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1 PSICOLOGIA JURÍDICA PSICOLOGIA JURÍDICA Graduação PSICOLOGIA JURÍDICA 49 U N ID A D E 4 PSICOLOGIA JURÍDICA Nesta unidade, iremos estudar a psicologia jurídica segundo seus objetivos e métodos. Além disso, iremos contextualizá-la no campo da doença mental e Direito Penal. Perceberemos ao longo da unidade como a realidade brasileira ainda não se apresenta definida quando a real condição do alienado mental ao praticar atos criminosos e seu aspecto de entendimento ao momento do ato. Analisaremos ainda, o histórico da observância da doença mental e como cada especialista na área que atua faz-se demonstrar a sua compreensão sob o assunto através dos laudos e perícias psicológicas em Direito Civil e Penal. OBJETIVOS DA UNIDADE: Definir o campo de atuação da psicologia jurídica; esclarecer que a perícia não se reduz a mero meio de prova, pois tem como função instruir e subsidiar tecnicamente as teses das partes e sentenças dos juízes. PLANO DA DISCIPLINA: • Objetivo. • Métodos (Investigação em Psicologia Jurídica). • Doença mental e Direito. • Responsabilidade penal. • A Dinâmica psicosocial das decisões judiciais. • Laudo e perícia psicológica em Direito Penal e Civil. • Tipos de avaliações periciais. • Doença mental, perturbação da saúde mental e Direito. Bons estudos! UNIDADE 4 - PSICOLOGIA JURÍDICA 50 PSICOLOGIA JURÍDICA: OBJETIVO Das idéias trazidas até aqui, vale relembrar que a Psicologia Jurídica, numa compreensão transdisciplinar do homem e de sua conflitualidade, pode ajudar o direito a cumprir sua imensa responsabilidade com a justiça. E ainda tem como objetivos: a) ser capaz de apontar ao mundo jurídico conhecimentos com intuito de auxiliar o legislativo na elaboração de leis mais adequadas à sociedade; b) contribuir na tarefa de assessoramento judicial, colaborando na organização do sistema de administração da justiça e; c) tratar dos fundamentos psicológicos da justiça e do direito. MÉTODOS DE INVESTIGAÇÃO EM PSICOLOGIA JURÍDICA Muñoz Sabaté (1980) estabelece três grandes caminhos para o método psicojurídico, são eles: A psicologia do direito, cujo objetivo seria explicar a essência do fenômeno jurídico, isto é, a fundamentação psicológica do direito uma vez que todo o direito está repleto de conteúdos psicológicos. Essa tarefa de investigação psicológica do direito recebeu a denominação de psicologismo jurídico, representada basicamente pela escola do realismo americano e escandinavo e apresenta-se como uma formulação eminentemente teórica até o momento não sufucientemente investigada. A psicologia no direito, que estudaria a estrutura das normas jurídicas enquanto estímulos vetores das condutas humanas. As normas jurídicas destinam-se a produzir ou evitar determinadas condutas e, nesse sentido, carregam inúmeros conceitos de natureza psicológica. Nesse aspecto, a psicologia no direito é uma disciplina aplicada e prática. A psicologia para o direito, esta sim a psicologia jurídica como ciência auxiliar do direito, tal como a medicina legal, a engenharia legal, a economia, a contabilidade, a antropologia, a sociologia e a filosofia, entre outras. É a psicologia convocada a iluminar os fins do direito. DOENÇA MENTAL E DIREITO O Direito Penal, enquanto ciência, faz-se necessário acompanhar a evolução dos tempos, as mudanças da vida social a fim de que essa capacidade de tutelar os interesses não se perca diante do passar dos anos. Um dos maiores frutos da escola positiva foi a criação da Criminologia, que procurou definir um conceito naturalístico do crime, conceituando-o como “comportamento desviante”, procurando ver em seu autor uma realidade sociobiopsicológica, nascendo o entendimento de ser a pena medida de prevenção a novas ações criminosas, devendo ser ajustada às características do criminoso, a fim de integrá-lo ao convívio social. PSICOLOGIA JURÍDICA 51 A consciência e a vontade foram então consideradas as funções psíquicas básicas que determinam a conduta da pessoa e seus atos. Isto por que, devido a elas o comportamento é dirigido de certo modo, podendo haver a repressão dos impulsos ou, ao contrário, sua ativação ou a sua conversão em ações voluntárias, conforme vimos na teoria da psicanálise durante nosso estudo da unidade II. Assim, a responsabilidade supõe no agente, duas condições: a liberdade e a consciência da obrigação. Isto porque a loucura quando leva ao crime, uma das causas mais comuns é a perda da lucidez entre nós e as perspectivas que podemos ter no enfrentamento. Você deve estar se questionando: como proceder quando os indivíduos em questão possuem desvios de ordem psíquica que os transformam, por vezes, em verdadeiras máquinas de matar, de violentar ou de produzir barbaridades inimagináveis? A reclusão pura e simples num presídio qualquer seria capaz de curar o doente mental do mal que o domina, dando à comunidade a segurança de que aquele internado ao ser posto em liberdade não irá praticar outras atrocidades? (Participe do fórum de discussão) O Direito Penal, diante desses questionamentos, busca auxílio em outras ciências na tentativa de melhor compreender as ações criminosas e o perfil dos delinqüentes. É certo que em casos onde a ofensa é produzida por um comportamento desviante, a complexidade que já existia na tarefa de se estipular a pena ser aplicada ao autor do crime, torna-se ainda maior diante da confusa personalidade de um alienado mental. A Psicopatologia Judiciária, portanto, busca abordar os aspectos psicológicos das perturbações mentais do ponto de vista da aplicação da justiça. RESPONSABILIDADE PENAL A imputabilidade, segundo Marcello Jardim Linhares (1978), é um atributo da pessoa, um modo de agir relativamente a um fato que a lei define como crime. A responsabilidade penal só existe quando o agente for imputável, ou seja, quando reúne a capacidade de entendimento e a capacidade de querer a realização do ato ilícito. Por capacidade de entendimento se considera a faculdade intelectiva, a possibilidade de conhecer, de compreender, de discernir os motivos da própria conduta. Significa a possibilidade de o agente saber quando transgride uma norma, quando descumpre um dever e que, por isso, estando agindo antijuridicamente, pode receber uma sanção (LINHARES, 1978). Como você perceberá, não variam muito os conceitos doutrinários do direito e da psiquiatria sobre a responsabilidade criminal. Para o direito, a doutrina majoritária entende ser responsável em direito penal aquele que pode responder pela infração que cometeu; o delinqüente não pode ser declarado responsável se não reunir dois elementos: a imputabilidade e a culpabilidade. Já para a psiquiatria: O princípio da repressão penal pressupõe o domínio de certa liberdade em todo o comportamento individual. Com suas obrigações e proibições, a lei pretende limitar a escolha pelo sujeito entre as relações UNIDADE 4 - PSICOLOGIA JURÍDICA 52 possíveis a uma dada situação. Ainda não julga os atos apenas pelos seus efeitos, senão também pelas intenções que os dirigem; de tal forma, um homicídio pode ser intencional e outras vezes não (Id. Ib.; p. 23). No caso de distúrbio mental, pode-se dizer que a responsabilidade penal não existe, uma vez que a mesma exige condições mínimas de saúde e de maturidade mental. Doença ou distúrbio mental é qualquer estado patológico da mente clinicamente diagnosticável, seja de ordem psíquica, seja conseqüente de uma moléstia física ou permanente. A prática e o saber psiquiátricos constroem-se, dessa forma, em estreita relação com o campo da justiça criminal, questionando os pressupostos da doutrina clássica do direito penal, tais como: responsabilidade e livre-arbítrio(Castel, 1978; Harris, 1993; Foucault, 1991). A DINÂMICA PSICOSOCIAL DAS DECISÕES JUDICIAIS Uma série de projetos foi realizada para modificar o código até então vigente e adequá-lo aos avanços da ciência penal: o código brasileiro deveria acompanhar os avanços da criminologia (Schwarcz, 1995; Salla, 1999). Vejamos então como se caracteriza, no Brasil, o procedimento adotado com os doentes mentais delinqüentes. A doença mental no código de 1940 é causa excludente de culpabilidade e, por isso, os doentes mentais criminosos são absolvidos. Uma vez que são absolvidos e carentes de culpabilidade não devem ser punidos, mas tratados. Dessa forma, aplica-se a tais louco-criminosos a medida de segurança com internação em manicômio judiciário, a qual se funda em sua periculosidade presumida por lei (artigo 78, I). Um ponto a ser considerado com relação à medida de segurança, no código de 1940, é seu caráter indeterminado, sendo fixo apenas o tempo mínimo. Este, em que pese a sua determinação com base na periculosidade, guarda estreita relação com o crime cometido. Nesse sentido, a internação no Manicômio Judiciário tem seus termos definidos no artigo 91: Art. 91. O agente isento de pena, nos termos do artigo 22, é internado em manicômio judiciário. § 1. A duração da internação é, no mínimo: I — de seis anos, se a lei comina ao crime pena de reclusão não inferior, no mínimo, a 12 anos; II — de três anos, se a lei comina ao crime pena de reclusão não inferior, no mínimo, a oito anos; III — de dois anos, se a pena privativa de liberdade, cominada ao crime, é, no mínimo, de um ano; IV — de um ano nos outros casos. PSICOLOGIA JURÍDICA 53 § 2. Na hipótese do nº IV, o juiz pode submeter o indivíduo apenas a liberdade vigiada. § 4. Cessa a internação por despacho do juiz, após perícia médica, ouvidos o Ministério Público e o diretor do estabelecimento. § 5. Durante um ano depois de cessada a internação, o indivíduo fica submetido à liberdade vigiada, devendo ser de novo internado se seu procedimento revela que persiste a periculosidade. Em caso contrário, encontra-se extinta a medida de segurança. Alguns pontos mostram-se interessantes, no que se refere aos termos definidos anteriormente. Como dizem Hungria e Fragoso (1978, p. 189-190), “o tempo mínimo fixado visa “proteger” o juiz de “influências espúrias” de “laudos superficiais ou conclusões prematuras””. Hungria e Fragoso põem em evidência a permanência do conflito entre juristas e psiquiatras, os quais “estão sempre inclinados a conjecturas otimistas sobre a cessação de periculosidade dos pacientes”. Laudo e perícia psicológica em Direito Civil e Penal A perícia psiquiátrica é um documento de caráter clínico-psiquiátrico, solicitado pela justiça com objetivo de atestar a condição mental de uma pessoa e assessorar tecnicamente a justiça em duas situações básicas: na avaliação da interdição civil por razões mentais e na avaliação de inimputabilidade. No primeiro caso, avaliando a capacidade civil, a perícia psiquiátrica se dará no Direito Civil e na questão da imputabilidade, no Direito Criminal. Estão previstos em lei alguns impedimentos formais para a nomeação ou aceitação do perito; seriam no caso dele atuar nos processos onde: a) for parte; b) houver prestado depoimento como testemunha; c) for cônjuge, parente em linha reta em qualquer grau ou parente em linha colateral até segundo grau (irmão ou cunhado) do advogado da parte; d) for cônjuge, parente em linha reta em qualquer grau ou parente em linha colateral até terceiro grau (tio e sobrinho) da parte; e) for membro da administração de pessoa jurídica que é parte no feito. Além desses impedimentos formais, a legislação prevê que perícia será considerada suspeita quando o perito for: a) amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes; b) credor ou devedor de qualquer das partes, ou isso ocorrer com seu cônjuge, bem como aos parentes em linha reta em qualquer grau ou em linha colateral até terceiro grau (tio e sobrinho); c) herdeiro, donatário ou empregador de qualquer das partes; UNIDADE 4 - PSICOLOGIA JURÍDICA 54 d) presenteado de qualquer das partes ou as houver aconselhado em relação à causa ou ainda as auxiliado financeiramente com as despesas do processo; e) interessado no julgamento do feito em favor de uma das partes. A avaliação do estado mental da pessoa a ser periciada deve ser relatada de forma precisa e inteligível. O objetivo dessa avaliação é informar à justiça o que a medicina constata sobre a função mental da pessoa em apreço. Apesar do desejável cuidado científico e técnico, não se trata de uma tese ou dissertação de mestrado, mas de uma informação precisa com propósitos de ser, sobretudo, inteligível. Em resumo, os objetivos básicos da Perícia Psiquiátrica não podem se distanciar do seguinte: 1 - Estabelecer o Diagnóstico Médico. 2 - Estabelecer o Estado Mental no momento da ação. 3 - Estabelecer o Prognóstico Social, isto é, indicar, do ponto de vista psiquiátrico, a irreversibilidade ou não do quadro, a incapacidade definitiva ou temporária, a eventual periculosidade do paciente. Tipos de avaliações periciais Os Exames Periciais Psiquiátricos podem ser divididos em 3 tipos básicos: no direito civil, no direito criminal (ou penal) e no direito do trabalho. Tendo como norte os objetivos desta unidade, abordaremos a seguir o primeiro e o segundo tipos. A PERÍCIA EM DIREITO CIVIL Um dos principais objetivos da Psicologia Jurídica na área do Direito Civil é a avaliação da Capacidade Civil. Quando o perito é designado em processos de interdição, de incapacidade, de prodigalidade, capacidade de doação, anulação de casamento, etc., estamos falando em perícia psiquiátrica em Direito Civil. De um modo geral, no Direito Civil a perícia psiquiátrica terá utilidade nos casos de: 1 - Ações de Interdição. No direito civil a perícia psiquiátrica tem como um dos principais objetivos avaliar a capacidade da pessoa se autodeterminar (reger seus próprios atos) e administrar seus bens. Essas perícias se baseiam na avaliação da Capacidade Civil e são requeridas pelo juiz nas ações de interdição de direito civil, como ocorre, principalmente, em deficientes mentais e pessoas demenciadas. 2 - Ações de anulações de atos jurídicos em pessoas que tenham, porventura, tomado alguma atitude civil (compra, venda, casamento, divórcio, entre outros) enquanto não gozava da plenitude de seu juízo crítico. Nesses casos, avaliam-se as condições de consciência da pessoa. Seria uma espécie de avaliação da Capacidade Civil temporária. PSICOLOGIA JURÍDICA 55 3 - Avaliação da capacidade de testar. Como no caso anterior, a perícia psiquiátrica aqui é solicitada nas ações de anulações de testamentos. Isso ocorre em casos onde, supostamente, a pessoa tenha tomado alguma atitude testamentária sem que gozasse plenamente de reger plenamente seus atos. 4 - Anulações de casamentos e separações judiciais litigiosas. Mais ou menos com os mesmos objetivos dos casos anteriores. 5 - Ações de modificação de guarda de filhos, normalmente quando o cônjuge tutor demonstra insuficiência psíquica para manter a guarda do(s) filho(s). 6 - Avaliação de transtornos mentais em ações de indenização e ações securitárias. Esses exames estão, normalmente, relacionados à medicina ocupacional, nas ações de anulações de atos jurídicos em pessoas que tenham, porventura, tomado alguma atitude civil (compra, venda, casamento, divórcio, etc.) enquanto não gozava da plenitude de seu juízo crítico. A CAPACIDADE CIVIL Segundo do Código Civil Brasileiro (art.12), “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” e, para tal, entende-sea capacidade de direito como sendo a aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações. Juridicamente a capacidade é entendida como o requisito necessário para o sujeito agir por si, avaliando corretamente a realidade e distinguindo o lícito do ilícito, o desejável do prejudicial, o adequado do inadequado e assim por diante. Ao contrário, a incapacidade civil é a restrição legal ou judicial ao exercício da vida civil, incapacidade de avaliar plenamente a realidade e de distinguindo o lícito do ilícito. E como tantas outras situações na psiquiatria ou nas avaliações humanas, também a questão da capacidade-incapacidade não se resume em uma posição exclusivamente binária (capaz ou incapaz). A incapacidade poderá ser absoluta ou relativa (arts. 32 e 42 do Código Civil), de tal forma que as pessoas consideradas absolutamente incapazes, não poderão exercer direta ou pessoalmente seus direitos, devendo ser representados pelos pais, tutores ou curadores. A PERÍCIA EM DIREITO CRIMINAL Para as perícias criminais, segundo o Código de Processo Penal (CPP), o encargo pericial também é obrigatório e exige-se o trabalho de dois peritos oficiais concomitantemente. Em síntese, a perícia psiquiátrica em Direito Criminal (ou Penal) objetiva, principalmente, o seguinte: 1 - Verificação da capacidade de imputação nos incidentes de insanidade mental. Nesse caso está em jogo a imputabilidade normalmente atrelada à capacidade da pessoa discernir o que faz, ter noção do caráter ilícito e de se autodeterminar. UNIDADE 4 - PSICOLOGIA JURÍDICA 56 2 - Verificação da capacidade de imputação nos incidentes de farmacodependência. Trata-se da difícil avaliação da imputabilidade ou semi- imputabilidade que se aplicam aos dependentes químicos e alcoólatras. 3 - Exames de cessação de periculosidade nos sentenciados à medida de segurança. Quando as pessoas internadas em casas de custódia (manicômio judiciário) ou em tratamento ambulatorial compulsório são avaliadas para, mediante laudo, terem cessado a periculosidade que determinou a medida de segurança. 4 - Avaliação de transtornos mentais em casos de lesão corporal e crimes sexuais. 5 DOENÇA MENTAL, PERTURBAÇÃO DA SAÚDE MENTAL E DIREITO Segundo Hungria e Fragoso (1978, p. 59), a personalidade do sujeito representa probabilidades de conduta, havendo sempre espaço para a liberdade e autodeterminação, mediadas pela vontade. Quando se orienta no sentido da criminalidade, encontramos a chamada periculosidade como expressão da personalidade. Como o nosso código de 1940 presumia em lei a periculosidade dos doentes mentais, a personalidade deles não precisava ser avaliada no processo penal, o que objetivamente retira dos doentes mentais o “espaço de liberdade” de suas condutas: tem, a princípio, periculosidade máxima, quase como um cálculo preciso e invariavelmente certo. Ou seja, quando a periculosidade é presumida por lei, dispensa-se a prática do fato previsto como crime para aplicação da medida de segurança, sendo suficiente a ocorrência de um “quase-crime”. O crime impossível e a tentativa inadequada, embora não sejam fatos criminosos, poderiam ser considerados indícios de periculosidade. Um outro ponto a ser considerado aqui, e que se refere ao juízo de periculosidade, é a relação entre personalidade, tipo e motivação do crime: o indivíduo é considerado mais perigoso, quanto mais o crime (tipo e motivo) corresponda à sua personalidade. E o que ocorre no caso do doente mental? A partir da discussão sobre a monomania no século XIX, os psiquiatras foram chamados a atuar nos tribunais, justamente nos casos de crimes ilógicos, irracionais, inesperados, acidentais e sem motivo. Isso, para Foucault (1991), colocava os juízes diante de um grande problema, o qual deve ser compreendido dentro das modificações que vinha sofrendo o direito penal. Segundo Foucault, a questão que se impõe aos tribunais na atualidade refere-se ao sujeito delinqüente, e não mais ao crime como fato concreto. Essa questão começou a se impor aos juízes no século XIX com a intervenção da psiquiatria nos tribunais em torno dos crimes sem razão, “os crimes que não são precedidos, acompanhados ou seguidos de nenhum dos sintomas tradicionalmente reconhecidos e visíveis da loucura”. Além disso, eram crimes graves, ocorridos na esfera doméstica e, o mais importante, eram crimes sem motivo. A motivação para o ato delinqüente ganha, a partir de então, um lugar de destaque na atividade de julgar. Em fins do século XVIII e início do século PSICOLOGIA JURÍDICA 57 XIX, ocorreu um deslocamento no campo jurídico-penal, passando a ser o criminoso o objeto da punição. Dessa forma, o crime se articula à personalidade do sujeito delinqüente e desta articulação depende o sucesso do sistema punitivo; nela se baseia sua lógica. O castigo, em sua forma privativa de liberdade, que tem por fim último recuperar os delinqüentes, volta-se contra seus motivos, vontade, tendências e instintos. Eis que surge no direito penal brasileiro o novo objeto da punição, o “homem que se vai julgar”. Nos casos de loucura, esse homem é, de antemão, conhecido; não é necessário ao juiz vasculhar seu passado, desvendar suas relações, decifrar suas condutas para aplicar-lhe a sanção penal. A doença já o mostra em sua personalidade criminal, em sua máxima periculosidade e, para reconhecê-la, a psiquiatria é chamada através da perícia ou exame de sanidade mental. As duas figuras jurídicas fundamentais que costumam requerer assessoria de uma perícia psiquiátrica, a interdição civil por razões mentais e a avaliação de inimputabilidade, são baseadas no fato de que determinados transtornos mentais produzirem prejuízo da capacidade de discernimento, de controlar impulsos e da capacidade de decidir com plena liberdade. Os diagnósticos e estados mentais que aparecem mais freqüentemente diante do perito em Psiquiatria Jurídica são: Neuroses: notadamente a obsessiva-compulsiva e histérica. Psicoses: esquizofrenias, parafrenias, orgânicas e senis. Retardos mentais (oligofrênia). Transtornos de personalidade ou psicopatias. Dependentes químicos e suas complicações. Epilepsias e suas complicações. Transtornos dos impulsos (compulsões, piromania, jogo). Parafilias ou desvios sexuais. Em se constatando alguma doença ou alteração mental, a atitude pericial mais importante é saber se esta alteração já existia por ocasião do ato que determinou a perícia ou aconteceu depois, quer dizer, é importante saber se a alteração ou doença é superveniente ou não ao fato que determinou a perícia. Entretanto, apesar da possibilidade do perito psiquiátrico estabelecer um diagnóstico atual, esse fato nem sempre é suficiente para a justiça. Freqüentemente o perito deverá também estabelecer, da melhor forma possível, a condição psíquica da pessoa examinada por ocasião do ato delituoso, ou seja, deverá proceder a uma avaliação retrospectiva (do passado). Este tipo de perícia criminal normalmente visa avaliar a responsabilidade penal do examinado, ou seja, avaliar se essa pessoa apresentava algum transtorno mental no momento do crime e se tal transtorno comprometeu a A superveniência de doença mental (SDM) é quando, depois do ato delituoso, a pessoa pas- sa a apresentar sinais e sinto- mas de algum transtorno men- tal. Quando a doença mental é constatada antes do ato delituoso ou durante a tramitação do processo, este será suspenso. A lei brasileira privilegia a saúde da pessoa acusada e a suspensão do pro- cesso pleiteia sua recuperação. Quando a doença mental é constatada após condenação, haverá a interrupção do cum- primento da pena, a qual pode- rá se transformar em medida de segurança.UNIDADE 4 - PSICOLOGIA JURÍDICA 58 capacidade de entender o caráter e a natureza de seu ato, bem como se comprometeu também a capacidade de se determinar de acordo com esse entendimento. Na realidade o perito oferecerá à justiça subsídios para avaliar se o réu é imputável, semi-imputável ou inimputável. Outro objetivo de algumas perícias psiquiátricas é a avaliação prognóstica ou, mais didaticamente, a avaliação das perspectivas sociais do examinado. A partir das condições mentais atuais, à luz dos acontecimentos passados e, também, baseado no curso e evolução conhecidos pela psicopatologia, o perito psiquiátrico deverá estabelecer o prognóstico do examinado. A questão da periculosidade passa por esse tipo de avaliação. As perícias de avaliação prognóstica têm realçado valor em algumas situações especiais, como por exemplo; a. quando se questiona a cessação da periculosidade em internos reclusos por medida de segurança; b. por ocasião do livramento condicional, indultos de Natal (e outros) em prisioneiros que cumprem pena e; c. quando se questiona a capacidade para o pátrio (nacional) poder ou tutela de filhos em casos de maus tratos à crianças. Normalmente, essas perícias não são exclusivamente psiquiátricas, mas, sobretudo, avalizadas também por profissionais de outras áreas, como, por exemplo, assistentes sociais, psicólogos, etc. Desta forma, para uma pessoa portadora de Transtorno Mental que comete algo ilícito, depois de constatada a condição mórbida de sua sanidade psíquica por perícia psiquiátrica, não será possível atribuir-lhe a culpabilidade. Assim sendo, diante de uma situação indicativa de possível Transtorno Mental, compete exclusivamente à autoridade judicial a solicitação da perícia. Nessas circunstâncias, reconhece-se que essa pessoa não possui a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com este entendimento, conseqüentemente, não pode ser rotulado como criminoso. O Código Penal vigente é ainda o de 1940, ao qual foram feitas algumas alterações através da Lei de Execuções Penais 7.209/84. É importante ressaltar que está em tramitação uma nova reforma do código penal, em sua parte geral. No entanto, ainda permanece a mesma diretriz no que se refere à atuação frente ao doente mental delinqüente. Não vamos aqui reproduzir o que se manteve, ou seja, a inimputabilidade e irresponsabilidade do doente mental e a semi-responsabilidade dos que apresentam “perturbação da saúde mental” se encontram nos mesmos termos, agora no artigo 26. Algumas modificações, no entanto, foram feitas com relação às medidas de segurança: Art. 96. As medidas de segurança são: I — Internação em hospital de custódia e tratamento ou, à falta, em outro estabelecimento adequado. PSICOLOGIA JURÍDICA 59 II — Sujeição a tratamento ambulatorial. Art. 97. Se o agente for inimputável, o juiz determinará a sua internação. Se, todavia o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial. §1. A internação, ou o tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo fixado deverá ser de um a três anos. §2. A perícia médica realizar-se-á ao termo do prazo mínimo fixado e deverá ser repetida de ano em ano, ou a qualquer tempo, se o determinar o juiz da execução. §3. A desinternação, ou a liberação, será sempre condicional devendo ser restabelecida a situação anterior se o agente, antes do decurso de um ano, pratica fato indicativo de sua periculosidade. §4. Em qualquer fase do tratamento ambulatorial, poderá o juiz determinar a internação do agente, se essa providência for necessária para fins curativos. A medida de segurança se apresenta, agora, sob a forma de internamento em hospital de custódia e tratamento ou similar e o tratamento ambulatorial. Além disso, o prazo mínimo de duração deve ser determinado pelo juiz, no limite mais estreito de um a três anos, mantendo-se, no entanto, o seu caráter indeterminado e a liberdade condicional que a segue. Os limites continuam elásticos, a lógica mantém-se: o doente mental delinqüente é englobado por uma estratégia que se centra na periculosidade — futuro, risco, probabilidade — a qual cabe uma sanção indeterminada. IMPORTANTE: A PRODIGALIDADE Prodigalidade é um termo referido pela justiça, mas sem nenhuma representação nas classificações atuais da psiquiatria (DSM.IV e CID.10), embora um especialista em psiquiatria seja capaz identificar seu significado jurídico em alguns quadros psicopatológicos. Segundo Taborda (2004), no período pré-codificação, as Ordenações Filipinas definiam o pródigo como ‘aquele que, desordenadamente, gasta, destrói a sua fazenda, reduzindo-se à miséria por sua culpa’. Pródigo é o que pratica a prodigalidade ou, no dizer do Conselheiro Lafayette, ‘quem consome e estraga seu patrimônio com gastos improdutivos sem um fim útil’. O conceito de prodigalidade é jurídico e não-psiquiátrico, embora transtornos mentais possam ser responsáveis pelo comportamento pródigo, o qual será, então, um sintoma. Pela descrição do que pretende a justiça com o termo “prodigalidade”, a psicopatologia satisfaz esse conceito, principalmente, com a sintomatologia dos estados eufóricos, próprios dos Episódios de Mania do Transtorno Bipolar UNIDADE 4 - PSICOLOGIA JURÍDICA 60 do Humor, portanto, concordando com Taborda, a prodigalidade seria sim um sintoma psíquico e não uma doença em si. Ainda na esfera dos sintomas, algumas patologias relacionadas ao controle dos impulsos ou relacionadas ao comportamento compulsivo poderiam se enquadrar naquilo que a justiça pretende com a expressão “prodigalidade”. Nesses casos, estariam as compulsões para o jogo, para as dependências químicas, para as compras e similares. Com o intuito de preservar a integridade e o patrimônio familiar, geralmente dilapidado pelas pessoas que se encaixam na descrição de “pródigos”, nossa legislação atual continua a aplicar o Decreto de 1934, ou seja, manter o dispositivo necessário para interditar parcialmente as pessoas portadoras desse sintoma. A perícia psiquiátrica que se pretende nesses casos, é auxiliar o juiz sobre a necessidade de curatela dos pródigos ou sobre alguma espécie de restrição na administração de seus bens. A partir da análise desta unidade, podemos perceber que o doente mental, no Brasil, tem o seu estatuto jurídico marcado pela ambigüidade: a sua doença é o móvel de seu ato, excluindo, por isso, a culpabilidade e a responsabilidade. Na “estratégia da periculosidade”, a punição justifica-se como tratamento, e a prevenção fundamenta-se em um ato passado. Para concluir, mais um ponto merece ser comentado com relação ao dispositivo jurídico da loucura-perigo no Brasil. Vimos que aos doentes mentais são reservadas as medidas de segurança que se fundamentam na periculosidade, ou seja, em probabilidade, suposição, hábito. “A justiça penal tem de contentar-se, aqui, com indícios, com sinais, ou sintomas, ou cálculos aproximativos para averiguar o conjunto de probabilidades, que é, afinal de contas, a personalidade individual” (Hungria e Fragoso, 1978, p. 85). A periculosidade é um risco e, por isso, uma incerteza que se expressará, talvez, num futuro também incerto. Frágil mostra-se para nós o fundamento da medida de segurança. No entanto, e aqui encontramos mais um ponto característico da política penal da loucura, tantas incertezas não se mostram problemáticas, uma vez que a medida de segurança não é uma pena. Para que ela seja aplicada, é suficiente a “razoável suspeita” ou a “fundada suposição” e, em se tratando de perigosos, não se aplica o clássico critério de solução da justiça in dubio pro reo, mas sim o in dubio pro republica.É HORA DE SE AVALIAR! Não esqueça de realizar as atividades desta unidade de estudo, presentes no caderno de exercício! Elas irão ajudá- lo a fixar o conteúdo, além de proporcionar sua autonomia no processo de ensino-aprendizagem. Caso prefira, redija as respostas no caderno e depois as envie através do nosso ambiente virtual de aprendizagem (AVA). Interaja conosco! Prosseguiremos nossos estudos na unidade V quando trataremos da Psicologia jurídica aplicada no judiciário.
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