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1 O perfil de evolução da dignidade da pessoa humana O Tribunal Constitucional de Portugal, na década de 90 do século passado, já havia se pronunciado através do Acórdão nº 90-105-2, da seguinte forma: “A idéia de dignidade da pessoa humana, no seu conteúdo concreto – nas exigências ou corolários em que se desmultiplica – não é algo puramente apriorístico, mas que necessariamente tem de se concretizar histórico- culturalmente.” Por outro lado, já no pensamento estoico, a dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção que se encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo – o homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino – bem como à ideia de que todos os seres humanos, no que diz respeito à sua natureza, são iguais em dignidade. Assim, especialmente em relação a Roma – notadamente a partir das formulações de Cícero, que desenvolveu uma compreensão de dignidade desvinculada do cargo ou posição social –, é possível reconhecer a coexistência de um sentido moral e sociopolítico de dignidade, essa considerada aqui no sentido da posição social e po- lítica ocupada pelo indivíduo. Com efeito, a partir das formulações do próprio Cícero, segue que esse conferiu à dignidade da pessoa humana um sentido mais amplo fundado na natureza humana e na posição superior ocupada pelo indivíduo no universo. É a natureza que prescreve ao homem a obrigação de levar em conta os interesses de seus semelhantes, pelo simples fato de serem também humanos. Razão pela qual, todos estão sujeitos às mesmas leis da natureza, que proíbem que uns prejudiquem aos outros. 2 Mesmo durante o período medieval, a concepção de inspiração cristã e estoica seguiu sendo sustentada, destacando-se Tomás de Aquino, o qual chegou a referir expressamente o termo dignitas humana, secundado. E, em plena Renascença e no limiar da Idade Moderna, pelo humanista italiano Gionanni Pico della Mirandola que, partindo da racionalidade como qualidade peculiar inerente ao ser humano, advogou ser essa a qualidade que lhe possibilita construir, de forma livre e independente, sua própria existência e seu próprio destino. No âmbito do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana, assim como a ideia do direito natural em si, passou por um processo de racionalização e secularização, mantendo-se, todavia, a noção fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade. Antes dessa fase, no entanto, a doutrina do direito natural, agora racionalista, revelou-se essencial para a ascensão do conceito de dignidade da pessoa humana. Em 1539, com a publicação das conferências De Indis e De iure belli ou De indis, pars posterior, de autoria do dominicano espanhol Francisco de Vitoria, sob forte influência da escolástica tomista1, houve uma enorme reflexão moral sobre os atos praticados pelos colonizadores europeus aos habitantes do novo continente. Vitoria afirmava que se uma lei positiva estivesse em conflito com a lei natural, seria lícito ao cidadão não cumpri-la. Essa concepção fez todos os homens iguais, já que são filhos de Deus e, portanto, possuidores dos mesmos direitos e dignidade. Tanto o poder papal como o poder dos reis não seriam absolutos ao ponto de justificar o domínio de qualquer Estado sobre o continente recém- descoberto e isso se estenderia sobre os denominados bárbaros e os infiéis. Sob essa perspectiva, ainda que se considerasse o Direito das Gentes como fruto de acordo entre as nações e que houvesse certa hegemonia das comunidades sobre os indivíduos, não se poderia supor que algumas nações tivessem vantagens sobre as 1 Já que há uma hierarquia, segundo essa visão, de que além da lei eterna presente no intelecto divino, está a lei natural, e a lei divina positiva, revelada pelas Escrituras. Em último lugar, encontra-se a lei humana positiva, fruto da elaboração dos homens para a convivência em sociedade. 3 outras. O dominicano espanhol reconhecia que os índios, na realidade, não seriam dementes, mas, a seus modos, tinham uso da razão, pois possuíam cidades organizadas, magistrados, leis, religião e vida matrimonial, tudo muito diferente da vida europeia, mas que fundadas sobre as mesmas raízes que apoiavam a vida em sociedade. Seja qual fosse o modelo de vida empregado pelos índios, eram reconhecidos como distintos grupos humanos, o que não legitimavam aos espanhóis empregarem sobre eles a dominação. Por isso, Vitoria lança várias indagações como:2 [...] para proceder ordenadamente perguntarei primeiro “se os índios antes da chegada dos espanhóis eram os verdadeiros donos, tanto privada como publicamente”, ou seja, se eram verdadeiros donos das coisas e posses particulares e se havia entre eles verdadeiros príncipes e senhores dos demais. Poderia parecer que não, porque os escravos não têm domínio sobre as coisas, pois o “escravo não pode ter nada próprio” (...) A argumentação oposta é que eles estavam em pacífica posse de seus bens pública e privadamente; logo se nada consta em contrário, temos que considerá-los verdadeiros donos. E enquanto durar esta discussão, não é possível despojá-los de suas posses. Francisco de Vitoria utilizou a conclusão de Santo Tomás de Aquino para afirmar que a infidelidade dos índios ao cristianismo não seria suficiente para impedir de serem considerados verdadeiros donos da terra.3 2 VITORIA, Francisco de. Os Índios e o Direito da Guerra [de Indies et de Jure Belli Relectiones]. Tradução de Ciro Mioranza. Ijuí: Unijuí, 2006. pp. 44 e 45. (Coleção clássicos do direito internacional). 3 Prova disso é que as Sagradas Escrituras denominam de reis muitos infiéis, como Senaquerib, o faraó e outros tantos. De igual forma, na Escritura Tobias manda a sua mulher devolver aos pagãos um cabrito, que pensa ser roubado, o que não teria o menor sentido se os pagãos não tivessem domínio. 4 Ao reconhecer que os índios seriam tão donos da terra como os cristãos e que esses não poderiam, a esse título, despojá-los de suas posses, Vitoria reconhecia sua dignidade e direitos a eles inerentes. Até o monarca deveria respeitar a dignidade da pessoa humana, considerada essa como a liberdade do ser humano de optar de acordo com sua razão e agir conforme o seu entendimento e sua opção. Immanuel Kant, cuja concepção de dignidade parte da autonomia ética do ser humano, considerando a autonomia como fundamento da dignidade do homem, sustenta que o ser humano não pode ser tratado – nem por ele próprio – como objeto. Para ele, as coisas têm um preço e as pessoas têm dignidade. Nas suas próprias palavras: “No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade”.4 Construindo sua concepção a partir da natureza racional do ser humano, Kant assinala que a autonomia da vontade, entendida como a faculdade do ser humano de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade da natureza humana. Com base nessa premissa, Kant sustenta que todo o ser racional existecomo um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim. 4 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2004. p. 77. 5 Assim, tanto o pensamento de Kant quanto todas as concepções que sustentam ser a dignidade atributo exclusivo da pessoa humana, encontram-se, ao menos em tese, sujeitos à crítica de um excessivo antropocentrismo, notadamente naquilo em que sustentam que a pessoa humana, em função de sua racionalidade, ocupa um lugar privilegiado em relação aos demais seres vivos. Além disso, sempre haverá como sustentar a dignidade da própria vida de um modo geral, ainda mais numa época em que o reconhecimento da proteção do meio ambiente, como valor fundamental, indicia que não está mais em causa apenas a vida humana, mas a preservação de todos os recursos naturais, incluindo todas as formas de vida existentes no planeta, ainda que se possa argumentar que tal proteção da vida em geral constitua, em última análise, exigência da vida humana e vida humana com dignidade. Hegel acabou por sustentar uma noção de dignidade centrada na ideia de eticidade (instância que sintetiza o concreto e o universal, assim como o individual e o comunitário), de tal sorte que o ser humano não nasce digno, mas torna-se digno a partir do momento em que assume sua condição de cidadão.
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