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1 Aula 6 - A descontinuidade do conhecimento científico e os obstáculos epistemológicos A evidência de que o desenvolvimento da ciência se deu através de uma ruptura com relação à tradição revelou também o caráter descontínuo das teorias científicas, refutando-se com isso o princípio de continuidade que predominava na explicação do desenvolvimento das ciências, especialmente, na visão positivista1, que defendia a passagem de um estado do espírito humano, como o senso comum, para outro mais evoluído, como a ciência, através de uma evolução linear e contínua, ocorrendo nessa passagem uma eliminação dos erros do passado. Entretanto, Bachelard irá defender que o conhecimento científico se constrói numa ruptura com o senso comum, e não na sua evolução. A ciência é descontínua em relação ao conhecimento comum, pois, o ato de conhecer envolve a destruição e a superação de um conhecimento anterior, mal estabelecido, que funciona como um obstáculo ao espírito na aquisição do saber científico. No processo de formação do conhecimento, tais obstáculos se revelarão, produzindo lentidões, conflitos, estagnações, inércias e até regressões. O caminho que nos leva à ciência é um caminho de rejuvenescimento, pois, quando chegamos à cultura científica, chegamos envelhecidos por nossos preconceitos e opiniões. A ciência se opõe à opinião. Portanto, alcançar o conhecimento científico exige a superação da opinião e de todos os tipos de preconceitos que impedem o livre pensar, configurando-se no gesto de ruptura necessário com a tradição e com todos os fatores que se apresentam como obstáculos para esse conhecimento. Em A Formação do Espírito Científico, cujo subtítulo é Contribuições a uma Psicanálise do Conhecimento Objetivo, Bachelard ilustrará as múltiplas formas2 1 De acordo com o princípio continuísta, o espírito humano mantém sua identidade em todas as suas múltiplas manifestações, passando de um estágio menos avançado para um mais avançado apenas por um progresso natural e linear. Assim, romperíamos com o estado do senso comum para a ciência num processo evolutivo natural, mas não haveria cortes em relação aos mesmos. Esse progresso seria garantido pela liberação dos erros do passado. Avançamos no campo da ciência livrando-nos dos equívocos anteriores e garantindo mais acertos, daí, uma teoria posterior poder ser ‘deduzida’ de uma anterior, como uma ‘purificação’ da mesma. Emile Meyerson, por exemplo, de formação caracteristicamente positivista, defende que a descontinuidade na ciência é apenas uma aparência ilusória que deveria ser atribuída à ignorância filosófica dos cientistas. Ou seja, os cientistas ignorando os princípios filosóficos mais gerais que unificariam todas as teorias de uma mesma ciência, tomam como descontínuas as teorias que, na verdade, estariam em continuidade umas com as outras. Por exemplo, através dessa visão, Meyerson consegue, de uma maneira um tanto ‘habilidosa’, ‘deduzir’ a física de Eistein da física de Newton. 2 Podemos ilustrar aqui alguns deles: preconceitos já adquiridos em relação a conceitos científicos ou não mas que influenciarão no pensamento do cientista, roubando-lhe liberdade; necessidades que passam a ser 2 que podem adquirir os obstáculos epistemológicos e alertará para o principal perigo que tais obstáculos oferecem: ‘preencher’ a ruptura entre o conhecimento comum e o conhecimento científico buscando restabelecer a continuidade rompida pelo progresso da ciência. Os obstáculos podem se manifestar no momento de constituição do pensamento científico – como ‘contra-pensamentos’ – ou podem se manifestar posteriormente no seu desenvolvimento como uma ‘paragem do pensamento’, mas sempre se referem a uma resistência do pensamento ao próprio pensamento. Sob a influência da Psicanálise, o que fica evidente pelo subtítulo, Bachelard nela se inspira para tomar como tarefa a necessidade de se operar um processo de conscientização desses obstáculos que interferem no pensamento do cientista. Pela Formação do Novo Espírito Científico – uma nova pedagogia Essa resistência que caracteriza os obstáculos epistemológicos pode ser reconhecida também como efeito da própria formação do espírito científico, efeito da educação recebida pelos jovens. O professor, em geral, não se dá conta que o adolescente entra na aula de física já com conhecimentos empíricos constituídos. Assim, antes da aquisição de uma cultura experimental, toda formação cultural deveria ser iniciada com uma catarse intelectual e afetiva, que viabilizasse a detecção dos obstáculos já sedimentados. A experiência primeira, imediata, se revela como o primeiro grande obstáculo a ser superado na formação do espírito científico. Visando modificar essa situação, Bachelard apresenta uma espécie de revolta pedagógica, em que a formação vigente do pensamento científico é duramente criticada e exige uma nova pedagogia que deverá se mostrar libertária em relação aos modelos vigentes até então para possibilitar a existência de uma nova ciência3. confundidas com pensamento; respostas científicas que se enrijecem; a ausência de questionamento; hábitos intelectuais que, mesmo deixando de serem saudáveis, permanecem; idéias que apresentam uma evidência, uma clareza que obscurecem a capacidade de perguntar; inteligências muito bem sucedidas mas que se tornam viciadas em suas questões, vocabulário já consagrado de uma determinada ciência que carrega um conjunto de idéias que não são claras, ‘conscientes’ para o cientista mas que foram reforçadas no uso de tal vocabulário na história; entre outros exemplos. 3 Bachelard encontra-se inserido no contexto de um ensino de química altamente rígido e preconceituoso. Nos anos 20, em sua cidade (Bar-sur-Aube), a perspectiva positivista impunha uma proibição a qualquer tipo de conjectura da matéria. A teoria atômica, por exemplo, não poderia ser objeto de investigação, mas só poderia ser citada se servisse para a relação entre experiências. Como na citação abaixo, as doutrinas sobre o atomismo só poderiam ser mencionadas no final do relato de experiências, o que comprometia, inclusive, a própria compreensão do fundamento de tais experiências: CITAÇÃO DA TEORIA ATOMÍSTICA. Apud, QUILLET, Pierre – Verbete “Bachelard” em Huisman, Denis (Dir.) – Dicionário dos Filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 98. 3 É um grito de liberdade para a nossa forma de raciocinar. A noção de que se alcança a maturidade intelectual nada mais é do que um obstáculo para a razão. Entra aqui a necessidade da subversão e da mutação constantes no pensar. Sob esse ponto de vista, apenas poucos dos grandes nomes do passado sobreviveriam como tais para Bachelard, pois muitos desses nada mais fizeram do que reforçar os preconceitos carregados na história da ciência até então. Apenas deram continuidade às mesmas trilhas já percorridas pela razão, os mesmos modelos de pensamento, sem ousarem, de fato, a apresentação de um novo pensar que pudesse romper com a forma de raciocinar vigente. Mas, o que o pensador clama agora é pela formação de uma nova razão que esteja à altura desse desafio constante de revisão, de retificação. Uma razão que não escape à sua inesgotável reforma. O novo espírito materialista e a razão aplicada: o Materialismo Racional e o Racionalismo Aplicado A exigência de uma nova razão que pudesse estar atenta aos seus obstáculos é resultado do que asciências inovadoras implicaram. Vimos anteriormente como a Física de Einstein envolveu uma mudança na relação entre sujeito e objeto e, com isso, uma mudança com relação às correntes tradicionais do racionalismo e do empirismo. Além dessa transformação, as conquistas da física quântica produziram também uma profunda transformação na concepção da matéria. A partir daí, Bachelard critica o conceito filosófico de matéria – esse sendo tomado como primitivo e inadequado – e identifica um novo espírito materialista que, no conhecimento corpo a corpo com o mundo, por meio do racional e do técnico, apreende a verdadeira instância material: sua natureza de resistência. Ao se ter um contato mais penetrante com o objeto, encontra-se um campo de obstáculos. O obstáculo material irá provocar o trabalho e o materialismo se revela como um materialismo ativo. Em A Terra e os Devaneios da Vontade, as imagens do padeiro e do cozinheiro que trabalham a massa são utilizadas para ilustrarem como, na tentativa de transformá-la, dela acabam por conhecer a sua resistência4, sua solidez e, simultaneamente, sua maleabilidade5. A apreensão da 4 “Assim, o operário apaixonado, o operário enriquecido com todos os valores dinâmicos do sonho, vive o tempo dinamizado da cozedura. Ele leva a cabo voluntária e ativamente o destino da massa. Conheceu a mole e a plástica, mas, a quer firme e direta”. BACHELARD, Gaston. La Terre et les rêveries de la 4 matéria nessa resistência, segundo Bachelard, leva-nos para além do próprio objeto imediato, pois temos a oportunidade de conhecer e explorar as forças nele presentes que nos fazem ultrapassar sua percepção inicial. Essa compreensão da natureza da matéria permite-nos concluir a noção de conhecimento envolvida na filosofia bachelardiana: o conhecimento se revela como confronto. Confronto entre uma razão e uma matéria que, ao contrário do que supõe uma filosofia ingênua, nada tem de inerte, mas resiste, oferecendo desafios à razão que procura penetrá-la. Nesse sentido, ao invés de observar o objeto à distância, contemplá-lo, como faz a filosofia, a razão científica, aquela que se volta para o conhecimento do mundo em sua materialidade, procura o confronto com essa mesma materialidade, buscando transformá-la através do trabalho6. Nesse confronto também a natureza da razão se revela como sendo fundamentalmente trabalho, pois só pode se desenvolver nesse contato com o mundo, com a matéria, transformando-a e sendo simultaneamente transformada por ela. A matéria é a objetividade da razão. Tal como o artesão se vê forçado a se reconstituir nas suas forças de artesão ao se deparar com as resistências que a matéria oferece à realização de sua obra, também assim a razão se manifesta nas ciências contemporâneas, pois já não pode mais se limitar a refazer esquemas racionais prescindindo da experiência. A razão científica é uma razão que identifica na operação sobre o mundo a possibilidade da geração das idéias. É dessa forma, frente aos desafios que a materialidade lhe impõe e o seu engajamento em enfrentá-lo, que a razão científica com o seu espírito materialista se revela uma razão aplicada, não mais razão contemplativa que possa apreender o objeto à distância, mas razão que se constitui simultaneamente, dialeticamente, nesse embate frente a uma matéria que, como ela própria, segue o duplo movimento de resistir e ceder. volonté, Paris, José Corti, 1986, 13ª ed., p. 25, apud. BULCÃO, Marly - “Razão artesã x Razão Contemplativa”, Razões (inc.), p.108. 5 “O homo faber no seu trabalho da matéria não se contenta com um pensamento geométrico de ajsutamento, ele usufrui a solidez íntima dos materiais de base, usufrui a maleabilidade de todas as matérias que deve vergar”. BACHELARD, Gaston. Ibid., p. 31-32, apud. BULCÃO, Marly - “Razão artesã x Razão Contemplativa”, Razões (inc.), p.108. 6 “A mão ociosa e acariciante que percorre as linhas bem feitas, que inspeciona um trabalho concluído, pode se encantar com uma geometria fácil... Ao contrário, a mão trabalhadora, imperiosa, aprende a dinamologia essencial do real, ao trabalhar uma matéria que, ao mesmo tempo, resiste e cede como uma carne amante e rebelde” BACHELARD, Gaston. L’Eau et les Rêves, p.19 apud. BULCÃO, Marly - “Razão artesã x Razão Contemplativa”, Razões (inc.), p.101. 5 A técnica, a construção do objeto científico, e o ‘corracionalismo’ Numa sofisticação dessa operação da razão com a matéria, a razão científica irá criar a técnica e o instrumento como mediadores para melhor penetração na verdadeira matéria. Entretanto, tal criação mostra claramente que o objeto da ciência não se encontra dado, pronto na natureza anteriormente ao próprio processo de conhecimento, mas, diferente disso, é construído na relação estabelecida por esse mesmo processo. Na ciência contemporânea as técnicas e os instrumentos são ao mesmo tempo a expressão desse conhecimento, ambos podendo ser compreendidos como teorias materializadas7, e a condição que viabiliza a produção de novos objetos para a ciência. A técnica e o instrumento científico rompem com a natureza no sentido de que ultrapassam o que lhes foi dado e constroem uma realidade que se torna a realidade para a ciência8. O objeto científico da ciência contemporânea representa muito mais uma invenção do que uma descoberta, muito mais o resultado dos procedimentos utilizados por essa ciência do que um objeto dado, de forma não ser possível atualmente dissociar o objeto que se mostra ao alcance da ciência dos métodos que o produziram9. Daí também Bachelard nomear o objeto científico de abstrato-concreto, pois é fruto de esquemas racionais e procedimentos técnicos que se materializam e se tornarão eficazes quanto mais a razão se aplica nesse diálogo entre os valores racionais e as experiências técnicas. A ciência se faz nessa interação constante, em que modelos teóricos, conceitos (o racional) são retificados continuamente pela experiência (empírico) e, por sua vez, a compreensão dessa mesma experiência é continuamente alterada a partir da retificação dos modelos conceituais. Assim, há um diálogo renovado constantemente entre razão e experiência: razão e experiência num processo contínuo de construção e retificação mútuas. 7 O próprio instrumento técnico é também, por sua vez, resultado de uma ‘teoria materializada’, pois só existem como produtos de uma teoria. O termômetro, por exemplo, é produto da teoria da dilatação dos corpos. 8 “A ciência de hoje é deliberadamente factícia, (...). Rompe com a natureza para constituir uma técnica. Constrói uma realidade, talha a matéria, dá finalidade às coisas dispersas. Construção, purificação, concentração dinâmica, eis aí o trabalho humano, eis aí o trabalho científico”. L´activitè rationaliste de la physique contemporaine, Paris, PUF, 1965, 2ª.ed. p. 3-4, apud. BULCÃO, Marly - “Razão artesã x Razão Contemplativa”, Razões (inc.), p.110. 9 Podemos considerar como exemplo o ‘posítron’ objeto da física quântica do qual não podemos mais dizer que ele tenha sido propriamente ‘descoberto’. Sua existência é apenas indicada pelos vestígios nas fotografias das câmeras de Wilson do que observada e ele parece ser muito mais uma criação conceitual ou ainda podemos considerar as substâncias que são hoje produzidas pela química e que não se encontramna natureza. 6 A ciência de hoje não corresponde mais a uma tarefa de descrição da realidade, mas de sua construção, criação. Tal como a Física de Einstein tinha mostrado que espaço e tempo eram noções solidárias que emergiam ambas num sistema de referência, Bachelard indica que a ciência atual pode representar um sistema em que emergem unidos dialeticamente o cientista dotado de sua razão operante e o objeto de sua investigação. A ciência é reconhecida pelo próprio pensador como uma ‘fenomenotécnica’, termo que destaca o papel dos instrumentos na construção científica. Entretanto, a razão operante, materializada como instrumentos, técnicas e teorias compartilhadas na comunidade dos cientistas, também se revelará como o resultado da polêmica de diversas razões envolvidas no processo argumentativo da ciência. Sob mais um aspecto, Bachelard confirma a razão aplicada que não se constitui pela pura operação de estabelecer relações teóricas, mas se constitui na luta com os distintos valores humanos e culturais envolvidos na produção da ciência e, assim, garante a sua objetividade. O Racionalismo Aplicado de Bachelard revela- se também num Corracionalismo, onde o ‘Eu penso’ de Descartes é substituído pelo ‘Nós pensamos’, e a verdade científica é estabelecida numa intersubjetividade científica trabalhando em cooperação10. 10 “Teremos, pois por tarefa mostrar que o racionalismo não é absolutamente solidário com o imperalismo do sujeito, que ele não pode se constituir numa consciência isolada”, BACHELARD, Gaston. Le Rationalisme Apliquè, Paris, PUF, 1962, 2ª. Ed. p. 34 apud. BULCÃO, Marly - “Razão artesã x Razão Contemplativa”, Razões (inc.), p.117.
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