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filosofia, mas nunca de modo que o pensamento atinja a imanência de um dado imediato, nem mesmo com Husserl. Para Deleuze, apenas dois pensadores produziram o quadro e enunciaram a lógica desse dado puro: Espinosa, na Ética, e Bergson, no primeiro capítulo de Matéria e memória (talvez devêssemos acrescentar: Deleuze e Guattari, no magistral começo do Anti-Édipo). 44 Mas não dizíamos que o plano não é enunciável? O que significa então que Espinosa tenha sido capaz de "mostrar dessa vez a possibilidade do impossível" (QPh, 59 - esse tema indica pelo menos que é ao instaurar o plano que se consuma a conversão imanentista, crer na terra como dizia Nietzsche; crer neste mundo, como diz por sua vez Deleuze)? Que, tendo recortado o caos sem impor o menor recorte a priori às suas determinações, tendo-as ligado sem enquadrá-las em formas pré-concebidas, extraídas da experiência, ele produziu um plano de experiência que implica sua própria redistribuição potencial ao infinito. Espinosa, com efeito, considera apenas o movimento. Dado um campo de partículas materiais indeterminadas, a percepção só se recorta em função de sua distribuição variável em compostos distintos, definidos por certas relações de repouso e movimento, de velocidade e lentidão, mas sempre expostos a encontros, a migrações de subcompostos, a composições de composições ou ainda a decomposições ("longitudes"); por sua vez, a afectividade é diferenciada, enriquecida, remanejada segundo os devires correspondentes a esses encontros mais ou menos felizes (aumentações-diminuições de uma potência de agir anônima e distribuída sobre o plano, ou "latitudes"). Além do movimento que o constitui sozinho, podemos observar o caráter acentrado desse plano: esses dois traços são comuns à descrição do plano de imanência extraído de Espinosa (SPP, cap. 6; MP, 310-4), e à que Deleuze irá extrair posteriormente de Bergson (IM, cap. 4). Não se pode de forma alguma compreender de outra maneira o fato de o conceito de hecceidade, que propõe um modo de individuação imanente diferente das formas individuais orgânicas que recortam a priori o campo empírico, encadear-se à exposição espinosista (MP, 318s). O animalcaça-às-cinco-horas, um-cavalo-cai-na- rua; essas composições em que os seres não se destacam mais do cenário nem da atmosfera, mas são compostos imediatamente, originariamente com eles, quase já correspondem ao conceito de imagem-movimento. Como diz Deleuze, leitor de Proust, não amamos alguém separadamente das paisagens, das horas, das circunstâncias de toda natureza por ele englobadas. Pois é assim que somos afetados, ou que o afecto nos arranca dos bordões das afecções usuais e o percepto, das esperas e das divisões espontâneas da percepção ordinária: ao juntar-se ao plano de imanência onde nem sempre tudo se compõe com tudo - uma vez que ele também contém a morte como decomposição ou absorção -, mas se comunica com tudo sobre um mesmo plano dito também de univocidade, independentemente das atribuições de forma, de espécie, ou de órgão (assim, um cavalo de tração, do ponto de vista do dado puro ou da experiência real, está mais próximo do boi do que do cavalo de corrida: SPP, 167). Sobre esse plano, o encontro e a experimentação são sempre possíveis, não se chocando com nenhuma barreira; se é um encontro feliz, é outra questão. Assim, o personagem conceitual que obseda o espinosismo é a criança (MP, 313; QPh, 70). Mas prossigamos a analogia, para efetivamente perceber o quanto as duas abordagens convergem para o mesmo conceito, embora dispondo distintamente suas ênfases. E reportemo-nos ao primeiro capítulo de Matéria e memória: o puro dado (indistinção da imagem, do movimento e da matéria) precede a consciência que tenho de mim mesmo e de ser esse Eu que abre o campo da percepção, que se sabe situado em um ponto do espaço, mas que, não estando ele próprio em seu campo, o desloca com ele. O erro seria confundir campo de percepção e plano de imanência: se é verdade que há algo antes de qualquer apresentação de um sujeito visando um 45 objeto, o plano onde se exibe o dado não se abre de nenhum ponto em particular, e não há sentido em pretender que ele varie segundo o ângulo de visão. Ele está aí imediatamente, acentrado, fixo, por assim dizer, embora arrimado a nada, como as imagens de cinema desfilando sobre uma tela imperturbável, embora proponham ao espectador perspectivas cambiantes. Se há um sujeito, ele se constitui no dado, seguindo o problema colocado por Deleuze em seu primeiro livro, Empirismo e subjetividade, em 1953; e ele ai se constitui em cada um de seus pontos. Por conseguinte, dizer do sujeito que percebe e experimenta que ele é em "adjacência" não é extirpá-lo do dado reintroduzindo in extremis o Ego transcendental; é, ao contrário, fazelo circular por todos os pontos do plano assim como por casos de si próprio, para finalizá-lo com essa série de devires (o Cogito deleuziano serial algo como um: "sinto que me torno outro, logo eu era, logo era eu!" - cf. LS, 360, e AŒ, 22-9). Se retornarmos à descrição espinosista, compreenderemos agora que possa se tratar de um "plano fixo" (D,113, e MP, 311) e de "estados intensivos de uma força anônima" (SPP, 171). Com efeito, não é preciso nenhuma fusão ou empatia especial para que a cada um dos pontos desse plano de experiência pura, que nenhum sujeito constituído abre, corresponda um afecto: por exemplo, a distância que separa o cavalo de corrida do cavalo de tração, do ponto de vista imanente do que eles podem, dos dinamismos ou dos ritmos de que são capazes; a proximidade, ao contrário, entre o cavalo de tração e o boi - todos objetos imediatos de um percepto e de um afecto sobre o plano de imanência. Enfim, se perguntarmos em que sentido o plano de Natureza ou de univocidade pode valer igualmente para o plano de imanência de todo pensamento, em que sentido, por conseguinte, Espinosa mostra " a possibilidade do impossível", compreenderemos que, para além da "imagem dogmática do pensamento" à qual sua filosofia parece aderir exteriormente (afinidade natural do pensamento e do ver- dadeiro, modelo de uma verdade preexistente ao ato de pensar - cf. DR, cap. III), seu plano elabora a imagem paradoxal de um pensamento sem imagem, de um pensamento que não sabe previamente o que significa pensar e que não pode senão incessantemente retornar ao ato que o engendra (corte do caos). Se podemos dizer que Espinosa mostrou o plano, é na medida em que o pensamento se reflete nesse "espaço liso" ocupado unicamente por movimentos desiguais, componíveis ou não, recomponíveis sempre de outra forma, e os vive como dramas de si próprio, tentativas ou alucinações do que pode significar pensar. Concluamos com algumas referências. O conceito de plano de imanência substitui o "campo transcendental" oriundo das filosofias de Kant e de Husserl (sobre esses dois autores, cf. LS, 14a e 17a séries, e QPh, 48-9). "Plano" e não mais "campo": porque ele não é para um sujeito suposto fora-de-campo ou no limite de um campo que se abra a partir de si próprio segundo o modelo de um campo de percepção (cf. o Ego transcendental da fenomenologia - ao contrário, o sujeito constitui-se no dado, ou mais exatamente sobre o plano); e também porque tudo o que vem ocupá-lo não cresce ou não se conecta a não ser lateralmente, sobre as bordas, tudo não passando aí de deslizadas, deslocamentos, clinamen (LS, 15-6, 311-2), e mesmo "clínica", não apenas no sentido acima definido de "deslizamento de uma organização para outra", mas no sentido de "formação de uma desorganização, progressiva e criadora" (o que remete à definição deleuziana da perversão - ver LINHA DE FUGA). Os movimentos sobre o plano opõem-se à 46 verticalidade de uma fundação ou à retilinearidade de um progresso (é na Lógica do sentido que o campo