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Maria Regina Namura O Sentido do Sentido em Vygotsky: uma aproximação com a estética e a ontologia do ser social de Lukács Doutorado em Psicologia Social PUC/SP 2003 Maria Regina Namura O Sentido do Sentido em Vygotsky Uma aproximação com a estética e a ontologia do ser social de Lukács Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de DOUTORA em Psicologia Social, sob a orientação da Profa. Dra. Bader Buhian Sawaia. São Paulo 2003 RESUMO Este trabalho pretende contribuir para o debate atual sobre a questão do sentido, refletindo sobre a gênese do pensamento vygotskiano enraizado na estética e no materialismo histórico-dialético para ressaltar o caráter ativo do homem que constrói seu mundo. Os fundamentos psicossociais da psicologia da arte anunciados por Vygotsky como técnica social do sentimento entrelaça emoção, pensamento e ação, mostrando a diferença entre significado e sentido e que na obra de arte o segundo predomina sobre o primeiro, tornando-se um elemento que potencializa e socializa as emoções, sem deslizar para o subjetivismo e o objetivismo, ao contrário, assegura a idéia de emancipação, de liberdade e criação do indivíduo no contexto social. Essa concepção sustenta a teoria sócio-histórica do novo homem e da nova sociedade da teoria vygotskiana, ao mesmo tempo, em que demonstra que o substrato psicossocial que se encontra na obra de arte literária permite evidenciar o caráter ontológico do sentido atrelado, revelado pela estética. Para analisar a ontologia do sentido em Vygotsky diferenciando-a do tratamento epistemológico que a filosofia, as ciências sociais e a psicologia priorizaram, dentre outros motivos para abandonar a estética, recorremos, a duas de suas obras, a Psicologia da Arte e Hamlet – O príncipe da Dinamarca, onde podemos identificar a gênese estético-ontológica do sentido como fundamento da reconstrução da categoria sentido no campo da psicologia, na constituição das funções psicológicas superiores. Para aprofundar e corroborar a natureza estético- ontológica do sentido trouxemos Lukács, que sistematiza a estética de Marx e recupera o ser social concreto, criador e sensível. Dessa forma, ele legitima uma reflexão profícua da categoria sentido enquanto núcleo de constituição do sujeito e da subjetividade. ABSTRACT This work intends to contribute to the current debate about the sense issue, reflecting upon the origin of the Vygotski thinking rooted on esthetics and on the historical-dialectical materialism in order to emphasize the active character of the man who constructs his world. The art psychology psychosocial fundamentals announced by Vygotsky as a sentiment social technique entwines emotion, thought and action, showing the difference between meaning and sense, in which on the art piece the first prevails against the second one, becoming an element that strengthens and socializes the emotions, in addition to assuring the idea of the individual emancipation, freedom and creation on the social context. This concept sustains the Vygotski social- historical theory to the new man and the new society of his theory, in the meantime showing that the psychosocial essence present on the literary art permits to evidence the ontological character of the coupled sense, revealed by the esthetics. To analyze the sense ontology in Vygotski separating it from the epistemological treatment prioritized by the philosophy, the social science and the psychology, among other reasons to abandon esthetics, we resort to two of his works, the Psychology of Art and Hamlet - The Prince of Denmark, in which it's possible to identify the sense esthetical-ontological origin as a foundation to the reconstruction of the sense category on the psychology field, on the superior psychological function constitution. In order to deepen and to corroborate the sense esthetical-ontological nature, we used Lukács, who systemizes Marx's esthetics and recover the social being, concrete, creator and sensitive. Therefore, he legitimizes an advantageous discussion regarding the sense category as the core of the subject and subjectivity constitution. SUMÁRIO Introdução Capítulo 1 Porque Vygotsky se centra no sentido: uma breve incursão pela história do sentido na Psicologia ...........................28 Capítulo 2 ARTE E ESTÉTICA: a gênese da categoria sentido em Vygotsky ....................................................59 Capítulo 3 As raízes ontológicas da estética em Marx e Lukács.......................120 Capítulo 4 A categoria sentido reconstruída pela mediação da estética: a recuperação da ontologia ..............................................................................159 Reflexões Finais : Que obra de arte é o homem. Hamlet, Ato II. ……..…196 Bibliografia ………...………………………………………………………………… 203 Introdução Perguntar sobre o sentido da vida e das coisas é uma questão milenar e antes mesmo da filosofia, da religião, da história e da arte, os mitos cumpriram essa missão. Esses, junto com os demais, gradualmente, foram seguidos pela cosmologia grega para responder ao sentido da vida. As perguntas sobre a natureza do mundo físico, sobre morte e o nascimento dos seres, para onde vão quando desaparecem, porque tudo se transforma, mas também parece se repetir, foram as perguntas dos primeiros filósofos. A história das idéias é a história da busca de respostas que expliquem razoavelmente os acontecimentos circundantes para dar sentido à vida, o que permite dizer que pode ser um indicador de que atribuir sentido é uma condição humana. Nas palavras de Georg Lukács: “É uma necessidade humana elementar e primordial: a necessidade de que a existência, o movimento do mundo e até os fatos da vida individual – e estes em primeiro lugar – tenham um sentido”. Hartmann [apud Lukács] analisando o pensamento teleológico assinala a necessidade que as pessoas têm de encontrar um sentido, uma justificativa, como se fosse pacífico que tudo que acontece devesse ter um sentido, principalmente quando as coisas não se encaminham de acordo com as expectativas como, por exemplo, diante da morte prematura ou de qualquer fato que nos agrida. Explica que no plano do pensamento teleológico a questão do sentido responde a pergunta por quê, porque as coisas vão mal, porque há tanto sofrimento, exprimindo preocupação e desespero. Deste questionamento, diz Hartmann, pressupõe-se que, por algum motivo, as coisas devam ir bem; procura-se encontrar um sentido, uma justificativa como se fosse pacífico que tudo que acontece deve ter um sentido. [Lukács, Ontologia do Ser Social – O Trabalho. Mímeo] Atribuir sentido é uma condição humana universal, mas os sentidos atribuídos mudam, se transformam e adquirem novos conteúdos, significados e qualidades no processo histórico-social do desenvolvimento do homem. Dessa forma, as idéias, as estruturas sociais e as concepções ideológicas que dão sentido à vida podem se transformar, desaparecer e renovar-se; podem ser produzidas e comunicadas diretamente na expressão lingüística, podem ser apreendidas indiretamente pelos fatos, acontecimentos, costumes, modos de ser e viver, enfim, as concepções de sentido se transformamnas infinitas relações sociais. Na civilização antiga o sentido e a sua gênese podem ser apreendidos na expressão “kalonkagathon” – o belo e o bom – que exprime a fusão dos valores estéticos e éticos como promessa de moralidade, o belo anuncia o que é bom. Essa idéia de aplicar os valores estéticos à vida como forma de dar sentido a ela, desaparece na Idade Média e reencontra-se no Renascimento, no dandismo do século XIX e na ética contemporânea. [Russ, 1999] Consciente da impossibilidade de abranger esse amplo horizonte da história das idéias, para compreender o lugar que o sentido ocupou e os tratamentos que recebeu, a presente pesquisa vai se restringir ao estudo do sentido e da estética auto-implicados aos fundamentos ontológicos extraídos da experiência do homem com o mundo social e histórico. Entendendo que o sentido não é só uma questão semântica, epistemológica ou cultural, mas uma condição humana que implica os modos de ser e existir, as determinações do mundo real [e por isso ontológica], e a importância dos valores estéticos no desenvolvimento do homem é possível propor um estudo do sentido configurado na tríade: sentido-estética-ontologia. Tratando-se de uma tese no campo da psicologia, focamos o tratamento dispensado ao sentido pela ciência que se propõe a compreender os processos mentais e a experiência humana. Vimos que em função do modelo positivista de ciência e do método experimental a Psicologia entendeu o sentido na sua gênese biológica, da ordem da sensação e na sua gênese racionalista, da ordem da representação, distanciando-se da experiência estética, da ordem da criação e do mundo vivido. O contraponto da experiência estética e a arte é a ênfase dada ao homem por inteiro plasmado na literatura que prioriza e valoriza o homem e os sentidos humanos na construção e criação do mundo. Para entender a proposição sentido-estética-ontologia se faz necessário uma breve incursão sobre alguns momentos da filosofia em que há uma mudança da concepção de sentido na interligação histórico-literária em que concepções de sentido e a estética comparecem, instituindo e situando o homem no mundo. Pretende-se ressaltar nesse incurso o debate sobre razão e sensação para ilustrar as acepções de sentido que vão se instalando no pensamento grego, no início da modernidade e na história recente. O sentido historicamente ligado à experiência sensorial, à razão, à ética e às bases tradicionais da sociedade foi aplacado pelo individualismo exacerbado, pela contínua inovação tecnológica, pelo fetichismo da mercadoria até o momento atual em que pensadores como Lipovetsky [1992]; Russ [1998] e Harvey [1996] referem-se ao esvaziamento, insuficiência ou mesmo falência do sentido. Esse esmaecimento ou falência do sentido carrega consigo a experiência do homem, sua base estética 1, sensível e corpórea, acirra os dualismos corpo/alma, razão/emoção e a reificação, enquanto a especificidade da arte e da 1 Estamos considerando a estética numa concepção que se compõe à tradição ilustrada e compreende a modernidade como um programa sócio-cultural fundado na emancipação do homem pelo conhecimento racional. A opção pela concepção lukácsiana de estética que põe em evidência o homem por inteiro e seu embate nas condições de existência material, tem essa raiz. A discussão modernismo e modernidade, pós-modernismo e pós-modernidade, será contemplada no desenvolvimento da tese (capítulo 2) a título de esclarecimentos quando necessário. estética na constelação do sentido da vida, reconhece os problemas e os desafios da nossa existência e oferece uma compreensão imprescindível de nós mesmos, pela via da sensibilidade, não só como ornamento da vida, mas a proposição e a restituição ao homem da sua condição humana pela ampliação da experiência enquanto ser criador, produtor, reflexivo e sensível. Essas questões mostram a preocupação desta pesquisadora e os motivos que determinaram o estudo da categoria sentido, no doutorado. Marilena Chauí em entrevista à Revista Cult [maio, 2000] declara que os instantes mais fecundos da filosofia costumam ser aqueles em que a sociedade vive momentos de crise, isto é, uma sociedade que não conhece muito bem ou não sabe muito bem qual é o seu próprio sentido. A interrogação filosófica acaba se voltando para essa questão. Ao fazer uma crítica das opiniões, dos preconceitos, das ideologias, a filosofia repõe para a própria sociedade, senão um sentido, pelo menos a necessidade da busca de um sentido da sua própria existência. No período de formação do pensamento grego, o sentido estava ligado a phisys. Essa relação não significou desinteresse pela natureza humana como pode parecer à primeira vista, mas implicava a especulação da substância primordial da qual todas as coisas derivam, mediante sucessivas transformações. A natureza humana integrava de alguma maneira o mundo natural. Ao concederem vida à matéria em todas as suas manifestações naturais, não chegaram os primeiros filósofos a introduzir qualquer diferenciação entre os seres que compõem o mundo. [Chaui, 1994] O pensamento grego do período pré-socrático ou cosmológico é uma explicação racional e sistematizada a partir da physis [que significa fazer surgir, fazer brotar, fazer nascer, produzir] como o elemento primordial eterno, imperecível, que dá origem, ordena e transforma a Natureza, da qual os seres humanos fazem parte. A natureza humana suposta como dada, é perecível como os outros seres gerados pelo princípio ou substancia primordial, seres diversificados, cuja existência se transforma, é mortal, mas retorna a sua origem; não existe uma criação do mundo a partir do nada como na versão judaico-cristã em que Deus cria o mundo do nada. A alma derivada da physis retorna a substancia original. Não se encontra nesse período a idéia de espiritualidade e imortalidade da alma como mediações qualificadoras do sentido humano, que só vai se estabelecer na Idade Média com a bifurcação entre o sistema racional e religioso. Vale notar que a imortalidade da alma constitui-se um sentido estranho à racionalidade cosmológica, estando integrado às tradições religiosas. O destino da alma da racionalidade grega [retorno à physis] e o destino da alma dos sistemas religiosos [a imortalidade e a transmigração da alma originário do mito órfico] é resultado de um profundo desacordo entre o sentido da alma e o sentido do corpo, entre o mundo homérico, que valoriza a vida terrena, e o culto dionisíaco que ressurge no século VI na Grécia, valorizando as experiências de plenitude das emoções propiciadas pelos rituais e despertada pelos deuses como superiores à mesquinha vida terrena. [Muller,1968] Os pensadores jônicos, com a noção de physis, traduzem as primeiras formas de um pensamento racional para responder às indagações sobre a natureza. A noção de um princípio unificador ou substância básica que se desdobra ou se transforma pelo movimento em qualidades diversas do real revela a noção de um elemento natural objetivo existente independente do homem. Heráclito se destaca no período afirmando o eterno devir e a contradição; nada há de permanente e estável, os movimentos de dilatação e contração são opostos interdependentes entre si e num Todo – não há substância duradoura e permanente, há variação e instabilidade. Todas as coisas fluem, os sentidos podem indicar o que parece ser os corpos concretos, mas o pensamento, indo além das aparências, percebe a realidade, que é variação. [Heidbreder, 1969, p. 30] Heráclito questiona a veracidade dos conhecimentos oriundos da experiência e, portanto, dos sentidos (sensações). O conhecimento não pode ter sua fonte nos sentidos, mas na razão. Numa concepçãomenos radical Anaxágoras reconhece a existência de inúmeras qualidades diferentes do real e os sentidos poderiam conhecer esses elementos, mas seria impossível descrever o mundo como vemos. Há um princípio ordenador, algo semelhante à inteligência ou razão humana, mas não ainda em contraste com a matéria que pode explicar o mundo, esse princípio é o “nous”. [Heidbreder, 1969, p.30] A idéia dominante é que a heterogeneidade das percepções é incapaz de proporcionar um conhecimento e oferece um sentido falacioso e caótico. A história das idéias se funde à história do conhecimento oriundo da razão, daí a necessidade de buscar um princípio ordenador para dar sentido ao real a partir da experiência imediata [sensorial], porque por si só esses dados sensoriais não constituem um conhecimento ou não instauram um sentido. Essas idéias tiveram repercussão em Platão e Aristóteles e estabeleceram dicotomias epistemológicas que se mantiveram ao longo dos séculos: empirismo versus racionalismo. Em Platão, a alma é indivisível e imaterial, não há nenhum elemento natural ou material na sua composição, o que garante a sua imortalidade. Integrada a uma realidade metafísica puramente ideal, separa-se do corpo e exclui as sensações de qualquer domínio de verdade. A concepção de que os sentidos e as percepções são ilusórias desdobra-se no idealismo platônico. Aristóteles marca a passagem de uma abordagem mítica/idealista para uma abordagem naturalista/materialista. Trabalha com a união entre a alma e o corpo, a alma não pode subsistir sem um corpo que ela anima. É o princípio de vida e de movimento, é ato, essência, forma de uma existência, a alma [enteléquia] unifica as operações da sensibilidade e do entendimento. [Muller, 1968] Este princípio do ato, da forma, enfim da ação humana está contido na teoria da mimese, que na tragédia é imitação das ações humanas pelo princípio da verossimilhança e não reflexo da realidade 2. Temos a destacar em Aristóteles que o conhecimento oriundo das sensações e das percepções ganham um outro sentido; há um primado ontológico e metodológico que reabilita as cisões naturalista e idealista, articuladas na relação parte-todo, em que os sentidos, longe estarem submetidos ao pensamento, vão em direção ao desenvolvimento da vida. Assim, se a razão é necessária ao conhecimento das estruturas essenciais da realidade, sem as qualidades fornecidas pelos sentidos, a razão seria incapaz de tornar o mundo inteligível. Os epicuristas e estoicistas, em seguida, vão retomar a distinção do conhecimento ilusório adquirido pelos sentidos e do conhecimento verdadeiro, obtido pela razão. Indagam sobre a natureza humana e sobre o valor e a utilidade do conhecimento, introduzindo a mediação valorativa para dar sentido à vida, pois a problemática em questão é essencialmente ética; na versão estoicista o valor fundamental é a virtude, conseguida pela submissão do desejo à razão, os epicuristas acreditam na capacidade de disciplinar a expressão dos impulsos naturais a fim de obter a paz e a felicidade. Sem resolver esse problema as idéias dos filósofos gregos começam a perder expressão e a decadência da cultura grega propicia espaço para o florescimento das grandes religiões que acenam para uma vida plena de sentido na bem-aventurança, na esperança de um futuro melhor e de graças divinas pela renúncia da vida terrena, pela anulação do corpo e das necessidades humanas. Se o sentido não está nem na substância [corpo, conteúdo] nem na estrutura [mente, forma], não está na relação do homem com a realidade; se não emana do homem nem das relações com a natureza, fica aberto o caminho para a 2 A estética da tragédia é analisada com detalhes no capítulo que versa sobre o sentido e a estética. autoridade da Igreja oferecer ou propiciar o sentido da vida que não pertence a este mundo. A ‘polis’ grega desapareceu como centro político, deixando de ser referência principal dos filósofos, e com o domínio e amplidão do Império Romano, os contatos comerciais e culturais entre ocidente e oriente, a presença crescente de religiões orientais, fizeram aumentar os contatos dos filósofos com a sabedoria oriental, sobretudo nos aspectos místicos e religiosos. [Chauí, 1994] No período que segue a decadência do mundo grego nasce também o cristianismo com um sentido inédito em relação ao pensamento clássico, o conceito da criação. O Demiurgo constrói o mundo a partir de uma matéria pré-existente, o cristianismo cria, ilumina e revela o caminho para o verdadeiro sentido da vida. Não há necessidade de investigação da realidade, não há necessidade de procurar caminhos nem fazer perguntas sobre o sentido das coisas, a religião produz de forma endêmica as significações, a verdade dos dogmas fornece o sentido. Um sentido exógeno que instaura um princípio de ordem com uma qualidade disciplinadora e unificadora em face do caos e da multiplicidade das sensações e percepções, enganadoras e ilusórias. As paixões humanas e as sensações são fenômenos ambíguos e passíveis de erro e do pecado, e mesmo a razão é incapaz de conhecer a verdade por si mesma. As paixões e a razão são desprezadas na Idade Média para introduzir a criação divina, como o sentido verdadeiro e único. O sentido da vida é inatingível na vida terrena; a ação, a razão e as paixões, enfim o Ser não é só imperfeito ou mera aparência, como ditava a filosofia platônica, mas criatura de Deus que revela o sentido do ser. A modernização dos sentidos no curso da história ocidental vai ser impulsionada pelas transformações promovidas por fatores sócio-políticos, científicos e culturais, inscritos no Renascimento. O descobrimento das Américas, o contato com culturas diferentes, as inovações técnicas, a imprensa e a circulação de livros são potencializadores de novas concepções de mundo. A leitura, sobretudo, remete o indivíduo a uma nova forma de conhecimento e compreensão de si e do outro, delineia-se um grau de ‘auto-consciência’ e novos contornos aos sentidos do homem. Figuras paradigmáticas da Renascença, como Leonardo da Vinci, Shakespeare, Giordano Bruno, são capazes de expressar valores, idéias, costumes, formas de ser, pensar e agir em mutação objetivadas nas artes, literatura e filosofia, fornecendo sentidos da vida enquanto crença no potencial de criação do homem, o sentido da individualidade e da capacidade de escolha e decisão, o sentido da liberdade, do mundo e da vida em oposição aos dogmas eclesiásticos monopolizadores da vontade, da sensibilidade e da capacidade humana. No eixo filosófico a concepção medieva da vida e do sentido que se traduz numa metafísica onto-teológica desliza para uma concepção de homem, onto- antropológica, como um ser natural que valoriza a vida ativa e é senhor do próprio destino. [Lima Vaz, 1997] Este pilar de sustentação propicia um sentido que emana da vida orientada para as potencialidades e finalidades humanas. Do vasto e complexo projeto da modernidade destaca-se o indivíduo e a individualidade como valor, podendo-se falar de um sentido individual inimaginável 3 até então, na história da humanidade, retratada por Shakespeare, na noção de amor individual em Romeu e Julieta. Esse sentido é afirmado como uma conquista e uma libertação do poder despótico, e traduz a capacidade reflexiva e criativa do homem, na experiência moderna do século XVIII, que vai se incrementando com o desenvolvimento do capital que altera o ritmo de trabalho e de vida, transforma os valores, o cotidiano 3 Expressão emprestada de José Paulo Netto em aula. Disciplina “O Método em Marx” ministrado na Faculdade de Serviço Social da PUC/SP, 1999. e modos deser dos indivíduos em direção ao individualismo da burguesia revolucionária. Ao longo dessa história pode-se notar como a estética foi se separando do sentido. Na Idade Média o sentido foi transportado para o divino e rompeu com a noção de totalidade e de integração do sentido do Bem e do Belo, da ética e da estética como modo de ser e modo de produção do homem. Na modernidade, a valorização do indivíduo, sob as condições de reprodução material da sociedade burguesa cola o sentido na capacidade do homem em construir um mundo novo que, entretanto, vai se deteriorando pela dinâmica restritiva da sociedade capitalista que restringe o sentido ao empreendedorismo e à instrumentalização da vida, expulsando a estética das condições de vida do indivíduo. Em meio à instrumentalização do sentido há pensadores que continuam afirmando a importância da estética como uma dimensão essencial para a vida do homem, como elemento transformador do sujeito. Para Marx a arte educa a sensibilidade do homem, desenvolve as riquezas especificamente humanas dos seus órgãos do sentido. Essa educação dos sentidos do homem é o enriquecimento da experiência humana que a pintura, a música e a literatura podem propiciar ao processo de humanização do mundo. É uma das formas que o homem criou para expressar as transformações do mundo e o sentido ou a falta de sentido da vida. O projeto da modernidade, como diz Habermas, [1998] cria as condições ou a promessa de emancipação do homem, de progresso e liberdade pela racionalidade. Dessacraliza a organização social e liberta o homem da natureza, da superstição, da escassez material e dos grilhões dos poderes dogmáticos, mas na prática a intensificação da racionalidade instrumental e as transformações sociais são vividas como fugidias, transitórias e inseguras. Algumas obras literárias têm sido reiteradamente comentadas, apresentadas e editadas para transmitir a experiência do processo de ‘modernização’ do mundo. O Fausto de Goethe [1831-2002], Crime e Castigo de Dostoiévsky [1866-1998] figuram como obras/autores que lidaram com a experiência avassaladora do turbilhão das mudanças e dissonâncias espirituais e materiais e o destino trágico. A fragmentação, a experiência do tempo e do espaço, da urbanização, a ocupação do espaço público como show de aparências e espetáculos, foi particularmente retrata por Baudelaire [1863-1993] em O Pintor da Vida Moderna, um ensaio que elege temas de conotação fugaz como o vestuário e a moda, a cidade e as multidões, as mulheres e a maquilagem, o dandy, as viaturas, e revela o sentido fugidio e transitório da modernidade. A Belle Epoque e a cidade das Luzes são emblemáticas da vida mundana que ocupa o espaço público. Baudelaire [1863-1993] traça, com admirável vivacidade, um esboço social, moral e estético da vida do momento que, segundo ele, deve fornecer cor e forma à arte. O Pintor da Vida Moderna é um ensaio sobre a arte e o tempo, e talvez, por isso, mais do que tudo, moderno. A tradicional reflexão sobre o intemporal da arte faz-se aqui voluntariamente prisioneira de uma aguda consciência do tempo, tal como o experienciamos. Ele concebe a arte moderna como uma arte necessariamente voltada para o mundo, e a estética como a mais direta via de acesso à experiência desse mundo. [Cruz,1993, pp.63-66] A obra desses autores, citando os mais renomados, mostra o que foi na modernidade do século XIX o movimento da arte como expressão e reação à massificação que o capitalismo já vinha instalando. Baudelaire considerava o programa da modernidade mais estético do que técnico e científico; a ambição estética em adquirir um protagonismo, sem perder sua relação com a ética, era reconhecer a sensibilidade e o gosto como dimensões fundamentais da experiência, irredutíveis a uma racionalidade puramente técnica e científica. A urbanização crescente do espaço público vinculado ao desenvolvimento das forças produtivas, da propriedade privada e da divisão social do trabalho acirra antinomias com a escalada do capital que altera a sociabilidade e engendra um individualismo possessivo e hedonista, promovendo um indivíduo que, em tese, é resultado da sua própria vontade e competências pessoais. Reordena, portanto, a imagem de si e da sociedade, os sentidos se multiplicam e simultaneamente se fragmentam, as ambigüidades se intensificam, se polarizam, e levam os indivíduos a perguntar pelo sentido das coisas e da vida tão fragmentada, que historicamente caminhou da elação e da euforia da conquista da autonomia do início da modernidade, para a depressão e decepção da burocratização e rotinização da vida. A energia criativa, cativa das estruturas político-econômicas que privilegia a energia operativa, foi a denúncia de Weber na burocratização e rotinização da vida e de Marx na alienação e reificação da consciência. Mas foi também retratada por Dostoiévsky: A natureza humana não é levada em conta, é excluída, simplesmente negada. (...) sistema social criado por um cérebro matemático é capaz de organizar, perfeita e imediatamente, a humanidade e fazê-la justa e sem pecados num ápice, com maior rapidez que qualquer evolução biológica. Por isso instintivamente odeiam a história (...) o espírito vivo necessita de vida, o espírito não obedece a leis mecânicas, é objeto de suspeita, (...) é uma humanidade no mínimo sem vida própria, sem vontade, servil e que não se revolte! [Crime e Castigo, 1998, p. 276] Com o desenvolvimento das ciências humanas o “sentido” insere-se no debate científico, o homem é produtor de conhecimento e cria significados na relação com outros homens e objetos do mundo material, acredita na verdade oriunda da sua racionalidade, mas também é construtor de conhecimentos suspeitos, imprecisos e diversificados, porque é incapaz de alcançar a essência ou a realidade última dos fatos. O clássico debate entre razão e sensação com predomínio da concepção de que as sensações e os sentidos perturbam o conhecimento da verdade, e que os sentidos humanos são fonte de erro e formas imperfeitas de conhecimento que nunca alcançam o conhecimento pleno da realidade, ganha nova versão nas ciências humanas. Os desdobramentos do dualismo e da dúvida cartesiana, traduzida nas idéias claras e distintas e nas demonstrações de que se deve dar mais crédito à razão do que aos sentidos, pelo conhecido argumento de que posso duvidar de tudo menos de que eu penso, torna-se o mote do racionalismo da modernidade. O pensamento define a existência e o sentido. O conhecimento sensível ainda que perturbador passa a ser investigado porque precisa ser conhecido para ser controlado. Em Bacon o entendimento humano recebe infusão da vontade e dos afetos comuns a todos os homens. Hobbes e Locke aceitam o desejo como parte integrante do processo de conhecimento. No século das Luzes o aperfeiçoamento da razão é capaz de impulsionar o progresso e conquistar a liberdade e a felicidade social e política. A ciência e as técnicas propiciaram a confiança plena no desenvolvimento social [na busca da verdade] e na produção de bens materiais pelo triunfo da razão, até que Marx, ao denunciar o poder da ideologia e Freud, o poder do inconsciente, reconduziram a reflexão sobre a liberdade e o sentido da vida. [Rouanet, 1990] Da elação da ‘energia criativa’ do início da modernidade à decepção do mundo desencantado, os sentidos na ordem burguesa vão se restringindo e se refugiam no plano da vida privada, dos sonhos românticos e dilacerantes nas falsas soluções e pseudoliberdades. Uma espécie de sacrifício individual para modificar a realidade foi captado pela reforma protestante promovendo um sentido religioso também mundano. A experiência religiosa da Reforma já havia ‘liberado’ o homem da submissãoaos dogmas e se propunha a abrir perspectivas para as virtudes humanas e suas realizações. Weber foi o primeiro sociólogo a falar do sentido. Segundo ele o observador deve apreender o sentido que os atores põem nas suas ações. Sob o “espírito do capitalismo” o sentido passa a ser mediado por um ascetismo mundanal, que condiciona os homens a se realizarem pela prática virtuosa do trabalho produtivo. A racionalização e o desencantamento do mundo fornecem múltiplos sentidos em decorrência da diferenciação e independência das esferas e valores culturais, que em vez de conduzir à liberdade, à ampliação do eu e à sociabilidade, criam uma “jaula de ferro” que caracteriza a perda da liberdade pela modernização da sociedade, pela conseqüente rotinização e burocratização da vida, dissolvendo as motivações psicológicas de origem ética e religiosa no ethos utilitarista da sociedade capitalista. Na perspectiva filosófico-epistemológica o paradigma positivista que fornece um sentido dogmático às ciências humanas pela instauração da ordem e da neutralidade do conhecimento, começa a ser questionado. Weber foi um interlocutor nas polêmicas do início do século vinte com sua crítica à hegemonia da razão instrumental, bem como sua contraposição entre naturalismo e historicismo. O objeto e o método de estudo recaem, respectivamente, na ação social [interação de condutas individuais] e no método compreensivo que apreende a auto-implicação do sujeito e do objeto do conhecimento. O observador/pesquisador, em vez de causas, busca as motivações e finalidades da ação dos indivíduos, isto é, busca o sentido da ação social. Sem dúvida o saber produzido pela ciência, a renovação da cultura e da civilização e os elementos humanistas do Renascimento abraçados pela Modernidade foram e são altamente significativos para o homem, para a concepção que faz de si mesmo, de sua história e sentido de futuro. Rompe com os dogmatismos tradicionais, mas não com as ambigüidades e ambivalências. Os sentidos, agora com status de ciência no flanco do dualismo cartesiano e na polêmica empiro-racionalista diversifica-se ou multiplica-se na mesma proporção da crença no progresso ilimitado que a ciência e a tecnologia podem proporcionar à humanidade, mas também, na mesma magnitude da fragmentação dos processos de reorganização do capital e da autonomização das esferas da vida. A energia vital da burguesia ascendente pretendia erodir as estruturas tradicionais no bojo do projeto da modernidade, acolhendo a criatividade humana, que buscava afetar a estética da vida diária, tanto quanto a ‘racionalidade’ do conhecimento científico na sua tradução em organização e progresso para a emancipação do homem [o desenvolvimento das forças produtivas, mecanização, industrialização, urbanização]. A estética da vida e a emancipação do homem participavam, cada uma a sua maneira, de um certo sentido otimista da vida, até que duas guerras mundiais, campos de concentração, ameaças de aniquilamento nuclear e as experiências de Hiroshima e Nagasaki “deitou por terra esse otimismo incorporado no seio do projeto da modernidade, e levantou suspeita de que o projeto do iluminismo estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num sistema opressor universal em nome da libertação humana – a tese de Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento”. [Harvey,1992, p.23] Celso Frederico [1997] ao denunciar o horror à razão no pensamento contemporâneo critica a interpretação pós-moderna de que a historiografia tornou- se um discurso superado, autoritário e ideológico, e que a atribuição de sentido da historiografia é um autoritarismo. Durkheim, Weber e Marx analisaram os processos sociais sem perder o vínculo com a organização social na sua totalidade. Esses projetistas da modernidade foram substituídos por intelectuais desesperançados e refugiados na fragmentação, em que desaparece o sentido da história, e a realidade se transforma em simulacro. O sentido de vulnerabilidade, insegurança e fragmentação, os conflitos da vida contemporânea e a perda do sentido de futuro se sustentam em apreciações subjetivas e consensuais que apagam as bases habituais: bases materiais, ontológicas, éticas e estéticas do sentido da modernidade do sujeito emancipado, da sociabilidade e da realidade objetiva. Destacam a tecno-ciência midiática que pretende doar um sentido, mas mais que isso, torna o sentido também midiático, descolado da realidade e autonomizado, promove a idéia de que as relações reais e a realidade concreta e objetiva não têm sentido e, portanto, buscar o sentido da vida é simplesmente encontrar a interpretação que convém a cada um, forjado na virtualidade da vida, que em última instância, atravessa as relações sociais, dissimulando sua natureza exploratória e dependência dos meios de produção e de consumo. Colocam em cheque a crença no homem, nas instituições, na ciência, contribuindo para a violência e a devastação do homem, promovendo nova versão do “reencantamento” do mundo pela mística religiosa e midiática através da robotização das relações, da construção de inteligências artificiais. Provoca a banalização da violência, das ações terroristas, da opressão provocada pela globalização financeira, e, sobretudo corrói o sentido e a capacidade de indignação e de reflexão como recursos de que o homem dispõe contra o que Hannah Arendt 4 chamou de banalidade do mal. Desse modo, a transitoriedade dos valores e das instituições sociais vinculadas à busca da performance e dos contratos temporários em todas as dimensões da vida, conduz à exacerbação do individualismo, sustentado na produção de um sentido [único] narcisicamente configurado, para atender interesses pessoais e intimistas que não só é independente do outro, mas é indiferente ao outro. No plano ético-político, a valorização do eu e o individualismo do século XIX aparecia como uma conquista contra o poder despótico e foi o caminho que a tradição burguesa traçou para dar sentido à vida. Na esteira das vicissitudes humanas e na crescente valorização da personalidade, o individualismo contemporâneo recria necessidades humanas a partir de valores 4 Origens do Totalitarismo. São Paulo, Cia. das Letras, 1900; Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Cia. das Letras, 1999. hedonistas e particularismos idiossincráticos, intensifica a intimização, a privatização dos sentidos e funda a estética do prazer para ocultar as estruturas opressoras do consumismo, ou se quiserem, a estética da mercadoria. Não será esse caminho de crescente valorização da intimidade e desvalorização da realidade objetiva um dos fulcros do impasse que impulsiona a incessante busca do sentido na propalada era do vazio? Paralelamente, quando a indiferença associada à insegurança, ao medo, à impotência, às crises sociais, invade a sociedade, transformando o significado original da ética e revertendo valores, o sentido dos acontecimentos se faz mais urgente. A repercussão no cotidiano pela miséria em escala crescente [detectada por Marx a mais de um século], radicalização das diferenças sociais, intolerância política e religiosa, discriminação racial, banalização da vida e da violência, do desemprego tecnológico, provoca estranhamento do próprio mundo em que se vive, ressoa no sentido que o homem tem de si e da vida de forma mais dramática e angustiante. Após a passagem pela phisys e pela formação da subjetividade na metafísica e na divindade, e o retorno ao sujeito-razão, os sentidos são novamente expurgados da “phisys” e da experiência do sujeito e se atrela à linguagem numa espécie de epistemologia dos sentidos, refletindo uma crescentesemiologização dos sentidos. As concepções lógico-linguísticas das posições pós-modernas negam ou eliminam o sujeito, ao obscurecer os fatos reais da vida, principalmente a assimetria da sociedade e as estruturas sócio-econômicas determinantes da existência, fundando uma “epistemologia dos sentidos” nas competências argumentativas e na polissemia de sentidos. A produção de sentido realiza-se sem o sujeito real ou em espaços em que, a princípio, o sujeito foi excluído, ou ainda, em espaços em que se inclui um sujeito virtual, epistemológico ou semiológico para excluir o sujeito singular, criativo, estético, ético-político. Lima Vaz [1997, p.154] no capítulo Civilização Moderna e Crise do Sentido faz uma síntese esclarecedora das raízes do termo sentido e um alerta sobre o seu uso, em que o autor aconselha prudência e cautela, uma vez que hoje a polissemia do vocábulo retém acepções da linguagem ordinária e acepções da linguagem filosófica contemporânea: a lógico-linguística, a hermenêutica, a epistemológica e a existencial. “Entre essas, duas, sobretudo, abrangem todo o corpo do sentido, considerando a partir da perspectiva de cada uma: a lógico-linguística e a existencial. A primeira visa ao sentido na sua face expressiva, a saber, na linguagem, enquanto essa se apresenta como corpo significante. A segunda, apoiando-se sobre a origem metafórica do termo sentido, tem em vista o seu conteúdo significado, enquanto exprime a inteligibilidade do objeto de acordo com o vetor teleológico no qual ele se situará na compreensão e na linguagem do sujeito. Esta última acepção poder ser dita existencial, pois nela o sentido abandona o campo neutro da acepção lógico-linguística para penetrar no terreno da existência do sujeito, essencialmente orientada para os fins que ele se propõe ou para os quais é naturalmente movido. O sentido configura-se, então, como ‘sentido da vida’ (Sinn des Lebens) ou ‘sentido da existência’ (Sinn des Daseins). Já a acepção lógico-linguística cinge-se à estrutura semântica da linguagem” na sua qualidade de lugar das significações e, por conseguinte, de lugar de elaboração do sentido. A acepção lógico-linguística focaliza o sentido na sua expressão significante, mas também aparece no longo passado histórico na lógica nominalista da Idade Média tardia, e não cessa de estar presente no curso da filosofia moderna até seu pleno desenvolvimento, na filosofia da linguagem do século XX. [Lima Vaz, 1997] Do mundo grego até a média Idade Média a concepção do conhecimento das coisas, do mundo e do ser é postulada pela não- identidade física entre cognoscente e conhecido. Isto quer dizer que na gnosiologia antigo-medieval a representação subjetiva do objeto permanece subordinada ao ser das coisas. Há uma verdade objetiva que, ao mesmo tempo em que não se subordina à representação subjetiva do objeto, fundamenta o sentido da existência. Na modernidade essa concepção sofre uma ruptura: a representação e o ser se divorciam e a teoria do conhecimento passa a dar primazia à representação das coisas em relação ao ser das coisas, configurando um modelo gnosiológico- epistemológico na filosofia que se estende a outros campos do saber. Está posto o complexo problema da relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, sendo o objeto subordinado à primazia da representação do ser. As concepções idealistas da filosofia moderna, em todas as suas variantes, são tentativas de solução desse problema que reordena todos os domínios da atividade humana pela transformação na forma de conhecer e interpretar a realidade. Para Kant discutir sentido é discutir a distinção entre a coisa-em-si (noumenon) e a coisa fenomênica (o que aparece), entre o que compreendemos e percebemos. A questão posta é se conhecemos realmente a coisa em si ou só conhecemos o mundo estruturado pelas nossas percepções e sensibilidade. Kant afirma que entramos em contato somente com o mundo fenomênico estruturado pelo nosso conhecimento e a coisa-em-si escapa ao nosso conhecimento, escapa à razão. Nesse contexto é que o sentido torna-se uma categoria de análise no campo nas ciências humanas e sociais questionando e buscando esclarecer o processo de “modernização” da sociedade, o sentido da existência e o próprio sentido do sentido. 5 Duas questões se colocam nesse momento: a primeira é o esvaziamento do sentido socialmente falando, ao mesmo tempo em que na ciência é enaltecido 5 A crescente primazia do sentido da mercadoria, foi anunciada por Marx nos Manuscritos de 1844 ao afirmar que o sentido do ter sobrepõe-se a todos os sentidos humanos. tornando-se um tema fundamental até na biociência e na física: a biologia, ao decifrar a linguagem genética, e a física quântica ao romper a concepção clássica de tempo e espaço incorporam o sentido como categoria explicativa. A segunda é a forma de abordar o sentido, a falência de uma concepção de sentido [produzida pelo racionalismo] que se distanciou das determinações materiais da vida social, da ontologia, da existência, da ética, da estética e que se debruça em buscar o sentido do sentido. 6 Segundo Netto [2002], guardadas as especificidades dos intelectuais pós- modernos, há um descompromisso generalizado de qualquer confronto material com a sociedade e, deste modo, contribuem para a semiologização da vida social, para a dissolução da objetividade das expressões do ser social. Vimos até aqui algumas variantes do sentido na história das idéias até a sua configuração categorial nas ciências humanas e sociais em que se apresenta intimamente ligado ao problema da linguagem, da representação, da epistemologia e da subjetividade, ocupando um lugar privilegiado no pensamento contemporâneo. Esse caminho, em que a própria linguagem estabelece os vínculos sociais pelas redes de comunicação, afasta a realidade objetiva e concreta; é, por sua vez, questionada por uma tradição filosófica que dá primazia ao ser social em vez da representação do ser. O primado do sentido das posturas pós-modernas, as ênfases nas produções consensuais e competências argumentativas que promovem a multiplicidade de sentidos vêm gestando, simultaneamente, a fragmentação e o esvaziamento do sentido, pela primazia 6 Como vimos anteriormente na expressão kalongathon a gênese do sentido faz parte da integração orgânica de todas as esferas da vida, isto é, uma esfera remete à outra sem se fragmentar e sem desqualificar o referencial objetivo da realidade. Faz-se necessário lembrar que a tradição do pensamento grego fundado na ontologia do bem, do belo e da verdade a partir de Aristóteles, atravessa a Idade Média, é assimilado pelo pensamento ilustrado, por Hegel até chegar em Marx, com ênfase na racionalidade. A vertente oriunda do mundo platônico das idéias é retomada pelo idealismo alemão e inspira a versão idealista do mundo social e a crença na subjetividade como fundante do sujeito e da realidade. Enquanto aquela vertente prioriza o sentido organicamente relacionado à vida social, esta ao passar por Kant promove o retraimento do sentido ontológico e amplia o sentido epistemológico em função do sujeito do conhecimento, fonte principal do atual interesse pela questão do sentido, ou se quiser, pela polissemia de sentidos. conferida à representação que transforma a sociabilidade, o ético, o político, o corpo, as determinações sociais e concretas do indivíduo em matrizes representacionais. Se resgatarmos o princípio afirmado historicamente de que atribuir sentido é próprio da condição humana, é uma necessidade humana, proclamar a representação do ser em lugar do ser conduz a algumas implicações,já anunciadas pela história, como conduzir a vida para o reino do niilismo, reconhecer a pluralidade de sentidos que se instauram a partir de princípios hedonistas ou ainda negar a existência do sujeito. Nesse momento, é possível constatar que todos questionam o sentido da vida. Imersos numa profusão ou polissemia de sentidos, na instrumentalização ou desencantamento do sentido da vida, observa-se, simultaneamente, uma busca incessante de sentidos que chegam a se desdobrar em fundamentalismos e no retorno ao místico. Em face dessa “multiplicidade” de sentidos é necessário questionar de que sentido se fala. O sentido é uma questão individual ou social? Singular ou coletiva? Quem é o sujeito desse sentido? Há realmente uma diversidade de sentidos que corresponda a reais oportunidades de escolha de um sujeito ou uma reposição de sentidos transfigurados e travestidos num mundo denominado pós-industrial? A pluralidade de sentidos é resultado de uma crise ético-política da sociedade que exigirá profundas transformações sociais ou uma diversidade ideológica passível de negociação e consenso? O sentido como foi dito acima é categoria central nas ciências humanas e sociais hoje. Na elaboração da dissertação de mestrado a categoria sentido esteve presente para analisar a vivência dos trabalhadores em face das novas filosofias e tecnologias gerenciais, mas alguns questionamentos e dúvidas acompanharam o desenrolar da pesquisa até sua finalização. O questionamento maior era se o entrevistado daquele estudo dissera mais do que o pesquisador foi capaz de apreender ou se realmente foi capaz de captar o sentido da experiência do sujeito da pesquisa, e se nessa investigação a análise do discurso do sujeito estaria dando conta de apreender o sentido das suas experiências no enfrentamento da realidade. Ao ingressar no doutorado, no Nexin – Núcleo de Estudos da dialética exclusão/inclusão – coordenado pela Profa. Bader Buhian Sawaia, discutia-se a categoria sentido, focalizando as emoções, as afecções e a experiência do sujeito com base nas reflexões teórico-metodológicas que Vygotsky aponta para a análise do sentido [subtexto], enquanto potencializador das transformações não só no plano da linguagem e da aprendizagem cultural, mas pelas experiências criativas e emancipadoras, pelos laços afetivos significativos, e formas de agir em face dos processos de inclusão/exclusão da sociedade. A trajetória no doutorado é acompanhada por esse questionamento e as leituras e reflexões nas orientações da tese apontaram para uma ampliação e aprofundamento dos referenciais teóricos marxistas que direcionaram a escolha de disciplinas em outros programas. A leitura do “Jovem Marx” e do capítulo “O Trabalho” da obra “Para uma Ontologia do Ser Social” de Georg Lukács repercutiram na minha compreensão sobre as questões teórico-metodológicas de Vygostsky e comecei a repensar se o interesse real de pesquisa era sobre os sentidos de “diferentes” sujeitos ou sobre a natureza e os fundamentos do sentido enquanto categoria de análise. Passamos a registrar as idéias e reflexões, esboçando um diálogo com os procedimentos de análise do discurso que desenvolvidas nas teses e dissertações do Nexin, até que a tarefa de sistematizar os procedimentos de análise do subtexto dos sujeitos das pesquisas desenvolvidas pelos participantes desse núcleo de pesquisa [para uma futura publicação do Núcleo 7] levou-me a organizar as notas que havia esboçado e 7 O resultado parcial desse desafio foi publicado pelos integrantes do Nexin. Nessa publicação são apresentados os ensaios metodológicos buscam aperfeiçoar procedimentos de análise para captar os sentidos do/no subtexto. Sawaia, B. B.; Namura, M. R. (orgs). Dialética da exclusão/inclusão – reflexões metodológicas e relatos de pesquisas na perspectiva da Psicologia Social Crítica. Taubaté, Editorial Cabral, 2002. escrever as primeiras idéias sobre a Análise do Sentido para melhor compreender a questão do sentido na constituição do sujeito enquanto problema teórico- metodológico. A proposta de Vygotsky de uma “nova” psicologia, [que realizaria a síntese dos contrários] ao fazer a crítica tanto à psicologia idealista quanto à psicologia objetivista que destituem o homem da vida real, propondo a categoria sentido para resgatar-lhe a humanidade nas condições de existência, reforçou o interesse em aprofundar essa discussão. Com esse objetivo comecei a participar do Neam – Núcleo de Estudos e Aprofundamento Marxista coordenado pelo Prof. José Paulo Netto para intensificar os estudos sobre Marx e principalmente Lukács um filósofo marxista do século XX que aprofunda os fundamentos de uma teoria do ser social delineada por Marx. Esses fundamentos iluminam as reflexões teóricas sobre o sentido relacionado à estética e à ontologia do ser social. Dessa forma passei a estudar o sentido em dois marxistas, no campo da psicologia e da filosofia, que discutiram sobre o sentido sem restringi-lo ao campo da representação, mas atrelado à estética. A releitura de Vygotsky enriquecida pela aproximação com o pensamento lukácsiano delineou o encontro com a estética que comparece nas obras de Marx, embrionariamente, e em Lukács de forma sistematizada. Nos três autores a estética comparece, não como ornamento ou como erudição do indivíduo, mas como uma dimensão essencial para a constituição do sujeito e da subjetividade, e, portanto, do sentido. Esses autores trabalham a questão do sentido como uma questão ontológica e não só epistemológica, e estão fundamentados na práxis social. Desse modo, a análise do sentido, voltada mais para uma ontologia do que para uma epistemologia, assegura as determinações sociais e objetivas da constituição do sujeito no enfrentamento da realidade, e o sentido não desliza para construções semiologizadas ou das filosofias lógico-linguísticas. Em função disso pude reivindicar um deslocamento da análise do discurso para a análise do sentido nos seguintes termos: a AS [Análise do Sentido] como ferramenta teórico- metodológica está mais voltada para uma ontologia do que para uma epistemologia, na medida em que busca a constituição do sujeito no enfrentamento da realidade, e não a construção do discurso onde se insere ou se encontra o sujeito. As obras literárias analisadas e comentadas por Vygotsky e Lukács clarificam a categoria sentido e as determinações constitutivas que encaminham para a explicação e análise do vivido e não para a construção e a desconstrução de textos, intertextos e discursos. Tanto Lev Semenovich Vygotsky [1896-1934] como Georg Lukács [1885-1971] analisam o sentido, guardando a relação com a materialidade e a ontologia, que fica explícita na questão da estética. As categorias de análise: a catarse, a mimese, o realismo ontológico, a ação dos homens, refletida na tragédia, não como cópia da realidade, mas como uma ação verossimilhante [da tradição aristotélica] 8, encaminham para uma análise do sentido que se contrapõe às concepções estritamente epistemológicas, lingüísticas e culturais. Como o objetivo deste trabalho é compreender e aprofundar a questão do sentido e da estética, enquanto dimensões auto-implicadas e constitutivas do sujeito, um sujeito criativo, sensível e ativo, que se (re)produz nas condições materiais de existência, partimos das obras desses autores que iluminam e fundamentam a concepção triádica: sentido-ontologia-estética. Centramos nossa análise inicialmente na Psicologia da Arte de Vygotsky e Introdução a uma Estética Marxista de Lukács 9 para entender os fundamentos do sentido na relação entre Filosofia, Arte e Ciência. As reflexões e as ponderações desses autores marxistas sobre o sentido e a estética nos campos da psicologiae da sociologia e filosofia, afastam-se das concepções hegemônicas dominantes que tendem a restringir o sentido ao campo das representações, da linguagem 8 Aristóteles conclui nas suas reflexões que a História narra e a Poética conta o que não foi, mas que poderia ter sido. 9 Para buscar a concepção de estética e sentido desses autores recorremos a essas obras, mas o entendimento preciso dessas categorias exigiu a leitura de outros textos e comentadores citados nas referências bibliográficas. significante e da semiótica, ao inserir a estética e a experiência humana no cerne do sentido. Em Vygotsky as obras que concentram a discussão da estética e do sentido foram pouco exploradas no campo da Psicologia. Hamlet - o Príncipe da Dinamarca, [monografia de 1915-1916] sinaliza a gênese da categoria sentido, mas não se configura como um caminho sistemático para a análise do sentido. A Psicologia da Arte, obra que ilumina a categoria sentido atrelada à estética, revela a gênese estético-ontológica do sentido e os fundamentos da concepção teórico- metodológica que viria a propor para a construção de uma psicologia voltada para a vida concreta do homem, para a questão da liberdade e da necessidade, sinalizando também o esboço da teoria das emoções 10 conforme comentários de seus intérpretes. A concepção marxista de estética, segundo a formulação lukácsiana em Introdução a uma Estética Marxista 11 distinta e original em relação às tradicionais concepções de arte no marxismo, oferece subsídios para compreender o homem por inteiro, o conjunto da vida humana na sua totalidade e representar a sua evolução e desenvolvimento num movimento dialético, em que o universal e o singular aparecem superados na particularidade - a categoria central da estética. Nessa obra a estética, como categoria da particularidade, anuncia a direção ontológica e as especificidades do ser social, distinta das concepções naturalistas e orgânicas, a ênfase na análise do ser em relação à análise do conhecer, e a concepção genética e dinâmica das relações sociais são evidenciadas na teoria do reflexo e na teoria do realismo, em que o sujeito ativo, criativo, da ordem do sensível e da cognição, é firmado na complexidade dos fenômenos sociais e na 10 A teoria das emoções estaria desenvolvida no sexto volume das Obras Escolhidas em Russo, atualmente vertida para o inglês: Hall, Marie J. The Collected Works of L.S. Vygotsky, Scientific Legacy, Vol. 6, Kluwer Academic / Plenum Publishers, New York, Londom, Moscow. 11 Depois dessa publicação Lukács escreve a Estética – la peculiaridade de lo estético, consultada parcialmente na tradução castelhana de Manuel Sacristán, Ediciones Grijalbo, S. A., Barcelona, 1966. sua relação com a totalidade, sem perder a idéia do ser humano genérico nem cair na metafísica, porque se particulariza historicamente. Para melhor expressar as reflexões que compõem o presente trabalho pretendemos apresentar no primeiro capítulo o tratamento dispensado ao sentido pelas principais correntes psicológicas. Esse percurso mostra como o legado da Psicologia, enquanto a ciência que nasce com o propósito de compreender a psiqué humana e responder sobre o sentido da existência do homem, é abandonado ou reduzido às dimensões sensualistas e idealistas, motivos que levaram Vygotsky a fazer a crítica à Psicologia e enfatizar essa categoria. Nas duas últimas décadas do século vinte o sentido é revigorado nas formulações construtivistas e construcionistas. No capítulo dois apresenta-se a gênese da categoria sentido em Vygotsky através do movimento literário russo nos primórdios do século vinte, do qual participou ativamente, pelo seu interesse nas artes literárias e cênicas, bem como a herança estética da tragédia grega e renascentista, em Aristóteles e Shakespeare. Terminamos o capítulo com breve apresentação das preocupações de Vygotsky com a educação estética das crianças. O terceiro capítulo pretende buscar a concepção de sentido e de estética na perspectiva de Marx e no renascimento do marxismo em Lukács, fundamentos que contribuem para ampliar e aprofundar a vinculação da estética e da ontologia do ser social na constituição do sentido. Para Lukács a estética é o homem encarnado na arte com suas múltiplas determinações; são as expressões subjetivas do homem, como manifestação de homens concretos e vivos. No realismo lukácsiano, a mimese e a catarse sustentam o reflexo artístico e enriquecem o sentido com o potencial transformador e emancipador da arte. O quarto capítulo apresenta a categoria sentido na derradeira obra de Vygotsky: A Construção do Pensamento e da Linguagem, e aponta os princípios e pressupostos da estética, subsidiando a construção teórico-metodológica do sentido e, portanto, sua concepção estético-ontológica. Capítulo 1 Porque Vygotsky se centra no sentido: uma breve incursão pela história do sentido na Psicologia Circunscrito ao corpo teórico da psicologia, nosso propósito é situar a questão do sentido e sublinhar as respostas que puderam ser formuladas pela psicologia para explicar a categoria sentido e a necessidade do homem em dar um sentido à vida ou construir uma vida cheia de sentido 12. A polêmica entre razão e emoção presente no corpo teórico-metodológico da psicologia tem sua gênese na chamada pré-história da psicologia. A visão idealista de Platão e a racionalista de Aristóteles e os desenvolvimentos subseqüentes dessas tendências filosóficas tiveram forte influência sobre a psicologia. Para a questão do sentido no mundo, especialmente, essa influência permite identificar uma dupla gênese, a vertente irracionalista e a vertente racionalista, que no vocabulário psicológico podemos aproximar do debate entre razão e sensação, para compreendermos a diversidade de concepções de sentido. Permite também compreender o desenvolvimento e as transformações que o termo sentido vai sofrendo no decurso da história do pensamento psicológico [ou das idéias psicológicas] marcado pelo modelo gnosiológico- 12 Consultamos manuais de psicologia na busca do debate entre razão e emoção e da palavra sentido e obras sobre pesquisa histórica para a construção deste capítulo. Na mais recente obra sobre historiografia na psicologia encontramos os termos história recente, longa história, pré- história dos quais nos apropriamos para situar o debate razão/sensação. Historiografia da Psicologia Moderna organizado por Josef Brozek e Marina Massimi, Unimarco e Loyola, 1998. Outras obras consultadas para a construção deste capítulo foram: Muller (1968) que organizou cronologicamente a história da psicologia, Heidbreder [1969] apresentando os sistemas psicológicos; Marx e Hillix [1973] as principais escolas, Miller [1962] pelos grandes nomes ou personalidades de destaque. epistemológico do pensamento moderno – a teoria da representação – que ao estabelecer a relação entre o sujeito cognoscente e o objeto, estabelece simultaneamente a cisão entre sujeito e objeto, conhecimento racional e conhecimento sensível, razão e emoção, objetivo e subjetivo. Herdeira dessas cisões a psicologia científica vai trilhar seu caminho por duas grandes vertentes no tratamento da categoria sentido. A primeira vertente vinculada aos órgãos do sentido, às sensações e percepções, com as seguintes expressões: sentido de direção, do tato, térmico, da pele, do gosto, do olfato, da audição, da posição e dos movimentos da cabeça. Segunda vertente, osentido reporta-se ao capítulo sobre linguagem e comunicação, referindo-se aos sentidos denotativo e conotativo da palavra (Escala semântica de Osgood) 13. Essas construções vão ao encontro da grande influência do positivismo na psicologia. Como sistema filosófico e como método de investigação científica, o positivismo entende o fenômeno psicológico como dado psicológico ou fato empírico e exclui a dimensão valorativa como pertencendo a um mundo incompatível com a objetividade e neutralidade da ciência. Ao fazer a cisão entre objetivo e subjetivo, entre mente e corpo, entre fato e valor, define-se pelos fatos e fenômenos psicológicos naturais como passíveis de conhecimento científico eliminando as ambigüidades e indeterminações dos significados e dos sentidos humanos. A pesquisa realizada por Faar [1999] sobre a história da institucionalização da Psicologia Social corrobora esse fenômeno, afirmando que a psicologia enquanto ciência, ou na sua curta história, descende do positivismo de Comte. Foi Allport que o elegeu como o fundador da psicologia social. A questão da psicologia sensorial condicionada à reflexologia, fisiologia e métodos experimentais não traduz o interesse de todos os “projetos” da psicologia, mas sinaliza a tensão entre as tradições européia e americana e a 13 Esta referência foi encontrada em: Krech, Crutchfield and Ballachey, O indivíduo na Sociedade – um manual de psicologia social. Pioneira, SP, vol. 2,1969. crescente hegemonia da psicologia social americana como uma disciplina da psicologia que “ignora as tradições da psicologia social que se desenvolveram no contexto da sociologia e das outras ciências sociais” 14 [Faar, 1999, p.33]. A dualidade empirista e racionalista do corpo teórico da psicologia evidencia o tratamento dispensado ao sentido. O sentido estaria, ou na esfera exterior, nas coisas e nos objetos sendo capturável pelas sensações e percepções, ou no plano subjetivo [puro], numa interioridade quase auto-suficiente em criar sentidos. Figueiredo [2002] constata esse fenômeno ao analisar as tradições dos “projetos da psicologia” e mostra que alguns se ocupam do “espaço psicológico” como conhecimento objetivo dos fenômenos psíquicos. A perspectiva funcionalista delineia os processos cognitivos e emocionais como ‘estados subjetivos’ reificados. Os “projetos da psicologia” de tradição mais filosófica, por sua vez, promovem uma certa dissolução do psicológico e remetem às dimensões política, religiosa e ética da experiência. Gordon Allport [1962] estudando o desenvolvimento da personalidade aponta para a dualidade suscitada pelo método científico e para influência mais direta da tradição lockeana e da tradição leibniziana nos vários projetos e escolas psicológicas. Assinala que, apesar da diversidade de sistemas psicológicos e das múltiplas teorias, constata-se a presença de seus correspondentes reducionismos ao tomarem a experiência, o comportamento, as relações psicofísicas, os processos conscientes da mente e os processos inconscientes como objeto de estudo, e poucas abordam a “totalidade da existência psíquica do homem”. [1962, p. 18]. A tradição lockeana introduz a metáfora da mente como uma tábula rasa na qual a sociedade inscreve o texto que deseja, fazendo supor uma mente passiva 14 Em outras passagens rejeita a dicotomia entre história do pensamento e história da pesquisa promovida pela psicologia social estadunidense, isso oculta as raízes predominantemente européias da psicologia e mostra apenas os resultados de pesquisas tipicamente americanos. que recebe as impressões do meio ambiente e a elas reage. O entrecruzamento de associações vai construindo a estrutura mental, o pensamento e a organização das idéias. Por isso a conhecida afirmação de Locke, de que nada podia haver no intelecto que antes não tivesse passado pelos sentidos. Da ordem das impressões sensoriais, os órgãos do sentido são a porta de entrada dos processos cognitivos, dos processos de aprendizagem e da reflexão. Interessado em como se adquire conhecimento, concebe duas qualidades de experiência; uma derivada da estimulação sensorial, causada pelos objetos físicos, e outra, derivada da reflexão que age sobre as impressões sensoriais para produzir idéias de nível superior e abstrações. Os sentidos, enquanto sensações ou experiência sensorial, são em última instância a fonte primeira dos processos cognitivos. A concepção de sentido a partir desses pressupostos filosóficos conduz às vertentes empiristas da psicologia. Seus representantes podem ser encontrados nos diversos tipos de associacionismo, behaviorismo, na psicologia animal, enfim, “em tudo aquilo que hoje em dia é apreciado em nossos laboratórios como psicologia verdadeiramente <científica>“. [op.cit, p. 22] A influência do empirismo de Locke na psicologia científica pode ser condensada, segundo Gordon Allport, em três pressupostos: a importância ao que é externo e visível – mais importante que o organismo, é o estímulo, a admissão de que o que é anterior é mais fundamental do que o que segue no desenvolvimento [o importante é a aprendizagem, as fixações e os condicionamentos na infância], e o que é pequeno e molecular, [as idéias simples], é mais fundamental do que o que é grande e complexo, [as idéias complexas]. A crença na equivalência das espécies, que explica o mais complexo pelo mais simples, o estudo do animal como um protótipo do homem, revela uma aversão especial aos problemas atinentes a motivos complexos, à integração em nível elevado, à consciência, à liberdade, à individualidade. Essa preferência e crença nas unidades moleculares mantém os sentidos sob a égide dos processos sensoriais, da psico-fisiologia e do arco-reflexo. A tradição alemã contrapõe-se ao reducionismo molecular e ao dualismo cartesiano, postulando que a pessoa é a fonte dos atos e que a atividade é dotada de finalidade, idéias oriundas da enteléquia de Aristóteles e do intentio de Tomás de Aquino, os precursores do sistema filosófico de Leibnitz [1646-1716]. Quanto às idéias de Locke, revida-as ironicamente, afirmando que nada podia haver no intelecto que não tivesse passado pelos sentidos ‘[nada], salvo o próprio intelecto’. Em vez de unidades moleculares, Leibniz focaliza as relações entre o corpo e a alma e defende a autosuficiência das mônadas, ativas, porém regidas por uma sincronização operada por Deus. Ele fornece uma contribuição importante para a teoria dos sentidos na Psicologia, a distinção entre percepção e apercepção 15 sugerindo a existência de processos conscientes e inconscientes, de princípios organizativos imanentes e de harmonia interna. Segundo Wertheimer [1991], Leibnitz distinguiu sensação de processos perceptivos de nível mais elevado. Há graus de clareza e consciência crescentes entre a sensação – quase subliminar, menos claras e despercebidas, e a apercepção que consiste em percepções mais claras e resultam em conhecimento supraliminar. Deixa, entretanto, a idéia de um sistema fechado em que nenhuma ação externa poderá atingir, decorrendo dessas idéias as teorias da cognição e da motivação, na psicologia. O monismo idealista, da tradição alemã, vai ser criticada por Berkeley [1685-1753] que elimina o sagrado e introduz a experiência como o único fenômeno de que se pode ter certeza e que se pode conhecer. A mente é a realidade imediata. A questão não é o modo como a mente afeta a matéria, conforme Descartes, nem como a matéria gera a mente, conforme Locke, mas de que modo a mente gera a matéria, uma vez que a mente é o dado básico, a 15 A noção de apercepção evoluina direção de um fenômeno mais complexo e ativo do que a recepção de estímulos sensoriais. Em Wundt a doutrina da apercepção explica o processo de organização dos vários elementos mentais num todo novo, as propriedades desse novo padrão criado pelo princípio da síntese criativa não aparecem nos elementos originais. realidade imediata conforme análise de Wertheimer [1991]. Sucedido cronologicamente por Hume [1711-1776], o monismo idealista torna-se um ceticismo em relação à realidade externa, com a afirmação de que a mente conhece somente seus próprios processos. Esses questionamentos influíram diretamente no tratamento que a psicologia dispensou à idéia de sentido. A noção de sentido já não corresponde diretamente aos órgãos do sentido, às impressões sensoriais, ao fisiológico ou psicofísico; ele emana da experiência própria do indivíduo que é auto-organizado e propositivo, chegando ao solipcismo, em Berkeley. As idéias, percepções, motivações e a reflexão numa organização própria da mente, geram e doam sentido ao mundo, ao “interagir” com o meio ambiente. O sentido apresenta-se quase auto-suficiente, mas não abandona as sensações como fonte de conhecimento. O debate nesse momento gira em torno da fidedignidade desse conhecimento, o sentido está relacionado ao conhecimento verdadeiro ou não. O combate ao inatismo é na verdade um embate entre a perspectiva científica e a perspectiva filosófica, em que a psicologia foi gerada. Na ciência o sentido refere-se aos órgãos do sentido, o tempo de reação das transmissões neurológicas e fisiológicas, o arco-reflexo, enfim, estava ligada às sensações. Na filosofia a questão correlata em discussão era a origem das idéias: inatas ou oriundas da experiência – o debate inatismo - empirismo, uma discussão em torno da gênese e de como se adquire o conhecimento – é o debate que a psicologia importa para definir-se como ciência. Desse modo, o estudo das sensações atrelado à psicofísica pretende estabelecer a relação entre o mundo físico e o psíquico, mas os métodos experimentais constataram que entre a percepção imediata e seu objeto físico não existia uma correspondência ponto-a-ponto e sim processos mais complexos. Mesmo assim, preponderaram estudos de tempo de reação, ação reflexa, percepção visual, as sensações e o sentido do tato através de desenhos experimentais que permitiram construir uma psicologia científica voltada para o conhecimento do organismo e que deveria responder pelo funcionamento dos órgãos do sentido, interposto entre a percepção e seu estímulo externo. A hipótese que orientava e direcionava esses experimentos era a busca da resposta na natureza do organismo, e a investigação sobre a fisiologia dos sentidos poderia responder pela ação dos órgãos do sentido em face das percepções.16 Uma “epistemologia fisiológica”, segundo Wertheimer [1991], com o objetivo de descobrir como se obtém informação através dos sentidos e como essa informação é transmitida do órgão sensorial para o cérebro, enfim, o caminho fisiológico para a compreensão dos fenômenos psicológicos. A descoberta da ligação entre o físico e o psíquico perquiria os pesquisadores, que se revelavam ao mesmo tempo fascinados pelos métodos rigorosos e precisos da ciência, pela natureza ordeira do mundo que este revelava e insatisfeitos com a distância que a ciência oficial impunha ao apelo imediato da vida e da mente, afastando o homem da realidade sentida. Essa ambigüidade foi constatada nos estudos de Fechner, cujos métodos demonstraram como quantificar com precisão eventos mentais e como as quantidades físicas e psíquicas se relacionam. A contribuição do seu assistente Hermann von Helmholtz foi combater o inatismo, demonstrando que a percepção do espaço era um trabalho da mente, como resultado da experiência do sujeito em face do estímulo. Sua descoberta sobre o tempo de reação da visão e da audição demonstrou que os métodos experimentais usados em fisiologia eram aplicáveis aos processos psicológicos da sensação e percepção, e que estes processos não eram um somatório de reações, mas determinados por um “arranjo especial”. A sensação capta o estímulo, a percepção é uma composição que relaciona sensação e experiência, isto é, a percepção é um processo cognitivo muito mais complexo, que implica inferências inconscientes da experiência passada do indivíduo com o objeto percebido, adicionadas à sensação. 16 Os primórdios da psicologia científica aqui representados por Fechner (1801-1887), Helmholtz (1821-1894) e Wundt (1832-1920). Essa distinção, central para o sentido, vai se apresentar sempre na forma de um paradoxo porque a questão da significação aí contida colide com o método experimental. A teoria de Helmholtz esmaece a ênfase fisiológica, ao vincular o sentido a um trabalho interior da mente, à influência da experiência passada e à personalidade do indivíduo, ao mesmo tempo em que rejeita qualquer método que dependa da observação e de informações do sujeito, porque são distorcidas pelas suas condições subjetivas. O esforço de Helmholtz, em combater o inatismo avança na concepção teórica, mas é estancado pelas opções metodológicas, pela força do método experimental e pelo modelo positivista das ciências físico- químicas. Se o conhecimento e as idéias provêm da experiência, o sentido também tem essa origem, entretanto, essa afirmação não é totalmente verdadeira. Há duas questões que se estendem pela história das idéias psicológicas, como herança do empirismo crítico apresentado acima: o sentido atrelado aos órgãos do sentido (como sensação) ou à experiência (como percepção, cognição) são apreendidos no mundo empírico, mas não necessariamente pelo método experimental. De um lado temos Helmholtz e psicologia científica sustentada no método experimental como legítimo, para compreender a natureza das sensações e dos órgãos do sentido, e compreender como se conhece; de outro, Wundt e o “dualismo metodológico”. O Laboratório de Leipzig, pela via oficial, estatui a psicologia como uma ciência natural, mas o próprio Wundt, com a publicação da Psicologia dos Povos, dá visibilidade a uma psicologia social impossível de se constituir com métodos experimentais. Ele mesmo optou pelo dualismo metodológico quando estabeleceu que a melhor maneira para desenvolver uma psicologia científica era manter os métodos psicofísicos, 17 para estudar os processos da sensação e percepção, 17 A solução de Wundt para estudar o problema mente-corpo foi o paralelismo psicofísico em que as mesmas leis causais operam na esfera mental e na esfera física. O princípio da causalidade enquanto os processos mentais complexos, como o pensamento, deveriam ser estudados pelo uso de material coletado na área da antropologia cultural. Wundt “não pensava ser possível estudar, através da introspecção, fenômenos mentais como o pensamento. Era possível estudar apenas os processos sensoriais básicos. Isso porque a mente não pode voltar-se sobre si mesma e estudar aquilo de que ela mesma é produto. Estudar a relação entre linguagem e pensamento, por exemplo, era, para Wundt, parte de sua Volkerpsychologie” [Farr, 1999, p.45] e o método adequado é a observação, em outras palavras, os processos mentais superiores só podem ser compreendidos por meio do método histórico. Essas observações mostram que os pesquisadores não estavam alijados de um pensamento mais abrangente e amplo em relação ao homem e ao mundo, basta lembrar que no final do século XIX a tradição romântica na Alemanha [Dilthey, Weber, Husserl] estava em pleno vigor, mas o fascínio pela ordem da sociedade era conciliável com um método científico que pudesse
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