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Almeida, S.H.V. Integração biológico-social na formação do sistema psicológico Integração biológico-social na formação do sistema psicológico v 1, n 1,p75-86 1 Integração biológico-social na formação do sistema psicológico The biologic-social integration in the psychological system formation Sandro Henrique Vieira de Almeida1 Resumo O objetivo deste artigo é discutir a formação do sistema psicológico e sua importância para a integração biológico-social. Tal proposição foi desenvolvida inicialmente por Vigotski que, no conjunto de sua construção teórica, propôs a caracterização dos processos psicológica superiores – exclusivamente humanos – como mediados por meios auxiliares, possibilitando ao indivíduo a superação das limitações naturais. Estes meios são apreendidos pelas crianças quando estas se apropriam dos conhecimentos acumulados pela humanidade e organizam suas funções psicológicas, que são internalizadas, tornando-se intrapsicológicas, proporcionando ao sistema psicológico, um funcionamento intencional. O desenvolvimento de um sistema unificado é essencial para a formação da personalidade, sendo a formação deste sistema dinâmico diretamente relacionada com a formação, no encéfalo, de um conjunto variável de conexões assim como de relações interfuncionais. Ressalta-se que o desenvolvimento do sistema psicológico somente é possível pela humanização dos indivíduos, e neste processo a educação tem uma importância fundamental na transmissão destes conhecimentos. Palavras-chave: psicologia sócio-histórica, sistema psicológico, processos psicológicos superiores Abstract The aim of this article is to discuss the formation of psychological system and its importance for the biologic-social integration. This elaboration was developed by Vigotski who, in his psychological investigations, proposed the characterization of higher psychological processes – exclusively human – as mediated by auxiliary means, making possible to the individual to go beyond his natural possibilities. These means are learnt by children when historical knowledge stored by mankind is appropriated and their psychological functions organised and internalised, becoming intrapsychological, offering the psychological system an intentional functioning. This development is essential for the formation of personality, being the formation of this dynamic system related directly to the development in the brain of a variable group of connexions as well as interventional relations. It is necessary to highlight that the development of the psychological system is only possible by humanization of individuals, and in this process, the education has a basic role teaching the knowledge. Key Words: socio-historical psychology, psychological system, higher psychological processes 1 Mestre e doutorando em Psicologia da Educação, PUC-SP. Sandro Henrique Vieira de Almeida. Integração biológico-social na formação do sistema psicológico Integração biológico-social na formação do sistema psicológico v 1, n 1,p75-86 - 2 1. Aspectos teóricos gerais A psicologia sócio-histórica tem como referência epistemológica central para o desenvolvimento de seu corpo teórico-prático o materialismo-histórico e dialético e, desta forma, busca compreender o desenvolvimento do psiquismo em sua materialidade e historicidade, investigando a essência dos elementos da realidade por meio do desvelamento de suas múltiplas determinações. Assim sendo, faz-se necessário entender o psiquismo como produto de fatores orgânicos e sociais, historicamente desenvolvidos tanto na filo e na ontogênese quanto no desenvolvimento cultural da humanidade. O homem não nasce dominando todos seus processos psíquicos assim como não tem em seu padrão genético-hereditário as conquistas humano- genéricas, afinal a “(...) civilização é uma conquista demasiado recente da humanidade para que possa ser transmitida por herança.” (VYGOTSKI, 1996, p. 55).1 Para esta vertente psicológica (...) a psique não é, como expressara Spinoza, algo que jaz para além da natureza, um Estado dentro do outro, senão uma parte da própria natureza, ligada diretamente às funções da matéria altamente organizada de nosso cérebro. Como o resto da natureza, não foi criada, mas surgiu em um processo de desenvolvimento. (VYGOTSKI, 1997a, pp. 99-100) O psiquismo humano é para a epistemologia materialista dialética a mais elevada expressão e a mais complexa propriedade (produto) da natureza como um todo e do cérebro humano em particular (LÊNIN, 1986) sendo esse um dos pontos nevrálgicos não só para a compreensão desta epistemologia, mas também para uma psicologia que se pretenda materialista dialética sendo que tal posição já é exposta tanto por Marx quanto por Engels desde o início de suas obras. Engels (1979, p.32) expressa de forma inequívoca a questão da relação entre pensamento e cérebro: Mas, se queremos, na realidade, saber o que são o pensamento e a consciência e de onde procedem, saberemos, então, que são produtos do cérebro e o próprio homem nada mais é do que um produto natural que se formou e se desenvolveu dentro de seu ambiente e com ele. Ampliando a discussão sobre o problema da substância do psiquismo, Marx (1985, p. 20) escreve que o “ideal nada mais é do que o material transposto e traduzido na cabeça do homem”. Assim sendo, o substrato do ideal é o material, a realidade apreendida pela sensibilidade, com o auxílio do cérebro, na atividade material real. É importante ressaltar que o desenvolvimento do reflexo consciente da realidade (ou o ideal) é uma exigência do aparecimento e desenvolvimento de necessidades e objetos humanizados. Somente com o desenvolvimento de uma nova relação (consciente) com o mundo foi possível ao homem apropriar-se da realidade de forma efetiva, afinal a realidade já não era tão Sandro Henrique Vieira de Almeida. Integração biológico-social na formação do sistema psicológico Integração biológico-social na formação do sistema psicológico v 1, n 1,p75-86 - 3 imediata como antes e era necessário aos indivíduos apreenderem as mediações e contradições existentes no mundo humanizado, gerando assim novas necessidades e relações objetivas/sensíveis. Foi o aparecimento e o desenvolvimento do trabalho, como modificação intencional da natureza pelo homem, que criaram as condições para a humanização, ou seja, para o surgimento da separação homem-natureza pela produção de necessidades exclusivamente humanas e dos modos de realizá-las. Essa mesma relação foi a responsável pelo desenvolvimento do reflexo psíquico, desde seu momento sensorial até sua expressão mais elevada e exclusiva humana, o reflexo psíquico consciente (estável) da realidade (LEONTIEV, 1978). Ao apropriar-se da natureza para satisfazer suas necessidades, o homem a transforma e, com isso, objetiva-se nessa transformação, o que gera novas apropriações e objetivações, assim como novas necessidades, genuinamente humanas. O homem torna subjetivos os objetos (materiais ou não) da realidade pela apropriação e objetiva os elementos por ele apropriados, isto é, traz à realidade sua subjetividade pela objetivação, enfim, o indivíduo desenvolve seu corpo inorgânico. Os homens (...) começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo que é condicionado por sua organização corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material. (MARX; ENGELS, 1989, p. 27). Desde o início, a relação homem-natureza foi mediatizada pelos instrumentos e pela sociedade (outro). O primeiro instrumento humano foi a mão, seguidopor outros instrumentos por ela produzidos. Na mediação pelo outro (sociedade), os homens puderam trocar entre si suas atividades e foi nesse momento que surgiram os embriões da divisão técnica do trabalho. Uma outra característica humana, derivada das anteriores, deve ser aqui apresentada: os instrumentos são conservados e os conhecimentos produzidos pela e na atividade são acumulados e compartilhados tanto intra quanto intergrupos humanos. Um elemento fundamental para que isso ocorresse foi o surgimento da linguagem, um “instrumento simbólico”. 2. Desenvolvimento dos processos psicológicos superiores Para humanizar-se o homem deve desenvolver suas funções psicológicas superiores (caracterizadas por serem voluntárias e mediatizadas) e assim tornar-se cada vez mais livre, cada vez mais independente de suas necessidades naturais. As funções psicológicas superiores são desenvolvidas a partir das formas mais simples (funções psicológicas elementares), com uma relação imediata com a realidade. Em relação à genética, elas [as funções psicológicas superiores] se diferem de modo que, no plano da filogênese, originam-se não como um produto da evolução biológica, mas como desenvolvimento histórico do comportamento, e no plano da ontogênese, elas também têm sua história social especial. Com relação à estrutura, sua singularidade vem do fato que existe, como distinção da Sandro Henrique Vieira de Almeida. Integração biológico-social na formação do sistema psicológico Integração biológico-social na formação do sistema psicológico v 1, n 1,p75-86 - 4 estrutura reativa direta dos processos elementares, elas são construídas baseadas no uso de estímulos-meios (signos) e, por isso, têm um caráter indireto (mediado). Finalmente, em relação à função, são caracterizadas pelo fato de desempenharem uma função nova e essencialmente diferente das funções elementares; executando uma adaptação organizada à uma situação com indivíduo controlando previamente seu comportamento. (VYGOTSKY, 1999, p. 40). As funções psicológicas elementares são predominantes na vida de um indivíduo por um curto espaço de tempo. Já em tenra idade a criança começa a se comunicar com o mundo por meio de sinais e instrumentos; suas relações já não são exclusivamente diretas e imediatas como em seus primeiros meses de vida. Com o passar do tempo, a criança, em seu desenvolvimento e por sua atividade, vai intencionalmente usando instrumento físicos e linguagem como meios para sua ação sobre a realidade. Suas funções psicológicas já têm as características das funções psicológicas superiores (mediatas e intencionais), sendo estas operações externas. Com a complexificação das relações que essa criança estabelece com o mundo, aliada a complexificação de seu sistema nervoso (aparato biológico) e à apropriação dos conhecimentos humanos, a criança internaliza as estruturas que eram anteriormente exclusivamente externas: Todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas. (VIGOTSKII, 1994, p. 114). Vigotski, em um texto sobre os sistemas psicológicos (1997a), explicita um pouco mais esse processo. Segundo o autor as funções são interpsicológicas caracterizam-se pela ordenação do outro à criança da ação a ser realizada. Aos poucos a criança começa a ordenar a ela mesma o que deve fazer, sendo, no entanto, esta ação ainda externa (extrapsicológica). Por fim, o indivíduo começa a desempenhar suas atividades individuais regidas por propriedades internas, isto é, as funções passam a ser intrapsicológicas. “E é essencial o fato de que uma série de funções psicológicas vão do externo ao interno.” (1997b, p. 141) O autor russo ainda discorre que as funções intrapsíquicas caracterizam-se “(...) por dois pontos do cérebro, que são estimulados a partir de fora, tem tendência de atuar dentro de um sistema único.” (VYGOTSKI, 1997a, p. 91). Esta proposição vigotskiana teve como uma de suas principais decorrências o conceito desenvolvido por Leontiev nos anos 1940 de “novos órgãos funcionais”. Para Leontiev, os órgãos funcionais, entendidos aqui como neoformações tipicamente humanas e ontologicamente sociais, não são fixados morfologicamente no encéfalo, mas necessitam dele para sua efetivação. “As faculdades do homem não estão virtualmente contidas no cérebro. O que o cérebro encerra virtualmente não são tais ou tais aptidões especificamente humanas, mas apenas a aptidão para a formação de novas aptidões.” (LEONTIEV, 1978, p. 257) Tal como Vigotski, Leontiev (1978) ressalta que o cérebro é estimulado de fora, pelo mundo de objetos e fenômenos da realidade do homem, criado pelo trabalho, fornecendo o que Sandro Henrique Vieira de Almeida. Integração biológico-social na formação do sistema psicológico Integração biológico-social na formação do sistema psicológico v 1, n 1,p75-86 - 5 é verdadeiramente humano. Assim sendo, é pela apropriação dos conhecimentos elaborados historicamente pela humanidade que os indivíduos desenvolvem sua atividade psíquica complexa e sua personalidade. Este postulado já fora, como ligeira diferença, exposto por Marx nos Manuscritos de 1844 ao discutir a formação dos órgãos da individualidade, assim como nos Grundrisse (2005) ao afirmar que A natureza não constrói máquinas, locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos, self-acting mules etc. Todos eles são produtos da atividade humana; são materiais naturais transformados em órgãos de poder da vontade humana sobre a natureza ou participação destes na natureza. São órgãos do cérebro humano criados pela mão do homem; é a força objetivada do saber. A todo esse processo de internalização das funções psicológicas superiores Vigotski dava também o nome de processo de revolução, tendo em vista que há um salto qualitativo de uma estrutura para outra, a superação de um ponto nodal. Há uma radical reestruturação da atividade psíquica e com isso há: “(...)1) uma substituição de funções; 2) mudança nas funções naturais (...); 3) o aparecimento de novos sistemas psicológicos, funcionais (ou funções sistêmicas) (...)” (VYGOTSKY, 1999, p. 55). É importante ressaltar que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores não extingue as funções psicológicas elementares, assim como as funções psicológicas superiores internas não anulam as externas, visto que Vigotski, fundamentado no materialismo histórico e dialético, não fazia a dissociação entre natural e social, entre os processos elementares e os superiores. O que ocorre é um domínio das formas superiores sobre as inferiores devido às diferenças qualitativas entre suas estruturas; há superação por incorporação, e assim sendo, “as formas inferiores não se aniquilam, mas se incluem na superior e continuam existindo nela como instância submetida.” (VYGOTSKI, 1995, p. 129). 3. Formação do sistema psicológico As funções psicológicas internalizadas ficam cada vez mais interligadas, há uma mudança na relação existente entre as funções superiores, modificando a estrutura funcional da consciência e formando um novo sistema psicológico caracterizado pela intrínseca interconexão e inter-relação das funções. É esse sistema que dá ao indivíduo a percepção de totalidade do psiquismo. O sistema psicológico começa a se desenvolver inicialmente como uma relação entre as diversas funções psicológicas. No entanto, com o desenvolvimento do indivíduo essas funções, que anteriormente estavam somente relacionadas, começam a se fundir, a ter relaçõessistêmicas, vínculos interfuncionais. No primeiro ano de vida 2 é observável uma estreita relação entre a sensação/percepção e o ato motor, tendo as atitudes emocionais como principal meio da relação criança-adulto. Esta relação propriamente dita intensifica-se já no ano seguinte, e a ação e Sandro Henrique Vieira de Almeida. Integração biológico-social na formação do sistema psicológico Integração biológico-social na formação do sistema psicológico v 1, n 1,p75-86 - 6 percepção começam a se integrar. O indivíduo inicia aos poucos o controle de seus atos motores tendo a percepção como sólida referência (e não mais como simples eliciador). Um fator que contribui de forma decisiva para esta conquista, além é claro do próprio treino da habilidade motora e percepção, característica da atividade principal desta idade (objetal-manipuladora, entre dois e três anos aproximadamente), é o surgimento da linguagem. Esta, mesmo que ainda bastante rudimentar, possibilita a categorização da percepção ao sujeito nomear com sentido o mundo objetivo, materializando seu pensamento. Neste momento começa a ser mais amplamente desenvolvida a relação entre pensamento e linguagem, no qual em uma idade mais avançada, se fundirão, como bem demonstrou Vigotski (2001). O surgimento da linguagem, o domínio da marcha e o maior conhecimento e controle do ambiente, criam as condições para que o indivíduo se conheça e assim desenvolva sua consciência, sendo a autonomeação (aparecimento do eu na fala) um dos principais indícios desse novo momento. Assim, com a maior apropriação do mundo humano, a criança desenvolve ainda mais sua imaginação e mundo simbólico, e o jogo de papéis (a atividade principal da criança pré- escolar) é fundamental. Nesta atividade, utilizando, entre outras coisas, a imitação, a criança desenvolve ainda mais seus movimentos, linguagem, percepção, memória e imaginação, sendo este período (por volta dos 3 a 6 anos) de vital importância para a solidificação das habilidades recém conquistadas, assim como um período crucial para a apropriação das regras sociais, desenvolvimento dos sentimentos, enfim, de sua consciência social. No momento seguinte (cuja atividade principal é o estudo) o indivíduo passa a desenvolver capacidades e motivos mais complexos (do que os existentes até então), impulsionados pela aprendizagem de um corpo de conhecimentos transmitidos de forma elaborada pela escola. No que concerne às funções psicológicas, memória e atenção, em maior destaque que as demais, estão neste momento em franco desenvolvimento, com suas estruturas tornando-se cada vez mais mediatizadas e assim controladas voluntariamente. A memória, que já tem em sua origem uma relação de interdependência com a atenção, funde-se ao pensamento, tornando-se lógica (memória lógica). Com o desenvolvimento do corpo inorgânico, essas funções vão se relacionando sistematicamente com o pensamento, sendo a seguinte expressão vigotskiana uma clara explicitação deste processo: “se para criança pequena pensar é recordar, para o adolescente recordar é pensar.” (VYGOTSKI, 2001, p. 381) Este mesmo processo de surgimento de neoformações tendo com referência central a atividade principal do período ocorre também na adolescência e vida adulta. Não serão aqui observados com mais detalhes estes períodos, mas é preciso ressaltar que nestes o desenvolvimento da autoconsciência e da personalidade são aspectos em primeiro plano. Afinal, com o maior desenvolvimento e interconexão das funções psicológicas superiores, há uma maior estruturação do sistema psicológico, formando um sistema cada mais unificado (porém não monolítico), sendo que nestas conexões e relações com o mundo (ou riqueza inorgânica do indivíduo) radicam as vidas dos sujeitos. (VYGOTSKI, 1997a). O desenvolvimento de um sistema unificado, fundado na interconexão e inter- relação dos processos psicológicos que agem como centros isolados e interdependentes, é Sandro Henrique Vieira de Almeida. Integração biológico-social na formação do sistema psicológico Integração biológico-social na formação do sistema psicológico v 1, n 1,p75-86 - 7 essencial para (e coincide com) a formação da personalidade, e assim sendo, para a própria ação voluntária do indivíduo na realidade, ou como expressa Vigotski “O homem pode certamente reduzir a um sistema não somente funções isoladas, mas criar também um centro único para todo o sistema.” (VYGOTSKI, 1997a, p. 92). Esse centro único para todo o sistema é desenvolvido na ontogênese e dá ao indivíduo a percepção integrada, totalizada do psiquismo, em seus aspectos biológicos e culturais. Essa categoria síntese caracteriza a personalidade para-si, sua singularidade, ou seja, a apropriação particular pelo indivíduo da genericidade humana. A formação deste sistema dinâmico está, como já apontado, diretamente relacionada com a formação, no encéfalo, de um conjunto variável de conexões assim como de relações interfuncionais, ou em outras palavras, de um conjunto interfuncional de áreas independentes do cérebro que trabalham em concerto (LURIA, 1980; 1981). O encéfalo humano é o que tem, dentre os primatas, a maior região frontal, sendo esta a principal área responsável pelas características afetivo-volitivas. Desta forma, pode-se observar que a atividade psíquica complexa do homem é função do encéfalo. No entanto, este não é o demiurgo do psiquismo e sim o órgão que possibilita (biologicamente) a efetivação dessa atividade. O psiquismo se origina, como já indicado até este momento, na realidade objetiva, apreendida pela sensibilidade com o auxílio do encéfalo na atividade material sensível. “As características sociais e de classe se formam no homem a partir de sistemas interiorizados e que não são outros que o sistema de relações sociais entre pessoas transladadas à personalidade.” (VYGOTSKI, 1997a, p. 91-2) Tem-se aqui uma espiral dialética de desenvolvimento social e fisiológico do homem. Este por meio de sua atividade vital, o trabalho, transforma a natureza assim como esta o transforma (ENGELS, 1985). 4. Organização de modelos teórico-práticos na psicologia sócio-histórica soviética Esta concepção de psiquismo e sistema nervoso propiciou à psicologia soviética a organização de modelos teórico-práticos de ensino 3, assim como de intervenção, principalmente no que tange à restauração de funções após lesões cerebrais.4 Dentre os inúmeros exemplos possíveis de trabalhos com restauração de atividade psíquica complexa destacar-se-á três, cada um deles desenvolvido por um dos autores da troika. O primeiro deles é relatado por Vigotski (1997a) e Luria (1992) sobre as investigações realizadas com sujeitos que sofriam da doença de Parkinson, cuja característica central é a hipocinesia, e “(...) seus sintomas incluem lentidão de movimentos (bradicinesia), dificuldade em iniciar movimentos voluntários (acinesia), aumento do tônus muscular (rigidez) e tremores das mãos e das mandíbulas que são mais proeminentes no repouso.” (BEAR, 2002, p. 483). Vigotski propunha, como já discutido, que ao ser desenvolvidos as funções psíquicas superiores e o sistema psicológico, duas áreas do cérebro eram estimuladas de fora. Assim, o autor russo postula que o sujeito com Parkinson regule seu comportamento voluntariamente Sandro Henrique Vieira de Almeida. Integração biológico-social na formação do sistema psicológico Integração biológico-social na formação do sistema psicológico v 1, n 1,p75-86 - 8 utilizando estímulo-meio existentes na realidade externa, ou então pela linguagem, reorganizando o movimento conectando áreas do cérebro que não tem uma conexão direta. Um dos procedimentos utilizados por Vigotskie que é bastante ilustrativo desta concepção foi brevemente descrito por Luria. Para auxiliar o indivíduo a andar com controle intencional do movimento, Vigotski utilizou um sistema muito simples para a construção de um modelo de laboratório deste tipo de reorganização de movimento. Colocou uma série de pequenos cartões de papel no chão e pediu a um paciente que pisasse sobre cada um deles. Uma coisa maravilhosa aconteceu. Um paciente que não havia sido capaz de dar mais de dois ou três passos por si mesmo andou livremente pela sala, pisando sobre cada pedaço de papel como se subisse uma escada. Havíamos ajudado o paciente a superar os sintomas de sua doença, fazendo-o reorganizar os processos mentais que utilizava para caminhar. Havia compensado seu defeito, transferindo a atividade de seu nível sub-cortical, onde o substrato neural estava lesado, para o nível cortical que não era afetado pela doença. (LURIA, 1992, p. 134) Com esse simples exemplo é possível entender um pouco melhor os caminhos teóricos delineados nesta perspectiva. Os outros dois exemplos têm como origem das lesões cerebrais em batalhas na II Grande Guerra (Grande Guerra Pátria, na ex-URSS). O primeiro a ser abordado é o trabalho desenvolvido por Leontiev e Zaporózhets em 1945 cuja publicação em língua inglesa ocorreu em 1960. Apesar de não ser possível uma maior descrição dos procedimentos utilizados pelos autores (devido a dificuldade em encontrar essa publicação) será apresentado os resultados mais importantes. Apesar deste livro ser citado em diversas fontes, quem o apresenta de forma mais objetiva seus pontos centrais é Shuare (1990). Os autores discutiram neste livro a restauração de movimentos da mão, investigando tanto o aspecto fisiológico deste processo como a importância desta restauração na formação da imagem subjetiva (reflexo psíquico da realidade). Segundo a autora, um dos pontos mais importantes da obra é a discussão do caráter objetivo da atividade neste processo. Um dos pontos ressaltados é o papel do movimento para a formação do psiquismo, haja vista sua relevância para o desenvolvimento das relações com o mundo externo (exploração), uma das fontes da formação do psiquismo. Outro ponto destacado é o papel da finalidade da atividade desenvolvida pelo sujeito, isto é, a amplitude do objetivo determinará a amplitude do movimento. Por fim, e relacionado diretamente com os dois anteriores, ressalta-se as esferas motivacionais e afetivas do indivíduo. Tem-se então que (...) na base da reeducação do movimento deve-se colocar não somente os conhecimentos referidos a estrutura e organização fisiológica do mesmo; tampouco são suficientes os dados psicológicos que indicam a importância do movimento na constituição das funções gnósticas que cumprem os fenômenos psíquicos; é indispensável, ademais e em primeiro lugar, tomar em consideração a disposição interna do enfermo, sua esfera emocional, as modificações pessoais que acarretou a lesão. (SHUARE, 1990, p. 148). Sandro Henrique Vieira de Almeida. Integração biológico-social na formação do sistema psicológico Integração biológico-social na formação do sistema psicológico v 1, n 1,p75-86 - 9 Luria, dentre os autores da psicologia soviética, foi o que mais desenvolveu pesquisas e intervenções, tendo sempre como respaldo não somente a obra de Vigotski (como querem alguns interpretes de sua obra), mas também a produção de seus colegas soviéticos dentre os quais se salienta Leontiev, Galperin e Zaporózhets, além de seus colaboradores mais próximos como Homskaia, Tsvetkova e Políakov. Dentre o imenso conjunto de relatos e casos analisados por Luria dois se destacam não somente pela investigação (cada um durou mais de 20 anos), mas também pela exposição, desenvolvido como romance científico. O primeiro deles (LURIA, 2002a) é o caso de um mnemonista (Sherashevsky), cuja capacidade quase ilimitada de memorização foi o mote central de análise, tendo o desenvolvimento de sua personalidade como fundo. O segundo romance (LURIA, 2002b), que é o mais importante aqui, relata o caso de Zazetsky, um soldado russo que sofreu (na II Guerra) uma lesão cerebral em virtude de artilharia de metralhadora. A lesão foi na zona parieto-occipital esquerda de seu cérebro, o que decorreu em Zazetsky em uma perda parcial da visão (na verdade ela via somente metade do campo visual), amnésia de algumas habilidades como a escrita e alguns aspectos da fala (afasia semântica ou amnésica), entre outras coisas. Mas a lesão também afetou a organização geral de seu psiquismo ao Zazetsky perder o sentido da própria vida, pois, entre outras coisas, ele se sentia um inútil para sua pátria. 5 O trabalho com Zazetsky poderia ter sido infrutífero, afinal sua lesão ocorreu quando já em idade adulta, dificultando a restauração das habilidades perdida. No entanto, Luria utilizou os pressupostos até aqui discutidos, como bem escreveu: “Via de regra, porem, nossos métodos de restauração de funções combinavam a quimioterapia com um programa de treinamento e terapia funcional. Uma das áreas para qual desenvolvemos métodos de treinamento visando reorganização de um sistema funcional foi a escrita.” (LURIA, 1992, p. 145). Essa foi a principal estratégia utilizada com Zazetsky. O soldado russo não conseguia recordar de seu passado, assim como tinha dificuldade em expressar-se, além de poucas esperanças em relação à sua vida. Com essa ação como referência, Zazetsky aprendeu novamente a escrever (seu diário resultou em aproximadamente três mil páginas escritas em mais de 25 anos). Por meio dessa estratégia 6 o soldado pode escrever sua vida, suas impressões e sentimentos, assim como reorganizar (dentro do possível) suas habilidades. Dessa forma Zazetsky estabeleceu novas relações com o mundo objetivo, formou novas finalidades e motivos para sua atividade. Enfim, reestruturou sua própria personalidade e o sentido para sua vida. Ao trabalhar nesse relato meu todo dia (...) abrigava a esperança de falar às pessoas acerca desta enfermidade e superá-la. (...) Outra razão deste relato é a de querer desenvolver e ampliar minha memória, quebrar esta afasia. (...) Sei que meu escrito pode ser também de grande ajuda para homens de ciência que estudam como o cérebro e a memória trabalham. (LURIA, 2002b, p.86) 5. A guisa de conclusão Sandro Henrique Vieira de Almeida. Integração biológico-social na formação do sistema psicológico Integração biológico-social na formação do sistema psicológico v 1, n 1,p75-86 - 10 Observa-se com estes exemplos a complexidade do desenvolvimento do psiquismo e a importância capital (ontologicamente dada) da realidade na formação do mesmo. Observa-se também a necessidade de compreender o indivíduo enquanto totalidade para sua plena recuperação, assim como para a elaboração de planos políticos pedagógicos. Enfim, é possível buscar as multideterminações do desenvolvimento do psiquismo, os elos de sua construção e o desvelamento de suas leis, lembrando sempre que “(...) cada intenção de resolver a tarefa consiste na formação de conexões, e nosso conhecimento sobre o objeto se enriquece devido ao que estudamos em conexão com os outros objetos”. (VYGOTSKI, 1997a, p. 83) No entanto, a realidade é sempre mais rica que o conhecimento que temos dela. O conhecimento é a aproximação eterna, infinita do pensamento ao objeto. O reflexo da natureza no pensamento do homem deve ser entendido, não “de forma inerte”, abstrata, não carente de movimento, não livre de contradições, senão no eterno processo de movimento, do surgimento das contradições e sua solução. (LÊNIN, 1986, p. 174) Isto significa que é preciso continuar as investigações e aproximações eternas da totalidade.Enfim, investigar a realidade em seu movimento e desenvolvimento, em sua historicidade. Mas isto somente não basta! É preciso lutar para que os indivíduos se apropriem dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade, por sua humanização, e nesta a luta pela educação tem uma importância fundamental. É preciso haver uma mudança radical das condições concretas de existência do indivíduo para que, enfim, os homens passem do reino da necessidade para o reino da liberdade. NOTAS 1 Os caminhos das mudanças fisiológicas empreendidas na relação homem-natureza estão diretamente relacionadas com aqueles elaborados por Darwin em sua teoria da seleção natural, assim como pelas teorias neo-darwinistas. Essa ressalva faz-se necessário devido aos desvirtuamentos dessa lógica desenvolvidos pela teoria Michurin-Lisenko em meados do século passado. Esta teoria postulava que a mudança ambiental geraria necessariamente mudança nos caracteres genéticos. Tal postulado foi uma das mais controvertidas manipulações científicas para justificar atos políticos, sendo utilizado pelo governo Stálin nos anos 1940 e 50. 2 A discussão que se segue sobre os principais pontos do desenvolvimento do sistema funcional estará fundamentado nos textos de Elkonin (1989), Zaporozhets (1989) e Davídov (1988). 3 A discussão deste aspecto foge às possibilidades do presente artigo, pois remete não somente às discussões psico-pedagógicas, mas também a toda reestruturação do ensino na ex-URSS. 4 Na psicologia soviética havia várias teorias explicativas do psiquismo. Todas elas declaravam-se fundantes no materialismo-histórico e dialético, sendo que efetivamente eram somente algumas. Destacam-se aqui as discussões desenvolvidas por Rubinstein e sua escola e a Escola de Uznadze na Geórgia como duas das mais sólidas produções e pelos fisiologistas Anokhin, Ananiev, Bernstein e Orbeli, que desenvolveram ricas teorias em parceria com os psicólogos. Optou-se para discutir neste artigo os modelos desenvolvidos pela Escola de Vigotski, mas é preciso ressaltar que, devido à epistemologia comum, a referência à produção das demais escolas é constante. Sandro Henrique Vieira de Almeida. Integração biológico-social na formação do sistema psicológico Integração biológico-social na formação do sistema psicológico v 1, n 1,p75-86 - 11 5 Neste momento específico da história soviética havia um exacerbado senso de nacionalismo bastante alimentado pelo regime stalinista e pela própria condição histórica (Stalingrado), o que favorecia este tipo de sentimento de Zazetsky. Não se pode esquecer também que havia naquela experiência social uma nova forma de entender o papel do indivíduo no coletivo. 6 Há alguns pormenores importantes nesse processo, descritos tanto por Luria quanto por Zazetsky, que não é possível discutir aqui devido aos objetivos do texto assim como o próprio tamanho do artigo. REFERÊNCIAS BEAR, Mark (org). Neurociências. 2. ed. 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