua humanífas".
i23. /óió., gio, p. 82 (49)
124. /bÍcÍ., P. 82 IS01
125. L. Binswanger, AnaZyse exísterifíeZie et psychanaZyse .P'eudíenne,
op. Cít., p. 85. Mantemos a cada vez no lugar de "analítica existecial" o
termo alemão OaseÍnsanaZyse(OaseínsanáZísel .
50 51
ele entende "a clarificação filosófico-fenomenológica da
estrutura a pHoH ou transcendental do Daseln como ter-
no-mundo", e, por l)aseÍnsanáZfse, "a análise empírico-
fenomenológica, científica, de modos e estruturas do
Z)aseín de fato", sublinhando que é a primeira que "torna
possível e funda" a segunda'". Vê-se, então, que é uma
relação de fundação que une, segundo Binswanger, a
analítica do Baseia, empreendida com vistas a um ob-
jetivo estritamente ontológico, a essa ciência empírica e
antropológica que é aquela que ele mesmo nomeia como
"I)asetrlsaná/lse". Mas se ele sublinha que as "intenções
de Heidegger" são diferentes das suas, Binswanger não
conclui daí que isso de que trata a analítica do l)aseln seja
ainda o "problema da subjetividade". Além disso, mesmo
que essa subjetividade esteja descolada da relação sujeito-
objeto e situada "sobre o vasto terreno do ser-no-mundo
como transcendência""', a interpretação de Ser e Tempo
levada a termo por Binswanger se mantém no âmbito da
fenomenologia transcendental husserliana.
E isso que explica que, nos últimos encontros dos
seminários que Heidegger realizou entre 1959 e 1965 na
casa de Boss em Zollikon, ele tenha experimentado a ne-
cessidade de voltar à questão da diferença entre analítica
do Z)asefn e l)aseÍnsanã/{se, fazendo, porém, abstração
da analítica psiquiátrica do l)aseín de Binswanger, que
permanece orientada pela fenomenologia husserliana da
consciência«'. Mostra-se realmente necessário redefinir
com precisão o sentido plurívoco do termo DaseínsanáZí-
se. Para tanto, ele precisava explicar o que entendia em
Ser e 7'empa por DaseinsartaZytík e lembrar-se de que ela
consiste numa interpretação do ser-homem como BaseIE,
mas que só explicita o ser e a constituição do homem na
perspectiva da questão do ser. No entanto, o que há de
decisivo na constituição do homem é a "compreensão de
ser", isto é, o fato de que ele esteja aberto ao ser e que
nele "se tratedo ser". Heidegger relembra que a analítica
do Daseín não consiste, portanto, numa elaboração de
estruturas antológicas do Z)aseín, mas num questiona-
mento "das determinações que caracterizam o ser do
Daseín na sua relação com o ser em geral', acrescentando
que o que constitui "a diferença com relação a Husserl"
é precisamente a definição do ser humano como Baseia
e não como "subjetividade e consciência transcendental
do ego"-'. Heidegger ressalta mais uma vez que a Única
tradução adequada em francês para Dasefrt deveria ser
"être Ze là" (ser o aí), e não "être là" (ser aí), pois na palavra
Daseín não se deve acentuar a segunda sílaba, o "sela",
pois o "aí" não visa de modo nenhum a uma simples "in-
dicação local", mas a "uma abertura onde o ser humano
mesmo pode entrar em presença"-". Em Ser e Tempo, a
elaboração da analítica do .Daseín, âcando presa apenas à
relação com a questão do ser e estando "a seu serviço"-'-, é
limitada e deixada sabidamente incompleta, pois apenas
as estruturas da existência (os "existenciais"), que servem
à elaboração dessa questão, alcançam explicação, já que a
tarefa essencial buscada por Heidegger é a interpretação
do ser do l)aseÍrt como cuidado e temporalidade. Ela não
constitui, assim, uma analítica completa do Daseín que
poderia servir de base a uma antropologia filosófica.
Heidegger distingue em seguida três significados
diferentes do termo l)aseínsanáZÍse.'
1. Em Ser e tempo, a expressão "análise do l)aseín" designa
"o põr às claras as determinações do l)aseín", ou sqa, os
existenciais, como "a compreensão", a "disposição", a "de-
cadência" etc. Como Heidegger tinha explicitado anterior-
mente, ele não dá ao termo "análise" seu sentido científico
moderno de recondução aos elementos, nem seu sentido
freudiano de dissolução dos sintomas em elementos expli-
cativos, mas seu sentido kantiano de recondução a uma
unidade sistemática, já que o objetivo de Kant na "analítica
126. JbÍd., P. 86.
127. ibid., p. 93 e 9 1
128. M. Heidegger, Sémínaíres de Züdch, trad. de C. Gros, Paras, Galli-
mard, 20 10, p. 182.
129. /bÍd., P. 182
130. üÍd.
131. /bÍd., P. 188
52 53
transcendental" era íàzer aparecer a unidade originária
da função do entendimento"'. Não se trata certamente
de considerar que a analítica do Daseln seja apenas um
desenvolvimento da posição kantiana, mas Heidegger não
deixa de reconhecer que é de Kant que ele tomou o termo
"analítica" presente na expressão "analítica do l)aseín".
No entanto, na perspectiva kantiana, analisar significa
certamente decompor, mas com o objetivo de reconduzir
isso que tinha sido decomposto à unidade. A analítica não
é, então, "uma dissolução em elementos, mas a articulação
da unidade de um conjunto estrutural":". Eis aí precisa-
mente o objetivo que buscava Heidegger em sua analítica
do l)asefn, mostrando o enraizamento dos existenciais na
estrutura unitária do cuidado. Vê-se bem, então, que "o
conceito de T)aseíns-análise' íàz ainda parte da analítica
do l)asein, e, consequentemente, de uma ontologia""-. Por
outro lado, os dois outros significados de DaseÍnsanáZfse
não fazem mais parte de uma ontologia do Daseín, mas se
encontram numa relação de fundamento com ela.
modo global a um existencial"-". Não se trata simplesmente
de subsumir os fenómenos particulares que concernem a
um paciente sob este ou aquele existencial, é preciso, ao
contrário, como Heidegger explica na sua entrevista com
Boss em 27 de setembro de 1968, que o médico leve em
consideração e trate de seu paciente "à luz de uma proÜeção
do ser humano como l)a-sair", pois o que se exige de um
médico é "o mais diHicil", a saber, "a passagem do projeto
de ser humano enquanto vivente racional a ser humano
enquanto Dasefn":". Heidegger de fato sublinha que, "para
o cientista hoje, mas também para aquele que está fami-
liarizado com o prometo a que visa o l)a-sair", "deixar ser
esse ente (o homeml à luz do l)a-sair é algo que permanece
extremamente diHlcil, incomum e sempre remete mais uma
vez à necessidade da prova""'. O único meio de afastar as
representações inadequadas que se íàzem do ser humano
como ser vivente racional no conjunto da tradição filosófica,
como sujeito na relação sujeito-objeto na filosofia modema
ou como vivente que se produz a si mesmo no marxismo,
só se tornará possível "quando se conseguir, com paciên-
cia e persistência, entrar na experiência do ser humano
como Z)a-sela e quando toda a pesquisa concernente ao
ser humano, em plenas condições ou doente, se esclarecer
antecipadamente a partir daí" n
2. O segundo sentido de DaselnsanãZíse é o que a define
como o revelar e o descrever de fenómenos que se mostram
concretamente junto a um Daseín particular. Trata-se
aqui da DaseírtsartáZíse médica, aquela praticada pela
medicina e o analista na sua relação com um paciente.
Essa análise, dirigida a um existente singular, se orienta
necessariamente a partir dos existenciais revelados na
analítica do Baseia. Há, então, uma relação de ./izndaçâo
entre a Z)asdnsanáZfse ontológica de Ser e tempo e a l)aseln-
sanáZíse médica. O que importa aqui é que "os fenómenos
que aparecem a cada vez na relação do analisando e do
analista sejam trazidos à palavra a partir deles mesmos
em seu teor fenomenológico, o que implica que se tenha
conta aí do fato de que eles são remetidos sempre a tal ou
qual paciente concreto" em vez de "serem reconduzidos de
3. No entanto, ao lado da l)aseÍnsanó/{se médica propria-
mente dita, pode-se ainda dar a esse termo um terceiro
sentido, segundo o qual ele designa "o conjunto de uma
possível disciplina que tem como objetivo expor de maneira
coerente os fenómenos existenciais que se podem revelar
no l)aseÍn sócio-histórico e individual, no sentido de uma
antropologia õntica marcada pela analítica do Baseia":"
Trata-se de uma antropologia existencial que interpreta os
fenómenos existenciários do Z)aseín a partir do horizonte
135. Ibid., p. 187 jtrad. mod.)
136. Ibid., p. 280 jtrad. mod.l
137. Ibid., p. 310 jtrad. mod.l
138. ibid. (trad. mod.).
139. JbÍd., p. 189 jtrad. mod.)
132. üíd., P. 174-175.
133. ]bld., P. 176.
134. /bÍd. P.188.
54 55
da analítica existencial do l)asetn e que substitui, assim, a
antropologia tradicional fundada sobre a interpretação do
homem como animal rafíona/e. Semelhante antropologia
conforme à analítica existencial pode ser dividida em an-
tropologia da normalidade e em patologia DaseírlsanaZíflca.
Heidegger mostra de modo preciso que a elaboração de uma
"DaseÍnsartáZzse" antropológica não pode consistir numa
simples clarificação dos fenómenos considerados, mas
deve, na verdade, permanecer constantemente orientada
pela existência histórica concreta do homem de hoje, isto
é. do homem das sociedades industriais.
Heidegger explica que a Z)aselnsaná/íse médica se
apoia sobre os elementos fornecidos pela DaseínsanãZise
antropológica, sendo dessa a realização concreta. Todavia,
enquanto prática terapêutica, ela não se confunde com a
l)aselnsanálíse antropológica, porque ela constitui uma
tarefa propriamente científica, que pode, por sua vez, ser
considerada como a realização concreta da l)aselnsanáZíse
no primeiro significado, aquela à qual Heidegger dá uma
conotação onto1(5gica:"
No exame crítico da DaseírlsanáZíse psiquiátrica de
Binswanger que ele protagoniza nos Seminários de Zuríque,
Heidegger sublinha, como veremos em seguida, a importân-
cia da compreensão de ser como base e traço fundamental
do Dasefn. Todos os existenciais são apenas características
da compreensão de ser, embora o que Binswanger tenha
retido de Ser e (er7zpo tenha sido o ser-no-mundo, sem
perceber que esse existencial está fundado sobre a compre-
ensão de ser: ele não entendeu que não é o ser-no-mundo
que é a condição do BaseIE, mas que é o contrário que se
dá, que é o Da-sela que, enquanto compreensão de ser,
é por isso mesmo no-mundo. Isso significa,aos olhos de
Heidegger, que a Daselnsaná/íse psiquiátrica de Binswan-
ger não está fundada sobre uma plena compreensão da
analítica do Baseia, e que ela permanece consequente
mente uma interpretação exístencíária do l)aseÍrt desato.
Capítulo ll
Os fundadores
140. Sobre a relação de analítica do Daseírz e de l)aseínsanáZíse nos Semí-
náhos de Ztzdch, ver o artigo muito esclarecedor de F. W. von Herrmann,
DaseínsanáZÍse e pensamento do Eretgnís", trad. de B. Richter com a
colaboração de F. Dastur, l,'Hrt du corrtprencíre, n' 5/6, dezembro 1996.
56 57
EDIÇÃO
Monica Casa Nova
REVISÃO
Marco Antonio Casanova
CAPA E PROJETO GRÁFICO
Giovana Paape
DIAGRAMAÇÃO
Alexandre Sacha Paape Casa Nova
IMAGEM DE CAPA
Alberto Giacometti - A floresta j19501
DASEINSANÁLISE
FENOMENOLOGIA E PSICANÁLISE
D255e
Françoise Dastur e Philippe Cabestan
DASEINSANALISE: FENOMENOLOGIA E PSICANÁLISE
Tradução: Alexander de Carvalho; Revisão: Marco Casanova
l ed. Rio de Janeiro: Via Venta - 2015
Tradução de: Daseinsanalyse: Phenomenologie et Psychanalise
255 p. ; 14x23 cm. Françoise Dastur e Philippe Cabestan
ISBN: 9788564565319
1. Psicologia, Psicanálise. 2. Fenomenologia - 1. Título
432C I' edição
Rio de Janeiro, 2015
!E:ilíil:ãà.aa7 í;isn.=B='"; ;
Tel.:Jardim Botânico - Rio de Janeiro, RJ, 22460-1 80
www.viaverita.com.br
editorial@viaverita.com.br
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