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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Mulheres da Rede Fitovida: Ervas medicinais, envelhecimento e associativismo Por Mariana Leal Rodrigues BANCA EXAMINADORA _______________________________ Profª. Drª. Clarice Peixoto (orientadora/UERJ) __________________________________ Profª. Drª.Myriam Lins e Barros (ESS/UFRJ) _________________________________ Prof. Dr. César Carvalho (UNESA) RIO DE JANEIRO Agosto/2007 2 Agradecimentos Este trabalho não seria possível sem a boa vontade de inúmeros colaboradores, que abriram portas, indicaram caminhos ou acolheram o projeto. Em primeiro lugar agradeço às integrantes da Rede Fitovida que aceitaram a proposta e permitiram sua realização e à Luciene Simão (UFF), pela gentileza de me apresentá-las. Sem a tolerância, a escuta e a ajuda de familiares e amigos, a pesquisa teria sido mais penosa. Agradeço a Dirceu Bellizzi pela compreensão e o apoio de sempre. As produções do texto e do vídeo também contaram com muitos braços solidários. Agradeço a Bárbara Copque e a meu pai Alcides Redondo, que deram uma mãozinha na captação de som; a André Sutton, que não só editou o filme como colaborou para construção da narrativa; a Adriana Manhane que criou a trilha sonora e às revisoras Gláucia Cruz e Sheila Dunaevits Finalmente, agradeço ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ, em especial à professora Clarice Peixoto, e à Faperj que forneceram as condições para a realização desta pesquisa, como a possibilidade de participar do programa Bolsa Nota 10. 3 À memória minha querida Vó Thereza, que não era herbalista, mas dominava a arte de cuidar. 4 Sabe medicina. Aprendeu com sua avó. Analfabetina, que domina como só, plantas e outros ramos, da flora medicinal. Com cento e oito anos, nunca entrou num hospital. (Vela no Breu, de Paulinho da Viola e Sérgio Natureza). 5 Resumo Existem no Rio de Janeiro cento e oito grupos que produzem remédios com ervas medicinais de maneira voluntária. Desde 2000, formam a Rede Fitovida para transmitir conhecimento e debater soluções conjuntas para as dificuldades que enfrentam. É um movimento sem filiação partidária ou religiosa cujas características principais são o trabalho voluntário e a venda de preparações medicamentosas a preço de custo. É composto por mulheres com 50 anos ou mais, de camadas populares, que se reúnem em cozinhas comunitárias. O objetivo da pesquisa é analisar os aspectos culturais – práticas curativas e transmissão de conhecimentos − de um grupo que integra a Rede Fitovida. Através da metodologia antropológica e do registro audiovisual, o que possibilita um olhar mais cuidadoso sobre os fenômenos sociais, esta pesquisa visa compreender quem são essas mulheres, o que fazem e por que o fazem. Na medida em que participam de uma rede de trocas, além de cuidarem da saúde de si, dos familiares e vizinhos, as mulheres da Rede Fitovida se constituem como um movimento social reivindicatório − pois demandam o reconhecimento do Estado pelo saber que detêm − e transformam a própria percepção enquanto sujeitos em processo de envelhecimento, resignificando alguns estigmas negativos da velhice. Abstract In Rio de Janeiro State, there are one hundred and eight groups of women who produce medicines with herbs. Since 2000, they are organized in a network called Rede Fitovida to transmit their knowledge and debate how to deal with their common difficulties. It’s a social movement without party or religion affiliation composed by old women from popular layers that get together at kitchens of communitarian centers. None of them receive money or any other kind of payment for their work. Their activity is volunteer and non- profitable. The objective of this ethnography is to analyze cultural aspects of a group that belongs to this network, such as healing practices and knowledge transmission. Through an anthropological methodology and audiovisual documentation − which allows a more careful look on the social phenomena − this research aims to understand who are those women, what they do and why. As part of a network of exchanges, besides taking care of their health and of their neighborhood’s, these women create a social movement that demands the recognition for their traditional knowledge by the State. They also change their own perception of individuals in aging process, overcoming the negative elderly stigmas. 6 Índice Introdução −−−− Mulheres da Rede Fitovida: um olhar para o envelhecimento 7 Capítulo I −−−−A Rede Fitovida e o grupo Grão de Mostarda: surgimento, constituição e processo de trabalho 16 Capítulo II −−−− O milagre das plantas e concepções de natureza na Rede Fitovida 60 Capítulo III −−−− Envelhecimento feminino, sociabilidade e construção de identidades 96 Capítulo IV −−−− Câmera e pesquisa: o que audiovisual revela 123 Considerações Finais 167 Filmografia 177 Bibliografia 178 7 Introdução Mulheres da Rede Fitovida: um olhar para o envelhecimento 8 Uma vez por semana, um grupo de mulheres se encontra na cozinha comunitária de uma igreja para produzir e distribuir medicamentos naturais a preço de custo. Duas vezes por ano, dezenas de grupos similares se encontram e trocam receitas e experiências. No estado do Rio de Janeiro, hoje, existem cento e oito grupos que produzem remédios com ervas medicinais de maneira comunitária, articulados a partir da Rede Fitovida. Tais grupos são formados majoritariamente por mulheres com 60 anos ou mais, pertencentes às classes populares e, em geral, se reúnem nos espaços cedidos pelas igrejas católica e evangélica. Desde 2000, estão organizados em rede, para que possam trocar conhecimento, compartilhar dificuldades e buscar soluções conjuntas. Estas mulheres já atuavam no ambiente familiar, orientando vizinhos e vendendo suas preparações medicamentosas − são xaropes, ungüentos, sabonetes, xampus, tinturas etc, feitos com ervas medicinais. Na medida em que passaram a se organizar em grupos e em rede, começaram a atuar também no espaço público, prestando atendimentos voluntários em saúde preventiva. Esta transição modificou o modo como trabalham e transmitem seu conhecimento, valorizando a figura das mulheres mais velhas como detentoras de um saber. Apesar de se organizarem dentro do ambiente da Igreja Católica, suas práticas não estão ligadas a curas espirituais. Os grupos que integram a rede não se definem como agentes de curas religiosas e o termo fitoterapia revela a intenção de se diferenciarem destes agentes. Em 2003, sem avançar no relacionamento com o poder público1, a Rede Fitovida conseguiu apresentar, com sucesso, uma proposta de registro de saberes como patrimônio imaterial ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, graças ao apoio de um grupo de pesquisadores da Universidade Federal Fluminense que fazia pesquisas sobre o registro de 1 Atualmente, quem regula esta atividade é a Agência Nacional de Vigilância, estabelecendo normas e procedimentos para a comercialização de produtos fitoterápicos. Estas leis e normas tornam vulnerável o trabalho comunitário desenvolvido pelos grupos, mesmo sem fins lucrativos, os medicamentos são comercializados ou doados, dependendo danecessidade do doente. Para evitar chamar a atenção de órgãos como a Vigilância Sanitária, os grupos são batizados com nomes que não identificam imediatamente a atividade terapêutica com plantas, como Saúde pela Natureza, Natureza Viva, etc. 9 patrimônio imaterial de práticas culturais. Atualmente, a rede concentra esforços para realizar um inventário de suas receitas, o primeiro passo no processo de registro. Plantas medicinais no Brasil O uso de plantas medicinais no Brasil foi a base da farmacopéia até meados do século XX, quando houve o boom da indústria farmacêutica no mundo. “Até o século XX, o Brasil era um país essencialmente rural, com amplo uso da flora medicinal, tanto a nativa quanto a introduzida. Com o início da industrialização e subseqüente industrialização do país, o conhecimento tradicional começou a ser posto em segundo plano. O acesso a medicamentos sintéticos e o pouco cuidado com a comprovação farmacológica das plantas tornou o conhecimento da flora medicinal sinônimo de atraso tecnológico e charlatanismo. Essa tendência seguiu o que já acontecera em outros países em processo de urbanização. Um segundo aspecto que certamente contribuiu para o afastamento do estudo das plantas medicinais e o restante da ciência foi a ampla resistência desta primeira às profundas alterações que tanto a sistemática vegetal quanto a medicina experimentaram no final do século XIX e todo o século XX. Fortemente baseado em trabalhos mais clássicos, o estudo das plantas medicinais mostrou uma resistência inicial a acompanhar as revoluções científicas ocorridas neste período. Essa inadequação inicial manteve a fitoterapia em um período de obscurantismo, onde esteve mais próxima do misticismo do que da ciência.” (Lorenzi & Mattos, 2002:) A noção de medicina popular, normalmente, engloba diversas técnicas exercidas de diferentes formas, por pessoas que são especialistas em ervas, que receitam, vendem ervas naturais ou produtos compostos, parteiras, benzedeiras e raizeiros. Estas atividades são exercidas em espaços públicos e privados e, muitas vezes, através de agências religiosas católicas, pentecostais, umbandistas e candomblecistas. As críticas e controles que se fazem aos “curandeiros” revelam a importância dos médicos como os detentores do conhecimento oficial sobre a saúde. 10 Autores que se dedicaram ao tema, como L. Boltansky e A. Loyola, mostraram que a medicina natural é constituída de práticas de medicina doméstica, à qual as pessoas recorrem primeiro em caso de doença2. Somente após terem sido esgotadas as alternativas caseiras de cura, o médico é procurado. Atualmente, a fitoterapia e outras terapias consideradas “alternativas” (homeopatia, crenotrapia e acunpuntura) têm sido reconhecidas como práticas médicas e introduzidas nos atendimentos do Sistema Único de Saúde para o tratamento de doenças crônicas e na prevenção. Um olhar, um grão O campo, em si, permite diversas abordagens. É um trabalho voluntário realizado por mulheres, em comunidades de baixa renda, na área de saúde preventiva. É um movimento social reivindicatório que põe em evidência pessoas com 60 anos ou mais. Elas apresentam relatos de cura distintos . Nesta pesquisa, pretendo analisar os aspectos culturais – práticas curativas e transmissão de conhecimentos – de um grupo do município de Belford Roxo que integra a Rede Fitovida, o Grão de Mostarda. Este grupo3 funciona na cozinha da Igreja Nossa Senhora da Fátima, em frente ao posto de saúde do bairro Santa Maria. Todas as quintas-feiras, dezenas de pessoas o freqüentam à procura de xarope para gripe, bronquite, multimistura4, leite forte, pomadas, vermífugos, sabonetes, xampus e mistura de chás, entre outros produtos. Às vezes, o melhor remédio é 2 Sobre as práticas familiares: “É preciso ter em mente que os moradores do bairro, quando doentes, tratam-se primeiro por conta própria e só recorrem aos diversos especialistas da cura depois de esgotarem todos os recursos terapêuticos familiares. Estes resultam, basicamente, de uma experiência acumulada pela família” (Loyola, 1984:125). 3 O Grão de Mostarda é composto por onze mulheres moradoras de Belford Roxo. Cinco delas têm menos de 50 anos, duas afirmam ter entre 50 e 60 anos e o restante tem entre 60 e 75 anos. A renda familiar do grupo varia de meio salário até dois salários mínimos. 4 A multimistura é um produto para fortalecer a alimentação, destinado principalmente às crianças através do projeto da Pastoral da criança. Leva farinhas integrais enriquecidas com outros minerais necessários ao bom desenvolvimento das crianças. A produção do grupo também está voltada a atender a famílias da região registradas no programa de assistência da Pastoral. Segundo a coordenadora do grupo, Elisabeth Martins, a relação com a Pastoral da Criança se resume a isso. 11 uma conversa à beira do balcão com algumas das senhoras do grupo. Neste dia, o café, o almoço e o lanche são compartilhados, sempre acompanhando biscoitos e bolos caseiros. A ferramenta de pesquisa utilizada foi uma câmera de vídeo, o que resultou em um material rico em histórias de vida, momentos de sociabilidade, receitas curativas à base de plantas medicinais e, principalmente, narrativas de cura surpreendentes. Através da escolha deste instrumento, foi possível realizar um exame cuidadoso e repetido das atividades registradas. A própria produção do vídeo etnográfico se tornou elemento da construção da relação entre observador e observado e, posteriormente, de preservação da memória do grupo, um processo do qual o Grão de Mostarda e a Rede participaram ativamente. Considerando a Rede Fitovida como uma associação, cujo objetivo das reuniões é não só a transmissão das receitas curativas, mas também a criação de um espaço de sociabilidade para mulheres de 60 anos ou mais − já que elas brincam, conversam e trocam experiências nesses encontros - busquei entender qual a importância do projeto fitoterápico e das práticas de sociabilidade para estas mulheres que vivem na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Como são mulheres de idade mais avançada, muitas aposentadas ou pensionistas, é de se imaginar que nesta etapa da vida já não postulariam mais participar de grupos sociais reivindicativos. Assim, a principal questão que pretendo desenvolver é: o que leva essas mulheres de baixa renda a se organizarem em redes e a pleitearem o reconhecimento do seu saber popular como patrimônio? Quais são as formas de transmissão desse conhecimento e para quem o transmitem? Diante de inúmeras condições desfavoráveis – os integrantes dos grupos que compõem a Rede Fitovida pertencem às classes populares, não dispõem de recursos para investir na fabricação dos medicamentos e na promoção de reuniões etc –, acredito que o trabalho desenvolvido pelos grupos de mulheres seja um exemplo de ação, autonomia e criatividade individual diante de um contexto social em que vivem. Se de um lado existe a proeminência de determinismos sociais sobre estes indivíduos – com a precariedade dos 12 serviços de saúde, a frivolidade das relações entre médico e paciente, o alto custo de medicamentos industrializados e o papel da mulher mais velha na família etc − de outro, há a subjetividade dos atores: suas experiências pessoais com a medicina popular, a necessidade de sociabilidade, o valor simbólico do trabalho voluntário etc. Também podemos compreender a Rede como uma forma de resistência às megaestruturas do setor produtivo (como as indústrias farmacêuticas e de alimentos) e a afirmação de valores tradicionais. Ao contrário dos programas para a Terceira Idade “criados” para se enquadrarem no modelo de consumo capitalista– em grupos de convivência, clubes, escolas e cursos que oferecem a “sociabilidade” como uma de suas mercadorias (Britto da Motta, 2004: 113) –, a Rede Fitovida é uma associação de promoção de laços de solidariedade, com ações voltadas para o benefício da comunidade. Devo assinalar que não tenho a intenção de analisar a questão sob o prisma dos estudos de religião. Embora estar inserido nas Comunidades Eclesiais de Base seja uma dimensão importante para a compreensão do fenômeno no estado do Rio de Janeiro, seus valores fundamentais são conceitos humanistas de igualdade, solidariedade e fraternidade, que, antes de serem adotados como um projeto cristão, fundamentaram o projeto democrático moderno. A experiência da Rede Fitovida é um exemplo de prática da medicina natural popular que permite refletir sobre um tema essencial às Ciências Sociais: a polarização entre determinismo pela estrutura e a capacidade de expressão e ação subjetivas. Na medida em que reivindicam a legitimação de suas práticas, as mulheres da Rede Fitovida buscam se colocar em um lugar privilegiado como detentoras de um saber tradicional. Entretanto, a fonte deste conhecimento não se restringe à memória das integrantes mais velhas ou às receitas de família. Suas práticas também são influenciadas por fontes literárias sobre o assunto e pela popularização da medicina alternativa (barroterapia, bioenergética etc) a partir de uma "onda de naturalismo", para usar as palavras de uma integrante do Grão de Mostarda. Portanto, a ação destes grupos é também reflexiva e está se atualizando 13 constantemente, seja na troca de uns com os outros, seja na aquisição de novos conhecimentos médicos, produzindo uma verdadeira “reinvenção” da tradição. Ao distribuírem suas preparações medicamentosas a preço de custo, as integrantes da rede reforçam o princípio ético da não obtenção de lucro através de suas práticas através de um complexo sistema de trocas. Ao contrário da medicina científica, o verdadeiro saber do grupo não é a técnica da fabricação dos medicamentos em si, mas a forma de cuidar, o que põe em destaque as relações pessoais no processo de cura. Minha hipótese é que a experiência da Rede Fitovida seja de enorme importância na vida cotidiana de suas integrantes e das comunidades onde vivem, tendo em vista o grande número de grupos espalhados pelo estado do Rio de Janeiro. A partir deste trabalho, elas resignificam o processo de envelhecimento, combatendo os estigmas de inutilidade, doença e degeneração física e mental aos quais esta etapa da vida é associada. Um caminho O primeiro capítulo é dedicado às informações sobre a Rede Fitovida, a maneira como surgiu, como está constituído como movimento social, seus valores e objetivos, além de sua dinâmica de mobilização. Também apresento o grupo Grão de Mostarda, sua história, suas integrantes, a forma de adesão de cada uma e as preparações medicamentosas que produzem. Este grupo funciona em frente a um posto de saúde municipal e sua coordenadora também é responsável pela condução do Inventário Nacional de Referências Culturais na Rede Fitovida. A questão que a Rede Fitovida reivindica − reconhecimento do conhecimento popular sobre uso de plantas medicinais como patrimônio imaterial − é uma estratégia de legitimação pela cultura, uma vez que esse reconhecimento não tem sido possível através de políticas públicas de saúde. Nesse capítulo analiso a posição do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária no que diz respeito ao uso de plantas medicinais. 14 No segundo capítulo, analiso como as representações da natureza na cultura brasileira fundam a noção compartilhada pela Rede Fitovida de que os remédios naturais são melhores do que os industrializados e, ainda, como esta Rede resignifica o papel do povo, positivando-o, na medida em que considera o saber popular como um bem imaterial. Tais percepções condicionam técnicas de cuidados com a saúde − a prática de uma alimentação e da medicina naturais − que caracterizam os grupos da Rede, combinando terapias preventivas com plantas medicinais e medicina científica. A transmissão de conhecimentos realizada de forma individual e coletiva, no ambiente familiar e nos ambientes públicos, é analisada a partir da prática cotidiana das mulheres do grupo Grão de Mostarda e dos encontros da Rede Fitovida. No terceiro capítulo, aprofundo a análise sobre como estas mulheres de camadas populares experimentam o processo de envelhecimento, superando os estigmas negativos da velhice. Enquanto um movimento social de mulheres, a Rede Fitovida se inscreve na tendência mundial de participação feminina em ações sociais. O processo de envelhecimento e as diversas formas de vivenciar esta etapa da vida pelos indivíduos estão relacionados neste capítulo com as transformações demográficas atualmente em curso na sociedade brasileira. O quarto capítulo é dedicado à metodologia aplicada na pesquisa, que teve como principal instrumento o uso do audiovisual durante o trabalho de campo. A fim de situar o leitor quanto ao uso desta ferramenta e para encontrar uma metodologia para o uso do audiovisual na pesquisa etnográfica, precisei ir buscar a história de construção desse campo. O princípio de feedback das imagens, a encenação que o uso da câmera provoca e a necessidade de ser reflexivo na pesquisa antropológica são alguns temas que desenvolvo a fim de mostrar quais foram as escolhas metodológicas, suas vantagens e desvantagens. O uso do audiovisual permite ao espectador perceber a relação entre observador e observado que se estabelece ao longo de todas as pesquisas antropológicas, além de reunir um material que se presta a análises diversas, inclusive para outros pesquisadores. Quem dita o 15 “texto” do vídeo são os próprios agentes, pois são as únicas vozes a contar o que é feito. A autoria fica por conta de um “olhar” particular, um ponto de vista construído a partir de uma experiência. Para percorrer o caminho interpretativo de um fenômeno social, foi preciso perceber o que já trazemos conosco em nossa bagagem de pesquisador. Em se tratando de uma etnografia que usa o audiovisual, é necessário ter atenção às representações sobre o povo na produção audiovisual contemporânea, documentário e ficção, e sobre os espaços comumente consagrados ao povo, como as favelas e as periferias. Alguns filmes serviram de referência, como A pessoa é para o que nasce, de Roberto Berliner (2005), e a obra de Eduardo Coutinho, que são citados e analisados. O primeiro coloca uma questão para a realização de seu filme: "Existe vida inteligente na miséria e na pobreza?"− que é reveladora sobre a forma como o cinema documental brasileiro tem trabalhado a imagem das camadas populares através da valorização da cultura, principalmente a partir dos anos 80 (Leite, 2006:48). Embora esta pesquisa não ignore questões como a ausência de políticas públicas eficazes para pessoas com 60 anos ou mais e a precariedade do serviço público saúde, o objetivo não é fazer um vídeo etnográfico em tom de denúncia, mas que conte como mulheres vão experimentando novas identidades na medida em que se engajam em uma ação social. O ponto de partida é um questionamento comum a muitos estudos sobre envelhecimento: "É possível envelhecer sem se deixar influenciar pelos estigmas negativos da velhice?" (Peixoto, 2004:9). 16 Capítulo I A Rede Fitovida e o grupo Grão de Mostarda: surgimento, constituição e processo de trabalho 17 A Rede Fitovida se formou quando líderes comunitários envolvidos em projetos semelhantes de saúde alternativa, desenvolvidos no estado do Rio de Janeiro, decidiram promover encontros para debater suasatividades. Havia muitos grupos que produziam medicamentos com ervas medicinais por meio de trabalho voluntário que não se conheciam e estavam isolados, a partir da identificação destes grupos − feita por Rita de Cássia5 (moradora de Queimados e que pertencia a um grupo na paróquia local), Marta (médica e homeopata que realizava um trabalho semelhante em São Gonçalo) e Marcos6 (agrônomo que desenvolvia projetos de agricultura urbana com comunidades de baixa renda) − organizaram cursos e encontros que resultaram na formação da Rede em 2000. Segundo um artigo assinado por alguns integrantes, a história da formação da Rede está ligada ao surgimento de grupos voltados para atender às demandas das comunidades onde estavam localizados. Em 1980, a Diocese de Nova Iguaçu convidou uma irmã para ministrar um curso sobre manipulação e uso de ervas medicinais, o que motivou a organização de alguns grupos apoiados pelas paróquias locais. Mas foi na década de 90 que grande parte delas se fortaleceu. Três exemplos são: o grupo Energivida, de Xerém; o Sementinha, do complexo de favelas da Penha; e o Grupo Alternativo de Sáude, de Volta Redonda. Em um encontro de partilha realizado em 2001, foi redigida uma carta de princípios e começaram a discutir de que maneira era possível oficializar a atividade7, sujeita a uma legislação rigorosa. 5 Todos os nomes utilizados neste trabalho são pseudônimos. 6 Engenheiro agrônomo e coordenador do Programa de Agricultura Urbana da AS-PTA, ONG que desenvolve projetos de agroecologia. 7 Segundo o código penal, artigos 283 e 284, quem exerce a medicina popular, receitando substâncias ou usando gestos e palavras para fazer diagnósticos e obter curas, pode ser considerado curandeiro ou charlatão (o charlatanismo está definido no artigo 283 e o curandeirismo pelo 284). As penas variam de três meses a dois anos de detenção. A lei determina o que é uma prática legítima de medicina e o que é ilegítimo. Alguns grupos da Rede chegaram a sofrer ameaças e represálias por comercializarem medicamentos fitoterápicos, o que explica o nome dos grupos serem sempre referências à natureza . Outros, como o Grão de Mostarda, conseguem uma sinergia com o serviço de saúde local, seus produtos têm eficácia reconhecida e são recomendados pelos médicos que atendem no posto de saúde local. 18 O Encontro de 2001 aconteceu no município de Duque de Caxias e apresentava os seguintes princípios: solidariedade; não ter fins lucrativos; estimular trocas solidárias e multiplicação de agentes; preservar a natureza; plantar sempre e colher o que plantar, privilegiando as hortas comunitárias; acreditar na medicina natural e ter independência em relação à indústria farmacêutica; promover o movimento através de trocas; fortalecer a rede; lutar politicamente por melhores condições de vida; resgatar e fortalecer o saber popular como fonte de conhecimento; valorizar e estimular adesões e respeitar a disponibilidade de cada um; respeitar e ouvir a opinião do outro; ter independência do poder público; movimento não-religioso e apartidário; facilitar o acesso a alimentos saudáveis e naturais; socializar a informação e, por último, não aceitar como naturais o oportunismo e a barganha política. Em 2003, após discutirem qual seria a melhor forma de organização, passaram a se denominar “Rede Fitovida, Movimento Popular de Saúde Alternativa”, com o objetivo de reunir as diferentes experiências e refletir sobre o trabalho desenvolvido nos grupos. A Rede é uma “articulação social em prol dos conhecimentos tradicionais sobre plantas medicinais”, formada por um conjunto de grupos constituídos por mulheres idosas, “que possuíam um grande saber tradicional sobre plantas medicinais e remédios caseiros”8. Sobre o processo de formação da Rede, Rita conta: “A gente percebeu que não queria ser ONG, nem associação, nem cooperativa. Queria ser, de fato, um movimento articulador dessa experiência. (...) E nos amarramos a começar a aprofundar de que forma a gente podia ter o registro dentro dos critérios colocados naquele encontro. E aí, no ano seguinte, a gente descobre que existe por parte do governo federal, através do Ministério da Cultura, um referencial que pensa e discute essa questão do registro a partir de um inventário do saber popular. Onde garante que homens e mulheres possam produzir e trabalhar com as plantas medicinais e serem reconhecidos e respeitados a partir das leis colocadas” (Rita de Cássia, 2006). O caminho para a organização dos grupos esbarrou “na falta de reconhecimento e de políticas públicas que respeitem os saberes do povo como conhecimento culturalmente 8Artigo proposto à Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, Rio de Janeiro, no prelo. 19 construído”9. A busca de legitimação desta prática junto à população e ao Estado apontou para um “novo caminho”: o Inventário Nacional de Referências Culturais (INCR) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Para dar início ao registro da prática da medicina popular como bem imaterial10 foi preciso a colaboração e a autorização do IPHAN, em 2003. Desta forma, através do Ministério da Cultura, a Rede Fitovida reivindica o reconhecimento pelo trabalho voluntário que realiza. Na cartilha de princípios da Rede destacam-se pontos significativos para compreender o propósito desta organização. Além de afirmar sua natureza voluntária, sem fins lucrativos, alguns tópicos têm clara indicação política (como a afirmação do valor do conhecimento popular e a reserva quanto ao envolvimento dos grupos em ações político-partidárias), enquanto outros visam regular as práticas de saúde alternativa e estimulá-las, principalmente no que diz respeito às formas de organização. Fica evidente no conteúdo desta carta de princípios a reivindicação pelo direito ao exercício de uma medicina natural, a valorização de cultivos orgânicos e a independência das indústrias farmacêuticas e de adubos. Entretanto, no artigo (Matos et al.) é possível identificar de forma mais clara a missão − “resgatar os saberes tradicionais no uso das plantas, de antigos moradores, e promover hábitos alimentares mais saudáveis”, a visão - "a natureza como fonte de inspiração para viabilizar opção de saúde independente da indústria farmacêutica" e os valores da organização - "a prática de solidariedade, tendo compromisso com a transformação da sociedade". Podemos ainda identificar neste texto o campo de ação da Rede para além do impacto em suas comunidades: “Sabe-se que muitos são os interesses articulados às corporações internacionais, aos grandes laboratórios, aos saques à biodiversidade, ao registro de patentes, aos problemas referentes à propriedade intelectual, às acusações de prática de curandeirismo, que desqualificam os fazeres da farmacopéia popular. Fora 9 Idem. 10O inventário tem sido feito sob a orientação de técnicos do IPHAN e coordenado por alguns membros da Rede: Luciene Simão, antropóloga e doutoranda da UFF; Elisabeth Marins, administradora e integrante do grupo Grão de Mostarda; Luzia Martins, mestre em Botânica; Márcio Mattos, mestre em Engenharia Agrônoma e Viviane Ramiro, fisioterapeuta sanitarista. A função dos coordenadores é orientar os interlocutores de alguns grupos no levantamento das informações e consolidá-las para que sejam entregues aos técnicos do IPHAN. 20 todos esses conflitos de interesse, temos ainda as agências de saúde pública operando com um olhar burocrático, preocupado apenas com o princípio ativo das plantas”. Desta forma, a Rede Fitovida reconhece que sua função social vai além de permitir trocassolidárias de preparações medicamentosas e que visa, sobretudo, reservar o saber popular tradicional a salvo de interesses comerciais e transmiti-lo. Os integrantes da Rede, através deseus princípios e objetivos, demonstram uma preocupação em fomentar uma nova cultura de prevenção em saúde com a valorização do conhecimento dos mais velhos, promovendo um “resgate”, isto é, restituindo tal conhecimento para a população. O método científico que regula as práticas da medicina e somente reconhece o uso de plantas medicinais mediante estudos farmacológicos foi uma referência para a Rede na elaboração de suas propostas, ainda que seja contestado. O conflito medicina popular x medicina científica vem sendo analisado por diversos autores, entre eles, veremos as considerações de L. Boltanski, Loyola e E. Oliveira. Entretanto, não será o eixo desta pesquisa, uma vez que a própria Rede já abandonou este confronto, posto que sua reivindicação, atualmente, é a autonomia da população para praticar a prevenção e os cuidados com a saúde sem a submissão à lógica médica. Em pesquisa sobre medicina popular entre famílias urbanizadas e rurais na França, Boltanski mostra como a percepção da doença, o recurso ao médico, o consumo de medicamentos e a utilização de práticas de saúde familiares estão relacionados “a uma estrutura de classes, através, de um lado, do uso do corpo, cujas determinações primeiras podem ser buscadas no sistema produtivo, e, de outro, na medicina científica que do ponto de vista ideológico tem sobre aquele um controle quase absoluto” (Boltanski, 1979: 10). Para o autor, a legitimação da medicina científica se pautou na oposição às práticas leigas, como o curandeirismo, com o qual foram identificadas as práticas de medicina popular. No Brasil, essa oposição se fortaleceu no decurso do século XX com a ampliação do acesso à saúde para a população, sobretudo ao longo do rápido processo de urbanização. 21 Loyola desenvolveu uma pesquisa sobre as práticas de saúde da população de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (1976 a 1979), na qual relacionou as diversas práticas de cura com seus atores para mostrar como estavam ligadas à cura do corpo e do espírito, revelando as representações do processo saúde-doença e os diferentes sistemas de cura. Para a autora, naquele momento, a Igreja Católica priorizava a medicina tradicional, científica, em detrimento das práticas populares. Ao mesmo tempo em que a Igreja estimulava a população a reivindicar o acesso aos serviços públicos de saúde, precários na região, repudiava as práticas de cura baseadas em superstições e magias, bem como as exercidas em terreiros de umbanda e candomblé e por outros “profissionais” de cura. “Assim, a história da medicina, pelo menos há um século, é a história de uma luta contra os preconceitos médicos do público e, mais especialmente, das classes baixas, contra as práticas médicas populares, com o fim de reforçar a autoridade do médico, de lhe conferir o monopólio dos atos médicos e colocar sob sua jurisdição novos campos abandonados até então ao arbítrio individual, tais como a criação dos recém-nascidos ou a alimentação” (Loyola, 1984, 14). A autora ainda chama a atenção sobre a forma como a medicina popular é descrita por folcloristas, situada fora do contexto das práticas médicas. “Adotando implicitamente o ponto de vista da medicina científica, a única reconhecida oficialmente, eles tendem a conceber o conhecimento e as técnicas da medicina popular como sobrevivências folclóricas de uma época passada, de regiões rurais e comunidades tradicionalmente isoladas e atrasadas, ligando o desaparecimento destas práticas terapêuticas ao desenvolvimento da urbanização” (Loyola, 1982:3). E. Oliveira afirma que a medicina popular é parte da história concreta de determinados grupos sociais e “é constituída por um amplo e heterogêneo espectro de concepções de vida e de valores que possuem um sentido e um significado forte e verdadeiro para aqueles que a utilizam” (Oliveira, 1985:14). Para a autora, a persistência desta prática deve ser compreendida como uma forma de veicular uma visão de mundo, de doença e de saúde, e de promover uma relação de cura marcada por relações mais pessoais e humanas. Explicar 22 o hábito da população em consultar as ervateiras, benzedeiras e parteiras somente como uma alternativa mais barata e acessível do que a medicina tradicional, ou como uma prática exclusiva de camponeses pobres, iletrados e ignorantes, é reduzir sua complexidade a uma perspectiva instrumental e econômica que não leva em conta a prática da medicina popular como parte da cultura. A principal reivindicação da Rede Fitovida é o reconhecimento de sua prática como um saber tradicional, isto é, como uma prática cultural de cuidados com a saúde. É esse o principal aspecto que a diferencia dos demais grupos espalhados em todo o Brasil, que possuem atividades similares. Outra peculiaridade é a forma da organização em rede, um fenômeno tipicamente contemporâneo, como observa M. Castells − “a forma mais democrática de organização” (Castells, 1999:85). A Rede Fitovida expressa a horizontalidade do movimento, em que não há uma coordenação central, mas uma gestão participativa com representantes de cada regional da Rede: Metropolitana, Baixada, Sul e Norte Fluminenses. Ainda é preciso compreender a Rede Fitovida como uma organização que funciona graças ao apoio de igrejas, com predominância de igrejas católicas, o que a caracteriza como organização cuja origem da motivação de seus participantes é religiosa. Vale lembrar que são as organizações religiosas que reúnem o maior número de articulações e formas de solidariedade no Brasil. A pesquisa realizada pelo ISER Filantropia e Cidanania no Brasil (2000) demonstra que “entre aqueles indivíduos que têm o hábito de doar, estão mais propensos a doar seu tempo aqueles que têm uma prática religiosa freqüente”; e há maior confiança nas instituições religiosas, pois entre o doador e o receptor existe a intermediação divina, evidenciando a complexidade de um circuito de retribuição que envolve motivações, valores, crenças e outras contrapartidas (Novaes, 2002:44). A Igreja Católica foi ao longo da história a principal aglutinadora da caridade dos mais ricos e a principal parceira do Estado no campo da assistência social. Se ainda hoje não existem dados panorâmicos sobre o universo da ação social católica no Brasil, é possível afirmar que o “mundo católico” reúne em diferentes espaços as mais diversas iniciativas de 23 ação social, sejam de motivação religiosa ou humanitária. “O cardápio da Igreja Católica é diversificado, através de vários espaços institucionais, de movimentos leigos, da territorialidade paroquial e a Igreja acaba absorvendo novas linguagens e novas parcerias do campo assistencial, sem excluir circuitos mais tradicionais” (Novaes, 2002:20). Entre as organizações católicas destacadas na pesquisa, estão a Pastoral da Criança e a Sociedade São Vicente de Paulo. Nestas, a maior parte dos voluntários é pobre e vive em regiões pobres do país. Para Zilda Arns, coordenadora nacional da Pastoral da Criança, o ponto-chave de seu sucesso está, principalmente, na motivação constante para a mística da fraternidade (Novaes, 2002: 24). A Pastoral da Criança é uma referência para Rede, uma vez que muitos dos produtos difundidos pela organização, como o leite forte e a multimistura, também são produzidos em muitos grupos da Rede. A estrutura organizacional também é semelhante; conta com trabalho voluntário de líderes comunitários que vivem nos mesmos bolsões de pobreza de seus assistidos. Embora a Rede afirme em sua carta de princípios ser uma organização a-religiosa e não utilizar recursos mágicos de cura, não podemos deixarde compreender as motivações de suas participantes em separado de seus valores e crenças. Coexistem justificativas e motivações humanísticas e cidadãs, como a necessidade de participar das “questões sociais da comunidade” e das religiosas − como “servir a Deus”. Assim como no âmbito nacional pesquisado pelo ISER11, as falas e justificativas das integrantes da Rede revelam que suas motivações para o voluntariado são reconhecidas como formas de retribuir as oportunidades que tiveram na vida, bem como de construir uma sociedade melhor. 11 LANDIM, Leilah e SCALOM, Maria Celi (2000)- Doações e Trabalho Voluntário no Brasil. Rio de Janeiro, NAU Editora. 24 1.2 - Encontros da Rede Fitovida: sociabilidade e associativismo “Todo ano, a gente faz este encontro para trocar receitas de medicina alternativa, aquelas do tempo da vovó, é uma espécie de reciclagem, (...) Então, quem tem vontade, vai aumentando, quem não tem, paralisa, né?”. (Maura) Desde sua formação, a Rede Fitovida promove grandes encontros (ver quadro 1) entre seus membros para debater suas necessidades e promover a troca de experiência e conhecimento. Há dois tipos de eventos; o Encontro de Partilha Estadual e o Encontrão, cada um reunindo, pelo menos, uma centena de participantes. O primeiro acontece de seis em seis meses, durante um dia inteiro e o objetivo principal é a troca de experiências. O segundo é realizado uma vez por ano, durante dois dias, e tem como objetivo discutir questões estratégicas para a Rede, como o inventário12, por exemplo. Estes temas também são discutidos em reuniões bimestrais, menores, com lideranças das regionais, ao longo do ano. Em 2005 e 2006, aconteceram quatro encontros de partilha ao todo. Em 2007, está previsto um Encontrão. Não haverá Encontros de Partilha. Três Encontros de Partilha foram registrados ao longo da pesquisa. O primeiro, em novembro de 2005, aconteceu no ginásio da Paróquia Nossa Senhora de Aparecida, em Nilópolis. Em maio de 2006, foi na área dos fundos da Paróquia Santa Luzia, em Nova Iguaçu. Já em outubro de 2006, teve lugar no ginásio da Paróquia Nossa Senhora de Fátima, em Belford Roxo, onde também funciona o grupo aqui estudado, o Grão de Mostarda. As partilhas são apresentadas por um mestre de cerimônias, que normalmente é uma das lideranças da Rede. De acordo com o tema13, são apresentadas técnicas ou receitas. Esta fase prática pode tanto ocupar a primeira metade do evento − das nove da manhã até o 12 Um dos temas que será debatido em um Encontrão em 2007 será a forma como a indústria farmacêutica se apropria de princípios ativos de plantas e cria suas patentes. Para discutir esse assunto, foi distribuído, a preço de custo, a cópia de um livro durante o Encontro de Partilha, que aconteceu em outubro de 2006. 13 Em novembro de 2005 o tema discutido no Encontro de partilha foi estética corporal. Em maio de 2006, foi alimentação natural e reaproveitamento de alimentos. Em outubro de 2006, foi sobre o reconhecimento de plantas. 25 horário de almoço − quanto a segunda, do final do almoço até às 16h. O início e o final do evento são sempre marcados por ritos católicos, com a fala do padre que recebe a Rede em sua paróquia, preces e cantos católicos, ora animados, ora solenes. O almoço também é uma partilha propriamente dita, pois cada participante leva um prato de comida para si e mais duas pessoas. O grupo que recebe o evento também prepara um prato principal, servido com a variedade de cardápios trazidos. A fartura e a diversidade de comidas são uma constante nesses eventos. Após o almoço, quem quiser apresentar alguma receita relacionada ao tema central pode ir para o centro (onde as mesas e cadeiras são organizadas em círculo), com o microfone em punho. Quadro 1 – Atividades da Rede Fitovida ANO Encontro de Partilha Encontrão TEMA LOCAL TEMA LOCAL 2000 Formação da rede Petrópolis 2001 Cartilha de princípios Jardim Amapá, Duque de Caxias 2003 Legalização das atividades Vila de Cava, Nova Iguaçu 2004 Produção orgânica Nova Friburgo 2005 Homeopatia São Gonçalo 2005 Estética corporal Nilópolis 2006 Alimentação natural Nova Iguaçu 2006 Reconhecimento de plantas Belford Roxo 2007 Inventário Guapimirim Enquanto as receitas são relatadas, alguns grupos levam seus produtos para serem trocados ou comercializados em balcões ou mesas, sempre a preço de custo: um momento onde é possível observar a diversidade dos grupos. Se no encontro de novembro de 2005 havia cerca de 50 pessoas, no de maio de 2006 eram mais de 150 pessoas. A faixa etária do último foi visivelmente mais elevada do que no primeiro. Já o segundo Encontro de Partilha 26 de 2006, versando sobre reconhecimento de plantas, contou com cerca de 150 participantes e teve uma dinâmica diferente. Divididos em grupos, as pessoas identificaram cerca de 15 plantas cada e relacionaram suas propriedades curativas. À tarde, cada grupo apresentou seu trabalho, e somente ao final do dia temas gerais de interesse da Rede foram discutidos. Um resumo do que acontece em um Encontro de Partilha é registrado em um informativo, chamado Fitoteia, normalmente distribuído entre os grupos ou nos próprios encontros. 1.2.1 - É dando que se recebe14 "Inclusive o que tem aqui, quando alguém do grupo da gente quer, eu dou as mudas, as folhas, mas quando vem gente aqui de fora, aí eu vendo a um real uns galhos, uns molhos, que é para eu arrecadar dinheiro para comprar mais mudas para plantar aqui. Porque está faltando muito mesmo para plantar aqui, como o confrei, que já tem aí, a erva de São João...". (Gracinha) Podemos compreender as atividades da Rede e dos grupos através de um sistema de trocas, na qual os indivíduos transitam e se expressam. Tomo como referência o estudo da dádiva empreendido por Mauss, que, segundo ele próprio, “funciona ainda em nossas sociedades”, e percebo os Encontros de Partilha como um fato social total15, “onde se exprimem instituições religiosas políticas e morais”. Como complementou Lévi-Strauss, ali existe algo mais do que coisas trocadas, é onde se iniciam uma série de vínculos sociais. 14 Um esquema da dádiva opera na Rede. Encontrar tamanha hospitalidade e acolhida, participar dos fartos almoços às quintas-feiras com o grupo Grão de Mostarda, fez com que me sentisse na obrigação de retribuir. Muito além dos bolinhos integrais que procurava levar para a sobremesa nos dias de trabalho de campo, criei um compromisso de restituir o material filmado e fotografado, liberando o seu uso pelo grupo e pela Rede. O mesmo procedimento foi observado por C. Peixoto na sua pesquisa sobre a sociabilidade dos velhos em Paris e no Rio (2000). Tratarei desta questão no capítulo 2. 15 “Nesses fenômenos sociais totais, como nos propomos a chamá-los, exprimem-se ao mesmo tempo e de uma só vez, toda a espécie de instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas políticas e familiares ao mesmo tempo; econômicas – supondo formas particulares de produção e de consumo, ou antes, de prestação e de distribuição, sem contar os fenômenos estéticos nos quais desembocam tais fatos e os fenômenos morfológicos que manifestam estas instituições. De todos esses temas muito complexos e desta multiplicidade de coisas sociais em movimento, queremos considerar aqui um único traço, profundo, mas isolado: o caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito e, no entanto, imposto e interessado dessas prestações.” (Mauss, 1974: 41) 27 O sistema que opera nos gruposda Rede Fitovida é distinto daquele dos Encontros de Partilha. Estes são uma oportunidade para fazer os produtos circularem, conhecer outras receitas e outras medicações naturais. É um momento de mostrar o que se sabe para todos da Rede. Se o isolamento de grupos com trabalhos semelhantes foi um dos fatores observados pelas lideranças da Rede antes de sua formação e o que motivou o surgimento da organização, o Encontro de Partilha é a estratégia adotada para combatê-lo. Na medida em que são trocadas mudas de planta e receitas, formam-se vínculos entre os diferentes grupos16. A ritualística da Partilha promove o surgimento de alianças e de uma comunhão na qual o almoço compartilhado é o ponto alto. Desta forma, podemos observar a tríplice obrigação de dar, receber e retribuir. Quem doa obtém prestígio e oferece uma aliança. Quem recebe, aceita a aliança e fica obrigado a retribuir. Ofertar uma receita ou uma preparação medicamentosa é validá-la perante a Rede, é ter um produto de sucesso para mostrar. É mostrar que seu grupo trabalha bem. É distinguir-se, é mostrar a sua própria sabedoria e sua própria riqueza, fortalecendo os laços sociais. Dos três Encontros de Partilha observados, dois distribuíram brindes para os participantes: um saquinho com argila (a estética corporal foi o tema e ofereceram uma oficina/sessão de argiloterapia) e um sabonete de glicerina com extrato de ervas. Já os 108 grupos da Rede lidam diretamente com um público local, vendendo medicamentos a preço de custo ou doando para quem não pode pagar. Os produtos circulam quando os integrantes os levam para outros grupos ou feiras em outras igrejas e festas. Embora seja possível compreender o sistema de doação e venda de medicamentos 16 No Encontro de maio de 2006, uma cena me chamou a atenção. Um senhor que integra um grupo de São Gonçalo chegou com uma caixa repleta de garrafadas e foi até a “barraca” onde estavam outros produtos fitoterápicos sob os cuidados de uma irmã, pertencente a outro grupo. Ele começou a retirar uma a uma as garrafas, para o combate de diversos tipos de doença – o que durou alguns minutos. Ela os recebeu com surpresa e perguntou se eram feitas com álcool de cereais. Ele respondeu que sim, aquelas garrafadas eram uma doação para a ‘obra”. Momentos depois, na entrevista sobre as preparações dispostas na sua barraca, a irmã explicou que seu grupo não integrava a Rede e o que tudo o que produziam era supervisionado por uma farmacêutica. Com a câmera desligada, perguntei se ela distribuiria as garrafadas doadas na sua comunidade, e, para minha surpresa, ela disse que não o faria, pois não sabia como haviam sido feitas. Este episódio revela a obrigatoriedade de receber o produto doado e a desconfiança sobre a sua procedência, ainda que ele tenha sido doado no âmbito do evento ao qual a propria irmã participava. Podería, assim, considerar a irmã como uma outsider na Rede, posto que não compartilhava de seus princípios e não aceitou a aliança proposta. 28 nos grupos da Rede sob o ponto de vista puramente econômico e utilitário, essa explicação sozinha não é suficiente. Os produtos distribuídos e comercializados pela Rede possuem uma função utilitária clara, afinal, são medicamentos. E ainda apresentam uma “vantagem” na relação custo-benefício, pois são mais baratos que remédios semelhantes industrializados (fitoterápicos com extratos das mesmas plantas) e a medicação alopática. Entretanto, é preciso ir mais fundo para compreender que ali também reside “uma mistura de coisas e almas, de objetos e pessoas” (Coelho, 2006: 19). A “venda” das preparações medicamentosas não pode se resumir simplesmente a um comércio, pois não existe um ganho mensurável em dinheiro para quem produz e/ou comercializa. Não ter fins lucrativos é um princípio fundamental da Rede. Além disso, não existe nenhum tipo de recompensa financeira para quem trabalha, nem mesmo uma ajuda de custo, como ocorrem em diversas organizações não-governamentais que também não objetivam o lucro, mas buscam formas de sustentabilidade, além de depender do trabalho voluntário. Normalmente, as cozinhas onde funcionam os grupos da Rede se tornam referências na comunidade onde estão instalados17. A análise de Malinowski sobre o kula, em que possuir é dar e na qual riqueza, poder e generosidade estão relacionadas, pode iluminar a questão. Além de dedicarem um dia inteiro da semana para as atividades do grupo de forma voluntária, as integrantes costumam levar alimentos e seus produtos para pessoas doentes ou “necessitadas”. Desta forma, elas próprias se tornam referência na comunidade. No caso do Grão de Mostarda, aquelas que estão presentes às terças e quintas na cozinha comunitária são mais conhecidas do que as que se dedicam à administração do grupo. A retribuição que elas obtêm, relatam, é ver uma pessoa curada, é o sentimento de utilidade e competência, ou seja, atender quem busca ajuda ou simplesmente uma escuta é uma forma de apresentar-se para a comunidade, de criar uma nova identidade, distinta daquela 17 O trabalho do grupo Grão de Mostarda, por exemplo, é reconhecido pelos médicos do posto de saúde municipal situado em frente a sede do Grão. Ao longo do trabalho de campo, presenciei pessoas que buscavam o grupo para obter doações de roupa e, até mesmo, remédios de alopatia de receita controlada (não disponível no posto e muito menos nas prateleiras do grupo). 29 presumida aos velhos e às classes populares na sociedade contemporânea. Além do prestígio, existe o crédito com as pessoas “ajudadas”. Um relato colhido enquanto o Grão de Mostarda preparava o Encontro de Partilha que iria sediar, concomitantemente ao aniversário de onze anos do grupo, é revelador da expectativa do contradom. As senhoras do grupo escolhiam uma foto de Benedita, uma integrante já falecida, que seria homenageada e uma delas relatou: “Dona Benedita ajudava todo mundo, mas morreu sozinha. Não estava se sentindo bem, foi em casa pegar a carteirinha para ir ao médico, passou mal e caiu na porta de casa. Só no dia seguinte foram descobrir que ela estava morta. Quem a encontrou foi o pai de uma criança que estava sendo levada para que ela desse alguma assistência. O bebê também morreu alguns dias depois”. (Isabel) A solidariedade dos vizinhos pode ser determinante em caso de um acidente ou mal súbito. Neusa conta como conseguiu salvar o marido, que enfartava dentro de casa. “Ele começou a passar mal e não tínhamos como levar para o hospital. Imagina, ficar esperando um ônibus com um homem infartando. Foi um Deus nos acuda. Até que o levamos para o posto de saúde do lote XV. Graças a Deus, ele foi muito bem atendido”. Conforme ressalta Mauss, o sistema da dádiva “funciona de forma desinteressada e obrigatória, ao mesmo tempo. Além disso, esta obrigação se exprime de maneira mítica, imaginária ou, se se quiser simbólica e coletiva: assume o aspecto de interesse ligado às coisas trocadas. Estas nunca são completamente desligadas dos que as trocam: a comunhão e a aliança que eles estabelecem são coletivamente indissolúveis.” (Mauss, 1974:92). Muito além da distribuição de remédios para as pessoas que precisam, está a “convivência gostosa” resultante do trabalho realizado. “Um prazer enorme”, “um alívio” são algumas das expressões utilizadas para descrever os próprios sentimentos de pertencer ao Grão de Mostarda. Colocar-se no lugar de quem doa é uma forma de afirmação social do indivíduo, na qual a reciprocidade estimula a sociabilidade. 30 1.3 - O Grão de Mostarda: um grupo de mulheres da Rede Fitovida Dentre os 108 grupos distribuídos pelo estado do Rio de Janeiro, escolhi um para realizar apesquisa: o grupo Grão de Mostarda, de Belford Roxo. Foi fundado em 1995 pela iniciativa de algumas mulheres que atuavam nas atividades sociais da Igreja Nossa Senhora de Fátima: a bióloga Lina e a enfermeira Benedita, ambas já falecidas. Contava com a participação de 12 mulheres. O apoio histórico da Igreja Católica da Baixada Fluminense a movimentos comunitários faz com que nesta região estejam alguns dos grupos melhor organizados da Rede. A proposta inicial do Grão era dar apoio e tratamentos alternativos para as mulheres vítimas de câncer de mama. Assim, foi criada uma sala para atendimento exclusivo a este público, onde eram realizadas sessões de bioenergética, reenergização com pirâmides e argiloterapia, a sala Dulce18. A princípio, o preparo dos medicamentos era feito na casa de Lina, depois passou a ser feito em uma cozinha dentro da sede da igreja. Atualmente, esta sala está ocupada com objetos e com os produtos de um bazar de roupas usadas e as atividades do grupo estão restritas à cozinha comunitária que funciona na igreja. Lina é sempre um tema constante nas conversas das mulheres do Grão, foi ela quem convidou a maioria das atuais integrantes a participar do projeto19. Sua fotografia exposta no alto da parede, em frente à porta de entrada, é uma forma de marcar sua importância e influência para o grupo. Atualmente, o Grão de Mostarda é coordenado por Lúcia, que também é a representante da Rede para assuntos relativos ao Inventário Nacional de Referências Culturais. As técnicas usadas para o preparo dos produtos, bem como a dinâmica de funcionamento, diferem das que eram utilizadas há alguns anos. Sob a coordenação de Lina, as integrantes se revezavam durante cinco dias da semana e tinham tarefas definidas. Hoje, o Grão tem atividades às terças e quintas. Às terças, somente duas integrantes produzem medicamentos e atendem o público na parte da manhã. Às quintas, oito mulheres fazem o mesmo das 8h 18 O nome da sala foi escolhido em homenagem a uma mulher que também atuava nas ações sociais da Igreja Nossa Senhora de Fátima e faleceu em decorrência de um câncer no seio. 19 Dona Geralda, uma das integrantes mais velhas e mais antigas, conta que Lina faleceu em decorrência de lúpus, uma doença auto-imune. Quando foi diagnosticada, ela se recusou a seguir o tratamento médico indicado. 31 às 17h. Ninguém recebe pagamento pelo trabalho realizado. O resultado das vendas é revertido para custear as atividades do grupo, como a compra de materiais e insumos. 1.3.1 - Como aderiram? A maioria das integrantes do Grão tem idades entre 43 e 76 anos e começou a participar após já fazer parte de outras atividades dentro da Igreja. O clube de mães (oficinas de artesanato para jovens mães da paróquia), o círculo bíblico (grupos de estudos da Bíblia) e grupos missionários, de orações e cânticos, foram citados como as primeiras atividades com as quais algumas delas se envolveram, para, em seguida, entrarem no Grão. São elas as irmãs Martins − Lúcia (45 anos, coordenadora do grupo), Luíza (43 anos) e Luzia (41 anos); Isabel (56 anos), Neusa (47 anos), Fátima (60 anos), Lourdes (54 anos), Gracinha (75 anos) e Geralda (76 anos)20. Gracinha é reconhecida por seu talento em cuidar de plantas e pelo conhecimento que têm sobre ervas medicinais. Era chamada pelas falecidas companheiras do grupo como “a pequena raizeira” e foi convidada a participar depois que preparou um xarope que curou uma gripe insistente do antigo pároco da igreja. Hoje, ela é a responsável pela horta e, para mantê-la, conta somente com a ajuda de Isabel e de outro voluntário que não faz parte do grupo, o Sr. Cândido. As duas colhem e escolhem as ervas para a fabricação de todos os medicamentos. Isabel entrou para o Grão através do convite de Lina e Benedita, pois também participava do círculo bíblico. Ela veio para o Rio de Janeiro já adulta, quando ficou sozinha depois que criou os sobrinhos. Mora em Belford Roxo há mais de 10 anos e criou dois filhos adotivos − um rapaz, que hoje é militar, e uma moça, com 17 anos. Ela ainda trabalha como faxineira três vezes por semana, em Santa Amélia, outro bairro de Belford Roxo. 20 Veja adiante o quadro 2. 32 Geralda mora no bairro desde 1970 e começou a trabalhar a convite de Lina. Ela participa de outras atividades da Igreja, como os grupos missionários de evangelização, que visitam a casas de pessoas que não têm condições de freqüentar a Igreja. Muitas vezes, levam produtos do grupo para serem doados “àqueles que precisam”. Lourdes conta sua própria história de cura pelas plantas para atestar a eficácia dos medicamentos que produz. Sua adesão ao grupo aconteceu quando descobriu um câncer no intestino. Na época, em 1997, ela ajudava na sala de curativos aplicando argila, fazendo massagem e garrafadas de babosa, tratamento ao qual se submeteu a fim de aumentar suas chances de sobreviver à doença. Os médicos apostavam que ela teria que ser colostomizada, pois seria necessário retirar parte do intestino em um processo cirúrgico, e submetida à quimioterapia e à radioterapia. Após a cirurgia, seu câncer foi considerado curado. Segundo ela, os médicos se surpreenderam e a questionaram sobre o tratamento alternativo que realizou. Lourdes é conhecida na comunidade pelas geléias e biscoitos que faz e vende, muitos são feitos com cascas de alimentos. Ela é divorciada, vive com a pensão do ex-marido e a complementa com a venda dos quitutes. Neusa participa do grupo há quase três anos e decidiu se engajar “porque já conhecia todo mundo, mas não fazia nada e se sentia uma inútil”. Ela também participava do círculo bíblico e foi convidada por Lina. Tem oito filhos, nasceu em Diamantina e veio para o Rio de Janeiro para tentar uma vida diferente da que a mãe teve, que era alcoólatra e faleceu quando ela tinha 10 anos. Fátima é a mais nova integrante do Grão, apesar de ser uma das mais antigas no movimento comunitário. Moradora do bairro há 40 anos, ela participou ativamente da associação de moradores e dos movimentos sociais da Igreja. Há dois anos, quando deixou o cargo de coordenação, vem se dedicando ao aprendizado de outras coisas que lhe interessavam. Sua adesão ao grupo aconteceu após freqüentar alguns cursos, abertos à comunidade, que realizou sobre terapias alternativas de saúde (argiloterapia, noções de bioenergética, homeopatia e alimentação natural). Fátima foi responsável pela entrada das irmãs Martins 33 no trabalho como agentes de saúde comunitárias. Foi ela quem as indicou para o processo seletivo elaborado na prefeitura de Belford Roxo. Lúcia tornou-se coordenadora depois do falecimento de Lina. Formada em Administração, a única do grupo com Terceiro Grau completo, ela trabalha como agente de saúde comunitária no programa Saúde da Família, implantado pelo Ministério da Saúde. Também participa ativamente da Pastoral da Saúde na Baixada Fluminense. Na Rede Fitovida, é responsável pelo Inventário Nacional de Referências Culturais em curso com o acompanhamento de técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que tem como objetivo registrar as práticas e receitas dos grupos da Rede como patrimônio imaterial. A aproximação de Lúcia das “questões sociais da comunidade” foi gradual. “Primeiro me converti à Pastoral da Saúde, em um retiro que aconteceu em Jardim Amapá, a convite de Lina”. Foi ali que começou sua participação na Rede e, em seguida, no Grão, para onde também levaria suas duas irmãs. A história da mãe, Alzira, falecida em 2003, foi determinante no envolvimento das filhas Lúcia, Luíza e Luzia. Alzira era coordenadora da associação de moradores de Belford Roxoe foi muito ativa na organização da assistência para centenas de famílias desabrigadas em diversas enchentes que assolaram a comunidade nas décadas de 70 e 80. Antes de sua família ir viver em Belford Roxo, elas moravam no bairro de Rocha Miranda, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Lúcia participava de grupos de jovens da Igreja, como a “Cruzada do Adolescente”. A mudança as confrontou com uma outra realidade, o que mobilizou ainda mais o ativismo de Alzira. Durante o curso universitário e início da carreira profissional, Lúcia se manteve distante das atividades sociais, enquanto sua mãe mantinha-se ativa. A reaproximação só aconteceu anos mais tarde. “Minha mãe cobrava muito a minha participação”, afirmou. O falecimento de Alzira, seguido do falecimento de Lina, foi o empurrão final. “Nunca pensei que participaria de nada relativo à saúde, sempre tive medo de fazer curativos, injeções, essas coisas. Quando penso nesse trabalho, penso muito em minha mãe, ela ajudava bastante, era ela quem tinha o conhecimento. Quando a Lina faleceu, achei que era o momento de vir. Aí, não resisti, aprendi a mexer panela e tomei gosto pela coisa”. 34 Como assinalado acima, as irmãs de Lúcia, Luíza e Luzia foram bastante influenciadas pela mãe. Luzia é agente de saúde há seis anos e participou como voluntária na sala de curativos, coordenada por Dona Benedita e que, atualmente, está desativada: “Quando a Benedita faleceu, a Lina me convidou para dar uma mão, mas ainda não tinha sentido ‘o chamado’. Faz um ano que estou no Grão e fazem dois anos que comecei a participar da sala de curativos”. Luíza conta que costumava se definir como atéia e nunca participou das atividades da igreja. Seu envolvimento com o Grão foi “uma obra do destino”. "Comecei a ajudar aqui sem compromisso, sem mais nem menos. Quando fui ver, já estava envolvida sem perceber. E minha vida é essa. Agora estou aqui ajudando, aprendendo. Ainda tenho muito que aprender", conta. O fato das reuniões semanais dos agentes comunitários de saúde serem realizadas sempre às quintas-feiras no posto de saúde em frente à igreja, onde o Grão de Mostarda se reúne, também contribuiu para sua adesão. 35 Quadro 2 - Dados biográficos das entrevistadas Nome Idade Renda Familiar Escolaridade Estado Civil Filhos Netos Bisnetos Profissão Estado de origem Gracinha 75 R$ 450,00 aposentadoria alfabetizada fora da escola viúva 2 operária/ dona de casa MG Lourdes 54 R$ 450,00 pensão Médio completo divorciada 2 esteticista MG Geralda 75 R$ 450,00 aposentadoria marido alfabetizada casada 2 dona de casa/ agricultora PB Isabel 57 R$ 150,00 alfabetizada Solteira 2 adotivos - - faxineira PE Neusa 47 - Aposentadoria Marido Ensino fundamental incompleto casada 8 - dona de casa MG Fátima 60 - Aposentadoria Marido Médio completo casada 2 dona de casa RJ Lúcia 45 R$ 600,00 Superior completo solteira - - - agente de saúde RJ Luzia 41 R$ 600,00 Médio completo casada 3 1 - agente de saúde RJ Luíza 43 R$ 600,00 Médio incompleto casada 3 1 - agente de saúde RJ 36 1.3.2 - Referência na comunidade A proximidade com o posto de saúde, em frente à Igreja, e a participação de três agentes comunitárias de saúde no grupo demonstra alguma sinergia entre as ações de saúde preventiva oficiais e as práticas alternativas. O trabalho das agentes é monitorar um determinado número de famílias, mas não há nenhuma relação direta e imediata com o trabalho voluntário. Segundo Luzia21, para as pessoas que buscam ajuda, não há muita diferença se ela é agente de saúde ou voluntária. “Muitas vezes, a gente consegue ajudar mais pela Igreja do como agente de saúde. A Saúde no município é precária, está mais doente que os próprios doentes”, afirma. O público que busca os remédios vem porque ouviu falar dos remédios e da atenção das “meninas”, ou até mesmo porque já é cliente há tempos. A eficácia dos remédios é reconhecida pelos médicos e enfermeiros do posto, que chegam a recomendá-los. Essa interação foi um dos motivos do fechamento da sala de curativos, que funcionava até o início de 2006 ao lado da sala do Grão, dentro da Igreja. Luzia era uma das voluntárias da sala de curativos, onde eram usados muitos dos produtos do Grão de Mostarda, como as pomadas. “O pessoal do posto encaminhava as pessoas para cá para fazerem o curativo. A gente percebeu que, ao invés de ajudar a comunidade, estava substituindo um trabalho que não era de nossa competência”, conta Lúcia Elas são unânimes ao afirmarem a precariedade dos serviços de saúde no município. Apesar de defenderem a maior eficácia dos remédios naturais, elas reconhecem que é necessário seguir o tratamento médico alopata para cuidar de doenças como diabetes, hipertiroidismo, pressão alta, problemas cardiovasculares etc. Somente duas delas afirmam ter plano de saúde privado e só uma faz uso do plano que dispõe. Elas têm muitas histórias para contar sobre como foram mal atendidas nos postos de saúde e hospitais locais e como já tiveram que buscar socorro médico em outros municípios. Também há casos de desistência na procura de atendimento, devido a tais dificuldades. 21 Luzia e Luíza são mais conhecidas na comunidade do que a irmã, Lúcia. São elas que estão mais presentes no grupo, enquanto a irmã mais velha freqüenta reuniões da Rede e da Pastoral da Saúde. 37 Dentre as tristes histórias sobre a precariedade da saúde em Belford Roxo destacam-se dois casos lembrados por elas nas conversas após os almoços. Um deles é sobre um médico que atendeu no posto durante anos, era considerado excelente médico e querido pela comunidade. Quando houve um recadastramento na Prefeitura, descobriu-se que ele não tinha diploma e então, o falso médico foi afastado. Outro caso é o de um médico obstetra que foi eleito deputado estadual recentemente, com expressiva votação. Este médico é conhecido por “conseguir” cirurgias de laqueadura de trompas para as mulheres da Baixada Fluminense e dispõe de um eleitorado feminino fiel. Ele foi o protagonista de uma passagem triste na vida de Neusa. Prestes a dar a luz, em sua última gestação, ela foi ao hospital na hora marcada para a cesariana e foi informada de que não estava cadastrada. Foi necessário um corre-corre para localizar documentos que comprovassem a marcação da cirurgia. Após horas de desgaste emocional, tudo foi esclarecido e a cesariana foi feita, mas, uma hora após o parto, o bebê faleceu. O médico nunca lhe deu satisfações sobre o que houve com a criança e Neusa foi deixada durante horas na enfermaria da maternidade com um berço vazio ao lado de seu leito. 1.3.4 - O processo de trabalho: a preparação dos medicamentos Atualmente, a produção de medicamentos à base de ervas medicinais no grupo Grão de Mostarda segue um ritmo determinado. Das 8h às 17h, elas produzem os remédios, almoçam, voltam à “linha de produção”, atendem a comunidade e encerram o “expediente” com um cafezinho. Os produtos disponíveis são: vermífugo, xaropes, sabão, compostos de chás diversos, pó de ovo, pomada cicatrizante, óleo para dor, pomada de enxofre, multimistura22, xampu para combater piolhos e leite forte (quadro 3). 22 A multimistura é um produto para fortalecer a alimentação, destinado principalmente ao público infantil através do projeto da Pastoral da Criança. Leva farinhas integrais enriquecidas com outros minerais necessários ao bom desenvolvimento das crianças. A produção do grupo também está voltada a atender a famílias da região registradas no programa de assistênciada Pastoral. Segundo a coordenadora do grupo, a relação com a Pastoral da Criança se resume a isso. 38 Tais medicamentos revelam que o destino principal é opúblico infantil, embora possam ser usados por adultos. Há duas qualidades de xarope: o de gripe comum (com assa-peixe, guaco e laranja da terra) e o de bronquite (umbigo da banana). O leite forte e a multimistura também podem ser usados por pessoas desnutridas, mas são fortificantes feitos para as crianças. É grande o fluxo de mães, acompanhadas de seus bebês e crianças pequenas, em busca dos medicamentos. O contato no balcão vai além de uma relação comercial. Freqüentemente, se alonga em uma conversa sobre o desenvolvimento dos pequenos23. Conselhos sobre cuidados materno-infantis são comuns e estão presentes na vida familiar de cada uma delas, tendo em vista que muitas são avós de crianças ainda pequenas. Quadro 3 - Produtos fabricados pelo Grão de Mostarda Produto Composição Quantidade Preço Vermífugo À base de sementes de mamão, melão, girassol e abóbora em pó Pacote com 20g R$ 1 Xarope gripe Calda de açúcar mascavo ou cristal diluída em água com tinturas de guaco, assa-peixe e laranja- da-terra Frasco com 100 ml R$ 2 Xarope bronquite Calda de açúcar mascavo ou cristal diluída em água com tintura de umbigo da Frasco com 100 ml R$ 2 23 Esse perfil dominante do consumidor final ficou claro ao observar como o xarope era feito. Fátima, Neusa e Lourdes preparavam um litro de calda para que fossem acrescentadas as tinturas. Elas se confundiram com a proporção de tintura x calda para aquela quantidade e o gosto da tintura, à base de álcool de cereais, ficou muito forte. Elas perceberam o equívoco quando provaram e Lourdes disse: “quem mais toma isso é criança”. 39 banana Sabão medicinal Sabão de coco ralado fervido com sumo de ervas batidas em água Barra com 50g R$ 1,50 Compostos de chás Ervas secas Embalagens de 30g R$ 2 Pó de ovo Cascas de ovo secas e trituradas Embalagem com 20 g R$ 1 Pomada cicatrizante Base de lanolina e vaselina com tinturas de babosa, cajueiro e aroeira Embalagem com 30 g R$ 2,50 Óleo para dor Óleo com extrato de abacate Embalagem com 10 ml R$ 2 Pomada de enxofre Base de lanolina e vaselina com enxofre Embalagem com 20g R$ 2 Multimistura Farelo de trigo enriquecido com folhas de abóbora e mandioca secas e trituradas Embalagem com 200g R$ 2 Leite forte Leite em pó com açúcar mascavo ou cristal com farinhas integrais Embalagem com 300g R$ 3 Xampu contra piolhos Sabão de coco ralado e dissolvido no sumo de ervas como melão de São Caetano, Confrei e Macaé. Embalagem com 200ml R$ 4 40 Como disse anteriormente, todas as refeições são compartilhadas, bem como os lanches com biscoitos e bolos caseiros. A preparação do almoço demanda uma dedicação equivalente à dos remédios e toma quase todo o final da manhã, envolvendo duas ou mais participantes. Talvez seja um dos momentos mais importantes do dia. Como a alimentação é reconhecida pelo grupo como uma das formas de manutenção da boa saúde, é um acontecimento que permite pôr em prática ou discutir os princípios do grupo como, por exemplo, o uso comedido de sal, de açúcar e de gordura. Legumes e folhas estão sempre presentes à mesa, muitos foram cultivados na horta local, como as folhas de mostarda, couve e a abóbora. Tudo indica que não há radicalismos, o que permite levar à mesa refrigerantes, cerveja, vinho e doces. Tal combinação do cardápio foi motivo de brincadeira entre elas algumas vezes. É também este o momento em que se reúnem todas as participantes e os agregados do Grão (outros funcionários do posto de saúde, alguns filhos das integrantes e eventuais visitantes). 1.3. 5 - Mexendo as panelas "Tem uma coisa que as senhoras do grupo falam e que a minha mãe falava também. É para sempre se mexer a panela em um mesmo sentido, nunca mudar, até conseguir mexer todo o conteúdo. Se mexer em vários sentidos, desanda". (Lúcia) O uso de “remédios naturais” é para elas uma tradição de família, aprendida com mães, avós, avôs e vizinhos. Muitas vezes, é justificado como uma opção mais barata aos medicamentos industrializados. “Quando se tem a quantidade de filhos que eu tive, era bem mais barato fazer um xarope de folhas em casa. Eu os levava no médico, saia de lá com uma receita e não tinha dinheiro para comprar”, conta Neusa. Esse diagnóstico é o que, para ela, define a importância do grupo na comunidade. O posto de saúde presta atendimento, mas não dispõe de todos os remédios. Essa percepção sobre a função social do grupo privilegia o aspecto econômico e é de longe a reflexão mais comum que justifica a importância do trabalho para suas integrantes. 41 Perguntadas sobre recursos mágicos de cura, como as rezas, somente Neusa e Isabel afirmaram conhecer pessoas na comunidade que se dedicavam a essas práticas. A primeira conta que recorria com freqüência às rezadeiras quando os filhos eram pequenos e ficavam doentes. “Isso é do tempo da vovó mesmo, elas diziam que estava com o ‘vento virado’, a ‘espinhela caída’. Eu sempre tive muita fé, não sei se dava certo porque eu acreditava ou porque curava mesmo. Hoje, quase não tem pessoas que rezam”, conta Neusa. Isabel ainda procura as rezadeiras para que rezem a sua cabeça quando não está se sentindo bem. Ela dize que quando tem uma dor de cabeça pede a Deus para passar, não usa remédio nem vai ao médico. Com exceção de Neusa e Isabel, observei a ausência do aspecto mágico de cura e a existência de um processo controlado de fabricação de medicamentos, principais características da Rede Fitovida no que diz respeito aos cuidados com a saúde. Na medida em que os grupos cresceram e saíram do ambiente doméstico, houve um processo de padronização, levado a cabo através da realização de cursos de formação. Misturaram-se o conhecimento tradicional sobre o uso de plantas medicinais e o conhecimento técnico de profissionais da área (farmacêuticos, biólogos e enfermeiro que contribuem ou até mesmo trabalham voluntariamente na Rede). O acesso aos serviços de saúde, ainda que precários, favoreceu o surgimento de novas categorias para definir as doenças. Nenhuma delas afirma sofrer de “vento virado”, “quebranto” ou “espinhela caída”, mas muitas afirmam ter sofrido com catarata, diabetes, mioma, câncer e hipertensão. A busca por um tratamento médico alopata está relacionada à gravidade da enfermidade e sempre que possível, elas o combinam com terapias naturais ou utilizam exclusivamente as plantas. Tal processo resultou em uma reflexão-chave para a Rede e seus grupos: universalizar um padrão de fabricação de medicamentos, ou seja, tornarem-se uma farmácia com remédios à base de plantas medicinais, ou reconhecer a variedade de procedimentos e usos e situá-los como um conjunto de saberes tradicionais sobre cuidados com a saúde. A escolha pela segunda opção ocorreu quando a Rede percebeu que jamais poderia ser bem-sucedida como produtora de medicamentos, o que seria inviável dadas as características dos grupos (trabalho voluntário, ausência de equipamento técnico para produção farmacológica etc) e que o objetivo maior 42 era afirmar uma identidade cultural, que inclui formação de redes de solidariedade e a valorização do conhecimento tradicional. Quem chega mais cedo à cozinha comunitária checa a disponibilidade de material e começa a produzir. As ervas são provenientes da horta, dos jardins das casas das integrantes ou de mercados populares, como o Mercadão de Madureira. Passam por uma lavagem manual, folha a folha, e em seguida são levadas
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