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1 C u l t u r a R e l i g i o s a Unidade 7 Categorias antropoteológicas contemporâneas “De modo suave, você pode sacudir o mundo” (M. Gandhi) “Há esperança para teu futuro.” (Profeta Jeremias) Aprofundando o contexto Prof. Camilo de Lelis Ribeiro, teólogo. Dep. Ciências da Religião – PUC Minas O homem criou a cultura, criou a ciência... O conhecimento científico se ampliou aceleradamente no século findo e foi acompanhado por um desenvolvimento tecnológico que afetou quase todas as áreas conhecidas. O homem construiu grandes universidades e sistematizou inúmeras ciências na busca da verdade e dos mistérios mais profundos da natureza. “Olhou para os confins do universo e obteve a primeira evidência empírica sobre a existência de um objeto extragaláctico, chegando depois, a uma cifra de 100 bilhões de galáxias povoando um universo de bilhões de anos. Mergulhou no micro cosmos e pesquisou as últimas estruturas da matéria e da vida terrestre.”i Todos estes avanços e definições de teoria científica são herdeiras de uma tradição milenar do pensamento Ocidental e Oriental que permeiam nossas universidades e se colocam como base para todas as ciências conhecidas. O século XX é particularmente importante para o contexto das universidades, não somente pela sua proximidade, mas sobretudo por que nesse século ocorreram mudanças profundas no modo de pensar. As duas tendências iniciadas no século XVII, a 2 crescente especialização do conhecimento humano e o estabelecimento de interconexões entre áreas científicas, cresceram e se tornou hoje as bases de todo avanço científico. Essas tendências, juntamente com outras mudanças, possibilitaram o surgimento de uma característica nova no modo de pensar do século XX: a abstração nas ciências e nas artes. Com a abstração no modo de pensar todas as áreas começaram a ser afetadas. Foi assim que o célebre quadro de Picasso Lês Mademoiselles d’Avignon, pintado em 1907, causou grande escândalo e forte rejeição na época. É o início da produção de obras que não representavam objetos reais. A idéia foi logo seguida por outros artistas e aos poucos por todos os setores das ciências. A abstração foi, portanto a forma dominante do pensamento nas ciências do século XX. Embora seja inquestionável o grande desenvolvimento das artes, da filosofia, das ciências e das técnicas no século passado e que muitos desses domínios, a seu modo, tentaram minimizar parte do sofrimento de milhões de habitantes do planeta terra, a abstração afetou fortemente a convivência humana. Somam-se a isso a forte pressão do sistema capitalista, que faz com que as ciências se coloquem, muitas vezes, a serviço de tecnologias mecanicistas em uma sociedade cada vez mais despersonalizada e globalizada. Assim, vivemos hoje os paradoxos de uma sociedade pós Moderna. Nunca tivemos tantos meios de comunicação e ao mesmo tempo nunca nos comunicamos tão pouco. Nunca vivemos tão juntos, aglomerados em multidões e grandes metrópoles, mas ao mesmo tempo nunca tivemos tanta solidão. Estes e tantos outros paradoxos marcam a nossa sociedade contemporânea. A irrupção da modernidade, com suas abstrações, provocaram uma cisão que parecia comprometer toda forma de diálogo entre a instituição já milenar da Igreja e as novas formas que revestiam o Ocidente que, no entanto, ela mesma tinha ajudado a plasmar. O desenvolvimento das ciências, promovido e cultivado nas escolas e universidades criadas pela Igreja, se tornou independente. A busca da plena autonomia do entendimento se opôs a todo e qualquer conhecimento que não fosse experimental, elaborando uma visão do mundo que não se baseava mais numa ordem da criação feita por Deus. Também o progresso das técnicas migrou dos mosteiros para as oficinas e os laboratórios, parecendo à Igreja tender a fins que escapavam da sua ética e orientação efetiva. A própria Razão, herança dos gregos, recolhida e trabalhada pela Igreja na sua concepção de Deus e do mundo, dissipou-se livremente numa multiplicidade de conteúdos. 3 ...a cultura e a ciência criaram a Universidade... A atitude inicial de estranhamento e recusa por parte da Igreja foi particularmente aguda nas suas relações com a Universidade, uma vez que esta representa o reflexo mais perfeito das grandes mutações que a modernidade provocou. A mudança total de perspectiva, passando da defensiva para a acolhida e o diálogo, veio de fato com o Concílio Vaticano II (1962-65). Coube a ele cumprir a tarefa de reconhecer em profundidade os valores evangélicos que atuam no mundo, atingido já pela graça de Cristo. O otimismo da visão conciliar, segundo a qual o mundo caminha para a luz, mesmo que nele ainda persista a presença do mal, brota do mais profundo da fé da Igreja – o mistério da cruz e ressurreição de Cristo, que conquistou de uma vez por todas a vitória sobre a morte. No entanto, o mundo moderno ao qual a Igreja se abriu ao diálogo já estava em mudança. A modernidade entrou em crise pois, apesar de seus imensos progressos científicos, suas grandes promessas falharam. Vive-se a passagem para um mundo complexo e globalizado, cujas características são de ser uma sociedade de comunicação imediata e planetária; de riscos e relações instáveis, com laços frágeis em todos os níveis; de gratificação imediata; fragmentada, de “pequenos relatos”, vários “mundos”, onde a sociedade civil e o sentido de compromisso, cidadania e solidariedade estão enfraquecidos. A racionalidade técnico-científica por um lado, e o retorno a uma busca de espiritualidade numa dimensão mais “cósmica”, de harmonia, estética, por outro, com base especialmente na emoção e no prazer, são marcantes. Vive-se o retorno do sagrado, numa religiosidade difusa, que mistura vários elementos de diversas tradições sem a adesão a uma religião. A fé também está no mercado. Dissipou-se em grande parte a vivência de comunidade e seguimento, mesmo porque os vínculos entre as pessoas no geral não são mais locais, mas com base em outros tipos de “identidades”. “Vivemos na idade do fragmento, do parcial e provisório, do débil e inconsistente, da insegurança e do relativo”. ii ...e a Universidade recria o Homem. É neste contexto, já de pós Modernidadeiii, que se encontram a religião e as Universidades Católicas. Há uma diversidade de fenômenos, de mudanças que têm gerado transformações muito rápidas na cultura. 4 A religião, como lugar de atribuição de sentido aos dados da realidade, é também um modo de compreensão do mundo e, portanto, de conhecimento. O diálogo entre fé e ciência, por sua vez, se coloca no caminho da compreensão do lugar e do papel das universidades católicas na sociedade atual: uma sociedade de objetos onde o grande desafio é ser pessoa. Essa contextualização vai marcar bem a importância e a urgência de uma pastoral no meio universitário que está fortemente marcado por um “fazer ciência” e por esse movimento de abstração. Por isso a pastoral hoje não pode ser um mero serviço de manutenção dos fiéis, mas deve ser concebida como missão evangelizadora. A universidade é uma terra de missão como era, na chegada dos missionários, a imensidão da Terra da Santa Cruz. Universidade: essa é a nova terra de missão. Este contexto ligado às ciências e a universidade revela a importância das realidades antropológicas, teológicas e existenciais. Categorias antropoteológicas contemporâneas Dignidade da pessoa Hoje o resgatedos valores da pessoa humana se torna um imperativo. Em uma cultura que se apóia, muitas vezes, na sede pelo poder e na avidez pelo lucro a pessoa é coisificada e perde sua categoria de sujeito. Se a dignidade da pessoa não se torna a prioridade de uma sociedade as conseqüências poderão atingir todos os setores da vida humana. Por isso a dignidade da pessoa se torna uma necessidade fundamental na sociedade atual. Uma verdadeira religião deve primar pelos valores da pessoa e ter como pedagogia o respeito, a liberdade e o bem comum de todas as pessoas. Assim, a dignidade da pessoa se torna a primeira e uma das mais importantes das categorias antropoteológicas do nosso tempo. Para refletir: As religiões hoje respeitam a liberdade das pessoas ou procuram impor seu credo? Uma religião ou igreja espiritualista demais e que fala para “anjos” valoriza a pessoa? Quais são hoje as igrejas que realmente valorizam a pessoa na sua totalidade? Amor Amor é uma palavra muito usada no dia a dia e também nas religiões e igrejas. Mas o sentido desta palavra é pouco compreendida e muitas vezes usada de forma errada. As várias expressões gregas da palavra amor foram reduzidas à pala latina Izabelle Realce Izabelle Realce Izabelle Realce 5 “amore”. Além disso, o seu sentido semântico foi se perdendo com o passar dos séculos. Hoje se usa a palavra amor para tudo. Ama-se um projeto, uma casa, um carro, um cachorro, uma pizza e, é claro, mata-se “por amor”. Mas o que é amor realmente? As pessoas não sabem definir o que é amor e muito menos falar sobre ele. Amor “é tudo” dizem alguns. Outros reduzem amor a sentimento ou ao prazer dizendo que “Amor se dá na medida do que sinto”, “Amo você enquanto há prazer nisso”... Também as religiões usam e abusam da palavra amor. “Deus é amor” segundo o evangelista João na sua carta. Mas que tipo de amor é Deus? Certamente que não é um amor baseado na paixão, no sentimento, na reciprocidade, na libido, na sintonia ou no prazer. O amor de Deus é incondicional e gratuito (“Agápe” em grego). É amor que se dedica, se doa, se esforça, perdoa, orienta, escuta, respeita e assume uma cumplicidade até ás últimas conseqüências. Amor verdadeiro. Para refletir: O que entendemos sobre o amor? Estudamos sobre tantas coisas e por que não estudamos sobre o amor? Se Deus é amor, então, sou religioso ou cristão na medida que amo. O amor é a medida das igrejas hoje? O amor não deveria ser o “carro chefe” das religiões? Sexualidade Se a palavra amor é tão reduzida e mal usada, o que dizer da palavra sexualidade? Sexo é continuamente confundido com genitalidade ou isolado da sua complexidade e riqueza. A sexualidade é uma das mais ricas expressões da criatura humana. Falar de sexo é falar do feminino e do masculino. È falar do jeito feminino e masculino de ser que perpassa toda a realidade da pessoa. Mulher e homem têm como elemento constitutivo do seu ser o sexo. A mulher não tem sexo. A mulher é sexo. É sexo feminino no seu jeito de ser, no seu corpo, na sua psique, no jeito de trabalhar, de sentir e de ver o mundo. É um mundo complexo e de uma riqueza incalculável. Deve ser compreendida e amada como é e não como a sociedade machista acha que deve ser. O mesmo pode ser dito do homem. Sua natureza e seu jeito envolvem todas as dimensões do seu ser. Podemos dizer que existem inúmeras expressões do masculino e do seu jeito de ser. Nenhum homem é igual ao outro. Assim, feminino e masculino são riquíssimas expressões da sexualidade. Devem ser entendidas e respeitadas em sua totalidade. Para refletir: A visão que as pessoas têm da sexualidade é verdadeira? A visão que as religiões e igrejas têm da sexualidade ajudam na evangelização? A sexualidade se bem entendida e vivenciada pode ajudar na construção da sociedade? Como? Família A família é uma das estruturas que mais se transformaram na história. Suas normas de organização sofreram as mais variadas reformas. Nos dias atuais existem muitas formas de conceber e vivenciar uma família. Apesar de todas as mudanças e transformações a família continua sendo a célula da sociedade e um espaço especial de formação da pessoa. Não existe nenhuma outra Izabelle Realce Izabelle Realce Izabelle Realce Izabelle Realce 6 estrutura com papel tão determinante como o da família. Embora tenha ficado à margem da agenda tão atarefada do homem do século XXI, a família continua sendo suporte para as relações humanas e sociais. “ A melhor família é a que está perto...” dizia um jovem em uma entrevista feita por meus alunos de Cultura Religiosa II do 8º período do curso de Engenharia de Energia da PUC Minas. Essa é a melhor família. É assim que muitas vezes um grupo que não é a família sanguínea da pessoa passar a exercer esse papel devido à proximidade. A família é uma categoria muito importante nos tempos atuais e não deve ser negligenciada ou colocada em segundo plano. Na visão cristã o próprio Jesus Cristo não abriu mão de ter uma família. E mais ainda: Deus é família na sua essência. Deus é Trindade, família de três pessoas: Pai, Filho e Espírito. Para refletir: As relações familiares da atualidade são profundas? Quais são os principais elementos causadores da fragmentação familiar nos dias de hoje? Como anda a qualidade das minhas relações familiares? Sou família? Justiça social Certa vez Jesus Cristo contou uma parábola falando das pessoas convidadas ao paraíso eterno. Terminando a parábola ele diz:” Tive sede e me deste de beber, tive fome e me deste de comer... tudo que fizerdes ao menor dos meus irmãos é a mim que o fazes. ...”. Justiça é uma categoria especial na Bíblia. No AT um dos nomes de Deus é “Deus da justiça!” No NT Jesus Cristo, com a sua vida, leva a justiça de Deus até as últimas conseqüências. A justiça continua sendo uma virtude para os tempos atuais. È um dos nossos paradigmas de sobrevivência e uma urgência histórica. O problema da fome no mundo, só para citar um exemplo, atinge milhões de pessoas e é um verdadeiro escândalo em nossa sociedade que se diz cristã. Poderíamos dizer que é um estigma do nosso tempo. Com toda a técnica, o avanço científico e a grande produção mundial de alimentos é inconcebível nossa situação atual. É preciso desenvolver uma cultura da justiça e da solidariedade. Nos dias 27 a 29 de outubro deste mês de outubro faremos a campanha da solidariedade na PUC Minas. Promovido pela pastoral na universidade a campanha quer, além de ajudar duas instituições, despertar a cultura da solidariedade visando uma sociedade mais justa e mais humana. Para aprofundar sugiro o programa RELIGARE desta semana, da TV Horizonte, onde fui entrevistado sobre essa temática (TV Horizonte. Programa RELIGARE: Canal aberto 19, NET canal 22, Oi canal 24 – segunda (24/10) às 22:20. Reprise nos seguintes dias: quarta (26/10) às 10:30; sábado (29/10) às 23:00 e Domingo (30/10) às 05:15; ou no site da TV Horizonte). Para refletir: Qual o meu nível de compreensão e cooperação com a justiça social? Qual a minha responsabilidade como universitário, profissional e formador de opinião na atual situação do Brasil? Sentido da vida Essa categoria antropoteológica vai dar sentido a todas as outras e apontar para um caminho. Estamos aqui também na esfera do sagrado. Izabelle Realce Izabelle Realce Izabelle Realce Izabelle Realce 7 O sentido da vida é uma direção da vida humana. Quando falta o sentido de viver todo o resto perde seu sabor (a dignidade, a corporeidade, a sexualidade, a família, a justiça e a vida de fé.). Uma vida sem sentido não pode ser vivida. No caso dos animais basta ter o essencial e a vida flui em grande harmonia. Mas para os seres humanos não bastar o essencial para viver.È preciso um sentido mais profundo para usufruir de tudo. Para onde vai minha vida? Qual o sentido último de trabalhar, acumular bens, ter uma família, um relacionamento, de ajudar o outro ou de melhorar o mundo? Em uma última palavra, qual o sentido da minha vida? A depressão e outras patologias decorrentes da falta de sentido são inúmeras. A sociedade capitalista e materialista descartou a dimensão espiritual e ocupou todas as dimensões da vida humana. Com isso restou um grande vazio existencial que não pode ser preenchido pelo fazer ou ter. Viramos uma sociedade sem alma? “Vendemos nossa alma” pela promessa de um paraíso econômico? Procura-se sentido desesperadamente! Notas de Citações: i Cf. SALMERON, Roberto A. in: Um século de conhecimento: arte, filosofia, ciência e tecnologia no século XX. Samuel Simon, organizador. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2011. ii LÓPEZ AZPITARTE, E. Hacia una nueva visión de la ética cristiana. Santander: Sal Terrae, 2003, p. 30. iii Na perspectivas da filosofia, das ciências humanas e sociais há muitas formas de classificar a cultura contemporânea. Tornou-se lugar comum falar em pós-modernidade ou utilizam hoje uma variedade de outros nomes como: “modernidade-tardia” (Hall e Giddens), “radicalizada” (Giddens), “supermodernidade”, “sobremodernidade” (Marc Auge), ou ainda “modernidade na maioridade” e “modernidade líquida” (Bauman), ou até “hipermodernidade” (Lipovetsky). Como se pode ver, esta é uma categoria desafiante para a compreensão da cultura e tem transformado os cenários e as perspectivas em todas as dimensões e provocado a reflexão teológica, sendo objeto de inúmeras investigações e pesquisas. Izabelle Realce Izabelle Realce
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