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unidade 4 Antropologia

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ANTROPOLOGIA CULTURAL
1
ANTROPOLOGIA CULTURAL
Graduação
117
ANTROPOLOGIA CULTURAL
U
N
ID
A
D
E 
4 ANTROPOLOGIA CULTURAL
APLICADA AO ESTUDO DAS SOCIEDADES
COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS
DE ANÁLISE
Prezado (a) Aluno (a),
Chegamos a nossa quarta e última unidade de estudos. Após
discutirmos, ao longo das unidades anteriores, o processo de constituição
da Antropologia como campo de conhecimento, mapeando seus principais
conceitos, métodos, teorias e escolas, adquirimos um repertório analítico
que nos permite avançar em uma direção mais pontual, que diz respeito à
aplicação deste mesmo repertório, na abordagem antropológica de contextos
sociais mais localizados, apontando para as implicações daí decorrentes, na
compreensão de alguns objetos de análise mais específicos.
É com este propósito que abordaremos, inicialmente, nesta quarta
unidade de estudos, as implicações, os limites e as especificidades da
abordagem antropológica da cultura, no contexto das chamadas sociedades
complexas. Em seguida, tomaremos como foco analítico das nossas reflexões
a dinâmica de funcionamento da nossa própria sociedade, isto é, a sociedade
brasileira vista em sua totalidade, buscando problematizar as relações entre
indivíduo e pessoa, hierarquia e igualdade na construção do seu universo
ideológico, a partir de alguns eixos norteadores, tais como a percepção do
público e do privado na construção da cidadania e no mundo do trabalho,
dentre outras esferas da vida social.
OBJETIVOS DA UNIDADE:
• Compreender as bases teóricas da abordagem antropológica
da cultura no contexto das chamadas sociedades complexas;
• Conhecer o conceito de sociedades complexas e sua correlação
com o problema da dinâmica cultural;
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
118
• Reconhecer a importância da abordagem antropológica para a
análise e problematização de algumas temáticas envolvidas
no contexto das chamadas sociedades complexas;
• Compreender os conceitos de indivíduo e pessoa e suas
correlações com o problema da hierarquia e da igualdade no
contexto da sociedade brasileira;
• Correlacionar os conceitos antropológicos com processos de
construção de identidades sociais.
PLANO DA UNIDADE:
• A Abordagem Antropológica da Cultura e o Estudo das
Chamadas Sociedades Complexas.
• A Etnografia e o Estudo das Chamadas Sociedades Complexas:
Limites e Possibilidades de Realização.
• O Campo Antropológico e as Relações entre Indivíduo e
Sociedade.
• Uma Interpretação Antropológica da Sociedade Brasileira – As
Relações entre Hierarquia e Igualdade, Indivíduo e Pessoa no
Contexto Ideológico Brasileiro.
Seja bem-vindo à quarta e última unidade de estudos!
Estamos felizes de ter participado de sua formação acadêmica e
desejamos sucesso em sua prática profissional!
Bons estudos e aproveite as sugestões que o conteúdo desta unidade
deixa a você para a compreensão a nossa própria sociedade!
119
ANTROPOLOGIA CULTURAL
A ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA DA CULTURA E O ESTUDO DAS
CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS
Na unidade anterior, tivemos a oportunidade de conhecer como a
Antropologia pôde, ao longo de todo o século XX, consolidar seu repertório
teórico-conceitual e legitimar sua prática investigativa, firmando-se no
cenário intelectual contemporâneo, como um campo do saber, decisivamente
voltado para o estudo da diversidade cultural, em busca de uma explicação
para o problema da diferença e de um diálogo mais compreensivo e mais
aberto com a alteridade.
No decorrer deste período, o conceito de cultura – “lócus” privilegiado
da análise antropológica – foi alvo de intensas polêmicas e de inúmeras
controvérsias, pautadas, na grande maioria dos casos, em um esforço
conjugado por diversos estudiosos, visando atingir a um duplo objetivo. De
um lado, elaborar uma definição conceitual da cultura que pudesse garantir
a sua especificidade enquanto objeto próprio da análise antropológica e, de
outro lado, estabelecer uma base metodológica capaz de viabilizar sua
análise no contexto da realidade social. Destas discussões, resultou um
cenário marcado pela contraposição de idéias que, longe de sinalizar para
um consenso teórico-metodológico, ensejou uma multiplicidade de
perspectivas analíticas, em torno das quais, é possível identificar, no entanto,
alguns pontos de aproximação e convergência.
Do ponto de vista teórico-conceitual, esta convergência se expressa
na afirmação do conceito de cultura como “um conjunto complexo de
códigos” (Lévi-Strauss, 1974) que possibilitam aos indivíduos a organização
coletiva das suas ações no mundo. Situada na base do diálogo estabelecido
pela Antropologia – com destaque especial para a obra de Claude Lévi-
Strauss – com a área da Lingüística – especialmente através dos trabalhos
produzidos por Ferdinand Saussure – esta noção de código, foi sendo pouco
a pouco incorporada pelas reflexões desenvolvidas no interior do campo
antropológico, num movimento através do qual, ganhou força e visibilidade,
tornando-se modernamente, a principal marca distintiva das teorias
elaboradas sobre o conceito de cultura.
Dentro deste contexto, pode-se, pois afirmar, que seguindo,
inicialmente, a trilha aberta por Saussure, ao apontar, no âmbito da Lingüística,
o caráter a um só tempo, sistemático, inconsciente e social da linguagem –
domínio central de atuação da cultura – a noção de código, ao ser incorporada
pelo campo antropológico, pôde, gradativamente, sofisticar-se, vindo a se
constituir, atualmente, como uma referência básica, por intermédio da qual,
a cultura passa a ser definida, como indica Lévi-Strauss (1974), “como um
código” formado por um “conjunto de regras de interpretação da realidade
que, permitem aos indivíduos a atribuição de sentido ao mundo natural e
social”. Para que possamos compreender a amplitude e a especificidade desta
definição, precisamos distinguir dois níveis de análise, com ela diretamente
correlacionados, e, que embora distintos, na verdade, interpenetram-se e
se autocomplementam.
Num primeiro nível, a noção de código traz como correlato implícito e
imediato, a noção de sistema, apontando para o plano das ações humanas
Código: para a Lingüística é
o sistema de signos simples
ou complexos, organizados
e convencionados de tal
modo que possibilitem a
construção e transmissão de
mensagens.
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
120
em termos da sua organização coletiva, no contexto da realidade social.
Neste nível específico da análise, o conceito de cultura como código, refere-
se, portanto, ao plano da operação prática do sistema social enquanto
totalidade. Ou seja, ao plano envolvido com o modo pelo qual os indivíduos
distribuem e organizam, de forma coerente e integrada, suas ações, no
interior do processo social, mediante regras e padrões de interação,
coletivamente compartilhados pelo grupo, garantindo o funcionamento do
sistema como um todo.
Neste nível de análise, as modernas concepções de cultura parecem
externalizar a herança teórica que lhes foi legada pela perspectiva
Funcionalista, através da afirmação do caráter sistêmico da cultura. Como
vimos, anteriormente, esta afirmativa provocou uma redefinição do “todo
complexo” de Tylor, que passa a ser percebido à luz de uma nova perspectiva,
de acordo com a qual, lhe é atribuído uma lógica e uma racionalidade
intrínsecas por constituir um sistema.
Para que sua compreensão a respeito desta ruptura provocada pelos
teóricos funcionalistas, diante do modelo analítico proposto pelos
evolucionistas na busca de uma explicação para oproblema da diversidade
cultural possa se efetivar clara e objetivamente, procure não perder de
vista o conceito de cultura elaborado por Edward Tylor, que abordamos na
nossa primeira unidade de estudos. Relembrando, o conceito de cultura é
definido por Tylor, através da seguinte afirmativa:
“Cultura ou civilização em seu amplo sentido etnográfico é este
todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis,
costumes ou quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos
pelo homem enquanto membro da sociedade” (Tylor, 1871:1).
Dentro desses parâmetros, a postura evolucionista que concebia este
“todo complexo” como um agregado histórico composto por uma série de
itens, elementos e traços culturais isolados, que, uma vez encontrados em
todas as sociedades humanas – independentemente da época, tempo ou
lugar considerados – poderiam ser agrupados sem que suas relações internas
fossem analisadas, posto que enquadradas em um eixo evolutivo único
liderado pela cultura européia, perde a sustentabilidade teórica e é
definitivamente superada.
Com isto, o etnocentrismo cede, cada vez mais, o lugar para a
legitimação da prática relativizadora, abrindo espaço para que o
reconhecimento pleno da diferença pudesse efetivamente se concretizar.
Em outras palavras, a afirmação do caráter sistêmico da cultura, levou a
Antropologia a adotar de modo gradativo e sistemático, uma postura cada
vez mais, marcada pela constatação inegável de que a mesma possui, uma
IMPORTANTE!
121
ANTROPOLOGIA CULTURAL
coerência e uma dinâmica interna a serem analisadas na particularidade e
na singularidade dos diferentes contextos históricos ou formações sociais
em que se encontrem inseridas.
Num segundo nível de análise, a noção de sistema aponta para a
dimensão expressiva do comportamento humano. O conceito de cultura
como código, refere-se neste nível de análise, ao plano simbólico e
representacional das ações humanas, estando diretamente associado, ao
modo pelo qual os indivíduos atribuem sentido e significação às regras e
normas por eles criadas e utilizadas na organização de suas ações práticas
no contexto da realidade social. Trata-se, portanto, de um plano que envolve
os diferentes modos de pensar e agir, coletivamente, compartilhados pelos
indivíduos para interpretar simbolicamente esta mesma realidade, atribuindo-
lhe sentido e significação.
É neste segundo nível de análise – o nível simbólico e
representacional – que a concepção de cultura como código ganhou
expressividade na discussão antropológica contemporânea, conduzindo a
afirmação de um novo pressuposto teórico de acordo com
o qual, a ação e o pensamento humanos estão
subordinados a regras inconscientes. Este pressuposto,
além de expressar, o diálogo que a Antropologia pôde
estabelecer ao longo da sua constituição teórica com outras
áreas do conhecimento – no caso, mais especificamente,
com a Lingüística e com a Psicanálise – ampliou também, o
seu espectro de abordagem, ao mesmo tempo em que,
possibilitou a retomada de algumas velhas questões que,
uma vez reelaboradas, assumiram uma nova envergadura
teórica. Vejamos então como este processo se articulou e
como ele pode ser compreendido.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que a afirmação do conceito de
cultura como um código simbólico – ou seja, como um conjunto de sistemas
simbólicos, composto por regras e formas de expressão, através do qual, os
membros de um determinado grupo ou sociedade externalizam o modo como
concebem, organizam e interpretam suas ações no plano da realidade social
– desloca o foco da observação antropológica. Como destaca a perspectiva
Estruturalista, advogada por Claude Lévi-Strauss, subordinada a regras
inconscientes, a análise da cultura deixa de incidir, prioritariamente, na
identificação das diferentes formas de manifestação empírica da atividade
de um grupo social – comportamento, hábito, crença, costume, etc. – e passa
a se referir ao conjunto de princípios lógicos que possibilitam, antes de tudo,
a elaboração mental e simbólica dos significados destas manifestações.
Novamente, aqui, o conceito de cultura elaborado por Tylor (1871),
vem à baila, assumindo uma importância especialmente significativa para a
compreensão deste processo. Se, de um lado, a afirmação do conceito de
cultura, como um código simbólico, rompe com a prioridade dada por Tylor à
análise das manifestações empíricas do comportamento humano, de outro
lado; a ênfase na dimensão simbólica da cultura encontra, na própria
definição de cultura por ele proposta, a base fundamental sob a qual pôde
se complexificar. Em outras palavras, ao definir cultura como “quaisquer
capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
122
sociedade”, Tylor tocou em um ponto nevrálgico da perspectiva antropológica:
o caráter social da cultura.
Retirada da ordem da natureza – o plano das coisas dadas,
aprioristicamente, sem a intervenção e a mediação da ação humana – a
cultura, cada vez mais, deixa de ser percebida como resultante de
capacidades inatas, geneticamente herdadas pelo homem, em função da
estrutura biológica do seu próprio organismo, e passa a ser situada em uma
outra ordem – a ordem social e simbólica – concebida como um plano que se
constrói dialética e reflexivamente, através da atuação e pela mediação da
ação humana. Como afirma Lepine (1979):
“A função simbólica inaugura, no homem, uma nova forma de
relação com o ambiente físico e uma nova forma de adaptação. No
mundo animal, o organismo está em contato imediato com a
realidade física, reagindo diretamente aos estímulos exteriores. O
animal se constitui por assim dizer o seu próprio meio; e o que é
decisivo para a sua resposta é a situação tal como ela lhe aparece.
Estímulo e reação, portanto, não se justapõem como a causa e o
efeito; eles constituem dois termos correlativos. O mundo físico
exterior e a reação estão intimamente relacionados e integrados
num todo estrutural. No homem, pelo contrário, o estímulo não é
físico. O homem vive num meio artificial de símbolos; não reage
diretamente às coisas, mas às idéias que ele tem sobre as coisas;
não pode perceber nada senão através da interposição deste meio
simbólico que o afasta da realidade física”. (Lepine, 1979:23)
De acordo com esta afirmativa e conforme vimos na nossa primeira
unidade de estudos, uma vez, situada na ordem social, a cultura adquire
uma outra dimensão de sentido – a dimensão simbólica – e passa a
corresponder às diferentes formas pelas quais os homens puderam responder
de um modo, absolutamente diverso e variável, a um conjunto de
necessidades biológicas comuns. Não estando localizada na estrutura
orgânica geneticamente herdada pelo homem, e, nem tão pouco, dentro do
aparelho psíquico “natural” dos indivíduos, a cultura passa a equivaler ao
universo da regra, da convenção e da artificialidade. Ela é um construto
humano decorrente, não apenas, das interações estabelecidas
concretamente pelos indivíduos no decurso da sua socialização em um
determinado grupo ou sociedade, mas também, das diferentes dimensões
de sentido e de significados que lhe são atribuídos pelos indivíduos, no
compartilhar coletivo da vida social.
Encarada nesta perspectiva, a cultura constitui, como nos sugere a
abordagem Interpretativista advogada por Clifford Geertz (1989), uma
espécie de “programa” que se instala dentro do dote genético do indivíduo,
modelando uma única vida em um ser que, biologicamente, ao nascer, se
encontra “apto para viver mil vidas”, mas que, na verdade, viverá apenas
uma, posto que, ela – a cultura – funciona, como um “mecanismo de controle”
123
ANTROPOLOGIA CULTURAL
que regula o comportamentodos indivíduos, quando situados à cena pública
em conformidade aos contextos particulares, no âmbito dos quais esta mesma
vida se desenvolve.
Neste sentido, o homem cada vez mais se autopercebe, como parte
que constitui e que é, simultaneamente, constituída pela sociedade, estando
todas as suas atividades, formas de comportamento, atitudes e ações;
amarradas e presas, de um modo ou de outro, como na metáfora utilizada
por Geertz, as “teias de significado”, que ele mesmo teceu e dentro das
quais a sua vida se desenvolve. Para Geertz, portanto, a cultura nos modela
simbolicamente e, assim fazendo, torna-nos o que somos ou, como ele próprio
afirma:
“Nós somos animais incompletos e inacabados que nos
completamos e acabamos através da cultura – não através da cultura
em geral, mas através de formas altamente particulares de cultura
(...) A fronteira entre o que é controlado de forma inata e o que é
controlado culturalmente no comportamento humano é
extremamente mal-definida e vacilante. Entre os planos básicos
para a nossa vida que os nossos genes estabelecem – a capacidade
de falar ou de sorrir – e o comportamento preciso que de fato
executamos – falar inglês num certo tom de voz, sorrir
enigmaticamente numa delicada situação social – existe um conjunto
complexo de símbolos significantes, sob cuja direção nós
transformamos os primeiros nos segundos, os planos básicos em
atividade. Nossas idéias, nossos valores, nossos atos, até mesmo
nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos
culturais – na verdade, produtos manufaturados a partir de
tendências, capacidades e disposições com as quais nascemos (..).
Quando vista como um conjunto de mecanismos simbólicos para
controle do comportamento, a cultura fornece o vínculo entre o
que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e o que
eles realmente se tornam um por um”. (Geertz, 1979:61-64).
Como claramente evidencia esta afirmativa de Geertz, não é somente
a cultura que possui uma dimensão social e simbólica. O próprio
comportamento humano é também constituído e revestido por esta
dimensão expressiva, o que lhe confere uma amplitude de sentido que não
se esgota na sua completude, nos aspectos puramente técnico, prático e/
ou instrumental, envolvidos com as manifestações empíricas dos seus atos,
palavras, gestos e atitudes. Esta amplitude de sentido extrapola, vai além
da mera praticidade e aponta para o fato de que, até mesmo este caráter
objetivo e pragmático do comportamento humano, francamente visível em
suas manifestações reais e concretas, só adquire significação quando inserido
em um sistema mais amplo de relações sociais. Dizer isto significa admitir,
portanto, que as manifestações empíricas e concretas do comportamento
humano, não estão soltas no espaço social como um barco à deriva sem
Pragmático: Relativo aos
fatos que se devem praticar.
Referente ou conforme a
pragmática usual. Relativo a
pragmatismo: Doutrina
segundo a qual, a verdade
de uma proposição é uma
relação totalmente interior à
experiência humana e o
conhecimento é um
instrumento a serviço da
ação, tendo o pensamento
caráter puramente
finalístico; a verdade de uma
proposição consiste no fato
de que ela seja útil, tenha
alguma espécie de êxito ou
satisfação.
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
124
rumo e sem direção. Muito pelo contrário, integrando-as em um todo coerente,
existe um código simbólico que, funcionando como uma espécie de “leme”
atribui-lhes sentido e significação dentro do sistema social.
Em outras palavras, o comportamento humano não se realiza e nem
se atualiza, isoladamente em um vácuo cultural e social. Entre o plano da
operação prática que possibilita a manifestação empírica e concreta da ação
– sorrir, falar, comer, chorar, andar, dormir, etc. – e o plano que lhe confere
sentido e intencionalidade – a forma e o motivo pelos quais se pratica a
ação – existe a mediação do sistema simbólico, que informa sobre as normas
e as regras utilizadas pelo grupo social, para dar significado à realidade, na
qual esta ação ou comportamento se assenta. Como esclarece o próprio
Geertz:
“Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos
individuais sob a direção de padrões culturais, sistemas de
significados criados historicamente em termos dos quais damos
forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas. (...) O homem
não pode ser definido nem apenas por suas habilidades inatas,
como fazia o iluminismo, nem apenas por seu comportamento real,
como o faz grande parte da ciência social contemporânea, mas
sim pelo elo entre eles, pela forma em que o primeiro é transformado
no segundo, suas potencialidades genéricas focalizadas em suas
atuações específicas. (...) Submetendo-se ao governo de programas
simbolicamente mediados para a produção de artefatos, organizando
a vida social ou expressando emoções, o homem determinou,
embora inconscientemente, os estágios culminantes do seu próprio
destino biológico. Literalmente, embora inadvertidamente, ele
próprio se criou. (...) Grosso modo, isso sugere não existir o que
chamamos de natureza humana independente da cultura. Sem os
homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante
e, muito significativamente, sem cultura não haveria homens” .
(Idem, Ibidem, p.60-64).
O que esta afirmativa nos atesta e confirma é o fato de que, o
comportamento humano, seja qual for a dimensão que se considere – empírica
e concreta ou expressiva e simbólica – só adquire sentido e significação,
quando inserido no âmbito das múltiplas interações estabelecidas pelos
indivíduos nos diferentes contextos em que a vida em sociedade se
desenvolve. Isoladamente, as condutas individuais nada significam.
Permanecem destituídas de sentido, como se não possuíssem um
componente simbólico e expressivo, que só se revela em sua amplitude e
riqueza de formas, na relação que os homens estabelecem entre si no decurso
da vida social.
Desta forma, o “fluxo da vida social” parece constituir de fato, o “lócus”
privilegiado da atuação e da manifestação do comportamento humano. É
por intermédio deste fluxo que o homem, incapaz de viver em um mundo
125
ANTROPOLOGIA CULTURAL
que não seja dotado para si próprio de sentido, compartilha com seus
semelhantes de uma ordem particular de significação. Esta ordem significativa
é o que constitui, para Geertz, como sendo a cultura. Universo por excelência
da produção de sentido, a cultura, pode ser melhor entendida como um código
formado por uma inextricável “teia de significados” que os homens tecem no
curso de suas interações cotidianas e que funciona como um mapa para o
direcionamento das ações sociais.
Concebida dentro destes parâmetros, a cultura pode ser comparada,
também, a um amplo sistema de comunicação, através do qual a sociedade
se expressa. Nesta acepção, e de um ponto de vista metafórico, a cultura
como código, constituiria, no limite, uma espécie de texto, ou um conjunto
de textos que os indivíduos lêem no “fluxo da vida social” para interpretar e
atribuir sentido à realidade e ao plano de suas ações e comportamento
efetivos. Sendo assim, tal como no domínio da linguagem, a cultura informa,
fala da existência humana, quando em sociedade. É por seu intermédio que
os indivíduos, como em um texto, trocam diferentes tipos de mensagens,
utilizando para tanto, um conjunto, formado por um emaranhando de
símbolos entrelaçados, contextualmente situados e socialmente adquiridos
– palavras, gestos, ações, silêncios, falas – que se organizam em vários
sistemas, fornecendo modelos, regras e normas que servem como bússolas
ou mapas parao direcionamento da ação e do pensamento humanos no
desenrolar dos acontecimentos sociais.
Nesta perspectiva, todo e qualquer aspecto envolvido com o desenrolar
da vida humana em sociedade – do vestuário aos hábitos alimentares, das
formas de habitação aos ritos funerários, da música à sexualidade, da crença
religiosa às formas de entretenimento, da doença à festividade, do corpo à
arte, das práticas de consumo ao choro, dentre tantos outros mais – parece
constituir um ponto menor, uma espécie de nó, cujos fios se amarram em
uma teia maior de significado – a cultura – fornecendo cada um a seu modo,
um conjunto padronizado de informações a respeito do que são, do que
fazem e de como devem os indivíduos se comportar em contextos sociais
específicos. Em outras palavras, eles constituem um conjunto de sistemas
simbólicos que se organiza em vários subsistemas, formando um código
particular e específico, através do qual a cultura se manifesta e se atualiza.
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
126
Dentro destes parâmetros, cumpre observarmos que, como qualquer
código simbólico, a cultura de um determinado grupo ou sociedade, possui
também seus segredos, seus mistérios e enigmas para aqueles que não a
conhecem e que não participam diretamente da sua dinâmica interna. Isto
não significa dizer que ela não possa, de algum modo, chegar a ser conhecida
ou decifrada. Muito pelo contrário. Se lembrarmos que o comportamento
humano possui uma dimensão social, fica fácil entendermos que, a despeito
da enorme variedade de formas envolvidas com a sua manifestação empírica
e concreta, existem símbolos e significados que são interpretados a partir
de um sentido comum – por isto é que formam um código – ao grupo como
um todo. Além disto, estes símbolos e significados não estão soltos no espaço
social. Como vimos anteriormente, eles se organizam em sistemas, posto
que, se encontram intimamente colados a contextos e situações sociais
específicas, aos quais lhes confere uma dinâmica e uma coerência interna.
É justamente este caráter sistêmico e social da cultura, o aspecto
fundamental, que garante a possibilidade de que a decodificação dos
significados dos seus símbolos possa ser objetiva e efetivamente realizada.
Sendo assim, mediante a adoção de um procedimento metodológico
específico, os segredos e os enigmas de uma cultura podem ser desvendados.
Ou seja, por seu intermédio, as mensagens aparentemente truncadas e
sem sentido, confusas e sem nexo, que são transmitidas pela cultura de um
grupo ou sociedade particular, podem ser traduzidas para um outro grupo
que lhe é distinto.
Nesta lógica de raciocínio, o divisor de águas ou o critério básico capaz
de demarcar e de identificar as características que definem cada cultura em
sua singularidade de formas de expressão, consiste em verificar a
possibilidade ou não de um mesmo símbolo – gestos, palavras, silêncios,
rituais, práticas rotineiras, etc. – ser decodificado ou interpretado de modo
equivalente por dois grupos sociais distintos.
Como vimos anteriormente, em Antropologia, este procedimento ou
recurso metodológico ganhou forma e expressão, com os trabalhos
desenvolvidos por Malinowski que conduziram a legitimação definitiva da
pesquisa etnográfica de campo ou trabalho de campo como parte integrante
da abordagem da diversidade cultural. Desde então, o fazer etnográfico
passou a constituir o instrumento básico por meio do qual o antropólogo
pôde realizar esta atividade de tradução dos códigos culturais que
caracterizam e informam a respeito das particularidades definidoras das
diversas sociedades e/ou grupos humanos, visando a compreender pela
interpretação, o modo como experimentam a vida e simbolizam a própria
existência.
Com isto, se por um lado, a afirmação do caráter sistêmico da cultura
possibilitou a Antropologia consolidar sua prática investigativa e avançar
através do exercício da etnografia, em direção a uma compreensão menos
etnocêntrica e mais relativizadora da diversidade cultural; por outro lado, a
constatação de que tanto o comportamento humano, como também a cultura
se encontram revestidos por uma dimensão social e simbólica, desencadeou,
127
ANTROPOLOGIA CULTURAL
do ponto de vista intelectual, uma série de novas discussões que irão impactar
de modo significativo a abordagem antropológica da cultura no contexto
das chamadas sociedades complexas, tanto no que diz respeito ao
referencial teórico, como também no que tange a condução do fazer
etnográfico.
Para que você possa compreender com clareza como este debate crítico
pôde se configurar, vamos recapitular rapidamente, os movimentos teóricos
que estiveram no centro da constituição da Antropologia, como campo do
saber. Durante o século XIX, período em que a abordagem antropológica
pautava-se na égide do Evolucionismo Social, a preocupação com a cultura
esteve a todo tempo, referenciada ao conhecimento da totalidade das
características definidoras de uma determinada realidade social. Como indica
a definição elaborada por Tylor (1871), a cultura correspondia a um “todo
complexo” que englobava a um só tempo todas as possibilidades de
realização humana, sejam elas materiais ou não materiais. Tratava-se de
uma concepção globalizadora da cultura que caminhava de mãos dadas
com uma visão totalizadora da história, posto que pressupunha a existência
de um único eixo evolutivo que enquadrava e classificava no tempo, em
diferentes etapas ou estágios evolutivos, todas as sociedades humanas como
parte de um processo mais amplo de desenvolvimento liderado pela cultura
européia.
Com a emergência da perspectiva Funcionalista, inicia-se um movimento
de ruptura com esta concepção que atingirá o auge com a entrada em cena
de duas novas vertentes teóricas: o Estruturalismo e o Interpretativismo.
A possibilidade de entendimento da cultura como um sistema de
comunicação advogada – cada uma a seu modo – por cada uma destas
duas vertentes teóricas, conduziu a uma ênfase crescente, em processos
de simbolização que parece indicar de fato, uma mudança radical no conceito
antropológico de cultura. Isto não significa, no entanto, que a preocupação
com o entendimento da totalidade da vida social tenha desaparecido por
completo. Basta lembrarmos que é no veio do diálogo estabelecido por estas
duas perspectivas teóricas, que a afirmação do caráter sistêmico da cultura,
inicialmente preconizada pelo Funcionalismo, pôde se sedimentar com maior
vigor, conduzindo a uma dupla conseqüência. Em primeiro lugar, esta
afirmativa, possibilitou uma abertura mais efetiva para o reconhecimento
pleno da diferença, posto que, a cultura passa a ser concebida como um
sistema integrado de relações sociais, a ser visto em sua singularidade e
particularidade de formas. Cada parte ou elemento do conjunto – crença,
comportamento, hábito ou costume – desempenha uma função específica
no funcionamento do todo. Em segundo lugar, e, correlativamente, esta
afirmativa, centrou o foco da abordagem antropológica, prioritariamente, no
esforço de compreensão das diferentes formas, através das quais uma
determinada sociedade e/ou grupo humano externaliza o seu próprio
conhecimento quanto às maneiras de conceber e de se posicionar diante da
realidade social, entendida, neste contexto como uma totalidade específica
e singular.
Dentro destes parâmetros, com o Estruturalismo e o
Interpretativismo, embora, a preocupação com o entendimento da totalidade
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
128
da realidade social ainda permaneça presente, o modo de conceber esta
totalidadese altera e se transforma radicalmente. Como discutimos nas
páginas anteriores, influenciada por outras áreas do conhecimento – a
Lingüística, em especial – o caráter sistêmico da cultura é associado à noção
de código deslocando o foco da abordagem antropológica. Com isto,
basicamente, a cultura deixa de ser concebida como uma totalidade que
engloba a realidade social e passa a corresponder, em contrapartida, a uma
dimensão mais específica desta mesma realidade: a dimensão simbólica e
representacional. Trata-se de uma dimensão que não se restringe mais,
única e exclusivamente, ao plano das realizações materiais, mas que se
alarga e se estende em uma outra direção, ao mesmo tempo, em que se
estreita e se especifica. Esta dimensão passa a se referir a um plano mais
totalizador, posto que, entrecorta e tangencia todos os demais domínios da
vida social, já que, uma vez regida, por regras inconscientes, nenhuma ação
humana no âmbito da cultura, deixa de ser mediada pela condição simbólica.
Do ponto de vista teórico, esta transformação conduz a afirmação da
concepção da cultura como um código, que é composto por um conjunto
complexo de diferentes sistemas simbólicos, que se organizam no interior
da vida social, em diversos subsistemas. Nesta acepção, o estudo e a
abordagem da cultura passam a incidir, prioritariamente, na análise das
diferentes maneiras pelas quais uma realidade social é codificada por uma
determinada sociedade e/ou grupo humano, através de processos de
simbolização. Entra em cena, portanto, as diferentes formas de expressão
– gestos, palavras, idéias, rituais, doutrinas, práticas cotidianas, etc. – pelas
quais os indivíduos interpretam suas ações e comportamento, visando a
atribuir sentido ao mundo e a realidade que os envolve. Diante desta
mudança, uma questão básica parece se impor como um imperativo a ser
enfrentado. Qual seja: como analisar sociedades nas quais convive, lado a
lado, uma enorme multiplicidade de sistemas simbólicos? Afinal como afirma
Lévi-Strauss (1974):
“Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de
sistemas simbólicos em cuja linha de frente, colocam-se a
linguagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte,
a ciência e a religião. Todos estes sistemas visam a exprimir certos
aspectos da realidade física e da realidade social e, ainda mais, as
relações que estes dois tipos de realidade mantém entre si e que
os próprios sistemas simbólicos mantêm uns com os outros” (Lévi-
Strauss,1974:9)
É exatamente a existência desta multiplicidade de sistemas simbólicos
no interior de uma mesma realidade social, o dado que irá provocar uma
alteração do ponto de vista metodológico, na condução da análise cultural
deslocando também, o foco da observação antropológica, em uma direção
que cada vez mais, sugere novos desafios e novos dilemas, no que diz
respeito ao desenvolvimento de uma reflexão mais detalhada acerca dos
limites e das possibilidades efetivamente envolvidas com o fazer etnográfico
enquanto prática investigativa. Estes desafios podem ser sintetizados à
luz de dois cenários diferenciados que parecem se descortinar.
129
ANTROPOLOGIA CULTURAL
O primeiro deles faz alusão ao chamado “modelo clássico de
etnografia”, que se legitimou na Antropologia com os trabalhos produzidos
por Malinowski, no qual o antropólogo, enquanto pesquisador via-se frente
ao desafio de estudar sociedades cuja alteridade lhe era descontínua em
termos geográficos. Tratava-se de sociedades de dimensões restritas e
autocontidas que mantinham pouco contato com os
grupos vizinhos e que eram marcadas por uma baixa
especialização do trabalho e pela pouca divisão das
tarefas e das funções sociais. Por todas estas
razões, estas sociedades constituíam um espaço
social marcado em um certo sentido, por um grau
de “uniformidade” e “homogeneidade” no qual os
indivíduos compartilhavam de uma visão de mundo
uniforme ou de um mesmo mapa cultural o que
facilitava para o antropólogo, o exercício da
atividade de tradução ou de decodificação deste
sistema cultural, nos termos de um outro que lhe
parecia distinto e diferenciado.
 Esta suposta facilidade é substancialmente afetada quando o
antropólogo se vê frente ao desafio de estudar as chamadas sociedades
complexas. Trata-se agora, de um novo cenário que, diferentemente, do
caso anterior – as primeiras sociedades estudadas pela Antropologia clássica
– apresenta alguns eixos complicadores que irão contribuir para uma maior
sofisticação do conceito de cultura e para uma aproximação mais direta entre
a perspectiva antropológica e uma abordagem mais propriamente sociológica.
Além disto, altera-se simultaneamente, as bases de sustentação do fazer
etnográfico, cuja analise nos permite situar a Antropologia no atual quadro
de experimentação em que se encontra a sua prática investigativa.
A esta altura, supomos que a sua curiosidade tenha sido aguçada e que
você já esteja se perguntando no que consiste, exatamente, estas chamadas
sociedades complexas, em como e a partir de que critérios elas podem,
efetivamente, ser caracterizadas e de que forma tudo isto se correlaciona,
de modo a tornar o estudo da cultura no interior das mesmas, objeto de
uma discussão tão específica para o campo antropológico. Antes de
avançarmos, no conteúdo destas discussões, nos parece fundamental, então,
apresentar a você, uma definição inicial do que a Antropologia entende sob
a rubrica sociedades complexas.
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
130
Em Antropologia, o termo sociedades complexas tem sido, a rigor,
utilizado para denominar tipos específicos de formações sociais,
caracterizados por uma intensa e profunda diversificação interna. A princípio,
esta diversificação tem sido associada, via de regra, à expansão acelerada
do sistema capitalista industrial que, ao longo do seu desenvolvimento
histórico, conduziu a uma ampla divisão social do trabalho e a uma forte
especialização das funções e dos papéis sociais. Deste processo, resultou
uma complexificação crescente da estrutura social, no seio da sociedade
industrial contemporânea, com a formação de uma rede de instituições
sociais, que, cada vez mais segmentadora, não apenas diversificou, como
também, fragmentou a inserção e a participação dos indivíduos no interior
do sistema social, conforme estejam mais ou menos ligados, mais ou menos
próximos a estas instituições.
Nesta acepção, a idéia de complexificação estaria, portanto,
diretamente vinculada às relações de produção no interior do sistema
capitalista apontando, inicialmente, para as diferentes posições ocupadas
pelos indivíduos – a divisão entre classes sociais, mais especificamente
falando – no contexto destas relações. A força e a pujança do
desenvolvimento do sistema capitalista, aliada à expansão crescente dos
novos mercados de produção e consumo internacionais, reforçou
gradativamente esta idéia, desembocando, grosso modo, em uma
interpretação, de acordo com a qual, todas as demais formas de participação
dos indivíduos na vida social, são concebidas como derivadas desta
diferenciação primeira e, do conseqüente conflito de interesses entre capital
e trabalho, que em torno dela se estabelece.
Em outras palavras, neste tipo de interpretação, as forças produtivas
– traduzidas na relação capital versus trabalho – constituiriam uma espécie
de domínio específico da realidade, a partir do qual, a totalidade da vida
social poderia ser analisada e compreendida. Trata-se de um domínio, que
nesta lógica de raciocínio, abarcaria todos os demais domínios – inclusive a
cultura – da totalidade social e que apresentaria fronteiras mais ou menos
identificáveis, já que, uma vez espraiadas no tecido social, deteria um graude porosidade que permitiria o trânsito dos indivíduos entre os diversos
domínios e espaços sociais que lhe são constitutivos e a ele subordinados.
Cingida sob a influência desta interpretação, é que a preocupação com o
estudo da cultura no contexto das sociedades complexas emerge como
uma questão a ser, intelectualmente, enfrentada pelo campo antropológico
contemporâneo.
Neste cenário de enfrentamento, despontam os trabalhos
desenvolvidos por dois antropólogos contemporâneos, cujas idéias e
propostas analíticas constituíram referências basilares para a
problematização deste tipo de interpretação; abrindo, com isto, um espaço
extremamente fecundo, não apenas para uma relativização dos conceitos
que lhes serviram de alicerce, como também, para um refinamento e
sofisticação crescentes do próprio conceito de cultura, quando inserido no
contexto das chamadas sociedades complexas.
131
ANTROPOLOGIA CULTURAL
A primeira destas referências, diz respeito, ao antropólogo, Marshall
Sahlins (1930/–), e aponta, mais especificamente, para um trabalho por ele
produzido e intitulado “Cultura e Razão Prática”, publicado pela primeira vez
em 1976, que, dado o ineditismo das idéias teóricas apresentadas, ganhou
o status de um “clássico contemporâneo”. Neste trabalho, Sahlins investe
contra a idéia de que as culturas humanas são formuladas sob a égide
exclusiva da atividade prática, e, mais fundamentalmente, a partir de
interesses meramente econômicos e utilitários, que por si mesmos,
representariam critérios suficientemente adequados para explicar sua
especificidade e dinamicidade.
Argumenta, em contrapartida, que, embora o homem viva em um mundo
material, sua existência se desenvolve de acordo com um esquema
significativo por ele mesmo elaborado. Sendo assim, se é fato que a cultura
define a vida humana, também é fato, que ela não o faz por intermédio
exclusivo das pressões advindas da ordem material, mas em conformidade
com um sistema simbólico, social e, humanamente definido, que nunca se
apresenta e se esgota em um modelo restrito e único. Deste modo, longe de
ser constituída pela utilidade, é a cultura, ao contrário, que constitui a própria
utilidade, como claramente afirma o próprio autor, logo no prefácio deste
trabalho:
“Contrapondo a todos gêneros e espécies de razão prática, este
livro apresenta uma razão de outra espécie: a simbólica ou
significativa. Toma como qualidade distintiva do homem não o fato
de que ele deve viver num mundo material, circunstância que
compartilha com todos os organismos, mas o fato de fazê-lo de
acordo com um esquema significativo criado por si próprio, qualidade
pela qual a humanidade é única. Por conseguinte, toma-se por
qualidade decisiva da cultura – enquanto definidora para todo modo
de vida das propriedades que o caracterizam – não o fato de essa
cultura poder conformar-se a pressões materiais, mas o fato de
fazê-lo de acordo com um esquema simbólico definido, que nunca
é o único possível. Por isso, é a cultura que constitui a utilidade.
(....) O debate entre o prático e o significativo é a questão fatídica
do pensamento social moderno.(...) Neste livro, afirmo que o
significado é a propriedade específica do objeto antropológico. As
culturas são ordens de significado de pessoas e coisas. Uma vez
que essas ordens são sistemáticas, elas não podem ser livres da
invenção do espírito”.(Sahlins, 2003:7-9).
Se até este ponto, como você deve estar pensando, as idéias de Sahlins
não sugerem a princípio, nenhum tipo de grande inovação na abordagem
antropológica, na medida em que parece, de fato, caminhar em direção ao
encontro do que já discutimos anteriormente, a respeito da afirmação do
conceito de cultura como um código composto por um conjunto complexo
de sistemas simbólicos, um dado novo vem à baila, quando avançamos no
percurso da estruturação de sua perspectiva analítica e verificamos as
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
132
conseqüências interpretativas que, a partir dela, se produz. Este dado refere-
se, basicamente, ao esforço por ele mobilizado no sentido de mapear a
especificidade da forma pela qual a sociedade ocidental capitalista – tipo
mais emblemático das chamadas sociedades complexas – articulou, de um
modo muito próprio, os limites da relação que se estabelece entre a
atividade material – a razão prática – e a atividade simbólica – a razão
significativa.
Para tanto, Sahlins recorre a uma análise comparativa entre a
sociedade ocidental capitalista e as ditas sociedades tribais ou tradicionais.
Sem negar ou excluir a presença de ambas as atividades – a prática e a
simbólica – nestes dois tipos de formações sociais, Sahlins argumenta que o
divisor de águas capaz de estabelecer uma distinção entre elas reside em
uma diferença de ênfase a que concedem cada uma a seu modo, a estas
duas atividades, enquanto domínios específicos, em torno dos quais,
organizam e percebem a sua própria realidade, enquanto totalidades sociais
específicas e singulares. De acordo com o que argumenta, na sociedade
ocidental capitalista, o foco da produção simbólica ancora-se,
prioritariamente, nas relações de produção; ao passo que nas sociedades
tribais este mesmo foco incide nas relações de parentesco. Como ele próprio,
pontualmente, esclarece:
“Na cultura ocidental, a economia é o lócus privilegiado da
produção simbólica. Para nós, a produção de mercadorias é ao
mesmo tempo o modo privilegiado da produção simbólica e de sua
transmissão. A singularidade da sociedade burguesa não está no
fato de o sistema econômico escapar à determinação simbólica,
mas em que o simbolismo econômico é estruturalmente
determinante (...). Falando ainda nesse alto nível de abstração, a
peculiaridade da cultura ocidental é a institucionalização do processo
na produção de mercadorias e enquanto produção de mercadorias,
em comparação com o mundo ‘primitivo’ onde o lócus da
diferenciação simbólica, permanece nas relações sociais,
principalmente nas de parentesco, mantendo-se as outras esferas
de atividade ordenadas pelas distinções operacionais do parentesco.
O que estou tentando estabelecer é uma diferença entre a sociedade
burguesa e a sociedade primitiva na natureza e produtividade do
processo simbólico que seja contrapartida de uma variação no
padrão institucional. As relações de produção compõem o principal
quadro classificatório da sociedade ocidental. (....) O dinheiro é
para o Ocidente o que o parentesco é para os demais. É o nexo
que assimila todas as outras relações à posição na produção. ‘A
sede do dinheiro, ou o desejo de riqueza’, disse Marx,
‘necessariamente traz consigo o declínio e queda das comunidades
antigas. Daí ser a antítese delas’. No ocidente, nenhuma instituição
é imune a esta estruturação pelas forças econômicas. Nele, assim
133
ANTROPOLOGIA CULTURAL
procede a economia, como lócus institucional dominante: produz
não somente objetos para sujeitos apropriados, como sujeitos para
objetos apropriados. Ela (a economia) joga uma classificação sobre
toda a superestrutura cultural, ordenando as distinções de outros
setores através da oposição de seus próprios setores – exatamente
como ela usa essas distinções para seus próprios propósitos (lucro)”.
(Idem, ibidem, p.209-214)
Desta afirmativa de Sahlins, podemos extrair duas conclusões
fundamentais para a compreensão do conteúdo que estamos discutindo: a
primeira delas aponta para a idéia de complexidade como um aspecto que
constitui e envolve diretamente o próprio processo de produção simbólica
em diferentes tipos de formações sociais, historicamente configuradas. Neste
veio e, correlativamente, em segundolugar, a distinção, inicialmente por ele,
então, estabelecida, quanto ao modo específico pelo qual este processo
opera na sociedade ocidental capitalista quando contraposta às sociedades
tribais, não significa excluir a possibilidade de que outras áreas de produção
simbólica possam coexistir no interior de uma mesma formação social quando
considerada na singularidade da sua manifestação empírica. Muito pelo
contrário; esta possibilidade se afirma não como uma hipótese imaginária,
mas constitui um dado que, de fato, acontece e é objetivado ao nível da
realidade concreta.
Sendo assim, a constatação das relações de produção como o foco
privilegiado da produção simbólica, na sociedade ocidental capitalista,
não anula a existência de outras áreas também envolvidas com esta mesma
produção, mas que estariam, no entanto, mais ou menos, por elas
influenciadas. De acordo com esta linha interpretativa, de um modo ou de
outro, no contexto da sociedade ocidental capitalista, as relações de produção
– enquanto instância específica de atuação da economia – possuiriam uma
espécie de força simbólica capaz de contaminar todas as demais esferas da
vida social, definindo o recorte básico, através do qual, a realidade social é
organizada e percebida pelos diferentes grupos humanos que a constituem.
 Das maneiras de organizar as rotinas básicas da vida cotidiana,
expressas nas formas de arrumação da casa, nas práticas alimentares, nos
modos e estilos de vestuário, nas regras de higiene e limpeza, dentre outras;
aos modos de experienciar o tempo e o corpo, de vivenciar a sexualidade e
até mesmo a morte, as relações de produção se afirmam como uma bússola
que orienta, direta ou indiretamente, as alternativas elaboradas pelos grupos
humanos, quanto aos diferentes modos de se posicionar, de ser e de estar
no mundo, conferindo sentido ao ciclo de suas existências concretas. De
modo análogo, situação idêntica ocorreria também, no contexto das
sociedades tribais, no que tange a predominância das relações de
parentesco, enquanto lócus privilegiado da produção simbólica.
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
134
No conjunto, estas duas conclusões são ilustrativas para demarcar a
contribuição do trabalho de Sahlins para a abordagem e o estudo da cultura,
quando inserida no contexto das chamadas sociedades complexas. Elas
demonstram a relatividade dos focos, em torno dos quais o processo de
produção simbólica incide, e nestes termos, podem variar não apenas em
função do tipo de sociedade considerada, como também, em decorrência do
momento histórico tomado como referência de análise. Não obstante o
caráter relativo destas variações, a atividade simbólica permanece, ainda
assim, como o aspecto fundamental que fornece significado as ações e aos
comportamentos humanos, uma vez que é por intermédio da sua agência e
mediação que eles são revestidos de intencionalidade e sentido.
Uma segunda referência intelectual que se afirma em direção a este
debate crítico é representada pelos trabalhos desenvolvidos pelo
antropólogo Louis Dumont (1911/1998). Teorizando sobre as ideologias da
hierarquia e da igualdade, Dumont (1985) discute a emergência do
individualismo na sociedade moderna – identificada especificamente com a
sociedade ocidental capitalista – e aponta para a distinção deste tipo de
formação social, quando comparada com as chamadas sociedades tradicionais
– identificadas, mais diretamente, com a Índia.
De acordo com o que argumenta este autor, o indivíduo constitui o
valor supremo em torno do qual, todas as demais instituições sociais se
organizam, nas sociedades do segundo tipo; o todo social e político é
predominante, em relação ao indivíduo. Neste segundo caso, trata-se, de
um tipo diferenciado de sociedade, na qual o princípio cultural básico de
organização social se funda em um modelo hierárquico com forte
independência das relações de produção. Isto não significa dizer que as
relações e instituições sociais sejam destituídas de complexidade, mas de
reconhecer que a sua incidência se desloca para outros aspectos e/ou
dimensões envolvidas com a organização da vida social.
É a luz destas considerações que as análises produzidas por Dumont
(1992) demonstram como a idéia de complexidade, no caso específico da
sociedade indiana, encontra-se fortemente vinculada, com a origem, a
estrutura e o funcionamento de um outro tipo de sistema de diferenciação
social nela presente: o sistema de castas. Hierarquia e igualdade
expressariam neste sentido, universos ideológicos específicos que exercem
Castas: Camadas sociais
hereditária e endógamas, cujos
membros pertencem à mesma
raça, etnia, profissão ou
religião. O conjunto de uma
espécie animal ou vegetal, com
origem comum e caracteres
semelhantes, transmissíveis
por hereditariedade. Raça,
linhagem. Qualidade, espécie,
gênero. Série de coisas com
as mesmas qualidades ou
características.
135
ANTROPOLOGIA CULTURAL
diferentes formas de impacto, quanto à organização social e ao
posicionamento dos indivíduos e/ou grupos humanos diante da realidade
social, como teremos a oportunidade de discutir mais detalhadamente nos
próximos tópicos desta unidade de estudos.
Neste momento, gostaríamos apenas de destacar como os trabalhos
produzidos por Dumont, vieram a constituir também, uma outra fonte de
contribuição para a relativização da idéia de complexidade. Em outras
palavras: se de fato, no contexto da sociedade ocidental capitalista, esta
idéia esteve diretamente vinculada ao crescente processo de divisão social
do trabalho, isto não significa postular, por conseguinte, que o grau de
intensidade que, por ventura, venha a atingir a especialização das funções
e papéis sociais decorrente deste processo, seja por excelência o critério
básico a definir e a demarcar por si mesmo, a complexidade envolvida com
as formas de organização das instituições sociais. Neste sentido, há que se
considerar a existência de outros tipos de complexidade que não se esgotam
única e exclusivamente ao âmbito das relações de produção, como é, por
exemplo, o caso ilustrativo da sociedade indiana.
No conjunto, estas duas referências teóricas representadas pelos
trabalhos desenvolvidos por Marshall Sahlins e Louis Dumont, colocaram para
o campo antropológico um duplo desafio. De um lado, a necessidade de se
proceder a uma distinção dos diversos tipos de sociedades complexas
existentes, conforme sejam os sistemas econômicos nelas vigentes, marcados
por um caráter mais ou menos capitalista, de tipo tradicional ou não, fundados
em uma base mais ou menos industrial ou agrária, etc. De um outro lado, e,
correlativamente, a necessidade de se problematizar a primazia do recorte
analítico que toma as relações de produção como o lócus privilegiado para o
estudo do processo de produção simbólica, no contexto das chamadas
sociedades complexas.
Em ambos os casos, trata-se, portanto, da necessidade de relativização
da base teórico-conceitual que serve de sustentação para a abordagem
antropológica da cultura, no contexto das chamadas sociedades complexas.
Não obstante a fecundidade deste esforço de relativização para a abertura
de novas possibilidades analíticas, é fundamental não perdermos de vista,
que um aspecto parece permanecer constante, como que confirmando a
singularidade da abordagem antropológica, enquanto campo do saber. Qual
seja, a constatação de que a atividade simbólica constitui o aspecto
fundamental que permite aos grupos e sociedades humanas organizar,
coletivamente, o plano de suas ações e comportamentos, de forma a atribuir
sentido ao mundo e significado à realidade social.
Nesta linhaargumentativa, o dado que parece fornecer uma nova
amplitude e relevância à questão da produção simbólica quando à tônica
da discussão incide no contexto das chamadas sociedades complexas, é o
fato de que nelas, a dimensão do significado se intensifica, de um modo ou
de outro, em função do forte processo de diferenciação social que envolve
os indivíduos e grupos humanos em uma inextricável rede de instituições
sociais. Inserida neste cenário, a idéia de complexidade passa a envolver,
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
136
paralela e simultaneamente, a noção de heterogeneidade, trazendo
implicitamente para o centro da discussão, o problema de se identificar as
conseqüências daí advindas, para a delimitação da especificidade do conceito
de cultura no interior do campo antropológico.
Dentro deste contexto, o debate ganha novas colorações e matizes,
em torno das quais, se observa um polêmico e tenso movimento que pode
ser sintetizado a partir de uma dualidade básica. Se de um lado, é inegável
a constatação de que a expansão crescente do sistema capitalista no seio
da sociedade industrial contemporânea, desencadeou de fato, um intenso
processo de divisão social do trabalho, que segmentou e promoveu uma
profunda especialização das funções e papéis sociais envolvendo os grupos
humanos em uma rede complexa de instituições sociais, de outro lado não
há como negar a evidência gritante de que a inserção e a participação destes
grupos no contexto destas instituições sociais, longe de pautarem-se em
formas homogêneas e uniformes, conduziram ao contrário, a um processo
também, fortemente marcado, por uma intensa diversificação e
heterogeneidade de posicionamentos no interior mesmo das relações de
produção.
Isto significa dizer que os indivíduos participam de modo desigual do
processo de produção. Esta desigualdade conduziu ao que, historicamente,
se convencionou denominar, na tradição clássica do pensamento sociológico,
como correspondendo à chamada divisão de classes sociais. No contexto
de uma sociedade capitalista clássica, tal como a descrita pela tradição
marxista, esta divisão se expressa através de dois grandes grupos
representados de um lado, pela classe burguesa, detentora dos meios de
produção – as máquinas, equipamentos, etc. – e de outro, pela classe
trabalhadora que vende a sua força de trabalho aos donos dos meios de
produção. Esta divisão envolve, não apenas, uma distribuição objetiva e
diferenciada dos indivíduos no processo de produção, mas, engloba também,
uma distribuição de poder, prestígio e status que se materializa de um modo
desigual no contexto mais amplo das relações sociais. Como a burguesia
representa a classe que controla os meios de produção, ela passa,
paralelamente, a deter o poder político de dominar e influenciar as demais
instituições sociais, através da inserção no aparelho de Estado. Neste
137
ANTROPOLOGIA CULTURAL
sentido, seus interesses assumem um tom ideológico, no qual passam a
representar os interesses da sociedade como um todo, ainda que mascarando
os conflitos e os antagonismos decorrentes da desigualdade da relação que
se estabelece entre capital e trabalho.
Aliado a este processo de diferenciação nas relações de produção,
associa-se a presença de uma multiplicidade de grupos sociais de origens
étnicas, sociais e regionais, extremamente variadas, que coexistem lado a
lado, no contexto das sociedades industriais contemporâneas, reforçando a
heterogeneidade de crenças, valores e visões de mundo e concorrendo para
a formação de um mapa social, cada vez mais diversificado e diferenciado
com a presença simultânea de múltiplas tradições sociais, convivendo e
disputando espaço no interior de uma mesma totalidade social. A esta altura,
cabe-nos perguntar: Como e de que modo todo este cenário se correlaciona
com a questão da cultura? Quais os desafios que ele coloca para a abordagem
antropológica? Quais as implicações e conseqüências daí decorrentes, para
a elaboração de uma definição antropológica do conceito de cultura, num
contexto social cingido pela complexidade e heterogeneidade de formas de
organização social, relações, crenças e visões de mundo?
De um ponto de vista mais abrangente e, considerando a afirmação
do conceito de cultura como um código, uma das principais conseqüências
geradas por este processo de complexificação e heterogeneidade que
caracteriza as chamadas sociedades complexas – as sociedades industrias
contemporâneas – teria sido a suposição de que haveria no interior da
totalidade social a dominância de um determinado sistema simbólico sobre
outro. Nesta linha argumentativa, a cultura, de um lado, refletiria e
expressaria, em certa medida, a íntima diversificação e heterogeneidade
presentes no contexto da realidade social, e, de outro lado, ela constituiria o
próprio “lócus” de produção das contradições sociais, expressando mais
especificamente o antagonismo entre as classes sociais, decorrentes da
desigual distribuição de poder, prestígio e formas de controle e acesso aos
recursos sociais, no âmbito das relações que se estabelecem entre capital
versus trabalho.
Subjacente a esta suposição reside, portanto, uma pressuposição
fortemente enraizada na esfera do senso comum envolvente e reforçada
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
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por um certo tipo de ideologia, de que o estilo de vida, as crenças e visões
de mundo da classe burguesa constituiriam uma espécie de universo de
valores com legitimidade própria, posto que expresso e sedimentado por
diversas instituições ligadas à produção da ciência, da filosofia e do saber
oficializado, no contexto da sociedade mais ampla, que justificaria e autorizaria
a afirmação quanto à existência de uma cultura dominante, por ela
representada.
O problema deste tipo de suposição é o fato de que dela deriva uma
série de classificações e tipologias construídas sobre o conceito de cultura
que são problemáticas para a discussão antropológica. Para que você possa
compreender com maior facilidade essas classificações, vamos nos reportar
ao caráter polissêmico da cultura que discutimos, no contexto da nossa
primeira unidade de estudos. Se num primeiro momento, nosso objetivo
pautou-se no esforço básico de demonstrar a variedade de significados
envolvidos com o termo cultura, nossa intenção agora caminha em uma outra
direção. Desta forma, neste segundo momento trata-se, de problematizarmos
estes significados à luz do instrumental teórico fornecido pela Antropologia,
no sentido de percebermos como eles não estão soltos no espaço social. Na
verdade, eles exprimem certas concepções ideológicas que se encontram
referenciadas a valores e visões de mundo distintos, decorrentes dos
diferentes tipos de relações e posições ocupadas pelos indivíduos e grupos
humanos no contexto da vida social.
Deste modo, uma das classificações derivadas da suposição quanto a
existência de uma cultura dominante, diz respeito à oposição entre “cultura
erudita” versus “cultura popular”. Esta polaridade apóia-se em uma espécie
de diferença qualitativa entre formas diferenciadas de manifestações
culturais, que atribuiria ao primeiro tipo um caráter mais refinado e sofisticado
em oposição a um segundo tipo, marcado por um caráter mais rústico, pouco
elaborado e de menor valor estético e criativo. Um terceiro tipo de
classificação refere-se à chamada “cultura de massa” a qual é atribuída
uma ausência de autenticidade, posto que, estaria respaldada na tentativa
de massificação e uniformização de estilos e modos de vida estimulada
através dos meios de comunicação– mídia impressa e televisiva, além do
rádio e do cinema – tendo como referência a cultura dominante, representada
pela classe burguesa.
Como você já deve estar percebendo, a dificuldade colocada para o
campo antropológico quanto à aceitação destas classificações, é o conteúdo
altamente valorativo que parece lhes servir de base conduzindo, via de regra,
a uma percepção estereotipada dos diferentes tipos de manifestações
culturais. Quando se fala, por exemplo, em “cultura erudita” a mesma é
associada a uma suposta “elite cultural” formada por uma classe socialmente
mais abastada, que teria uma capacidade de maior discernimento e
julgamento estético. A “cultura popular” representaria o lado oposto da
moeda, sendo caracterizada como de menor valor estético, portanto, mais
simples, mais rústica e menos urbana e sofisticada. De um outro modo, em
algumas circunstâncias, tenta-se atribuir a esta última, um valor diferenciado
em face da primeira, invertendo a oposição. Ou seja, justamente por ser
139
ANTROPOLOGIA CULTURAL
mais simples e mais rústica, ela, conseqüentemente, seria mais verdadeira,
mais pura e autêntica, o que de um modo simétrico inverso, conduz,
igualmente, a uma supervalorização de um tipo em detrimento a um outro,
considerado como de menor valor.
Em todos estes casos, estas diferentes classificações desembocam
em uma postura etnocêntrica que, como vimos ao longo das nossas
discussões, desqualificam a diferença, tendo por base julgamentos de valores
pré-concebidos a respeito de um determinado tipo de sociedade considerada
como a melhor, e, conseqüentemente, de como são e de como devem os
indivíduos e grupos humanos agir no contexto das relações que estabelecem
entre si e com o mundo que os envolve. Longe de incorporar, portanto, tais
classificações como verdades universais a respeito do que faz, do que pensa
e do que produz um determinado tipo de sociedade, quando confrontado
com uma outra que lhe é distinta, o esforço da Antropologia caminha em
uma direção permanente pela busca da relativização, do estranhamento e
da “desnaturalização” destes e de quaisquer outros tipos de classificações
estanques e isoladas que só contribuem para o estreitamento da
compreensão das múltiplas alternativas humanas diante da existência.
No próximo tópico desta unidade de estudos, retornaremos,
brevemente, a esta discussão, tomando como eixo norteador o principal
instrumento que permitiu a Antropologia este exercício relativizador – a
pesquisa etnográfica de campo ou trabalho de campo – visando, a partir daí,
problematizar os limites e as possibilidades envolvidas com a sua prática
investigativa no contexto das chamadas sociedades complexas. Procure se
manter concentrado e vamos em frente em nossas reflexões.
A ETNOGRAFIA E O ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS:
LIMITES E POSSIBILIDADES DE REALIZAÇÃO
De acordo com o que argumentamos ao longo dos tópicos anteriores,
é possível identificarmos como uma das características definidoras das
chamadas sociedades complexas, o fato de que nelas os indivíduos participam
simultaneamente, de diferentes “mundos” culturais. Como membro de um
grupo familiar, participando de algum órgão ou associação de classe ligada
ao mundo do trabalho, aderindo a um grupo político partidário, como adepto
de algum sistema religioso aos diferentes tipos de atividade e grupos sociais,
com os quais se engaja na esfera do lazer, a rede de relações sociais a que
os indivíduos se inserem no contexto das chamadas sociedades complexas
é profundamente marcada pela amplitude e pela variabilidade de interações
sociais.
Desta multiplicidade de interações estabelecidas pelos indivíduos resulta
a formação de uma totalidade social extremamente diversificada e
heterogênea. Nela, os diferentes grupos sociais parecem constituir “mundos”
culturais particulares e singulares, que, uma vez movidos por produções
simbólicas específicas, fornecem aos indivíduos possibilidades diferenciadas
de interpretação da realidade. Deste modo, os indivíduos parecem transitar
no interior do sistema social, entre diferentes “províncias de significado” que
dificultam uma leitura uniforme do mapa social, posto que, suas ações, atitudes
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
140
e comportamentos pautam-se em dinâmicas, trajetórias e interesses nem
sempre coincidentes.
Sendo assim, ainda que admitamos como nos sugere Sahlins (2003),
que no contexto da sociedade capitalista ocidental – exemplo emblemático
das chamadas sociedades complexas – as relações de produção constituam
o “lócus” privilegiado da atividade simbólica, este pressuposto não deve ser
tomado como um critério absoluto e universalizante. Há que se considerar a
existência de outros focos de produção simbólica, mediando as relações
sociais que a depender do contexto e do momento histórico considerado,
podem ser decisivos, não apenas para a interpretação da realidade social
como um todo, mas também, como um fator que pode influenciar o próprio
desenvolvimento e direcionamento das relações de produção.
O reconhecimento acerca da relatividade deste critério como via
explicativa para a questão da produção simbólica, no contexto de uma
sociedade complexa, aponta para duas contribuições fundamentais na
abordagem antropológica da cultura. Em primeiro lugar, esta atitude corrobora
a afirmação do conceito de cultura como um código, ao mesmo tempo em
que sinaliza para a importância de que seja estabelecida uma distinção dos
diferentes sistemas simbólicos que compõe este código, identificando as
aproximações e afastamentos existentes entre eles. Em segundo lugar, e,
correlativamente, esta atitude convida a que se considere as diferentes
formas pelas quais os indivíduos interpretam e dão significado a realidade
social, não apenas e exclusivamente, no aspecto macro-estrutural das
instituições que lhe são constitutivas, mas que incorpore também, a
dimensão mais microscópica da ação humana, envolvida com o desenrolar
cotidiano, por meio do qual o fazer da vida social se realiza.
Nesta acepção, resgata-se simultaneamente, a perspectiva básica sob
a qual se funda o próprio campo antropológico, enquanto uma área específica
do saber que se dedica, prioritariamente, ao estudo da diversidade e da
diferença cultural. Qual seja, o caráter dialético da relação entre sociedade
e cultura. Deste modo, se de um lado, a produção da cultura é o dado que
mais especificamente, dá singularidade à espécie humana e que define a
sua dimensão social, de outro lado, a cultura não constitui uma realidade
que paira sobre as cabeças dos indivíduos como uma espécie de força oculta
sob a qual não possuem nenhum tipo de ingerência e controle. Muito pelo
contrário. A cultura é um produto da ação humana que se expressa
coletivamente, mas que também, se faz e refaz através das trajetórias e
biografias individuais.
Sendo assim, afastada uma perspectiva que reifica ambos os
conceitos, o indivíduo passa a ser considerado como um agente de
transformação social. Ou seja, um sujeito que atua no devir histórico e que,
por meio de suas ações e das interações que estabelece com os seus
semelhantes, é capaz de resignificar a própria história, através de um
constante repensar crítico acerca dos papéis sociais que desempenha, e,
conseqüentemente, dos diferentes símbolos que utiliza para interpretar e
dar sentido ao todo. Na vida social, estes símbolos não constituem, portanto,
Reificação: Palavra
derivada do latim “rés”
(coisa). No processo de
alienação, o momento em
que a característica de ser
uma “coisa” se torna típica
da realidade objetiva.
Alienação e objetificação.
141
ANTROPOLOGIACULTURAL
um aspecto estanque e isolado à ação individual. Eles apresentam uma
flexibilidade e plasticidade que lhes são conferidas pela própria ação dos
indivíduos, que ao manipulá-los, transformam-no conforme as exigências dos
contextos e circunstâncias a que estejam inseridos, daí o caráter dinâmico
da cultura.
É dessa dinamicidade e desse potencial de mudança permanente e
constante a que se revestem as manifestações culturais no contexto das
chamadas sociedades complexas, que deriva uma das maiores dificuldades
enfrentadas pelo campo antropológico, no que tange as possibilidades
efetivas de realização da sua prática investigativa. Esta dificuldade pode ser
expressa através de um duplo movimento: de um lado, a necessidade de
identificar os diferentes sistemas simbólicos que estão presentes e que
constituem a totalidade da vida social, em um contexto marcado pela
coexistência de uma pluralidade e multiplicidade de formas de interpretação
do mundo, e, de outro lado, a necessidade de mapear os possíveis pontos
de aproximação e de ligação entre esses diferentes sistemas simbólicos,
identificando suas fronteiras e ambigüidades, de modo a transformar esta
totalidade em um dado que pode ser descrito e analisado do ponto de vista
metodológico.
Em ambos os casos, trata-se, portanto, de uma dificuldade que envolve
não apenas, o repertório teórico-conceitual que possibilitou a Antropologia
legitimar-se enquanto campo do saber, como também, os limites do fazer
etnográfico como prática investigativa. Como tivemos a oportunidade de
discutir ao longo das unidades anteriores, se no período seminal da formação
da Antropologia como campo do saber, esta dificuldade era facilmente
enfrentada através da distância que separava a antropólogo, enquanto
pesquisador, do objeto estudado – a sociedade ou grupo humano que se
encontrava geograficamente distante da sua própria sociedade – no período
mais contemporâneo de sua constituição, esta dificuldade não apenas se
interpõe ao fazer investigativo, como de fato, parece se complexificar e se
potencializar. No contexto das chamadas sociedades complexas, sendo o
antropólogo, parte integrante do próprio objeto a que investiga, algumas
questões se impõe. Como falar de uma “outra” cultura sendo ela, a cultura
do próprio “eu”? Como estabelecer critérios de análise que possam discernir
um recorte teórico na abordagem desta “outra” cultura que, embora parte
do próprio “mundo do eu”, não se confunda com as concepções e posições
políticas do próprio sujeito que investiga? Como definir o que é ou não
prioridade e relevante, enquanto objeto de análise?
Se no primeiro momento, o desafio colocado ao antropólogo pelo fazer
etnográfico, pautava-se na capacidade de virar o próprio espelho, de modo
a se familiarizar com o exótico “mundo do outro”, no contexto das chamadas
sociedades complexas; o espelho parece girar para o próprio “mundo do
eu” que deve ser, agora, exotizado e transformado no “mundo do outro”.
Esta é a transformação básica que envolve o problema do relativismo e das
possibilidades de seu enfrentamento, dado à natureza e à intensidade da
alteridade que colocam sujeito e objeto em um mesmo plano de análise.
UNIDADE 4 - ANTROPOLOGIA CULTURAL APLICADA AO ESTUDO DAS CHAMADAS SOCIEDADES COMPLEXAS: ALGUNS OBJETOS DE ANÁLISE
142
Neste enfrentamento, a Antropologia tem sugerido caminhos diversos, na
busca uma compreensão mais aberta para o reconhecimento pleno da
diferença. Para tanto, ela precisou se debruçar em um constante reflexionar
crítico a respeito da sua própria prática, colocando a si mesma, como objeto
do que constitui a sua marca distintiva no estudo da diversidade: a
relativização dos seus próprios conceitos, num esforço permanente de
superação.
Desse modo, de uma perspectiva que pressupunha a necessidade de
existir uma espécie de empatia especial entre sujeito e objeto, que garantisse
a possibilidade do antropólogo transformar-se, ele próprio, em “nativo” para
que pudesse compreender o “outro”, tal como preconizava Malinowski,
caminhou-se em direção a um outro tipo de visão, que concebe a ação e o
pensamento humanos como submetidos a regras inconscientes, tal como
advoga Lévi-Strauss. Desse postulado, a Antropologia pôde defender o
pressuposto de acordo com o qual, sendo a mente humana regulada por
mecanismos universais, que se materializam na diversidade das culturas
humanas; o acesso ao “outro” torna-se uma possibilidade efetiva, já que
esta diversidade nada mais seria, do que a variação de um mesmo repertório,
de uma mesma estrutura que se repete sempre.
A partir desse postulado, a cultura se afirma como um código formado
por diferentes sistemas simbólicos que possibilitam a comunicação
intercultural. A garantia de acesso ao “outro”, nessa perspectiva, reside na
dimensão pública do significado dos símbolos, tal como advoga Clifford Geertz.
Contextualmente situado, este código pode ser decifrado pelo antropólogo,
mediante a observação e a interpretação do que está sendo “dito” através
das ações e comportamentos humanos no decorrer do fluxo social. Estando
sujeito e objeto situados neste mesmo fluxo de comunicação intercultural, o
esforço permanente do antropólogo consiste, portanto, em explicar como
entre o plano da ação prática e as representações, que dela se constrói,
reside o dado através do qual as sociedades e grupos humanos se
diferenciam. É na identificação dos diferentes sistemas simbólicos que fundam
este processo de diferenciação, que universos culturais distintos podem ser,
comparativamente, analisados, revelando a um só tempo, o que cada um
deles em sua dimensão particular e única, possui em comum ao conjunto de
manifestações culturais e empíricas que compõe o do acervo da humanidade
como um todo. Em outras palavras, é este processo de diferenciação que
torna cada cultura humana, a um só tempo, única e plural.
No próximo tópico desta nossa unidade de estudos discutiremos,
exatamente, este processo de diferenciação, buscando, a partir da trilha
aberta pelos trabalhos de Louis Dumont, demonstrar como as relações entre
indivíduo e pessoa podem contribuir para uma discussão a respeito do
universo ideológico brasileiro. Trata-se, portanto, de uma perspectiva que
coloca em pauta os limites e possibilidades envolvidas com a prática
etnográfica posto que, utiliza os referencias teóricos de uma sociedade
estruturada sob um sistema de diferenciação – a sociedade indiana –
extremamente distinto daquele presente na nossa própria sociedade. Sendo
assim, procure não dispersar o foco da sua atenção e vamos em frente em
143
ANTROPOLOGIA CULTURAL
nossas discussões, lembrando sempre a importância de que você não deixe
nenhum tipo de dúvida pendente. Interaja conosco sempre que julgar
necessário, através do ambiente virtual de aprendizagem (AVA).
O CAMPO ANTROPOLÓGICO E AS RELAÇÕES ENTRE INDIVÍDUO E
SOCIEDADE
As reflexões sobre a vida social, levadas a efeito pela tradição clássica
do pensamento sociológico e político têm sido acompanhadas em sua origem
e desenvolvimento por uma oposição recíproca entre indivíduo e sociedade,
que carrega em seu bojo um questionamento básico: é o indivíduo um agente
construtivo do mundo social, ou pelo contrário, constitui apenas um fenômeno
derivado, um mero produto da sociedade?
Esta dualidade central, que evidencia a própria tensão inaugural de
todo o desenvolvimento da análise antropológica, tem sido expressa à luz
de numerosos pares dicotômicos – tais como: atomismo x holismo,
individualismo x coletivismo, macro x micro sociologia, agência x estrutura –
em torno das quais tiveram origem uma enorme variedade de perspectivas,
ensejando a diversidade, a disputa e o choque entre diferentes matizes

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