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ANTROPOLOGIA CULTURAL 1 ANTROPOLOGIA CULTURAL Graduação 117 ANTROPOLOGIA CULTURAL U N ID A D E 4 ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE Prezado (a) Aluno (a), Chegamos a nossa quarta e última unidade de estudos. Após discutirmos, ao longo das unidades anteriores, o processo de constituição da Antropologia como campo de conhecimento, mapeando seus principais conceitos, métodos, teorias e escolas, adquirimos um repertório analítico que nos permite avançar em uma direção mais pontual, que diz respeito à aplicação deste mesmo repertório, na abordagem antropológica de contextos sociais mais localizados, apontando para as implicações daí decorrentes, na compreensão de alguns objetos de análise mais específicos. É com este propósito que abordaremos, inicialmente, nesta quarta unidade de estudos, as implicações, os limites e as especificidades da abordagem antropológica da cultura, no contexto das chamadas sociedades complexas. Em seguida, tomaremos como foco analítico das nossas reflexões a dinâmica de funcionamento da nossa própria sociedade, isto é, a sociedade brasileira vista em sua totalidade, buscando problematizar as relações entre indivíduo e pessoa, hierarquia e igualdade na construção do seu universo ideológico, a partir de alguns eixos norteadores, tais como a percepção do público e do privado na construção da cidadania e no mundo do trabalho, dentre outras esferas da vida social. OBJETIVOS DA UNIDADE: • Compreender as bases teóricas da abordagem antropológica da cultura no contexto das chamadas sociedades complexas; • Conhecer o conceito de sociedades complexas e sua correlação com o problema da dinâmica cultural; UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 118 • Reconhecer a importância da abordagem antropológica para a análise e problematização de algumas temáticas envolvidas no contexto das chamadas sociedades complexas; • Compreender os conceitos de indivíduo e pessoa e suas correlações com o problema da hierarquia e da igualdade no contexto da sociedade brasileira; • Correlacionar os conceitos antropológicos com processos de construção de identidades sociais. PLANO DA UNIDADE: • A Abordagem Antropológica da Cultura e o Estudo das Chamadas Sociedades Complexas. • A Etnografia e o Estudo das Chamadas Sociedades Complexas: Limites e Possibilidades de Realização. • O Campo Antropológico e as Relações entre Indivíduo e Sociedade. • Uma Interpretação Antropológica da Sociedade Brasileira – As Relações entre Hierarquia e Igualdade, Indivíduo e Pessoa no Contexto Ideológico Brasileiro. Seja bem-vindo à quarta e última unidade de estudos! Estamos felizes de ter participado de sua formação acadêmica e desejamos sucesso em sua prática profissional! Bons estudos e aproveite as sugestões que o conteúdo desta unidade deixa a você para a compreensão a nossa própria sociedade! 119 ANTROPOLOGIA CULTURAL A ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA DA CULTURA E O ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS Na unidade anterior, tivemos a oportunidade de conhecer como a Antropologia pôde, ao longo de todo o século XX, consolidar seu repertório teórico-conceitual e legitimar sua prática investigativa, firmando-se no cenário intelectual contemporâneo, como um campo do saber, decisivamente voltado para o estudo da diversidade cultural, em busca de uma explicação para o problema da diferença e de um diálogo mais compreensivo e mais aberto com a alteridade. No decorrer deste período, o conceito de cultura – “lócus” privilegiado da análise antropológica – foi alvo de intensas polêmicas e de inúmeras controvérsias, pautadas, na grande maioria dos casos, em um esforço conjugado por diversos estudiosos, visando atingir a um duplo objetivo. De um lado, elaborar uma definição conceitual da cultura que pudesse garantir a sua especificidade enquanto objeto próprio da análise antropológica e, de outro lado, estabelecer uma base metodológica capaz de viabilizar sua análise no contexto da realidade social. Destas discussões, resultou um cenário marcado pela contraposição de idéias que, longe de sinalizar para um consenso teórico-metodológico, ensejou uma multiplicidade de perspectivas analíticas, em torno das quais, é possível identificar, no entanto, alguns pontos de aproximação e convergência. Do ponto de vista teórico-conceitual, esta convergência se expressa na afirmação do conceito de cultura como “um conjunto complexo de códigos” (Lévi-Strauss, 1974) que possibilitam aos indivíduos a organização coletiva das suas ações no mundo. Situada na base do diálogo estabelecido pela Antropologia – com destaque especial para a obra de Claude Lévi- Strauss – com a área da Lingüística – especialmente através dos trabalhos produzidos por Ferdinand Saussure – esta noção de código, foi sendo pouco a pouco incorporada pelas reflexões desenvolvidas no interior do campo antropológico, num movimento através do qual, ganhou força e visibilidade, tornando-se modernamente, a principal marca distintiva das teorias elaboradas sobre o conceito de cultura. Dentro deste contexto, pode-se, pois afirmar, que seguindo, inicialmente, a trilha aberta por Saussure, ao apontar, no âmbito da Lingüística, o caráter a um só tempo, sistemático, inconsciente e social da linguagem – domínio central de atuação da cultura – a noção de código, ao ser incorporada pelo campo antropológico, pôde, gradativamente, sofisticar-se, vindo a se constituir, atualmente, como uma referência básica, por intermédio da qual, a cultura passa a ser definida, como indica Lévi-Strauss (1974), “como um código” formado por um “conjunto de regras de interpretação da realidade que, permitem aos indivíduos a atribuição de sentido ao mundo natural e social”. Para que possamos compreender a amplitude e a especificidade desta definição, precisamos distinguir dois níveis de análise, com ela diretamente correlacionados, e, que embora distintos, na verdade, interpenetram-se e se autocomplementam. Num primeiro nível, a noção de código traz como correlato implícito e imediato, a noção de sistema, apontando para o plano das ações humanas Código: para a Lingüística é o sistema de signos simples ou complexos, organizados e convencionados de tal modo que possibilitem a construção e transmissão de mensagens. UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 120 em termos da sua organização coletiva, no contexto da realidade social. Neste nível específico da análise, o conceito de cultura como código, refere- se, portanto, ao plano da operação prática do sistema social enquanto totalidade. Ou seja, ao plano envolvido com o modo pelo qual os indivíduos distribuem e organizam, de forma coerente e integrada, suas ações, no interior do processo social, mediante regras e padrões de interação, coletivamente compartilhados pelo grupo, garantindo o funcionamento do sistema como um todo. Neste nível de análise, as modernas concepções de cultura parecem externalizar a herança teórica que lhes foi legada pela perspectiva Funcionalista, através da afirmação do caráter sistêmico da cultura. Como vimos, anteriormente, esta afirmativa provocou uma redefinição do “todo complexo” de Tylor, que passa a ser percebido à luz de uma nova perspectiva, de acordo com a qual, lhe é atribuído uma lógica e uma racionalidade intrínsecas por constituir um sistema. Para que sua compreensão a respeito desta ruptura provocada pelos teóricos funcionalistas, diante do modelo analítico proposto pelos evolucionistas na busca de uma explicação para oproblema da diversidade cultural possa se efetivar clara e objetivamente, procure não perder de vista o conceito de cultura elaborado por Edward Tylor, que abordamos na nossa primeira unidade de estudos. Relembrando, o conceito de cultura é definido por Tylor, através da seguinte afirmativa: “Cultura ou civilização em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (Tylor, 1871:1). Dentro desses parâmetros, a postura evolucionista que concebia este “todo complexo” como um agregado histórico composto por uma série de itens, elementos e traços culturais isolados, que, uma vez encontrados em todas as sociedades humanas – independentemente da época, tempo ou lugar considerados – poderiam ser agrupados sem que suas relações internas fossem analisadas, posto que enquadradas em um eixo evolutivo único liderado pela cultura européia, perde a sustentabilidade teórica e é definitivamente superada. Com isto, o etnocentrismo cede, cada vez mais, o lugar para a legitimação da prática relativizadora, abrindo espaço para que o reconhecimento pleno da diferença pudesse efetivamente se concretizar. Em outras palavras, a afirmação do caráter sistêmico da cultura, levou a Antropologia a adotar de modo gradativo e sistemático, uma postura cada vez mais, marcada pela constatação inegável de que a mesma possui, uma IMPORTANTE! 121 ANTROPOLOGIA CULTURAL coerência e uma dinâmica interna a serem analisadas na particularidade e na singularidade dos diferentes contextos históricos ou formações sociais em que se encontrem inseridas. Num segundo nível de análise, a noção de sistema aponta para a dimensão expressiva do comportamento humano. O conceito de cultura como código, refere-se neste nível de análise, ao plano simbólico e representacional das ações humanas, estando diretamente associado, ao modo pelo qual os indivíduos atribuem sentido e significação às regras e normas por eles criadas e utilizadas na organização de suas ações práticas no contexto da realidade social. Trata-se, portanto, de um plano que envolve os diferentes modos de pensar e agir, coletivamente, compartilhados pelos indivíduos para interpretar simbolicamente esta mesma realidade, atribuindo- lhe sentido e significação. É neste segundo nível de análise – o nível simbólico e representacional – que a concepção de cultura como código ganhou expressividade na discussão antropológica contemporânea, conduzindo a afirmação de um novo pressuposto teórico de acordo com o qual, a ação e o pensamento humanos estão subordinados a regras inconscientes. Este pressuposto, além de expressar, o diálogo que a Antropologia pôde estabelecer ao longo da sua constituição teórica com outras áreas do conhecimento – no caso, mais especificamente, com a Lingüística e com a Psicanálise – ampliou também, o seu espectro de abordagem, ao mesmo tempo em que, possibilitou a retomada de algumas velhas questões que, uma vez reelaboradas, assumiram uma nova envergadura teórica. Vejamos então como este processo se articulou e como ele pode ser compreendido. Em primeiro lugar, é preciso considerar que a afirmação do conceito de cultura como um código simbólico – ou seja, como um conjunto de sistemas simbólicos, composto por regras e formas de expressão, através do qual, os membros de um determinado grupo ou sociedade externalizam o modo como concebem, organizam e interpretam suas ações no plano da realidade social – desloca o foco da observação antropológica. Como destaca a perspectiva Estruturalista, advogada por Claude Lévi-Strauss, subordinada a regras inconscientes, a análise da cultura deixa de incidir, prioritariamente, na identificação das diferentes formas de manifestação empírica da atividade de um grupo social – comportamento, hábito, crença, costume, etc. – e passa a se referir ao conjunto de princípios lógicos que possibilitam, antes de tudo, a elaboração mental e simbólica dos significados destas manifestações. Novamente, aqui, o conceito de cultura elaborado por Tylor (1871), vem à baila, assumindo uma importância especialmente significativa para a compreensão deste processo. Se, de um lado, a afirmação do conceito de cultura, como um código simbólico, rompe com a prioridade dada por Tylor à análise das manifestações empíricas do comportamento humano, de outro lado; a ênfase na dimensão simbólica da cultura encontra, na própria definição de cultura por ele proposta, a base fundamental sob a qual pôde se complexificar. Em outras palavras, ao definir cultura como “quaisquer capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 122 sociedade”, Tylor tocou em um ponto nevrálgico da perspectiva antropológica: o caráter social da cultura. Retirada da ordem da natureza – o plano das coisas dadas, aprioristicamente, sem a intervenção e a mediação da ação humana – a cultura, cada vez mais, deixa de ser percebida como resultante de capacidades inatas, geneticamente herdadas pelo homem, em função da estrutura biológica do seu próprio organismo, e passa a ser situada em uma outra ordem – a ordem social e simbólica – concebida como um plano que se constrói dialética e reflexivamente, através da atuação e pela mediação da ação humana. Como afirma Lepine (1979): “A função simbólica inaugura, no homem, uma nova forma de relação com o ambiente físico e uma nova forma de adaptação. No mundo animal, o organismo está em contato imediato com a realidade física, reagindo diretamente aos estímulos exteriores. O animal se constitui por assim dizer o seu próprio meio; e o que é decisivo para a sua resposta é a situação tal como ela lhe aparece. Estímulo e reação, portanto, não se justapõem como a causa e o efeito; eles constituem dois termos correlativos. O mundo físico exterior e a reação estão intimamente relacionados e integrados num todo estrutural. No homem, pelo contrário, o estímulo não é físico. O homem vive num meio artificial de símbolos; não reage diretamente às coisas, mas às idéias que ele tem sobre as coisas; não pode perceber nada senão através da interposição deste meio simbólico que o afasta da realidade física”. (Lepine, 1979:23) De acordo com esta afirmativa e conforme vimos na nossa primeira unidade de estudos, uma vez, situada na ordem social, a cultura adquire uma outra dimensão de sentido – a dimensão simbólica – e passa a corresponder às diferentes formas pelas quais os homens puderam responder de um modo, absolutamente diverso e variável, a um conjunto de necessidades biológicas comuns. Não estando localizada na estrutura orgânica geneticamente herdada pelo homem, e, nem tão pouco, dentro do aparelho psíquico “natural” dos indivíduos, a cultura passa a equivaler ao universo da regra, da convenção e da artificialidade. Ela é um construto humano decorrente, não apenas, das interações estabelecidas concretamente pelos indivíduos no decurso da sua socialização em um determinado grupo ou sociedade, mas também, das diferentes dimensões de sentido e de significados que lhe são atribuídos pelos indivíduos, no compartilhar coletivo da vida social. Encarada nesta perspectiva, a cultura constitui, como nos sugere a abordagem Interpretativista advogada por Clifford Geertz (1989), uma espécie de “programa” que se instala dentro do dote genético do indivíduo, modelando uma única vida em um ser que, biologicamente, ao nascer, se encontra “apto para viver mil vidas”, mas que, na verdade, viverá apenas uma, posto que, ela – a cultura – funciona, como um “mecanismo de controle” 123 ANTROPOLOGIA CULTURAL que regula o comportamentodos indivíduos, quando situados à cena pública em conformidade aos contextos particulares, no âmbito dos quais esta mesma vida se desenvolve. Neste sentido, o homem cada vez mais se autopercebe, como parte que constitui e que é, simultaneamente, constituída pela sociedade, estando todas as suas atividades, formas de comportamento, atitudes e ações; amarradas e presas, de um modo ou de outro, como na metáfora utilizada por Geertz, as “teias de significado”, que ele mesmo teceu e dentro das quais a sua vida se desenvolve. Para Geertz, portanto, a cultura nos modela simbolicamente e, assim fazendo, torna-nos o que somos ou, como ele próprio afirma: “Nós somos animais incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura – não através da cultura em geral, mas através de formas altamente particulares de cultura (...) A fronteira entre o que é controlado de forma inata e o que é controlado culturalmente no comportamento humano é extremamente mal-definida e vacilante. Entre os planos básicos para a nossa vida que os nossos genes estabelecem – a capacidade de falar ou de sorrir – e o comportamento preciso que de fato executamos – falar inglês num certo tom de voz, sorrir enigmaticamente numa delicada situação social – existe um conjunto complexo de símbolos significantes, sob cuja direção nós transformamos os primeiros nos segundos, os planos básicos em atividade. Nossas idéias, nossos valores, nossos atos, até mesmo nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais – na verdade, produtos manufaturados a partir de tendências, capacidades e disposições com as quais nascemos (..). Quando vista como um conjunto de mecanismos simbólicos para controle do comportamento, a cultura fornece o vínculo entre o que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e o que eles realmente se tornam um por um”. (Geertz, 1979:61-64). Como claramente evidencia esta afirmativa de Geertz, não é somente a cultura que possui uma dimensão social e simbólica. O próprio comportamento humano é também constituído e revestido por esta dimensão expressiva, o que lhe confere uma amplitude de sentido que não se esgota na sua completude, nos aspectos puramente técnico, prático e/ ou instrumental, envolvidos com as manifestações empíricas dos seus atos, palavras, gestos e atitudes. Esta amplitude de sentido extrapola, vai além da mera praticidade e aponta para o fato de que, até mesmo este caráter objetivo e pragmático do comportamento humano, francamente visível em suas manifestações reais e concretas, só adquire significação quando inserido em um sistema mais amplo de relações sociais. Dizer isto significa admitir, portanto, que as manifestações empíricas e concretas do comportamento humano, não estão soltas no espaço social como um barco à deriva sem Pragmático: Relativo aos fatos que se devem praticar. Referente ou conforme a pragmática usual. Relativo a pragmatismo: Doutrina segundo a qual, a verdade de uma proposição é uma relação totalmente interior à experiência humana e o conhecimento é um instrumento a serviço da ação, tendo o pensamento caráter puramente finalístico; a verdade de uma proposição consiste no fato de que ela seja útil, tenha alguma espécie de êxito ou satisfação. UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 124 rumo e sem direção. Muito pelo contrário, integrando-as em um todo coerente, existe um código simbólico que, funcionando como uma espécie de “leme” atribui-lhes sentido e significação dentro do sistema social. Em outras palavras, o comportamento humano não se realiza e nem se atualiza, isoladamente em um vácuo cultural e social. Entre o plano da operação prática que possibilita a manifestação empírica e concreta da ação – sorrir, falar, comer, chorar, andar, dormir, etc. – e o plano que lhe confere sentido e intencionalidade – a forma e o motivo pelos quais se pratica a ação – existe a mediação do sistema simbólico, que informa sobre as normas e as regras utilizadas pelo grupo social, para dar significado à realidade, na qual esta ação ou comportamento se assenta. Como esclarece o próprio Geertz: “Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção de padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas. (...) O homem não pode ser definido nem apenas por suas habilidades inatas, como fazia o iluminismo, nem apenas por seu comportamento real, como o faz grande parte da ciência social contemporânea, mas sim pelo elo entre eles, pela forma em que o primeiro é transformado no segundo, suas potencialidades genéricas focalizadas em suas atuações específicas. (...) Submetendo-se ao governo de programas simbolicamente mediados para a produção de artefatos, organizando a vida social ou expressando emoções, o homem determinou, embora inconscientemente, os estágios culminantes do seu próprio destino biológico. Literalmente, embora inadvertidamente, ele próprio se criou. (...) Grosso modo, isso sugere não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura. Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e, muito significativamente, sem cultura não haveria homens” . (Idem, Ibidem, p.60-64). O que esta afirmativa nos atesta e confirma é o fato de que, o comportamento humano, seja qual for a dimensão que se considere – empírica e concreta ou expressiva e simbólica – só adquire sentido e significação, quando inserido no âmbito das múltiplas interações estabelecidas pelos indivíduos nos diferentes contextos em que a vida em sociedade se desenvolve. Isoladamente, as condutas individuais nada significam. Permanecem destituídas de sentido, como se não possuíssem um componente simbólico e expressivo, que só se revela em sua amplitude e riqueza de formas, na relação que os homens estabelecem entre si no decurso da vida social. Desta forma, o “fluxo da vida social” parece constituir de fato, o “lócus” privilegiado da atuação e da manifestação do comportamento humano. É por intermédio deste fluxo que o homem, incapaz de viver em um mundo 125 ANTROPOLOGIA CULTURAL que não seja dotado para si próprio de sentido, compartilha com seus semelhantes de uma ordem particular de significação. Esta ordem significativa é o que constitui, para Geertz, como sendo a cultura. Universo por excelência da produção de sentido, a cultura, pode ser melhor entendida como um código formado por uma inextricável “teia de significados” que os homens tecem no curso de suas interações cotidianas e que funciona como um mapa para o direcionamento das ações sociais. Concebida dentro destes parâmetros, a cultura pode ser comparada, também, a um amplo sistema de comunicação, através do qual a sociedade se expressa. Nesta acepção, e de um ponto de vista metafórico, a cultura como código, constituiria, no limite, uma espécie de texto, ou um conjunto de textos que os indivíduos lêem no “fluxo da vida social” para interpretar e atribuir sentido à realidade e ao plano de suas ações e comportamento efetivos. Sendo assim, tal como no domínio da linguagem, a cultura informa, fala da existência humana, quando em sociedade. É por seu intermédio que os indivíduos, como em um texto, trocam diferentes tipos de mensagens, utilizando para tanto, um conjunto, formado por um emaranhando de símbolos entrelaçados, contextualmente situados e socialmente adquiridos – palavras, gestos, ações, silêncios, falas – que se organizam em vários sistemas, fornecendo modelos, regras e normas que servem como bússolas ou mapas parao direcionamento da ação e do pensamento humanos no desenrolar dos acontecimentos sociais. Nesta perspectiva, todo e qualquer aspecto envolvido com o desenrolar da vida humana em sociedade – do vestuário aos hábitos alimentares, das formas de habitação aos ritos funerários, da música à sexualidade, da crença religiosa às formas de entretenimento, da doença à festividade, do corpo à arte, das práticas de consumo ao choro, dentre tantos outros mais – parece constituir um ponto menor, uma espécie de nó, cujos fios se amarram em uma teia maior de significado – a cultura – fornecendo cada um a seu modo, um conjunto padronizado de informações a respeito do que são, do que fazem e de como devem os indivíduos se comportar em contextos sociais específicos. Em outras palavras, eles constituem um conjunto de sistemas simbólicos que se organiza em vários subsistemas, formando um código particular e específico, através do qual a cultura se manifesta e se atualiza. UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 126 Dentro destes parâmetros, cumpre observarmos que, como qualquer código simbólico, a cultura de um determinado grupo ou sociedade, possui também seus segredos, seus mistérios e enigmas para aqueles que não a conhecem e que não participam diretamente da sua dinâmica interna. Isto não significa dizer que ela não possa, de algum modo, chegar a ser conhecida ou decifrada. Muito pelo contrário. Se lembrarmos que o comportamento humano possui uma dimensão social, fica fácil entendermos que, a despeito da enorme variedade de formas envolvidas com a sua manifestação empírica e concreta, existem símbolos e significados que são interpretados a partir de um sentido comum – por isto é que formam um código – ao grupo como um todo. Além disto, estes símbolos e significados não estão soltos no espaço social. Como vimos anteriormente, eles se organizam em sistemas, posto que, se encontram intimamente colados a contextos e situações sociais específicas, aos quais lhes confere uma dinâmica e uma coerência interna. É justamente este caráter sistêmico e social da cultura, o aspecto fundamental, que garante a possibilidade de que a decodificação dos significados dos seus símbolos possa ser objetiva e efetivamente realizada. Sendo assim, mediante a adoção de um procedimento metodológico específico, os segredos e os enigmas de uma cultura podem ser desvendados. Ou seja, por seu intermédio, as mensagens aparentemente truncadas e sem sentido, confusas e sem nexo, que são transmitidas pela cultura de um grupo ou sociedade particular, podem ser traduzidas para um outro grupo que lhe é distinto. Nesta lógica de raciocínio, o divisor de águas ou o critério básico capaz de demarcar e de identificar as características que definem cada cultura em sua singularidade de formas de expressão, consiste em verificar a possibilidade ou não de um mesmo símbolo – gestos, palavras, silêncios, rituais, práticas rotineiras, etc. – ser decodificado ou interpretado de modo equivalente por dois grupos sociais distintos. Como vimos anteriormente, em Antropologia, este procedimento ou recurso metodológico ganhou forma e expressão, com os trabalhos desenvolvidos por Malinowski que conduziram a legitimação definitiva da pesquisa etnográfica de campo ou trabalho de campo como parte integrante da abordagem da diversidade cultural. Desde então, o fazer etnográfico passou a constituir o instrumento básico por meio do qual o antropólogo pôde realizar esta atividade de tradução dos códigos culturais que caracterizam e informam a respeito das particularidades definidoras das diversas sociedades e/ou grupos humanos, visando a compreender pela interpretação, o modo como experimentam a vida e simbolizam a própria existência. Com isto, se por um lado, a afirmação do caráter sistêmico da cultura possibilitou a Antropologia consolidar sua prática investigativa e avançar através do exercício da etnografia, em direção a uma compreensão menos etnocêntrica e mais relativizadora da diversidade cultural; por outro lado, a constatação de que tanto o comportamento humano, como também a cultura se encontram revestidos por uma dimensão social e simbólica, desencadeou, 127 ANTROPOLOGIA CULTURAL do ponto de vista intelectual, uma série de novas discussões que irão impactar de modo significativo a abordagem antropológica da cultura no contexto das chamadas sociedades complexas, tanto no que diz respeito ao referencial teórico, como também no que tange a condução do fazer etnográfico. Para que você possa compreender com clareza como este debate crítico pôde se configurar, vamos recapitular rapidamente, os movimentos teóricos que estiveram no centro da constituição da Antropologia, como campo do saber. Durante o século XIX, período em que a abordagem antropológica pautava-se na égide do Evolucionismo Social, a preocupação com a cultura esteve a todo tempo, referenciada ao conhecimento da totalidade das características definidoras de uma determinada realidade social. Como indica a definição elaborada por Tylor (1871), a cultura correspondia a um “todo complexo” que englobava a um só tempo todas as possibilidades de realização humana, sejam elas materiais ou não materiais. Tratava-se de uma concepção globalizadora da cultura que caminhava de mãos dadas com uma visão totalizadora da história, posto que pressupunha a existência de um único eixo evolutivo que enquadrava e classificava no tempo, em diferentes etapas ou estágios evolutivos, todas as sociedades humanas como parte de um processo mais amplo de desenvolvimento liderado pela cultura européia. Com a emergência da perspectiva Funcionalista, inicia-se um movimento de ruptura com esta concepção que atingirá o auge com a entrada em cena de duas novas vertentes teóricas: o Estruturalismo e o Interpretativismo. A possibilidade de entendimento da cultura como um sistema de comunicação advogada – cada uma a seu modo – por cada uma destas duas vertentes teóricas, conduziu a uma ênfase crescente, em processos de simbolização que parece indicar de fato, uma mudança radical no conceito antropológico de cultura. Isto não significa, no entanto, que a preocupação com o entendimento da totalidade da vida social tenha desaparecido por completo. Basta lembrarmos que é no veio do diálogo estabelecido por estas duas perspectivas teóricas, que a afirmação do caráter sistêmico da cultura, inicialmente preconizada pelo Funcionalismo, pôde se sedimentar com maior vigor, conduzindo a uma dupla conseqüência. Em primeiro lugar, esta afirmativa, possibilitou uma abertura mais efetiva para o reconhecimento pleno da diferença, posto que, a cultura passa a ser concebida como um sistema integrado de relações sociais, a ser visto em sua singularidade e particularidade de formas. Cada parte ou elemento do conjunto – crença, comportamento, hábito ou costume – desempenha uma função específica no funcionamento do todo. Em segundo lugar, e, correlativamente, esta afirmativa, centrou o foco da abordagem antropológica, prioritariamente, no esforço de compreensão das diferentes formas, através das quais uma determinada sociedade e/ou grupo humano externaliza o seu próprio conhecimento quanto às maneiras de conceber e de se posicionar diante da realidade social, entendida, neste contexto como uma totalidade específica e singular. Dentro destes parâmetros, com o Estruturalismo e o Interpretativismo, embora, a preocupação com o entendimento da totalidade UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 128 da realidade social ainda permaneça presente, o modo de conceber esta totalidadese altera e se transforma radicalmente. Como discutimos nas páginas anteriores, influenciada por outras áreas do conhecimento – a Lingüística, em especial – o caráter sistêmico da cultura é associado à noção de código deslocando o foco da abordagem antropológica. Com isto, basicamente, a cultura deixa de ser concebida como uma totalidade que engloba a realidade social e passa a corresponder, em contrapartida, a uma dimensão mais específica desta mesma realidade: a dimensão simbólica e representacional. Trata-se de uma dimensão que não se restringe mais, única e exclusivamente, ao plano das realizações materiais, mas que se alarga e se estende em uma outra direção, ao mesmo tempo, em que se estreita e se especifica. Esta dimensão passa a se referir a um plano mais totalizador, posto que, entrecorta e tangencia todos os demais domínios da vida social, já que, uma vez regida, por regras inconscientes, nenhuma ação humana no âmbito da cultura, deixa de ser mediada pela condição simbólica. Do ponto de vista teórico, esta transformação conduz a afirmação da concepção da cultura como um código, que é composto por um conjunto complexo de diferentes sistemas simbólicos, que se organizam no interior da vida social, em diversos subsistemas. Nesta acepção, o estudo e a abordagem da cultura passam a incidir, prioritariamente, na análise das diferentes maneiras pelas quais uma realidade social é codificada por uma determinada sociedade e/ou grupo humano, através de processos de simbolização. Entra em cena, portanto, as diferentes formas de expressão – gestos, palavras, idéias, rituais, doutrinas, práticas cotidianas, etc. – pelas quais os indivíduos interpretam suas ações e comportamento, visando a atribuir sentido ao mundo e a realidade que os envolve. Diante desta mudança, uma questão básica parece se impor como um imperativo a ser enfrentado. Qual seja: como analisar sociedades nas quais convive, lado a lado, uma enorme multiplicidade de sistemas simbólicos? Afinal como afirma Lévi-Strauss (1974): “Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos em cuja linha de frente, colocam-se a linguagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência e a religião. Todos estes sistemas visam a exprimir certos aspectos da realidade física e da realidade social e, ainda mais, as relações que estes dois tipos de realidade mantém entre si e que os próprios sistemas simbólicos mantêm uns com os outros” (Lévi- Strauss,1974:9) É exatamente a existência desta multiplicidade de sistemas simbólicos no interior de uma mesma realidade social, o dado que irá provocar uma alteração do ponto de vista metodológico, na condução da análise cultural deslocando também, o foco da observação antropológica, em uma direção que cada vez mais, sugere novos desafios e novos dilemas, no que diz respeito ao desenvolvimento de uma reflexão mais detalhada acerca dos limites e das possibilidades efetivamente envolvidas com o fazer etnográfico enquanto prática investigativa. Estes desafios podem ser sintetizados à luz de dois cenários diferenciados que parecem se descortinar. 129 ANTROPOLOGIA CULTURAL O primeiro deles faz alusão ao chamado “modelo clássico de etnografia”, que se legitimou na Antropologia com os trabalhos produzidos por Malinowski, no qual o antropólogo, enquanto pesquisador via-se frente ao desafio de estudar sociedades cuja alteridade lhe era descontínua em termos geográficos. Tratava-se de sociedades de dimensões restritas e autocontidas que mantinham pouco contato com os grupos vizinhos e que eram marcadas por uma baixa especialização do trabalho e pela pouca divisão das tarefas e das funções sociais. Por todas estas razões, estas sociedades constituíam um espaço social marcado em um certo sentido, por um grau de “uniformidade” e “homogeneidade” no qual os indivíduos compartilhavam de uma visão de mundo uniforme ou de um mesmo mapa cultural o que facilitava para o antropólogo, o exercício da atividade de tradução ou de decodificação deste sistema cultural, nos termos de um outro que lhe parecia distinto e diferenciado. Esta suposta facilidade é substancialmente afetada quando o antropólogo se vê frente ao desafio de estudar as chamadas sociedades complexas. Trata-se agora, de um novo cenário que, diferentemente, do caso anterior – as primeiras sociedades estudadas pela Antropologia clássica – apresenta alguns eixos complicadores que irão contribuir para uma maior sofisticação do conceito de cultura e para uma aproximação mais direta entre a perspectiva antropológica e uma abordagem mais propriamente sociológica. Além disto, altera-se simultaneamente, as bases de sustentação do fazer etnográfico, cuja analise nos permite situar a Antropologia no atual quadro de experimentação em que se encontra a sua prática investigativa. A esta altura, supomos que a sua curiosidade tenha sido aguçada e que você já esteja se perguntando no que consiste, exatamente, estas chamadas sociedades complexas, em como e a partir de que critérios elas podem, efetivamente, ser caracterizadas e de que forma tudo isto se correlaciona, de modo a tornar o estudo da cultura no interior das mesmas, objeto de uma discussão tão específica para o campo antropológico. Antes de avançarmos, no conteúdo destas discussões, nos parece fundamental, então, apresentar a você, uma definição inicial do que a Antropologia entende sob a rubrica sociedades complexas. UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 130 Em Antropologia, o termo sociedades complexas tem sido, a rigor, utilizado para denominar tipos específicos de formações sociais, caracterizados por uma intensa e profunda diversificação interna. A princípio, esta diversificação tem sido associada, via de regra, à expansão acelerada do sistema capitalista industrial que, ao longo do seu desenvolvimento histórico, conduziu a uma ampla divisão social do trabalho e a uma forte especialização das funções e dos papéis sociais. Deste processo, resultou uma complexificação crescente da estrutura social, no seio da sociedade industrial contemporânea, com a formação de uma rede de instituições sociais, que, cada vez mais segmentadora, não apenas diversificou, como também, fragmentou a inserção e a participação dos indivíduos no interior do sistema social, conforme estejam mais ou menos ligados, mais ou menos próximos a estas instituições. Nesta acepção, a idéia de complexificação estaria, portanto, diretamente vinculada às relações de produção no interior do sistema capitalista apontando, inicialmente, para as diferentes posições ocupadas pelos indivíduos – a divisão entre classes sociais, mais especificamente falando – no contexto destas relações. A força e a pujança do desenvolvimento do sistema capitalista, aliada à expansão crescente dos novos mercados de produção e consumo internacionais, reforçou gradativamente esta idéia, desembocando, grosso modo, em uma interpretação, de acordo com a qual, todas as demais formas de participação dos indivíduos na vida social, são concebidas como derivadas desta diferenciação primeira e, do conseqüente conflito de interesses entre capital e trabalho, que em torno dela se estabelece. Em outras palavras, neste tipo de interpretação, as forças produtivas – traduzidas na relação capital versus trabalho – constituiriam uma espécie de domínio específico da realidade, a partir do qual, a totalidade da vida social poderia ser analisada e compreendida. Trata-se de um domínio, que nesta lógica de raciocínio, abarcaria todos os demais domínios – inclusive a cultura – da totalidade social e que apresentaria fronteiras mais ou menos identificáveis, já que, uma vez espraiadas no tecido social, deteria um graude porosidade que permitiria o trânsito dos indivíduos entre os diversos domínios e espaços sociais que lhe são constitutivos e a ele subordinados. Cingida sob a influência desta interpretação, é que a preocupação com o estudo da cultura no contexto das sociedades complexas emerge como uma questão a ser, intelectualmente, enfrentada pelo campo antropológico contemporâneo. Neste cenário de enfrentamento, despontam os trabalhos desenvolvidos por dois antropólogos contemporâneos, cujas idéias e propostas analíticas constituíram referências basilares para a problematização deste tipo de interpretação; abrindo, com isto, um espaço extremamente fecundo, não apenas para uma relativização dos conceitos que lhes serviram de alicerce, como também, para um refinamento e sofisticação crescentes do próprio conceito de cultura, quando inserido no contexto das chamadas sociedades complexas. 131 ANTROPOLOGIA CULTURAL A primeira destas referências, diz respeito, ao antropólogo, Marshall Sahlins (1930/–), e aponta, mais especificamente, para um trabalho por ele produzido e intitulado “Cultura e Razão Prática”, publicado pela primeira vez em 1976, que, dado o ineditismo das idéias teóricas apresentadas, ganhou o status de um “clássico contemporâneo”. Neste trabalho, Sahlins investe contra a idéia de que as culturas humanas são formuladas sob a égide exclusiva da atividade prática, e, mais fundamentalmente, a partir de interesses meramente econômicos e utilitários, que por si mesmos, representariam critérios suficientemente adequados para explicar sua especificidade e dinamicidade. Argumenta, em contrapartida, que, embora o homem viva em um mundo material, sua existência se desenvolve de acordo com um esquema significativo por ele mesmo elaborado. Sendo assim, se é fato que a cultura define a vida humana, também é fato, que ela não o faz por intermédio exclusivo das pressões advindas da ordem material, mas em conformidade com um sistema simbólico, social e, humanamente definido, que nunca se apresenta e se esgota em um modelo restrito e único. Deste modo, longe de ser constituída pela utilidade, é a cultura, ao contrário, que constitui a própria utilidade, como claramente afirma o próprio autor, logo no prefácio deste trabalho: “Contrapondo a todos gêneros e espécies de razão prática, este livro apresenta uma razão de outra espécie: a simbólica ou significativa. Toma como qualidade distintiva do homem não o fato de que ele deve viver num mundo material, circunstância que compartilha com todos os organismos, mas o fato de fazê-lo de acordo com um esquema significativo criado por si próprio, qualidade pela qual a humanidade é única. Por conseguinte, toma-se por qualidade decisiva da cultura – enquanto definidora para todo modo de vida das propriedades que o caracterizam – não o fato de essa cultura poder conformar-se a pressões materiais, mas o fato de fazê-lo de acordo com um esquema simbólico definido, que nunca é o único possível. Por isso, é a cultura que constitui a utilidade. (....) O debate entre o prático e o significativo é a questão fatídica do pensamento social moderno.(...) Neste livro, afirmo que o significado é a propriedade específica do objeto antropológico. As culturas são ordens de significado de pessoas e coisas. Uma vez que essas ordens são sistemáticas, elas não podem ser livres da invenção do espírito”.(Sahlins, 2003:7-9). Se até este ponto, como você deve estar pensando, as idéias de Sahlins não sugerem a princípio, nenhum tipo de grande inovação na abordagem antropológica, na medida em que parece, de fato, caminhar em direção ao encontro do que já discutimos anteriormente, a respeito da afirmação do conceito de cultura como um código composto por um conjunto complexo de sistemas simbólicos, um dado novo vem à baila, quando avançamos no percurso da estruturação de sua perspectiva analítica e verificamos as UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 132 conseqüências interpretativas que, a partir dela, se produz. Este dado refere- se, basicamente, ao esforço por ele mobilizado no sentido de mapear a especificidade da forma pela qual a sociedade ocidental capitalista – tipo mais emblemático das chamadas sociedades complexas – articulou, de um modo muito próprio, os limites da relação que se estabelece entre a atividade material – a razão prática – e a atividade simbólica – a razão significativa. Para tanto, Sahlins recorre a uma análise comparativa entre a sociedade ocidental capitalista e as ditas sociedades tribais ou tradicionais. Sem negar ou excluir a presença de ambas as atividades – a prática e a simbólica – nestes dois tipos de formações sociais, Sahlins argumenta que o divisor de águas capaz de estabelecer uma distinção entre elas reside em uma diferença de ênfase a que concedem cada uma a seu modo, a estas duas atividades, enquanto domínios específicos, em torno dos quais, organizam e percebem a sua própria realidade, enquanto totalidades sociais específicas e singulares. De acordo com o que argumenta, na sociedade ocidental capitalista, o foco da produção simbólica ancora-se, prioritariamente, nas relações de produção; ao passo que nas sociedades tribais este mesmo foco incide nas relações de parentesco. Como ele próprio, pontualmente, esclarece: “Na cultura ocidental, a economia é o lócus privilegiado da produção simbólica. Para nós, a produção de mercadorias é ao mesmo tempo o modo privilegiado da produção simbólica e de sua transmissão. A singularidade da sociedade burguesa não está no fato de o sistema econômico escapar à determinação simbólica, mas em que o simbolismo econômico é estruturalmente determinante (...). Falando ainda nesse alto nível de abstração, a peculiaridade da cultura ocidental é a institucionalização do processo na produção de mercadorias e enquanto produção de mercadorias, em comparação com o mundo ‘primitivo’ onde o lócus da diferenciação simbólica, permanece nas relações sociais, principalmente nas de parentesco, mantendo-se as outras esferas de atividade ordenadas pelas distinções operacionais do parentesco. O que estou tentando estabelecer é uma diferença entre a sociedade burguesa e a sociedade primitiva na natureza e produtividade do processo simbólico que seja contrapartida de uma variação no padrão institucional. As relações de produção compõem o principal quadro classificatório da sociedade ocidental. (....) O dinheiro é para o Ocidente o que o parentesco é para os demais. É o nexo que assimila todas as outras relações à posição na produção. ‘A sede do dinheiro, ou o desejo de riqueza’, disse Marx, ‘necessariamente traz consigo o declínio e queda das comunidades antigas. Daí ser a antítese delas’. No ocidente, nenhuma instituição é imune a esta estruturação pelas forças econômicas. Nele, assim 133 ANTROPOLOGIA CULTURAL procede a economia, como lócus institucional dominante: produz não somente objetos para sujeitos apropriados, como sujeitos para objetos apropriados. Ela (a economia) joga uma classificação sobre toda a superestrutura cultural, ordenando as distinções de outros setores através da oposição de seus próprios setores – exatamente como ela usa essas distinções para seus próprios propósitos (lucro)”. (Idem, ibidem, p.209-214) Desta afirmativa de Sahlins, podemos extrair duas conclusões fundamentais para a compreensão do conteúdo que estamos discutindo: a primeira delas aponta para a idéia de complexidade como um aspecto que constitui e envolve diretamente o próprio processo de produção simbólica em diferentes tipos de formações sociais, historicamente configuradas. Neste veio e, correlativamente, em segundolugar, a distinção, inicialmente por ele, então, estabelecida, quanto ao modo específico pelo qual este processo opera na sociedade ocidental capitalista quando contraposta às sociedades tribais, não significa excluir a possibilidade de que outras áreas de produção simbólica possam coexistir no interior de uma mesma formação social quando considerada na singularidade da sua manifestação empírica. Muito pelo contrário; esta possibilidade se afirma não como uma hipótese imaginária, mas constitui um dado que, de fato, acontece e é objetivado ao nível da realidade concreta. Sendo assim, a constatação das relações de produção como o foco privilegiado da produção simbólica, na sociedade ocidental capitalista, não anula a existência de outras áreas também envolvidas com esta mesma produção, mas que estariam, no entanto, mais ou menos, por elas influenciadas. De acordo com esta linha interpretativa, de um modo ou de outro, no contexto da sociedade ocidental capitalista, as relações de produção – enquanto instância específica de atuação da economia – possuiriam uma espécie de força simbólica capaz de contaminar todas as demais esferas da vida social, definindo o recorte básico, através do qual, a realidade social é organizada e percebida pelos diferentes grupos humanos que a constituem. Das maneiras de organizar as rotinas básicas da vida cotidiana, expressas nas formas de arrumação da casa, nas práticas alimentares, nos modos e estilos de vestuário, nas regras de higiene e limpeza, dentre outras; aos modos de experienciar o tempo e o corpo, de vivenciar a sexualidade e até mesmo a morte, as relações de produção se afirmam como uma bússola que orienta, direta ou indiretamente, as alternativas elaboradas pelos grupos humanos, quanto aos diferentes modos de se posicionar, de ser e de estar no mundo, conferindo sentido ao ciclo de suas existências concretas. De modo análogo, situação idêntica ocorreria também, no contexto das sociedades tribais, no que tange a predominância das relações de parentesco, enquanto lócus privilegiado da produção simbólica. UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 134 No conjunto, estas duas conclusões são ilustrativas para demarcar a contribuição do trabalho de Sahlins para a abordagem e o estudo da cultura, quando inserida no contexto das chamadas sociedades complexas. Elas demonstram a relatividade dos focos, em torno dos quais o processo de produção simbólica incide, e nestes termos, podem variar não apenas em função do tipo de sociedade considerada, como também, em decorrência do momento histórico tomado como referência de análise. Não obstante o caráter relativo destas variações, a atividade simbólica permanece, ainda assim, como o aspecto fundamental que fornece significado as ações e aos comportamentos humanos, uma vez que é por intermédio da sua agência e mediação que eles são revestidos de intencionalidade e sentido. Uma segunda referência intelectual que se afirma em direção a este debate crítico é representada pelos trabalhos desenvolvidos pelo antropólogo Louis Dumont (1911/1998). Teorizando sobre as ideologias da hierarquia e da igualdade, Dumont (1985) discute a emergência do individualismo na sociedade moderna – identificada especificamente com a sociedade ocidental capitalista – e aponta para a distinção deste tipo de formação social, quando comparada com as chamadas sociedades tradicionais – identificadas, mais diretamente, com a Índia. De acordo com o que argumenta este autor, o indivíduo constitui o valor supremo em torno do qual, todas as demais instituições sociais se organizam, nas sociedades do segundo tipo; o todo social e político é predominante, em relação ao indivíduo. Neste segundo caso, trata-se, de um tipo diferenciado de sociedade, na qual o princípio cultural básico de organização social se funda em um modelo hierárquico com forte independência das relações de produção. Isto não significa dizer que as relações e instituições sociais sejam destituídas de complexidade, mas de reconhecer que a sua incidência se desloca para outros aspectos e/ou dimensões envolvidas com a organização da vida social. É a luz destas considerações que as análises produzidas por Dumont (1992) demonstram como a idéia de complexidade, no caso específico da sociedade indiana, encontra-se fortemente vinculada, com a origem, a estrutura e o funcionamento de um outro tipo de sistema de diferenciação social nela presente: o sistema de castas. Hierarquia e igualdade expressariam neste sentido, universos ideológicos específicos que exercem Castas: Camadas sociais hereditária e endógamas, cujos membros pertencem à mesma raça, etnia, profissão ou religião. O conjunto de uma espécie animal ou vegetal, com origem comum e caracteres semelhantes, transmissíveis por hereditariedade. Raça, linhagem. Qualidade, espécie, gênero. Série de coisas com as mesmas qualidades ou características. 135 ANTROPOLOGIA CULTURAL diferentes formas de impacto, quanto à organização social e ao posicionamento dos indivíduos e/ou grupos humanos diante da realidade social, como teremos a oportunidade de discutir mais detalhadamente nos próximos tópicos desta unidade de estudos. Neste momento, gostaríamos apenas de destacar como os trabalhos produzidos por Dumont, vieram a constituir também, uma outra fonte de contribuição para a relativização da idéia de complexidade. Em outras palavras: se de fato, no contexto da sociedade ocidental capitalista, esta idéia esteve diretamente vinculada ao crescente processo de divisão social do trabalho, isto não significa postular, por conseguinte, que o grau de intensidade que, por ventura, venha a atingir a especialização das funções e papéis sociais decorrente deste processo, seja por excelência o critério básico a definir e a demarcar por si mesmo, a complexidade envolvida com as formas de organização das instituições sociais. Neste sentido, há que se considerar a existência de outros tipos de complexidade que não se esgotam única e exclusivamente ao âmbito das relações de produção, como é, por exemplo, o caso ilustrativo da sociedade indiana. No conjunto, estas duas referências teóricas representadas pelos trabalhos desenvolvidos por Marshall Sahlins e Louis Dumont, colocaram para o campo antropológico um duplo desafio. De um lado, a necessidade de se proceder a uma distinção dos diversos tipos de sociedades complexas existentes, conforme sejam os sistemas econômicos nelas vigentes, marcados por um caráter mais ou menos capitalista, de tipo tradicional ou não, fundados em uma base mais ou menos industrial ou agrária, etc. De um outro lado, e, correlativamente, a necessidade de se problematizar a primazia do recorte analítico que toma as relações de produção como o lócus privilegiado para o estudo do processo de produção simbólica, no contexto das chamadas sociedades complexas. Em ambos os casos, trata-se, portanto, da necessidade de relativização da base teórico-conceitual que serve de sustentação para a abordagem antropológica da cultura, no contexto das chamadas sociedades complexas. Não obstante a fecundidade deste esforço de relativização para a abertura de novas possibilidades analíticas, é fundamental não perdermos de vista, que um aspecto parece permanecer constante, como que confirmando a singularidade da abordagem antropológica, enquanto campo do saber. Qual seja, a constatação de que a atividade simbólica constitui o aspecto fundamental que permite aos grupos e sociedades humanas organizar, coletivamente, o plano de suas ações e comportamentos, de forma a atribuir sentido ao mundo e significado à realidade social. Nesta linhaargumentativa, o dado que parece fornecer uma nova amplitude e relevância à questão da produção simbólica quando à tônica da discussão incide no contexto das chamadas sociedades complexas, é o fato de que nelas, a dimensão do significado se intensifica, de um modo ou de outro, em função do forte processo de diferenciação social que envolve os indivíduos e grupos humanos em uma inextricável rede de instituições sociais. Inserida neste cenário, a idéia de complexidade passa a envolver, UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 136 paralela e simultaneamente, a noção de heterogeneidade, trazendo implicitamente para o centro da discussão, o problema de se identificar as conseqüências daí advindas, para a delimitação da especificidade do conceito de cultura no interior do campo antropológico. Dentro deste contexto, o debate ganha novas colorações e matizes, em torno das quais, se observa um polêmico e tenso movimento que pode ser sintetizado a partir de uma dualidade básica. Se de um lado, é inegável a constatação de que a expansão crescente do sistema capitalista no seio da sociedade industrial contemporânea, desencadeou de fato, um intenso processo de divisão social do trabalho, que segmentou e promoveu uma profunda especialização das funções e papéis sociais envolvendo os grupos humanos em uma rede complexa de instituições sociais, de outro lado não há como negar a evidência gritante de que a inserção e a participação destes grupos no contexto destas instituições sociais, longe de pautarem-se em formas homogêneas e uniformes, conduziram ao contrário, a um processo também, fortemente marcado, por uma intensa diversificação e heterogeneidade de posicionamentos no interior mesmo das relações de produção. Isto significa dizer que os indivíduos participam de modo desigual do processo de produção. Esta desigualdade conduziu ao que, historicamente, se convencionou denominar, na tradição clássica do pensamento sociológico, como correspondendo à chamada divisão de classes sociais. No contexto de uma sociedade capitalista clássica, tal como a descrita pela tradição marxista, esta divisão se expressa através de dois grandes grupos representados de um lado, pela classe burguesa, detentora dos meios de produção – as máquinas, equipamentos, etc. – e de outro, pela classe trabalhadora que vende a sua força de trabalho aos donos dos meios de produção. Esta divisão envolve, não apenas, uma distribuição objetiva e diferenciada dos indivíduos no processo de produção, mas, engloba também, uma distribuição de poder, prestígio e status que se materializa de um modo desigual no contexto mais amplo das relações sociais. Como a burguesia representa a classe que controla os meios de produção, ela passa, paralelamente, a deter o poder político de dominar e influenciar as demais instituições sociais, através da inserção no aparelho de Estado. Neste 137 ANTROPOLOGIA CULTURAL sentido, seus interesses assumem um tom ideológico, no qual passam a representar os interesses da sociedade como um todo, ainda que mascarando os conflitos e os antagonismos decorrentes da desigualdade da relação que se estabelece entre capital e trabalho. Aliado a este processo de diferenciação nas relações de produção, associa-se a presença de uma multiplicidade de grupos sociais de origens étnicas, sociais e regionais, extremamente variadas, que coexistem lado a lado, no contexto das sociedades industriais contemporâneas, reforçando a heterogeneidade de crenças, valores e visões de mundo e concorrendo para a formação de um mapa social, cada vez mais diversificado e diferenciado com a presença simultânea de múltiplas tradições sociais, convivendo e disputando espaço no interior de uma mesma totalidade social. A esta altura, cabe-nos perguntar: Como e de que modo todo este cenário se correlaciona com a questão da cultura? Quais os desafios que ele coloca para a abordagem antropológica? Quais as implicações e conseqüências daí decorrentes, para a elaboração de uma definição antropológica do conceito de cultura, num contexto social cingido pela complexidade e heterogeneidade de formas de organização social, relações, crenças e visões de mundo? De um ponto de vista mais abrangente e, considerando a afirmação do conceito de cultura como um código, uma das principais conseqüências geradas por este processo de complexificação e heterogeneidade que caracteriza as chamadas sociedades complexas – as sociedades industrias contemporâneas – teria sido a suposição de que haveria no interior da totalidade social a dominância de um determinado sistema simbólico sobre outro. Nesta linha argumentativa, a cultura, de um lado, refletiria e expressaria, em certa medida, a íntima diversificação e heterogeneidade presentes no contexto da realidade social, e, de outro lado, ela constituiria o próprio “lócus” de produção das contradições sociais, expressando mais especificamente o antagonismo entre as classes sociais, decorrentes da desigual distribuição de poder, prestígio e formas de controle e acesso aos recursos sociais, no âmbito das relações que se estabelecem entre capital versus trabalho. Subjacente a esta suposição reside, portanto, uma pressuposição fortemente enraizada na esfera do senso comum envolvente e reforçada UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 138 por um certo tipo de ideologia, de que o estilo de vida, as crenças e visões de mundo da classe burguesa constituiriam uma espécie de universo de valores com legitimidade própria, posto que expresso e sedimentado por diversas instituições ligadas à produção da ciência, da filosofia e do saber oficializado, no contexto da sociedade mais ampla, que justificaria e autorizaria a afirmação quanto à existência de uma cultura dominante, por ela representada. O problema deste tipo de suposição é o fato de que dela deriva uma série de classificações e tipologias construídas sobre o conceito de cultura que são problemáticas para a discussão antropológica. Para que você possa compreender com maior facilidade essas classificações, vamos nos reportar ao caráter polissêmico da cultura que discutimos, no contexto da nossa primeira unidade de estudos. Se num primeiro momento, nosso objetivo pautou-se no esforço básico de demonstrar a variedade de significados envolvidos com o termo cultura, nossa intenção agora caminha em uma outra direção. Desta forma, neste segundo momento trata-se, de problematizarmos estes significados à luz do instrumental teórico fornecido pela Antropologia, no sentido de percebermos como eles não estão soltos no espaço social. Na verdade, eles exprimem certas concepções ideológicas que se encontram referenciadas a valores e visões de mundo distintos, decorrentes dos diferentes tipos de relações e posições ocupadas pelos indivíduos e grupos humanos no contexto da vida social. Deste modo, uma das classificações derivadas da suposição quanto a existência de uma cultura dominante, diz respeito à oposição entre “cultura erudita” versus “cultura popular”. Esta polaridade apóia-se em uma espécie de diferença qualitativa entre formas diferenciadas de manifestações culturais, que atribuiria ao primeiro tipo um caráter mais refinado e sofisticado em oposição a um segundo tipo, marcado por um caráter mais rústico, pouco elaborado e de menor valor estético e criativo. Um terceiro tipo de classificação refere-se à chamada “cultura de massa” a qual é atribuída uma ausência de autenticidade, posto que, estaria respaldada na tentativa de massificação e uniformização de estilos e modos de vida estimulada através dos meios de comunicação– mídia impressa e televisiva, além do rádio e do cinema – tendo como referência a cultura dominante, representada pela classe burguesa. Como você já deve estar percebendo, a dificuldade colocada para o campo antropológico quanto à aceitação destas classificações, é o conteúdo altamente valorativo que parece lhes servir de base conduzindo, via de regra, a uma percepção estereotipada dos diferentes tipos de manifestações culturais. Quando se fala, por exemplo, em “cultura erudita” a mesma é associada a uma suposta “elite cultural” formada por uma classe socialmente mais abastada, que teria uma capacidade de maior discernimento e julgamento estético. A “cultura popular” representaria o lado oposto da moeda, sendo caracterizada como de menor valor estético, portanto, mais simples, mais rústica e menos urbana e sofisticada. De um outro modo, em algumas circunstâncias, tenta-se atribuir a esta última, um valor diferenciado em face da primeira, invertendo a oposição. Ou seja, justamente por ser 139 ANTROPOLOGIA CULTURAL mais simples e mais rústica, ela, conseqüentemente, seria mais verdadeira, mais pura e autêntica, o que de um modo simétrico inverso, conduz, igualmente, a uma supervalorização de um tipo em detrimento a um outro, considerado como de menor valor. Em todos estes casos, estas diferentes classificações desembocam em uma postura etnocêntrica que, como vimos ao longo das nossas discussões, desqualificam a diferença, tendo por base julgamentos de valores pré-concebidos a respeito de um determinado tipo de sociedade considerada como a melhor, e, conseqüentemente, de como são e de como devem os indivíduos e grupos humanos agir no contexto das relações que estabelecem entre si e com o mundo que os envolve. Longe de incorporar, portanto, tais classificações como verdades universais a respeito do que faz, do que pensa e do que produz um determinado tipo de sociedade, quando confrontado com uma outra que lhe é distinta, o esforço da Antropologia caminha em uma direção permanente pela busca da relativização, do estranhamento e da “desnaturalização” destes e de quaisquer outros tipos de classificações estanques e isoladas que só contribuem para o estreitamento da compreensão das múltiplas alternativas humanas diante da existência. No próximo tópico desta unidade de estudos, retornaremos, brevemente, a esta discussão, tomando como eixo norteador o principal instrumento que permitiu a Antropologia este exercício relativizador – a pesquisa etnográfica de campo ou trabalho de campo – visando, a partir daí, problematizar os limites e as possibilidades envolvidas com a sua prática investigativa no contexto das chamadas sociedades complexas. Procure se manter concentrado e vamos em frente em nossas reflexões. A ETNOGRAFIA E O ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: LIMITES E POSSIBILIDADES DE REALIZAÇÃO De acordo com o que argumentamos ao longo dos tópicos anteriores, é possível identificarmos como uma das características definidoras das chamadas sociedades complexas, o fato de que nelas os indivíduos participam simultaneamente, de diferentes “mundos” culturais. Como membro de um grupo familiar, participando de algum órgão ou associação de classe ligada ao mundo do trabalho, aderindo a um grupo político partidário, como adepto de algum sistema religioso aos diferentes tipos de atividade e grupos sociais, com os quais se engaja na esfera do lazer, a rede de relações sociais a que os indivíduos se inserem no contexto das chamadas sociedades complexas é profundamente marcada pela amplitude e pela variabilidade de interações sociais. Desta multiplicidade de interações estabelecidas pelos indivíduos resulta a formação de uma totalidade social extremamente diversificada e heterogênea. Nela, os diferentes grupos sociais parecem constituir “mundos” culturais particulares e singulares, que, uma vez movidos por produções simbólicas específicas, fornecem aos indivíduos possibilidades diferenciadas de interpretação da realidade. Deste modo, os indivíduos parecem transitar no interior do sistema social, entre diferentes “províncias de significado” que dificultam uma leitura uniforme do mapa social, posto que, suas ações, atitudes UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 140 e comportamentos pautam-se em dinâmicas, trajetórias e interesses nem sempre coincidentes. Sendo assim, ainda que admitamos como nos sugere Sahlins (2003), que no contexto da sociedade capitalista ocidental – exemplo emblemático das chamadas sociedades complexas – as relações de produção constituam o “lócus” privilegiado da atividade simbólica, este pressuposto não deve ser tomado como um critério absoluto e universalizante. Há que se considerar a existência de outros focos de produção simbólica, mediando as relações sociais que a depender do contexto e do momento histórico considerado, podem ser decisivos, não apenas para a interpretação da realidade social como um todo, mas também, como um fator que pode influenciar o próprio desenvolvimento e direcionamento das relações de produção. O reconhecimento acerca da relatividade deste critério como via explicativa para a questão da produção simbólica, no contexto de uma sociedade complexa, aponta para duas contribuições fundamentais na abordagem antropológica da cultura. Em primeiro lugar, esta atitude corrobora a afirmação do conceito de cultura como um código, ao mesmo tempo em que sinaliza para a importância de que seja estabelecida uma distinção dos diferentes sistemas simbólicos que compõe este código, identificando as aproximações e afastamentos existentes entre eles. Em segundo lugar, e, correlativamente, esta atitude convida a que se considere as diferentes formas pelas quais os indivíduos interpretam e dão significado a realidade social, não apenas e exclusivamente, no aspecto macro-estrutural das instituições que lhe são constitutivas, mas que incorpore também, a dimensão mais microscópica da ação humana, envolvida com o desenrolar cotidiano, por meio do qual o fazer da vida social se realiza. Nesta acepção, resgata-se simultaneamente, a perspectiva básica sob a qual se funda o próprio campo antropológico, enquanto uma área específica do saber que se dedica, prioritariamente, ao estudo da diversidade e da diferença cultural. Qual seja, o caráter dialético da relação entre sociedade e cultura. Deste modo, se de um lado, a produção da cultura é o dado que mais especificamente, dá singularidade à espécie humana e que define a sua dimensão social, de outro lado, a cultura não constitui uma realidade que paira sobre as cabeças dos indivíduos como uma espécie de força oculta sob a qual não possuem nenhum tipo de ingerência e controle. Muito pelo contrário. A cultura é um produto da ação humana que se expressa coletivamente, mas que também, se faz e refaz através das trajetórias e biografias individuais. Sendo assim, afastada uma perspectiva que reifica ambos os conceitos, o indivíduo passa a ser considerado como um agente de transformação social. Ou seja, um sujeito que atua no devir histórico e que, por meio de suas ações e das interações que estabelece com os seus semelhantes, é capaz de resignificar a própria história, através de um constante repensar crítico acerca dos papéis sociais que desempenha, e, conseqüentemente, dos diferentes símbolos que utiliza para interpretar e dar sentido ao todo. Na vida social, estes símbolos não constituem, portanto, Reificação: Palavra derivada do latim “rés” (coisa). No processo de alienação, o momento em que a característica de ser uma “coisa” se torna típica da realidade objetiva. Alienação e objetificação. 141 ANTROPOLOGIACULTURAL um aspecto estanque e isolado à ação individual. Eles apresentam uma flexibilidade e plasticidade que lhes são conferidas pela própria ação dos indivíduos, que ao manipulá-los, transformam-no conforme as exigências dos contextos e circunstâncias a que estejam inseridos, daí o caráter dinâmico da cultura. É dessa dinamicidade e desse potencial de mudança permanente e constante a que se revestem as manifestações culturais no contexto das chamadas sociedades complexas, que deriva uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo campo antropológico, no que tange as possibilidades efetivas de realização da sua prática investigativa. Esta dificuldade pode ser expressa através de um duplo movimento: de um lado, a necessidade de identificar os diferentes sistemas simbólicos que estão presentes e que constituem a totalidade da vida social, em um contexto marcado pela coexistência de uma pluralidade e multiplicidade de formas de interpretação do mundo, e, de outro lado, a necessidade de mapear os possíveis pontos de aproximação e de ligação entre esses diferentes sistemas simbólicos, identificando suas fronteiras e ambigüidades, de modo a transformar esta totalidade em um dado que pode ser descrito e analisado do ponto de vista metodológico. Em ambos os casos, trata-se, portanto, de uma dificuldade que envolve não apenas, o repertório teórico-conceitual que possibilitou a Antropologia legitimar-se enquanto campo do saber, como também, os limites do fazer etnográfico como prática investigativa. Como tivemos a oportunidade de discutir ao longo das unidades anteriores, se no período seminal da formação da Antropologia como campo do saber, esta dificuldade era facilmente enfrentada através da distância que separava a antropólogo, enquanto pesquisador, do objeto estudado – a sociedade ou grupo humano que se encontrava geograficamente distante da sua própria sociedade – no período mais contemporâneo de sua constituição, esta dificuldade não apenas se interpõe ao fazer investigativo, como de fato, parece se complexificar e se potencializar. No contexto das chamadas sociedades complexas, sendo o antropólogo, parte integrante do próprio objeto a que investiga, algumas questões se impõe. Como falar de uma “outra” cultura sendo ela, a cultura do próprio “eu”? Como estabelecer critérios de análise que possam discernir um recorte teórico na abordagem desta “outra” cultura que, embora parte do próprio “mundo do eu”, não se confunda com as concepções e posições políticas do próprio sujeito que investiga? Como definir o que é ou não prioridade e relevante, enquanto objeto de análise? Se no primeiro momento, o desafio colocado ao antropólogo pelo fazer etnográfico, pautava-se na capacidade de virar o próprio espelho, de modo a se familiarizar com o exótico “mundo do outro”, no contexto das chamadas sociedades complexas; o espelho parece girar para o próprio “mundo do eu” que deve ser, agora, exotizado e transformado no “mundo do outro”. Esta é a transformação básica que envolve o problema do relativismo e das possibilidades de seu enfrentamento, dado à natureza e à intensidade da alteridade que colocam sujeito e objeto em um mesmo plano de análise. UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE 142 Neste enfrentamento, a Antropologia tem sugerido caminhos diversos, na busca uma compreensão mais aberta para o reconhecimento pleno da diferença. Para tanto, ela precisou se debruçar em um constante reflexionar crítico a respeito da sua própria prática, colocando a si mesma, como objeto do que constitui a sua marca distintiva no estudo da diversidade: a relativização dos seus próprios conceitos, num esforço permanente de superação. Desse modo, de uma perspectiva que pressupunha a necessidade de existir uma espécie de empatia especial entre sujeito e objeto, que garantisse a possibilidade do antropólogo transformar-se, ele próprio, em “nativo” para que pudesse compreender o “outro”, tal como preconizava Malinowski, caminhou-se em direção a um outro tipo de visão, que concebe a ação e o pensamento humanos como submetidos a regras inconscientes, tal como advoga Lévi-Strauss. Desse postulado, a Antropologia pôde defender o pressuposto de acordo com o qual, sendo a mente humana regulada por mecanismos universais, que se materializam na diversidade das culturas humanas; o acesso ao “outro” torna-se uma possibilidade efetiva, já que esta diversidade nada mais seria, do que a variação de um mesmo repertório, de uma mesma estrutura que se repete sempre. A partir desse postulado, a cultura se afirma como um código formado por diferentes sistemas simbólicos que possibilitam a comunicação intercultural. A garantia de acesso ao “outro”, nessa perspectiva, reside na dimensão pública do significado dos símbolos, tal como advoga Clifford Geertz. Contextualmente situado, este código pode ser decifrado pelo antropólogo, mediante a observação e a interpretação do que está sendo “dito” através das ações e comportamentos humanos no decorrer do fluxo social. Estando sujeito e objeto situados neste mesmo fluxo de comunicação intercultural, o esforço permanente do antropólogo consiste, portanto, em explicar como entre o plano da ação prática e as representações, que dela se constrói, reside o dado através do qual as sociedades e grupos humanos se diferenciam. É na identificação dos diferentes sistemas simbólicos que fundam este processo de diferenciação, que universos culturais distintos podem ser, comparativamente, analisados, revelando a um só tempo, o que cada um deles em sua dimensão particular e única, possui em comum ao conjunto de manifestações culturais e empíricas que compõe o do acervo da humanidade como um todo. Em outras palavras, é este processo de diferenciação que torna cada cultura humana, a um só tempo, única e plural. No próximo tópico desta nossa unidade de estudos discutiremos, exatamente, este processo de diferenciação, buscando, a partir da trilha aberta pelos trabalhos de Louis Dumont, demonstrar como as relações entre indivíduo e pessoa podem contribuir para uma discussão a respeito do universo ideológico brasileiro. Trata-se, portanto, de uma perspectiva que coloca em pauta os limites e possibilidades envolvidas com a prática etnográfica posto que, utiliza os referencias teóricos de uma sociedade estruturada sob um sistema de diferenciação – a sociedade indiana – extremamente distinto daquele presente na nossa própria sociedade. Sendo assim, procure não dispersar o foco da sua atenção e vamos em frente em 143 ANTROPOLOGIA CULTURAL nossas discussões, lembrando sempre a importância de que você não deixe nenhum tipo de dúvida pendente. Interaja conosco sempre que julgar necessário, através do ambiente virtual de aprendizagem (AVA). O CAMPO ANTROPOLÓGICO E AS RELAÇÕES ENTRE INDIVÍDUO E SOCIEDADE As reflexões sobre a vida social, levadas a efeito pela tradição clássica do pensamento sociológico e político têm sido acompanhadas em sua origem e desenvolvimento por uma oposição recíproca entre indivíduo e sociedade, que carrega em seu bojo um questionamento básico: é o indivíduo um agente construtivo do mundo social, ou pelo contrário, constitui apenas um fenômeno derivado, um mero produto da sociedade? Esta dualidade central, que evidencia a própria tensão inaugural de todo o desenvolvimento da análise antropológica, tem sido expressa à luz de numerosos pares dicotômicos – tais como: atomismo x holismo, individualismo x coletivismo, macro x micro sociologia, agência x estrutura – em torno das quais tiveram origem uma enorme variedade de perspectivas, ensejando a diversidade, a disputa e o choque entre diferentes matizes
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