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Dissertacao ME Mariana Leal

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE RIO DE JANEIRO 
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS 
 
 
 
 
Mulheres da Rede Fitovida: 
Ervas medicinais, envelhecimento e associativismo 
 
 
Por Mariana Leal Rodrigues 
 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
_______________________________ 
Profª. Drª. Clarice Peixoto (orientadora/UERJ) 
 
 
__________________________________ 
Profª. Drª.Myriam Lins e Barros (ESS/UFRJ) 
 
 
 _________________________________ 
Prof. Dr. César Carvalho (UNESA) 
 
 
 
RIO DE JANEIRO 
Agosto/2007 
 
 
 2 
 
Agradecimentos 
 
 
Este trabalho não seria possível sem a boa 
vontade de inúmeros colaboradores, que 
abriram portas, indicaram caminhos ou 
acolheram o projeto. Em primeiro lugar 
agradeço às integrantes da Rede Fitovida 
que aceitaram a proposta e permitiram sua 
realização e à Luciene Simão (UFF), pela 
gentileza de me apresentá-las. 
 
Sem a tolerância, a escuta e a ajuda de 
familiares e amigos, a pesquisa teria sido 
mais penosa. Agradeço a Dirceu Bellizzi 
pela compreensão e o apoio de sempre. 
 
 As produções do texto e do vídeo também 
contaram com muitos braços solidários. 
Agradeço a Bárbara Copque e a meu pai 
Alcides Redondo, que deram uma mãozinha 
na captação de som; a André Sutton, que 
não só editou o filme como colaborou para 
construção da narrativa; a Adriana 
Manhane que criou a trilha sonora e às 
revisoras Gláucia Cruz e Sheila Dunaevits 
 
Finalmente, agradeço ao corpo docente do 
Programa de Pós-Graduação em Ciências 
Sociais da UERJ, em especial à professora 
Clarice Peixoto, e à Faperj que forneceram 
as condições para a realização desta 
pesquisa, como a possibilidade de participar 
do programa Bolsa Nota 10. 
 3 
 
 
 
 
 
 
 
À memória minha querida Vó Thereza, que não 
era herbalista, mas dominava a arte de cuidar. 
 4 
 
 
 
 
 
 
 
Sabe medicina. 
Aprendeu com sua avó. 
Analfabetina, 
que domina como só, 
plantas e outros ramos, 
da flora medicinal. 
Com cento e oito anos, 
nunca entrou num hospital. 
 
(Vela no Breu, de Paulinho da Viola e Sérgio Natureza). 
 
 5 
Resumo 
 
Existem no Rio de Janeiro cento e oito grupos que produzem remédios com ervas 
medicinais de maneira voluntária. Desde 2000, formam a Rede Fitovida para transmitir 
conhecimento e debater soluções conjuntas para as dificuldades que enfrentam. É um 
movimento sem filiação partidária ou religiosa cujas características principais são o 
trabalho voluntário e a venda de preparações medicamentosas a preço de custo. É composto 
por mulheres com 50 anos ou mais, de camadas populares, que se reúnem em cozinhas 
comunitárias. 
 
O objetivo da pesquisa é analisar os aspectos culturais – práticas curativas e transmissão de 
conhecimentos − de um grupo que integra a Rede Fitovida. Através da metodologia 
antropológica e do registro audiovisual, o que possibilita um olhar mais cuidadoso sobre os 
fenômenos sociais, esta pesquisa visa compreender quem são essas mulheres, o que fazem e 
por que o fazem. 
 
Na medida em que participam de uma rede de trocas, além de cuidarem da saúde de si, dos 
familiares e vizinhos, as mulheres da Rede Fitovida se constituem como um movimento 
social reivindicatório − pois demandam o reconhecimento do Estado pelo saber que detêm 
− e transformam a própria percepção enquanto sujeitos em processo de envelhecimento, 
resignificando alguns estigmas negativos da velhice. 
 
 
Abstract 
In Rio de Janeiro State, there are one hundred and eight groups of women who produce 
medicines with herbs. Since 2000, they are organized in a network called Rede Fitovida to 
transmit their knowledge and debate how to deal with their common difficulties. It’s a 
social movement without party or religion affiliation composed by old women from 
popular layers that get together at kitchens of communitarian centers. None of them receive 
money or any other kind of payment for their work. Their activity is volunteer and non-
profitable. 
 
The objective of this ethnography is to analyze cultural aspects of a group that belongs to 
this network, such as healing practices and knowledge transmission. Through an 
anthropological methodology and audiovisual documentation − which allows a more 
careful look on the social phenomena − this research aims to understand who are those 
women, what they do and why. 
 
As part of a network of exchanges, besides taking care of their health and of their 
neighborhood’s, these women create a social movement that demands the recognition for 
their traditional knowledge by the State. They also change their own perception of 
individuals in aging process, overcoming the negative elderly stigmas. 
 6 
 
Índice 
 
 
 
Introdução −−−− Mulheres da Rede Fitovida: um olhar para o envelhecimento 7 
Capítulo I −−−−A Rede Fitovida e o grupo Grão de Mostarda: surgimento, constituição e 
processo de trabalho 16 
Capítulo II −−−− O milagre das plantas e concepções de natureza na Rede Fitovida 60 
Capítulo III −−−− Envelhecimento feminino, sociabilidade e construção de identidades 96 
Capítulo IV −−−− Câmera e pesquisa: o que audiovisual revela 123 
Considerações Finais 167 
Filmografia 177 
Bibliografia 178 
 7 
 
 
Introdução 
 
 
Mulheres da Rede Fitovida: um olhar para o envelhecimento 
 
 
 8 
 
Uma vez por semana, um grupo de mulheres se encontra na cozinha comunitária de uma 
igreja para produzir e distribuir medicamentos naturais a preço de custo. Duas vezes por 
ano, dezenas de grupos similares se encontram e trocam receitas e experiências. No estado 
do Rio de Janeiro, hoje, existem cento e oito grupos que produzem remédios com ervas 
medicinais de maneira comunitária, articulados a partir da Rede Fitovida. Tais grupos são 
formados majoritariamente por mulheres com 60 anos ou mais, pertencentes às classes 
populares e, em geral, se reúnem nos espaços cedidos pelas igrejas católica e evangélica. 
Desde 2000, estão organizados em rede, para que possam trocar conhecimento, 
compartilhar dificuldades e buscar soluções conjuntas. 
 
Estas mulheres já atuavam no ambiente familiar, orientando vizinhos e vendendo suas 
preparações medicamentosas − são xaropes, ungüentos, sabonetes, xampus, tinturas etc, 
feitos com ervas medicinais. Na medida em que passaram a se organizar em grupos e em 
rede, começaram a atuar também no espaço público, prestando atendimentos voluntários 
em saúde preventiva. Esta transição modificou o modo como trabalham e transmitem seu 
conhecimento, valorizando a figura das mulheres mais velhas como detentoras de um 
saber. 
 
Apesar de se organizarem dentro do ambiente da Igreja Católica, suas práticas não estão 
ligadas a curas espirituais. Os grupos que integram a rede não se definem como agentes de 
curas religiosas e o termo fitoterapia revela a intenção de se diferenciarem destes agentes. 
 
Em 2003, sem avançar no relacionamento com o poder público1, a Rede Fitovida conseguiu 
apresentar, com sucesso, uma proposta de registro de saberes como patrimônio imaterial ao 
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, graças ao apoio de um grupo de 
pesquisadores da Universidade Federal Fluminense que fazia pesquisas sobre o registro de 
 
1
 Atualmente, quem regula esta atividade é a Agência Nacional de Vigilância, estabelecendo normas e 
procedimentos para a comercialização de produtos fitoterápicos. Estas leis e normas tornam vulnerável o 
trabalho comunitário desenvolvido pelos grupos, mesmo sem fins lucrativos, os medicamentos são 
comercializados ou doados, dependendo danecessidade do doente. Para evitar chamar a atenção de órgãos 
como a Vigilância Sanitária, os grupos são batizados com nomes que não identificam imediatamente a 
atividade terapêutica com plantas, como Saúde pela Natureza, Natureza Viva, etc. 
 
 9 
patrimônio imaterial de práticas culturais. Atualmente, a rede concentra esforços para 
realizar um inventário de suas receitas, o primeiro passo no processo de registro. 
 
Plantas medicinais no Brasil 
 
O uso de plantas medicinais no Brasil foi a base da farmacopéia até meados do século XX, 
quando houve o boom da indústria farmacêutica no mundo. 
 
“Até o século XX, o Brasil era um país essencialmente rural, com amplo uso da flora 
medicinal, tanto a nativa quanto a introduzida. Com o início da industrialização e subseqüente 
industrialização do país, o conhecimento tradicional começou a ser posto em segundo plano. 
O acesso a medicamentos sintéticos e o pouco cuidado com a comprovação farmacológica 
das plantas tornou o conhecimento da flora medicinal sinônimo de atraso tecnológico e 
charlatanismo. Essa tendência seguiu o que já acontecera em outros países em processo de 
urbanização. 
 
Um segundo aspecto que certamente contribuiu para o afastamento do estudo das plantas 
medicinais e o restante da ciência foi a ampla resistência desta primeira às profundas 
alterações que tanto a sistemática vegetal quanto a medicina experimentaram no final do 
século XIX e todo o século XX. Fortemente baseado em trabalhos mais clássicos, o estudo 
das plantas medicinais mostrou uma resistência inicial a acompanhar as revoluções científicas 
ocorridas neste período. Essa inadequação inicial manteve a fitoterapia em um período de 
obscurantismo, onde esteve mais próxima do misticismo do que da ciência.” (Lorenzi & 
Mattos, 2002:) 
 
A noção de medicina popular, normalmente, engloba diversas técnicas exercidas de 
diferentes formas, por pessoas que são especialistas em ervas, que receitam, vendem ervas 
naturais ou produtos compostos, parteiras, benzedeiras e raizeiros. Estas atividades são 
exercidas em espaços públicos e privados e, muitas vezes, através de agências religiosas 
católicas, pentecostais, umbandistas e candomblecistas. As críticas e controles que se 
fazem aos “curandeiros” revelam a importância dos médicos como os detentores do 
conhecimento oficial sobre a saúde. 
 10 
 
Autores que se dedicaram ao tema, como L. Boltansky e A. Loyola, mostraram que a 
medicina natural é constituída de práticas de medicina doméstica, à qual as pessoas 
recorrem primeiro em caso de doença2. Somente após terem sido esgotadas as alternativas 
caseiras de cura, o médico é procurado. 
 
Atualmente, a fitoterapia e outras terapias consideradas “alternativas” (homeopatia, 
crenotrapia e acunpuntura) têm sido reconhecidas como práticas médicas e introduzidas nos 
atendimentos do Sistema Único de Saúde para o tratamento de doenças crônicas e na 
prevenção. 
 
Um olhar, um grão 
 
O campo, em si, permite diversas abordagens. É um trabalho voluntário realizado por 
mulheres, em comunidades de baixa renda, na área de saúde preventiva. É um movimento 
social reivindicatório que põe em evidência pessoas com 60 anos ou mais. Elas apresentam 
relatos de cura distintos . Nesta pesquisa, pretendo analisar os aspectos culturais – práticas 
curativas e transmissão de conhecimentos – de um grupo do município de Belford Roxo 
que integra a Rede Fitovida, o Grão de Mostarda. 
 
Este grupo3 funciona na cozinha da Igreja Nossa Senhora da Fátima, em frente ao posto de 
saúde do bairro Santa Maria. Todas as quintas-feiras, dezenas de pessoas o freqüentam à 
procura de xarope para gripe, bronquite, multimistura4, leite forte, pomadas, vermífugos, 
sabonetes, xampus e mistura de chás, entre outros produtos. Às vezes, o melhor remédio é 
 
2
 Sobre as práticas familiares: “É preciso ter em mente que os moradores do bairro, quando doentes, tratam-se 
primeiro por conta própria e só recorrem aos diversos especialistas da cura depois de esgotarem todos os 
recursos terapêuticos familiares. Estes resultam, basicamente, de uma experiência acumulada pela família” 
(Loyola, 1984:125). 
3
 O Grão de Mostarda é composto por onze mulheres moradoras de Belford Roxo. Cinco delas têm menos de 
50 anos, duas afirmam ter entre 50 e 60 anos e o restante tem entre 60 e 75 anos. A renda familiar do grupo 
varia de meio salário até dois salários mínimos. 
4
 A multimistura é um produto para fortalecer a alimentação, destinado principalmente às crianças através do 
projeto da Pastoral da criança. Leva farinhas integrais enriquecidas com outros minerais necessários ao bom 
desenvolvimento das crianças. A produção do grupo também está voltada a atender a famílias da região 
registradas no programa de assistência da Pastoral. Segundo a coordenadora do grupo, Elisabeth Martins, a 
relação com a Pastoral da Criança se resume a isso. 
 11 
uma conversa à beira do balcão com algumas das senhoras do grupo. Neste dia, o café, o 
almoço e o lanche são compartilhados, sempre acompanhando biscoitos e bolos caseiros. 
 
A ferramenta de pesquisa utilizada foi uma câmera de vídeo, o que resultou em um material 
rico em histórias de vida, momentos de sociabilidade, receitas curativas à base de plantas 
medicinais e, principalmente, narrativas de cura surpreendentes. Através da escolha deste 
instrumento, foi possível realizar um exame cuidadoso e repetido das atividades registradas. 
A própria produção do vídeo etnográfico se tornou elemento da construção da relação entre 
observador e observado e, posteriormente, de preservação da memória do grupo, um 
processo do qual o Grão de Mostarda e a Rede participaram ativamente. 
 
Considerando a Rede Fitovida como uma associação, cujo objetivo das reuniões é não só a 
transmissão das receitas curativas, mas também a criação de um espaço de sociabilidade 
para mulheres de 60 anos ou mais − já que elas brincam, conversam e trocam experiências 
nesses encontros - busquei entender qual a importância do projeto fitoterápico e das 
práticas de sociabilidade para estas mulheres que vivem na Baixada Fluminense do Rio de 
Janeiro. 
 
Como são mulheres de idade mais avançada, muitas aposentadas ou pensionistas, é de se 
imaginar que nesta etapa da vida já não postulariam mais participar de grupos sociais 
reivindicativos. Assim, a principal questão que pretendo desenvolver é: o que leva essas 
mulheres de baixa renda a se organizarem em redes e a pleitearem o reconhecimento do seu 
saber popular como patrimônio? Quais são as formas de transmissão desse conhecimento e 
para quem o transmitem? 
 
Diante de inúmeras condições desfavoráveis – os integrantes dos grupos que compõem a 
Rede Fitovida pertencem às classes populares, não dispõem de recursos para investir na 
fabricação dos medicamentos e na promoção de reuniões etc –, acredito que o trabalho 
desenvolvido pelos grupos de mulheres seja um exemplo de ação, autonomia e criatividade 
individual diante de um contexto social em que vivem. Se de um lado existe a 
proeminência de determinismos sociais sobre estes indivíduos – com a precariedade dos 
 12 
serviços de saúde, a frivolidade das relações entre médico e paciente, o alto custo de 
medicamentos industrializados e o papel da mulher mais velha na família etc − de outro, há 
a subjetividade dos atores: suas experiências pessoais com a medicina popular, a 
necessidade de sociabilidade, o valor simbólico do trabalho voluntário etc. 
 
Também podemos compreender a Rede como uma forma de resistência às megaestruturas 
do setor produtivo (como as indústrias farmacêuticas e de alimentos) e a afirmação de 
valores tradicionais. Ao contrário dos programas para a Terceira Idade “criados” para se 
enquadrarem no modelo de consumo capitalista– em grupos de convivência, clubes, 
escolas e cursos que oferecem a “sociabilidade” como uma de suas mercadorias (Britto da 
Motta, 2004: 113) –, a Rede Fitovida é uma associação de promoção de laços de 
solidariedade, com ações voltadas para o benefício da comunidade. 
 
Devo assinalar que não tenho a intenção de analisar a questão sob o prisma dos estudos de 
religião. Embora estar inserido nas Comunidades Eclesiais de Base seja uma dimensão 
importante para a compreensão do fenômeno no estado do Rio de Janeiro, seus valores 
fundamentais são conceitos humanistas de igualdade, solidariedade e fraternidade, que, 
antes de serem adotados como um projeto cristão, fundamentaram o projeto democrático 
moderno. 
 
A experiência da Rede Fitovida é um exemplo de prática da medicina natural popular que 
permite refletir sobre um tema essencial às Ciências Sociais: a polarização entre 
determinismo pela estrutura e a capacidade de expressão e ação subjetivas. Na medida em 
que reivindicam a legitimação de suas práticas, as mulheres da Rede Fitovida buscam se 
colocar em um lugar privilegiado como detentoras de um saber tradicional. Entretanto, a 
fonte deste conhecimento não se restringe à memória das integrantes mais velhas ou às 
receitas de família. Suas práticas também são influenciadas por fontes literárias sobre o 
assunto e pela popularização da medicina alternativa (barroterapia, bioenergética etc) a 
partir de uma "onda de naturalismo", para usar as palavras de uma integrante do Grão de 
Mostarda. Portanto, a ação destes grupos é também reflexiva e está se atualizando 
 13 
constantemente, seja na troca de uns com os outros, seja na aquisição de novos 
conhecimentos médicos, produzindo uma verdadeira “reinvenção” da tradição. 
 
Ao distribuírem suas preparações medicamentosas a preço de custo, as integrantes da rede 
reforçam o princípio ético da não obtenção de lucro através de suas práticas através de um 
complexo sistema de trocas. Ao contrário da medicina científica, o verdadeiro saber do 
grupo não é a técnica da fabricação dos medicamentos em si, mas a forma de cuidar, o que 
põe em destaque as relações pessoais no processo de cura. 
 
Minha hipótese é que a experiência da Rede Fitovida seja de enorme importância na vida 
cotidiana de suas integrantes e das comunidades onde vivem, tendo em vista o grande 
número de grupos espalhados pelo estado do Rio de Janeiro. A partir deste trabalho, elas 
resignificam o processo de envelhecimento, combatendo os estigmas de inutilidade, doença 
e degeneração física e mental aos quais esta etapa da vida é associada. 
 
Um caminho 
 
O primeiro capítulo é dedicado às informações sobre a Rede Fitovida, a maneira como 
surgiu, como está constituído como movimento social, seus valores e objetivos, além de 
sua dinâmica de mobilização. Também apresento o grupo Grão de Mostarda, sua história, 
suas integrantes, a forma de adesão de cada uma e as preparações medicamentosas que 
produzem. Este grupo funciona em frente a um posto de saúde municipal e sua 
coordenadora também é responsável pela condução do Inventário Nacional de Referências 
Culturais na Rede Fitovida. 
 
A questão que a Rede Fitovida reivindica − reconhecimento do conhecimento popular 
sobre uso de plantas medicinais como patrimônio imaterial − é uma estratégia de 
legitimação pela cultura, uma vez que esse reconhecimento não tem sido possível através 
de políticas públicas de saúde. Nesse capítulo analiso a posição do Ministério da Saúde e 
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária no que diz respeito ao uso de plantas 
medicinais. 
 14 
 
No segundo capítulo, analiso como as representações da natureza na cultura brasileira 
fundam a noção compartilhada pela Rede Fitovida de que os remédios naturais são 
melhores do que os industrializados e, ainda, como esta Rede resignifica o papel do povo, 
positivando-o, na medida em que considera o saber popular como um bem imaterial. Tais 
percepções condicionam técnicas de cuidados com a saúde − a prática de uma alimentação 
e da medicina naturais − que caracterizam os grupos da Rede, combinando terapias 
preventivas com plantas medicinais e medicina científica. A transmissão de conhecimentos 
realizada de forma individual e coletiva, no ambiente familiar e nos ambientes públicos, é 
analisada a partir da prática cotidiana das mulheres do grupo Grão de Mostarda e dos 
encontros da Rede Fitovida. 
 
No terceiro capítulo, aprofundo a análise sobre como estas mulheres de camadas populares 
experimentam o processo de envelhecimento, superando os estigmas negativos da velhice. 
Enquanto um movimento social de mulheres, a Rede Fitovida se inscreve na tendência 
mundial de participação feminina em ações sociais. O processo de envelhecimento e as 
diversas formas de vivenciar esta etapa da vida pelos indivíduos estão relacionados neste 
capítulo com as transformações demográficas atualmente em curso na sociedade brasileira. 
 
O quarto capítulo é dedicado à metodologia aplicada na pesquisa, que teve como principal 
instrumento o uso do audiovisual durante o trabalho de campo. A fim de situar o leitor 
quanto ao uso desta ferramenta e para encontrar uma metodologia para o uso do 
audiovisual na pesquisa etnográfica, precisei ir buscar a história de construção desse 
campo. 
 
O princípio de feedback das imagens, a encenação que o uso da câmera provoca e a 
necessidade de ser reflexivo na pesquisa antropológica são alguns temas que desenvolvo a 
fim de mostrar quais foram as escolhas metodológicas, suas vantagens e desvantagens. O 
uso do audiovisual permite ao espectador perceber a relação entre observador e observado 
que se estabelece ao longo de todas as pesquisas antropológicas, além de reunir um 
material que se presta a análises diversas, inclusive para outros pesquisadores. Quem dita o 
 15 
“texto” do vídeo são os próprios agentes, pois são as únicas vozes a contar o que é feito. A 
autoria fica por conta de um “olhar” particular, um ponto de vista construído a partir de 
uma experiência. 
 
Para percorrer o caminho interpretativo de um fenômeno social, foi preciso perceber o que 
já trazemos conosco em nossa bagagem de pesquisador. Em se tratando de uma etnografia 
que usa o audiovisual, é necessário ter atenção às representações sobre o povo na produção 
audiovisual contemporânea, documentário e ficção, e sobre os espaços comumente 
consagrados ao povo, como as favelas e as periferias. Alguns filmes serviram de referência, 
como A pessoa é para o que nasce, de Roberto Berliner (2005), e a obra de Eduardo 
Coutinho, que são citados e analisados. O primeiro coloca uma questão para a realização de 
seu filme: "Existe vida inteligente na miséria e na pobreza?"− que é reveladora sobre a 
forma como o cinema documental brasileiro tem trabalhado a imagem das camadas 
populares através da valorização da cultura, principalmente a partir dos anos 80 (Leite, 
2006:48). 
 
Embora esta pesquisa não ignore questões como a ausência de políticas públicas eficazes 
para pessoas com 60 anos ou mais e a precariedade do serviço público saúde, o objetivo 
não é fazer um vídeo etnográfico em tom de denúncia, mas que conte como mulheres vão 
experimentando novas identidades na medida em que se engajam em uma ação social. O 
ponto de partida é um questionamento comum a muitos estudos sobre envelhecimento: "É 
possível envelhecer sem se deixar influenciar pelos estigmas negativos da velhice?" 
(Peixoto, 2004:9). 
 16 
 
 
 
 
 
 
 
Capítulo I 
 
 
A Rede Fitovida e o grupo Grão de Mostarda: surgimento, 
constituição e processo de trabalho 
 17 
A Rede Fitovida se formou quando líderes comunitários envolvidos em projetos 
semelhantes de saúde alternativa, desenvolvidos no estado do Rio de Janeiro, decidiram 
promover encontros para debater suasatividades. Havia muitos grupos que produziam 
medicamentos com ervas medicinais por meio de trabalho voluntário que não se conheciam 
e estavam isolados, a partir da identificação destes grupos − feita por Rita de Cássia5 
(moradora de Queimados e que pertencia a um grupo na paróquia local), Marta (médica e 
homeopata que realizava um trabalho semelhante em São Gonçalo) e Marcos6 (agrônomo 
que desenvolvia projetos de agricultura urbana com comunidades de baixa renda) − 
organizaram cursos e encontros que resultaram na formação da Rede em 2000. 
 
Segundo um artigo assinado por alguns integrantes, a história da formação da Rede está 
ligada ao surgimento de grupos voltados para atender às demandas das comunidades onde 
estavam localizados. Em 1980, a Diocese de Nova Iguaçu convidou uma irmã para 
ministrar um curso sobre manipulação e uso de ervas medicinais, o que motivou a 
organização de alguns grupos apoiados pelas paróquias locais. Mas foi na década de 90 que 
grande parte delas se fortaleceu. Três exemplos são: o grupo Energivida, de Xerém; o 
Sementinha, do complexo de favelas da Penha; e o Grupo Alternativo de Sáude, de Volta 
Redonda. 
 
Em um encontro de partilha realizado em 2001, foi redigida uma carta de princípios e 
começaram a discutir de que maneira era possível oficializar a atividade7, sujeita a uma 
legislação rigorosa. 
 
5
 Todos os nomes utilizados neste trabalho são pseudônimos. 
6
 Engenheiro agrônomo e coordenador do Programa de Agricultura Urbana da AS-PTA, ONG que desenvolve 
projetos de agroecologia. 
7
 Segundo o código penal, artigos 283 e 284, quem exerce a medicina popular, receitando substâncias ou 
usando gestos e palavras para fazer diagnósticos e obter curas, pode ser considerado curandeiro ou charlatão 
(o charlatanismo está definido no artigo 283 e o curandeirismo pelo 284). As penas variam de três meses a 
dois anos de detenção. A lei determina o que é uma prática legítima de medicina e o que é ilegítimo. Alguns 
grupos da Rede chegaram a sofrer ameaças e represálias por comercializarem medicamentos fitoterápicos, o 
que explica o nome dos grupos serem sempre referências à natureza . Outros, como o Grão de Mostarda, 
conseguem uma sinergia com o serviço de saúde local, seus produtos têm eficácia reconhecida e são 
recomendados pelos médicos que atendem no posto de saúde local. 
 18 
 
O Encontro de 2001 aconteceu no município de Duque de Caxias e apresentava os 
seguintes princípios: solidariedade; não ter fins lucrativos; estimular trocas solidárias e 
multiplicação de agentes; preservar a natureza; plantar sempre e colher o que plantar, 
privilegiando as hortas comunitárias; acreditar na medicina natural e ter independência em 
relação à indústria farmacêutica; promover o movimento através de trocas; fortalecer a 
rede; lutar politicamente por melhores condições de vida; resgatar e fortalecer o saber 
popular como fonte de conhecimento; valorizar e estimular adesões e respeitar a 
disponibilidade de cada um; respeitar e ouvir a opinião do outro; ter independência do 
poder público; movimento não-religioso e apartidário; facilitar o acesso a alimentos 
saudáveis e naturais; socializar a informação e, por último, não aceitar como naturais o 
oportunismo e a barganha política. 
 
Em 2003, após discutirem qual seria a melhor forma de organização, passaram a se 
denominar “Rede Fitovida, Movimento Popular de Saúde Alternativa”, com o objetivo de 
reunir as diferentes experiências e refletir sobre o trabalho desenvolvido nos grupos. A 
Rede é uma “articulação social em prol dos conhecimentos tradicionais sobre plantas 
medicinais”, formada por um conjunto de grupos constituídos por mulheres idosas, “que 
possuíam um grande saber tradicional sobre plantas medicinais e remédios caseiros”8. 
Sobre o processo de formação da Rede, Rita conta: 
 
 “A gente percebeu que não queria ser ONG, nem associação, nem cooperativa. Queria ser, de 
fato, um movimento articulador dessa experiência. (...) E nos amarramos a começar a 
aprofundar de que forma a gente podia ter o registro dentro dos critérios colocados naquele 
encontro. E aí, no ano seguinte, a gente descobre que existe por parte do governo federal, 
através do Ministério da Cultura, um referencial que pensa e discute essa questão do registro a 
partir de um inventário do saber popular. Onde garante que homens e mulheres possam 
produzir e trabalhar com as plantas medicinais e serem reconhecidos e respeitados a partir das 
leis colocadas” (Rita de Cássia, 2006). 
 
O caminho para a organização dos grupos esbarrou “na falta de reconhecimento e de 
políticas públicas que respeitem os saberes do povo como conhecimento culturalmente 
 
8Artigo proposto à Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, Rio de Janeiro, no prelo. 
 19 
construído”9. A busca de legitimação desta prática junto à população e ao Estado apontou 
para um “novo caminho”: o Inventário Nacional de Referências Culturais (INCR) do 
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Para dar início ao registro da prática 
da medicina popular como bem imaterial10 foi preciso a colaboração e a autorização do 
IPHAN, em 2003. Desta forma, através do Ministério da Cultura, a Rede Fitovida 
reivindica o reconhecimento pelo trabalho voluntário que realiza. 
 
Na cartilha de princípios da Rede destacam-se pontos significativos para compreender o 
propósito desta organização. Além de afirmar sua natureza voluntária, sem fins lucrativos, 
alguns tópicos têm clara indicação política (como a afirmação do valor do conhecimento 
popular e a reserva quanto ao envolvimento dos grupos em ações político-partidárias), 
enquanto outros visam regular as práticas de saúde alternativa e estimulá-las, 
principalmente no que diz respeito às formas de organização. Fica evidente no conteúdo 
desta carta de princípios a reivindicação pelo direito ao exercício de uma medicina natural, 
a valorização de cultivos orgânicos e a independência das indústrias farmacêuticas e de 
adubos. 
 
Entretanto, no artigo (Matos et al.) é possível identificar de forma mais clara a missão − 
“resgatar os saberes tradicionais no uso das plantas, de antigos moradores, e promover 
hábitos alimentares mais saudáveis”, a visão - "a natureza como fonte de inspiração para 
viabilizar opção de saúde independente da indústria farmacêutica" e os valores da 
organização - "a prática de solidariedade, tendo compromisso com a transformação da 
sociedade". Podemos ainda identificar neste texto o campo de ação da Rede para além do 
impacto em suas comunidades: “Sabe-se que muitos são os interesses articulados às 
corporações internacionais, aos grandes laboratórios, aos saques à biodiversidade, ao 
registro de patentes, aos problemas referentes à propriedade intelectual, às acusações de 
prática de curandeirismo, que desqualificam os fazeres da farmacopéia popular. Fora 
 
9
 Idem. 
10O inventário tem sido feito sob a orientação de técnicos do IPHAN e coordenado por alguns membros da 
Rede: Luciene Simão, antropóloga e doutoranda da UFF; Elisabeth Marins, administradora e integrante do 
grupo Grão de Mostarda; Luzia Martins, mestre em Botânica; Márcio Mattos, mestre em Engenharia 
Agrônoma e Viviane Ramiro, fisioterapeuta sanitarista. A função dos coordenadores é orientar os 
interlocutores de alguns grupos no levantamento das informações e consolidá-las para que sejam entregues 
aos técnicos do IPHAN. 
 20 
todos esses conflitos de interesse, temos ainda as agências de saúde pública operando com 
um olhar burocrático, preocupado apenas com o princípio ativo das plantas”. 
 
Desta forma, a Rede Fitovida reconhece que sua função social vai além de permitir trocassolidárias de preparações medicamentosas e que visa, sobretudo, reservar o saber popular 
tradicional a salvo de interesses comerciais e transmiti-lo. Os integrantes da Rede, através 
deseus princípios e objetivos, demonstram uma preocupação em fomentar uma nova cultura 
de prevenção em saúde com a valorização do conhecimento dos mais velhos, promovendo 
um “resgate”, isto é, restituindo tal conhecimento para a população. 
 
O método científico que regula as práticas da medicina e somente reconhece o uso de 
plantas medicinais mediante estudos farmacológicos foi uma referência para a Rede na 
elaboração de suas propostas, ainda que seja contestado. O conflito medicina popular x 
medicina científica vem sendo analisado por diversos autores, entre eles, veremos as 
considerações de L. Boltanski, Loyola e E. Oliveira. Entretanto, não será o eixo desta 
pesquisa, uma vez que a própria Rede já abandonou este confronto, posto que sua 
reivindicação, atualmente, é a autonomia da população para praticar a prevenção e os 
cuidados com a saúde sem a submissão à lógica médica. 
 
Em pesquisa sobre medicina popular entre famílias urbanizadas e rurais na França, 
Boltanski mostra como a percepção da doença, o recurso ao médico, o consumo de 
medicamentos e a utilização de práticas de saúde familiares estão relacionados “a uma 
estrutura de classes, através, de um lado, do uso do corpo, cujas determinações primeiras 
podem ser buscadas no sistema produtivo, e, de outro, na medicina científica que do ponto 
de vista ideológico tem sobre aquele um controle quase absoluto” (Boltanski, 1979: 10). 
Para o autor, a legitimação da medicina científica se pautou na oposição às práticas leigas, 
como o curandeirismo, com o qual foram identificadas as práticas de medicina popular. No 
Brasil, essa oposição se fortaleceu no decurso do século XX com a ampliação do acesso à 
saúde para a população, sobretudo ao longo do rápido processo de urbanização. 
 
 21 
Loyola desenvolveu uma pesquisa sobre as práticas de saúde da população de Nova Iguaçu, 
na Baixada Fluminense (1976 a 1979), na qual relacionou as diversas práticas de cura com 
seus atores para mostrar como estavam ligadas à cura do corpo e do espírito, revelando as 
representações do processo saúde-doença e os diferentes sistemas de cura. Para a autora, 
naquele momento, a Igreja Católica priorizava a medicina tradicional, científica, em 
detrimento das práticas populares. Ao mesmo tempo em que a Igreja estimulava a 
população a reivindicar o acesso aos serviços públicos de saúde, precários na região, 
repudiava as práticas de cura baseadas em superstições e magias, bem como as exercidas 
em terreiros de umbanda e candomblé e por outros “profissionais” de cura. 
 
“Assim, a história da medicina, pelo menos há um século, é a história de uma luta contra os 
preconceitos médicos do público e, mais especialmente, das classes baixas, contra as práticas 
médicas populares, com o fim de reforçar a autoridade do médico, de lhe conferir o 
monopólio dos atos médicos e colocar sob sua jurisdição novos campos abandonados até 
então ao arbítrio individual, tais como a criação dos recém-nascidos ou a alimentação” 
(Loyola, 1984, 14). 
 
A autora ainda chama a atenção sobre a forma como a medicina popular é descrita por 
folcloristas, situada fora do contexto das práticas médicas. 
 
“Adotando implicitamente o ponto de vista da medicina científica, a única reconhecida 
oficialmente, eles tendem a conceber o conhecimento e as técnicas da medicina popular como 
sobrevivências folclóricas de uma época passada, de regiões rurais e comunidades 
tradicionalmente isoladas e atrasadas, ligando o desaparecimento destas práticas terapêuticas 
ao desenvolvimento da urbanização” (Loyola, 1982:3). 
 
E. Oliveira afirma que a medicina popular é parte da história concreta de determinados 
grupos sociais e “é constituída por um amplo e heterogêneo espectro de concepções de 
vida e de valores que possuem um sentido e um significado forte e verdadeiro para aqueles 
que a utilizam” (Oliveira, 1985:14). Para a autora, a persistência desta prática deve ser 
compreendida como uma forma de veicular uma visão de mundo, de doença e de saúde, e 
de promover uma relação de cura marcada por relações mais pessoais e humanas. Explicar 
 22 
o hábito da população em consultar as ervateiras, benzedeiras e parteiras somente como 
uma alternativa mais barata e acessível do que a medicina tradicional, ou como uma prática 
exclusiva de camponeses pobres, iletrados e ignorantes, é reduzir sua complexidade a uma 
perspectiva instrumental e econômica que não leva em conta a prática da medicina popular 
como parte da cultura. 
 
A principal reivindicação da Rede Fitovida é o reconhecimento de sua prática como um 
saber tradicional, isto é, como uma prática cultural de cuidados com a saúde. É esse o 
principal aspecto que a diferencia dos demais grupos espalhados em todo o Brasil, que 
possuem atividades similares. Outra peculiaridade é a forma da organização em rede, um 
fenômeno tipicamente contemporâneo, como observa M. Castells − “a forma mais 
democrática de organização” (Castells, 1999:85). A Rede Fitovida expressa a 
horizontalidade do movimento, em que não há uma coordenação central, mas uma gestão 
participativa com representantes de cada regional da Rede: Metropolitana, Baixada, Sul e 
Norte Fluminenses. 
 
Ainda é preciso compreender a Rede Fitovida como uma organização que funciona graças 
ao apoio de igrejas, com predominância de igrejas católicas, o que a caracteriza como 
organização cuja origem da motivação de seus participantes é religiosa. Vale lembrar que 
são as organizações religiosas que reúnem o maior número de articulações e formas de 
solidariedade no Brasil. A pesquisa realizada pelo ISER Filantropia e Cidanania no Brasil 
(2000) demonstra que “entre aqueles indivíduos que têm o hábito de doar, estão mais 
propensos a doar seu tempo aqueles que têm uma prática religiosa freqüente”; e há maior 
confiança nas instituições religiosas, pois entre o doador e o receptor existe a intermediação 
divina, evidenciando a complexidade de um circuito de retribuição que envolve 
motivações, valores, crenças e outras contrapartidas (Novaes, 2002:44). 
 
A Igreja Católica foi ao longo da história a principal aglutinadora da caridade dos mais 
ricos e a principal parceira do Estado no campo da assistência social. Se ainda hoje não 
existem dados panorâmicos sobre o universo da ação social católica no Brasil, é possível 
afirmar que o “mundo católico” reúne em diferentes espaços as mais diversas iniciativas de 
 23 
ação social, sejam de motivação religiosa ou humanitária. “O cardápio da Igreja Católica é 
diversificado, através de vários espaços institucionais, de movimentos leigos, da 
territorialidade paroquial e a Igreja acaba absorvendo novas linguagens e novas parcerias 
do campo assistencial, sem excluir circuitos mais tradicionais” (Novaes, 2002:20). 
 
Entre as organizações católicas destacadas na pesquisa, estão a Pastoral da Criança e a 
Sociedade São Vicente de Paulo. Nestas, a maior parte dos voluntários é pobre e vive em 
regiões pobres do país. Para Zilda Arns, coordenadora nacional da Pastoral da Criança, o 
ponto-chave de seu sucesso está, principalmente, na motivação constante para a mística da 
fraternidade (Novaes, 2002: 24). A Pastoral da Criança é uma referência para Rede, uma 
vez que muitos dos produtos difundidos pela organização, como o leite forte e a 
multimistura, também são produzidos em muitos grupos da Rede. A estrutura 
organizacional também é semelhante; conta com trabalho voluntário de líderes 
comunitários que vivem nos mesmos bolsões de pobreza de seus assistidos. 
 
Embora a Rede afirme em sua carta de princípios ser uma organização a-religiosa e não 
utilizar recursos mágicos de cura, não podemos deixarde compreender as motivações de 
suas participantes em separado de seus valores e crenças. Coexistem justificativas e 
motivações humanísticas e cidadãs, como a necessidade de participar das “questões sociais 
da comunidade” e das religiosas − como “servir a Deus”. Assim como no âmbito nacional 
pesquisado pelo ISER11, as falas e justificativas das integrantes da Rede revelam que suas 
motivações para o voluntariado são reconhecidas como formas de retribuir as 
oportunidades que tiveram na vida, bem como de construir uma sociedade melhor. 
 
11
 LANDIM, Leilah e SCALOM, Maria Celi (2000)- Doações e Trabalho Voluntário no Brasil. Rio de 
Janeiro, NAU Editora. 
 24 
1.2 - Encontros da Rede Fitovida: sociabilidade e associativismo 
 
“Todo ano, a gente faz este encontro para trocar receitas de medicina 
alternativa, aquelas do tempo da vovó, é uma espécie de reciclagem, (...) Então, 
quem tem vontade, vai aumentando, quem não tem, paralisa, né?”. 
 (Maura) 
 
Desde sua formação, a Rede Fitovida promove grandes encontros (ver quadro 1) entre seus 
membros para debater suas necessidades e promover a troca de experiência e 
conhecimento. Há dois tipos de eventos; o Encontro de Partilha Estadual e o Encontrão, 
cada um reunindo, pelo menos, uma centena de participantes. O primeiro acontece de seis 
em seis meses, durante um dia inteiro e o objetivo principal é a troca de experiências. O 
segundo é realizado uma vez por ano, durante dois dias, e tem como objetivo discutir 
questões estratégicas para a Rede, como o inventário12, por exemplo. Estes temas também 
são discutidos em reuniões bimestrais, menores, com lideranças das regionais, ao longo do 
ano. Em 2005 e 2006, aconteceram quatro encontros de partilha ao todo. Em 2007, está 
previsto um Encontrão. Não haverá Encontros de Partilha. 
 
Três Encontros de Partilha foram registrados ao longo da pesquisa. O primeiro, em 
novembro de 2005, aconteceu no ginásio da Paróquia Nossa Senhora de Aparecida, em 
Nilópolis. Em maio de 2006, foi na área dos fundos da Paróquia Santa Luzia, em Nova 
Iguaçu. Já em outubro de 2006, teve lugar no ginásio da Paróquia Nossa Senhora de 
Fátima, em Belford Roxo, onde também funciona o grupo aqui estudado, o Grão de 
Mostarda. 
 
As partilhas são apresentadas por um mestre de cerimônias, que normalmente é uma das 
lideranças da Rede. De acordo com o tema13, são apresentadas técnicas ou receitas. Esta 
fase prática pode tanto ocupar a primeira metade do evento − das nove da manhã até o 
 
12
 Um dos temas que será debatido em um Encontrão em 2007 será a forma como a indústria farmacêutica se 
apropria de princípios ativos de plantas e cria suas patentes. Para discutir esse assunto, foi distribuído, a preço 
de custo, a cópia de um livro durante o Encontro de Partilha, que aconteceu em outubro de 2006. 
13
 Em novembro de 2005 o tema discutido no Encontro de partilha foi estética corporal. Em maio de 2006, foi 
alimentação natural e reaproveitamento de alimentos. Em outubro de 2006, foi sobre o reconhecimento de 
plantas. 
 25 
horário de almoço − quanto a segunda, do final do almoço até às 16h. O início e o final do 
evento são sempre marcados por ritos católicos, com a fala do padre que recebe a Rede em 
sua paróquia, preces e cantos católicos, ora animados, ora solenes. 
 
O almoço também é uma partilha propriamente dita, pois cada participante leva um prato 
de comida para si e mais duas pessoas. O grupo que recebe o evento também prepara um 
prato principal, servido com a variedade de cardápios trazidos. A fartura e a diversidade de 
comidas são uma constante nesses eventos. Após o almoço, quem quiser apresentar alguma 
receita relacionada ao tema central pode ir para o centro (onde as mesas e cadeiras são 
organizadas em círculo), com o microfone em punho. 
 
Quadro 1 – Atividades da Rede Fitovida 
ANO Encontro de Partilha Encontrão 
 TEMA LOCAL TEMA LOCAL 
2000 Formação da 
rede 
Petrópolis 
2001 Cartilha de 
princípios 
Jardim 
Amapá, 
Duque de 
Caxias 
2003 Legalização das 
atividades 
Vila de Cava, 
Nova Iguaçu 
 
2004 Produção 
orgânica 
Nova Friburgo 
2005 Homeopatia São Gonçalo 
2005 Estética 
corporal 
Nilópolis 
2006 Alimentação 
natural 
Nova Iguaçu 
2006 Reconhecimento 
de plantas 
Belford Roxo 
2007 Inventário Guapimirim 
 
Enquanto as receitas são relatadas, alguns grupos levam seus produtos para serem trocados 
ou comercializados em balcões ou mesas, sempre a preço de custo: um momento onde é 
possível observar a diversidade dos grupos. Se no encontro de novembro de 2005 havia 
cerca de 50 pessoas, no de maio de 2006 eram mais de 150 pessoas. A faixa etária do 
último foi visivelmente mais elevada do que no primeiro. Já o segundo Encontro de Partilha 
 26 
de 2006, versando sobre reconhecimento de plantas, contou com cerca de 150 participantes 
e teve uma dinâmica diferente. Divididos em grupos, as pessoas identificaram cerca de 15 
plantas cada e relacionaram suas propriedades curativas. À tarde, cada grupo apresentou 
seu trabalho, e somente ao final do dia temas gerais de interesse da Rede foram discutidos. 
 
Um resumo do que acontece em um Encontro de Partilha é registrado em um informativo, 
chamado Fitoteia, normalmente distribuído entre os grupos ou nos próprios encontros. 
 
1.2.1 - É dando que se recebe14 
 
"Inclusive o que tem aqui, quando alguém do grupo da gente quer, eu dou as mudas, as folhas, mas 
quando vem gente aqui de fora, aí eu vendo a um real uns galhos, uns molhos, que é para eu 
arrecadar dinheiro para comprar mais mudas para plantar aqui. Porque está faltando muito 
mesmo para plantar aqui, como o confrei, que já tem aí, a erva de São João...". (Gracinha) 
 
 
Podemos compreender as atividades da Rede e dos grupos através de um sistema de trocas, 
na qual os indivíduos transitam e se expressam. Tomo como referência o estudo da dádiva 
empreendido por Mauss, que, segundo ele próprio, “funciona ainda em nossas sociedades”, 
e percebo os Encontros de Partilha como um fato social total15, “onde se exprimem 
instituições religiosas políticas e morais”. Como complementou Lévi-Strauss, ali existe 
algo mais do que coisas trocadas, é onde se iniciam uma série de vínculos sociais. 
 
 
14
 Um esquema da dádiva opera na Rede. Encontrar tamanha hospitalidade e acolhida, participar dos fartos 
almoços às quintas-feiras com o grupo Grão de Mostarda, fez com que me sentisse na obrigação de retribuir. 
Muito além dos bolinhos integrais que procurava levar para a sobremesa nos dias de trabalho de campo, criei 
um compromisso de restituir o material filmado e fotografado, liberando o seu uso pelo grupo e pela Rede. O 
mesmo procedimento foi observado por C. Peixoto na sua pesquisa sobre a sociabilidade dos velhos em Paris 
e no Rio (2000). Tratarei desta questão no capítulo 2. 
15
 “Nesses fenômenos sociais totais, como nos propomos a chamá-los, exprimem-se ao mesmo tempo e de 
uma só vez, toda a espécie de instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas políticas e familiares ao 
mesmo tempo; econômicas – supondo formas particulares de produção e de consumo, ou antes, de prestação e 
de distribuição, sem contar os fenômenos estéticos nos quais desembocam tais fatos e os fenômenos 
morfológicos que manifestam estas instituições. De todos esses temas muito complexos e desta multiplicidade 
de coisas sociais em movimento, queremos considerar aqui um único traço, profundo, mas isolado: o caráter 
voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito e, no entanto, imposto e interessado dessas 
prestações.” (Mauss, 1974: 41) 
 27 
O sistema que opera nos gruposda Rede Fitovida é distinto daquele dos Encontros de 
Partilha. Estes são uma oportunidade para fazer os produtos circularem, conhecer outras 
receitas e outras medicações naturais. É um momento de mostrar o que se sabe para todos 
da Rede. Se o isolamento de grupos com trabalhos semelhantes foi um dos fatores 
observados pelas lideranças da Rede antes de sua formação e o que motivou o surgimento 
da organização, o Encontro de Partilha é a estratégia adotada para combatê-lo. Na medida 
em que são trocadas mudas de planta e receitas, formam-se vínculos entre os diferentes 
grupos16. 
 
A ritualística da Partilha promove o surgimento de alianças e de uma comunhão na qual o 
almoço compartilhado é o ponto alto. Desta forma, podemos observar a tríplice obrigação 
de dar, receber e retribuir. Quem doa obtém prestígio e oferece uma aliança. Quem recebe, 
aceita a aliança e fica obrigado a retribuir. Ofertar uma receita ou uma preparação 
medicamentosa é validá-la perante a Rede, é ter um produto de sucesso para mostrar. É 
mostrar que seu grupo trabalha bem. É distinguir-se, é mostrar a sua própria sabedoria e sua 
própria riqueza, fortalecendo os laços sociais. Dos três Encontros de Partilha observados, 
dois distribuíram brindes para os participantes: um saquinho com argila (a estética corporal 
foi o tema e ofereceram uma oficina/sessão de argiloterapia) e um sabonete de glicerina 
com extrato de ervas. 
 
Já os 108 grupos da Rede lidam diretamente com um público local, vendendo 
medicamentos a preço de custo ou doando para quem não pode pagar. Os produtos 
circulam quando os integrantes os levam para outros grupos ou feiras em outras igrejas e 
festas. Embora seja possível compreender o sistema de doação e venda de medicamentos 
 
16
 No Encontro de maio de 2006, uma cena me chamou a atenção. Um senhor que integra um grupo de São 
Gonçalo chegou com uma caixa repleta de garrafadas e foi até a “barraca” onde estavam outros produtos 
fitoterápicos sob os cuidados de uma irmã, pertencente a outro grupo. Ele começou a retirar uma a uma as 
garrafas, para o combate de diversos tipos de doença – o que durou alguns minutos. Ela os recebeu com 
surpresa e perguntou se eram feitas com álcool de cereais. Ele respondeu que sim, aquelas garrafadas eram 
uma doação para a ‘obra”. Momentos depois, na entrevista sobre as preparações dispostas na sua barraca, a 
irmã explicou que seu grupo não integrava a Rede e o que tudo o que produziam era supervisionado por uma 
farmacêutica. Com a câmera desligada, perguntei se ela distribuiria as garrafadas doadas na sua comunidade, 
e, para minha surpresa, ela disse que não o faria, pois não sabia como haviam sido feitas. Este episódio revela 
a obrigatoriedade de receber o produto doado e a desconfiança sobre a sua procedência, ainda que ele tenha 
sido doado no âmbito do evento ao qual a propria irmã participava. Podería, assim, considerar a irmã como 
uma outsider na Rede, posto que não compartilhava de seus princípios e não aceitou a aliança proposta. 
 28 
nos grupos da Rede sob o ponto de vista puramente econômico e utilitário, essa explicação 
sozinha não é suficiente. Os produtos distribuídos e comercializados pela Rede possuem 
uma função utilitária clara, afinal, são medicamentos. E ainda apresentam uma “vantagem” 
na relação custo-benefício, pois são mais baratos que remédios semelhantes 
industrializados (fitoterápicos com extratos das mesmas plantas) e a medicação alopática. 
Entretanto, é preciso ir mais fundo para compreender que ali também reside “uma mistura 
de coisas e almas, de objetos e pessoas” (Coelho, 2006: 19). 
 
A “venda” das preparações medicamentosas não pode se resumir simplesmente a um 
comércio, pois não existe um ganho mensurável em dinheiro para quem produz e/ou 
comercializa. Não ter fins lucrativos é um princípio fundamental da Rede. Além disso, não 
existe nenhum tipo de recompensa financeira para quem trabalha, nem mesmo uma ajuda 
de custo, como ocorrem em diversas organizações não-governamentais que também não 
objetivam o lucro, mas buscam formas de sustentabilidade, além de depender do trabalho 
voluntário. 
 
Normalmente, as cozinhas onde funcionam os grupos da Rede se tornam referências na 
comunidade onde estão instalados17. A análise de Malinowski sobre o kula, em que possuir 
é dar e na qual riqueza, poder e generosidade estão relacionadas, pode iluminar a questão. 
Além de dedicarem um dia inteiro da semana para as atividades do grupo de forma 
voluntária, as integrantes costumam levar alimentos e seus produtos para pessoas doentes 
ou “necessitadas”. Desta forma, elas próprias se tornam referência na comunidade. No caso 
do Grão de Mostarda, aquelas que estão presentes às terças e quintas na cozinha 
comunitária são mais conhecidas do que as que se dedicam à administração do grupo. 
 
A retribuição que elas obtêm, relatam, é ver uma pessoa curada, é o sentimento de utilidade 
e competência, ou seja, atender quem busca ajuda ou simplesmente uma escuta é uma 
forma de apresentar-se para a comunidade, de criar uma nova identidade, distinta daquela 
 
17
 O trabalho do grupo Grão de Mostarda, por exemplo, é reconhecido pelos médicos do posto de saúde 
municipal situado em frente a sede do Grão. Ao longo do trabalho de campo, presenciei pessoas que 
buscavam o grupo para obter doações de roupa e, até mesmo, remédios de alopatia de receita controlada (não 
disponível no posto e muito menos nas prateleiras do grupo). 
 29 
presumida aos velhos e às classes populares na sociedade contemporânea. Além do 
prestígio, existe o crédito com as pessoas “ajudadas”. 
 
Um relato colhido enquanto o Grão de Mostarda preparava o Encontro de Partilha que iria 
sediar, concomitantemente ao aniversário de onze anos do grupo, é revelador da expectativa 
do contradom. As senhoras do grupo escolhiam uma foto de Benedita, uma integrante já 
falecida, que seria homenageada e uma delas relatou: 
 
“Dona Benedita ajudava todo mundo, mas morreu sozinha. Não estava se sentindo bem, foi 
em casa pegar a carteirinha para ir ao médico, passou mal e caiu na porta de casa. Só no dia 
seguinte foram descobrir que ela estava morta. Quem a encontrou foi o pai de uma criança 
que estava sendo levada para que ela desse alguma assistência. O bebê também morreu alguns 
dias depois”. (Isabel) 
 
A solidariedade dos vizinhos pode ser determinante em caso de um acidente ou mal súbito. 
Neusa conta como conseguiu salvar o marido, que enfartava dentro de casa. 
 
“Ele começou a passar mal e não tínhamos como levar para o hospital. Imagina, ficar 
esperando um ônibus com um homem infartando. Foi um Deus nos acuda. Até que o levamos 
para o posto de saúde do lote XV. Graças a Deus, ele foi muito bem atendido”. 
 
Conforme ressalta Mauss, o sistema da dádiva “funciona de forma desinteressada e 
obrigatória, ao mesmo tempo. Além disso, esta obrigação se exprime de maneira mítica, 
imaginária ou, se se quiser simbólica e coletiva: assume o aspecto de interesse ligado às 
coisas trocadas. Estas nunca são completamente desligadas dos que as trocam: a 
comunhão e a aliança que eles estabelecem são coletivamente indissolúveis.” (Mauss, 
1974:92). Muito além da distribuição de remédios para as pessoas que precisam, está a 
“convivência gostosa” resultante do trabalho realizado. “Um prazer enorme”, “um alívio” 
são algumas das expressões utilizadas para descrever os próprios sentimentos de pertencer 
ao Grão de Mostarda. Colocar-se no lugar de quem doa é uma forma de afirmação social do 
indivíduo, na qual a reciprocidade estimula a sociabilidade. 
 30 
1.3 - O Grão de Mostarda: um grupo de mulheres da Rede Fitovida 
 
Dentre os 108 grupos distribuídos pelo estado do Rio de Janeiro, escolhi um para realizar apesquisa: o grupo Grão de Mostarda, de Belford Roxo. Foi fundado em 1995 pela iniciativa 
de algumas mulheres que atuavam nas atividades sociais da Igreja Nossa Senhora de 
Fátima: a bióloga Lina e a enfermeira Benedita, ambas já falecidas. Contava com a 
participação de 12 mulheres. O apoio histórico da Igreja Católica da Baixada Fluminense a 
movimentos comunitários faz com que nesta região estejam alguns dos grupos melhor 
organizados da Rede. A proposta inicial do Grão era dar apoio e tratamentos alternativos 
para as mulheres vítimas de câncer de mama. Assim, foi criada uma sala para atendimento 
exclusivo a este público, onde eram realizadas sessões de bioenergética, reenergização com 
pirâmides e argiloterapia, a sala Dulce18. A princípio, o preparo dos medicamentos era feito 
na casa de Lina, depois passou a ser feito em uma cozinha dentro da sede da igreja. 
Atualmente, esta sala está ocupada com objetos e com os produtos de um bazar de roupas 
usadas e as atividades do grupo estão restritas à cozinha comunitária que funciona na igreja. 
Lina é sempre um tema constante nas conversas das mulheres do Grão, foi ela quem 
convidou a maioria das atuais integrantes a participar do projeto19. Sua fotografia exposta 
no alto da parede, em frente à porta de entrada, é uma forma de marcar sua importância e 
influência para o grupo. 
 
Atualmente, o Grão de Mostarda é coordenado por Lúcia, que também é a representante da 
Rede para assuntos relativos ao Inventário Nacional de Referências Culturais. As técnicas 
usadas para o preparo dos produtos, bem como a dinâmica de funcionamento, diferem das 
que eram utilizadas há alguns anos. Sob a coordenação de Lina, as integrantes se 
revezavam durante cinco dias da semana e tinham tarefas definidas. Hoje, o Grão tem 
atividades às terças e quintas. Às terças, somente duas integrantes produzem medicamentos 
e atendem o público na parte da manhã. Às quintas, oito mulheres fazem o mesmo das 8h 
 
18
 O nome da sala foi escolhido em homenagem a uma mulher que também atuava nas ações sociais da Igreja 
Nossa Senhora de Fátima e faleceu em decorrência de um câncer no seio. 
19
 Dona Geralda, uma das integrantes mais velhas e mais antigas, conta que Lina faleceu em decorrência de 
lúpus, uma doença auto-imune. Quando foi diagnosticada, ela se recusou a seguir o tratamento médico 
indicado. 
 31 
às 17h. Ninguém recebe pagamento pelo trabalho realizado. O resultado das vendas é 
revertido para custear as atividades do grupo, como a compra de materiais e insumos. 
 
1.3.1 - Como aderiram? 
 
A maioria das integrantes do Grão tem idades entre 43 e 76 anos e começou a participar 
após já fazer parte de outras atividades dentro da Igreja. O clube de mães (oficinas de 
artesanato para jovens mães da paróquia), o círculo bíblico (grupos de estudos da Bíblia) e 
grupos missionários, de orações e cânticos, foram citados como as primeiras atividades com 
as quais algumas delas se envolveram, para, em seguida, entrarem no Grão. 
 
São elas as irmãs Martins − Lúcia (45 anos, coordenadora do grupo), Luíza (43 anos) e 
Luzia (41 anos); Isabel (56 anos), Neusa (47 anos), Fátima (60 anos), Lourdes (54 anos), 
Gracinha (75 anos) e Geralda (76 anos)20. 
 
Gracinha é reconhecida por seu talento em cuidar de plantas e pelo conhecimento que têm 
sobre ervas medicinais. Era chamada pelas falecidas companheiras do grupo como “a 
pequena raizeira” e foi convidada a participar depois que preparou um xarope que curou 
uma gripe insistente do antigo pároco da igreja. Hoje, ela é a responsável pela horta e, para 
mantê-la, conta somente com a ajuda de Isabel e de outro voluntário que não faz parte do 
grupo, o Sr. Cândido. As duas colhem e escolhem as ervas para a fabricação de todos os 
medicamentos. 
 
Isabel entrou para o Grão através do convite de Lina e Benedita, pois também participava 
do círculo bíblico. Ela veio para o Rio de Janeiro já adulta, quando ficou sozinha depois 
que criou os sobrinhos. Mora em Belford Roxo há mais de 10 anos e criou dois filhos 
adotivos − um rapaz, que hoje é militar, e uma moça, com 17 anos. Ela ainda trabalha como 
faxineira três vezes por semana, em Santa Amélia, outro bairro de Belford Roxo. 
 
 
20
 Veja adiante o quadro 2. 
 32 
Geralda mora no bairro desde 1970 e começou a trabalhar a convite de Lina. Ela participa 
de outras atividades da Igreja, como os grupos missionários de evangelização, que visitam a 
casas de pessoas que não têm condições de freqüentar a Igreja. Muitas vezes, levam 
produtos do grupo para serem doados “àqueles que precisam”. 
 
Lourdes conta sua própria história de cura pelas plantas para atestar a eficácia dos 
medicamentos que produz. Sua adesão ao grupo aconteceu quando descobriu um câncer no 
intestino. Na época, em 1997, ela ajudava na sala de curativos aplicando argila, fazendo 
massagem e garrafadas de babosa, tratamento ao qual se submeteu a fim de aumentar suas 
chances de sobreviver à doença. Os médicos apostavam que ela teria que ser 
colostomizada, pois seria necessário retirar parte do intestino em um processo cirúrgico, e 
submetida à quimioterapia e à radioterapia. Após a cirurgia, seu câncer foi considerado 
curado. Segundo ela, os médicos se surpreenderam e a questionaram sobre o tratamento 
alternativo que realizou. Lourdes é conhecida na comunidade pelas geléias e biscoitos que 
faz e vende, muitos são feitos com cascas de alimentos. Ela é divorciada, vive com a 
pensão do ex-marido e a complementa com a venda dos quitutes. 
 
Neusa participa do grupo há quase três anos e decidiu se engajar “porque já conhecia todo 
mundo, mas não fazia nada e se sentia uma inútil”. Ela também participava do círculo 
bíblico e foi convidada por Lina. Tem oito filhos, nasceu em Diamantina e veio para o Rio 
de Janeiro para tentar uma vida diferente da que a mãe teve, que era alcoólatra e faleceu 
quando ela tinha 10 anos. 
 
Fátima é a mais nova integrante do Grão, apesar de ser uma das mais antigas no movimento 
comunitário. Moradora do bairro há 40 anos, ela participou ativamente da associação de 
moradores e dos movimentos sociais da Igreja. Há dois anos, quando deixou o cargo de 
coordenação, vem se dedicando ao aprendizado de outras coisas que lhe interessavam. Sua 
adesão ao grupo aconteceu após freqüentar alguns cursos, abertos à comunidade, que 
realizou sobre terapias alternativas de saúde (argiloterapia, noções de bioenergética, 
homeopatia e alimentação natural). Fátima foi responsável pela entrada das irmãs Martins 
 33 
no trabalho como agentes de saúde comunitárias. Foi ela quem as indicou para o processo 
seletivo elaborado na prefeitura de Belford Roxo. 
 
Lúcia tornou-se coordenadora depois do falecimento de Lina. Formada em Administração, 
a única do grupo com Terceiro Grau completo, ela trabalha como agente de saúde 
comunitária no programa Saúde da Família, implantado pelo Ministério da Saúde. Também 
participa ativamente da Pastoral da Saúde na Baixada Fluminense. Na Rede Fitovida, é 
responsável pelo Inventário Nacional de Referências Culturais em curso com o 
acompanhamento de técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 
(IPHAN), que tem como objetivo registrar as práticas e receitas dos grupos da Rede como 
patrimônio imaterial. 
 
A aproximação de Lúcia das “questões sociais da comunidade” foi gradual. “Primeiro me 
converti à Pastoral da Saúde, em um retiro que aconteceu em Jardim Amapá, a convite de 
Lina”. Foi ali que começou sua participação na Rede e, em seguida, no Grão, para onde 
também levaria suas duas irmãs. A história da mãe, Alzira, falecida em 2003, foi 
determinante no envolvimento das filhas Lúcia, Luíza e Luzia. Alzira era coordenadora da 
associação de moradores de Belford Roxoe foi muito ativa na organização da assistência 
para centenas de famílias desabrigadas em diversas enchentes que assolaram a comunidade 
nas décadas de 70 e 80. Antes de sua família ir viver em Belford Roxo, elas moravam no 
bairro de Rocha Miranda, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Lúcia participava de grupos de 
jovens da Igreja, como a “Cruzada do Adolescente”. A mudança as confrontou com uma 
outra realidade, o que mobilizou ainda mais o ativismo de Alzira. Durante o curso 
universitário e início da carreira profissional, Lúcia se manteve distante das atividades 
sociais, enquanto sua mãe mantinha-se ativa. A reaproximação só aconteceu anos mais 
tarde. “Minha mãe cobrava muito a minha participação”, afirmou. O falecimento de Alzira, 
seguido do falecimento de Lina, foi o empurrão final. 
 
“Nunca pensei que participaria de nada relativo à saúde, sempre tive medo de fazer curativos, 
injeções, essas coisas. Quando penso nesse trabalho, penso muito em minha mãe, ela ajudava 
bastante, era ela quem tinha o conhecimento. Quando a Lina faleceu, achei que era o 
momento de vir. Aí, não resisti, aprendi a mexer panela e tomei gosto pela coisa”. 
 34 
 
Como assinalado acima, as irmãs de Lúcia, Luíza e Luzia foram bastante influenciadas pela 
mãe. Luzia é agente de saúde há seis anos e participou como voluntária na sala de 
curativos, coordenada por Dona Benedita e que, atualmente, está desativada: “Quando a 
Benedita faleceu, a Lina me convidou para dar uma mão, mas ainda não tinha sentido ‘o 
chamado’. Faz um ano que estou no Grão e fazem dois anos que comecei a participar da 
sala de curativos”. 
 
Luíza conta que costumava se definir como atéia e nunca participou das atividades da 
igreja. Seu envolvimento com o Grão foi “uma obra do destino”. "Comecei a ajudar aqui 
sem compromisso, sem mais nem menos. Quando fui ver, já estava envolvida sem perceber. 
E minha vida é essa. Agora estou aqui ajudando, aprendendo. Ainda tenho muito que 
aprender", conta. O fato das reuniões semanais dos agentes comunitários de saúde serem 
realizadas sempre às quintas-feiras no posto de saúde em frente à igreja, onde o Grão de 
Mostarda se reúne, também contribuiu para sua adesão. 
 35 
Quadro 2 - Dados biográficos das entrevistadas 
Nome Idade Renda 
Familiar 
Escolaridade Estado 
Civil 
Filhos Netos Bisnetos Profissão Estado de 
origem
Gracinha 75 R$ 450,00 
aposentadoria 
alfabetizada 
fora da escola 
viúva 2 operária/ 
dona de 
casa 
MG
Lourdes 54 R$ 450,00 
pensão 
Médio 
completo 
divorciada 2 esteticista MG
Geralda 75 R$ 450,00 
aposentadoria 
marido 
alfabetizada casada 2 dona de 
casa/ 
agricultora 
PB
 Isabel 57 R$ 150,00 
 
alfabetizada Solteira 2 
adotivos 
- - faxineira PE
Neusa 47 - 
Aposentadoria 
Marido 
Ensino 
fundamental 
incompleto 
casada 8 - dona de 
casa 
MG
Fátima 60 - 
Aposentadoria 
Marido 
Médio 
completo 
casada 2 dona de 
casa 
RJ
Lúcia 45 R$ 600,00 Superior 
completo 
solteira - - - agente de 
saúde 
RJ
Luzia 41 R$ 600,00 Médio 
completo 
casada 3 1 - agente de 
saúde 
RJ
Luíza 43 R$ 600,00 Médio 
incompleto 
casada 3 1 - agente de 
saúde 
RJ
 
 36 
1.3.2 - Referência na comunidade 
 
A proximidade com o posto de saúde, em frente à Igreja, e a participação de três agentes 
comunitárias de saúde no grupo demonstra alguma sinergia entre as ações de saúde 
preventiva oficiais e as práticas alternativas. O trabalho das agentes é monitorar um 
determinado número de famílias, mas não há nenhuma relação direta e imediata com o 
trabalho voluntário. Segundo Luzia21, para as pessoas que buscam ajuda, não há muita 
diferença se ela é agente de saúde ou voluntária. “Muitas vezes, a gente consegue ajudar 
mais pela Igreja do como agente de saúde. A Saúde no município é precária, está mais 
doente que os próprios doentes”, afirma. O público que busca os remédios vem porque 
ouviu falar dos remédios e da atenção das “meninas”, ou até mesmo porque já é cliente há 
tempos. 
 
A eficácia dos remédios é reconhecida pelos médicos e enfermeiros do posto, que chegam a 
recomendá-los. Essa interação foi um dos motivos do fechamento da sala de curativos, que 
funcionava até o início de 2006 ao lado da sala do Grão, dentro da Igreja. Luzia era uma 
das voluntárias da sala de curativos, onde eram usados muitos dos produtos do Grão de 
Mostarda, como as pomadas. “O pessoal do posto encaminhava as pessoas para cá para 
fazerem o curativo. A gente percebeu que, ao invés de ajudar a comunidade, estava 
substituindo um trabalho que não era de nossa competência”, conta Lúcia 
 
Elas são unânimes ao afirmarem a precariedade dos serviços de saúde no município. Apesar 
de defenderem a maior eficácia dos remédios naturais, elas reconhecem que é necessário 
seguir o tratamento médico alopata para cuidar de doenças como diabetes, hipertiroidismo, 
pressão alta, problemas cardiovasculares etc. Somente duas delas afirmam ter plano de 
saúde privado e só uma faz uso do plano que dispõe. Elas têm muitas histórias para contar 
sobre como foram mal atendidas nos postos de saúde e hospitais locais e como já tiveram 
que buscar socorro médico em outros municípios. Também há casos de desistência na 
procura de atendimento, devido a tais dificuldades. 
 
21
 Luzia e Luíza são mais conhecidas na comunidade do que a irmã, Lúcia. São elas que estão mais presentes 
no grupo, enquanto a irmã mais velha freqüenta reuniões da Rede e da Pastoral da Saúde. 
 37 
 
Dentre as tristes histórias sobre a precariedade da saúde em Belford Roxo destacam-se dois 
casos lembrados por elas nas conversas após os almoços. Um deles é sobre um médico que 
atendeu no posto durante anos, era considerado excelente médico e querido pela 
comunidade. Quando houve um recadastramento na Prefeitura, descobriu-se que ele não 
tinha diploma e então, o falso médico foi afastado. Outro caso é o de um médico obstetra 
que foi eleito deputado estadual recentemente, com expressiva votação. Este médico é 
conhecido por “conseguir” cirurgias de laqueadura de trompas para as mulheres da Baixada 
Fluminense e dispõe de um eleitorado feminino fiel. Ele foi o protagonista de uma 
passagem triste na vida de Neusa. Prestes a dar a luz, em sua última gestação, ela foi ao 
hospital na hora marcada para a cesariana e foi informada de que não estava cadastrada. Foi 
necessário um corre-corre para localizar documentos que comprovassem a marcação da 
cirurgia. Após horas de desgaste emocional, tudo foi esclarecido e a cesariana foi feita, 
mas, uma hora após o parto, o bebê faleceu. O médico nunca lhe deu satisfações sobre o 
que houve com a criança e Neusa foi deixada durante horas na enfermaria da maternidade 
com um berço vazio ao lado de seu leito. 
 
1.3.4 - O processo de trabalho: a preparação dos medicamentos 
 
Atualmente, a produção de medicamentos à base de ervas medicinais no grupo Grão de 
Mostarda segue um ritmo determinado. Das 8h às 17h, elas produzem os remédios, 
almoçam, voltam à “linha de produção”, atendem a comunidade e encerram o “expediente” 
com um cafezinho. 
 
Os produtos disponíveis são: vermífugo, xaropes, sabão, compostos de chás diversos, pó de 
ovo, pomada cicatrizante, óleo para dor, pomada de enxofre, multimistura22, xampu para 
combater piolhos e leite forte (quadro 3). 
 
 
22
 A multimistura é um produto para fortalecer a alimentação, destinado principalmente ao público infantil 
através do projeto da Pastoral da Criança. Leva farinhas integrais enriquecidas com outros minerais 
necessários ao bom desenvolvimento das crianças. A produção do grupo também está voltada a atender a 
famílias da região registradas no programa de assistênciada Pastoral. Segundo a coordenadora do grupo, a 
relação com a Pastoral da Criança se resume a isso. 
 38 
Tais medicamentos revelam que o destino principal é opúblico infantil, embora possam ser 
usados por adultos. Há duas qualidades de xarope: o de gripe comum (com assa-peixe, 
guaco e laranja da terra) e o de bronquite (umbigo da banana). O leite forte e a multimistura 
também podem ser usados por pessoas desnutridas, mas são fortificantes feitos para as 
crianças. 
 
É grande o fluxo de mães, acompanhadas de seus bebês e crianças pequenas, em busca dos 
medicamentos. O contato no balcão vai além de uma relação comercial. Freqüentemente, se 
alonga em uma conversa sobre o desenvolvimento dos pequenos23. Conselhos sobre 
cuidados materno-infantis são comuns e estão presentes na vida familiar de cada uma delas, 
tendo em vista que muitas são avós de crianças ainda pequenas. 
 
Quadro 3 - Produtos fabricados pelo Grão de Mostarda 
Produto Composição Quantidade Preço 
Vermífugo À base de sementes 
de mamão, melão, 
girassol e abóbora em 
pó 
Pacote com 20g R$ 1 
Xarope gripe Calda de açúcar 
mascavo ou cristal 
diluída em água com 
tinturas de guaco, 
assa-peixe e laranja-
da-terra 
Frasco com 100 ml R$ 2 
Xarope bronquite Calda de açúcar 
mascavo ou cristal 
diluída em água com 
tintura de umbigo da 
Frasco com 100 ml R$ 2 
 
23
 Esse perfil dominante do consumidor final ficou claro ao observar como o xarope era feito. Fátima, Neusa 
e Lourdes preparavam um litro de calda para que fossem acrescentadas as tinturas. Elas se confundiram com a 
proporção de tintura x calda para aquela quantidade e o gosto da tintura, à base de álcool de cereais, ficou 
muito forte. Elas perceberam o equívoco quando provaram e Lourdes disse: “quem mais toma isso é criança”. 
 39 
banana 
Sabão medicinal Sabão de coco ralado 
fervido com sumo de 
ervas batidas em 
água 
Barra com 50g R$ 1,50 
Compostos de chás Ervas secas Embalagens de 30g R$ 2 
Pó de ovo Cascas de ovo secas 
e trituradas 
Embalagem com 20 g R$ 1 
Pomada cicatrizante Base de lanolina e 
vaselina com tinturas 
de babosa, cajueiro e 
aroeira 
Embalagem com 30 g R$ 2,50 
Óleo para dor Óleo com extrato de 
abacate 
Embalagem com 10 
ml 
R$ 2 
Pomada de enxofre Base de lanolina e 
vaselina com enxofre 
Embalagem com 20g R$ 2 
Multimistura Farelo de trigo 
enriquecido com 
folhas de abóbora e 
mandioca secas e 
trituradas 
Embalagem com 
200g 
R$ 2 
Leite forte Leite em pó com 
açúcar mascavo ou 
cristal com farinhas 
integrais 
Embalagem com 
300g 
R$ 3 
Xampu contra 
piolhos 
Sabão de coco ralado 
e dissolvido no sumo 
de ervas como melão 
de São Caetano, 
Confrei e Macaé. 
Embalagem com 
200ml 
R$ 4 
 
 40 
 
Como disse anteriormente, todas as refeições são compartilhadas, bem como os lanches 
com biscoitos e bolos caseiros. A preparação do almoço demanda uma dedicação 
equivalente à dos remédios e toma quase todo o final da manhã, envolvendo duas ou mais 
participantes. Talvez seja um dos momentos mais importantes do dia. Como a alimentação 
é reconhecida pelo grupo como uma das formas de manutenção da boa saúde, é um 
acontecimento que permite pôr em prática ou discutir os princípios do grupo como, por 
exemplo, o uso comedido de sal, de açúcar e de gordura. Legumes e folhas estão sempre 
presentes à mesa, muitos foram cultivados na horta local, como as folhas de mostarda, 
couve e a abóbora. Tudo indica que não há radicalismos, o que permite levar à mesa 
refrigerantes, cerveja, vinho e doces. Tal combinação do cardápio foi motivo de brincadeira 
entre elas algumas vezes. É também este o momento em que se reúnem todas as 
participantes e os agregados do Grão (outros funcionários do posto de saúde, alguns filhos 
das integrantes e eventuais visitantes). 
 
1.3. 5 - Mexendo as panelas 
 
"Tem uma coisa que as senhoras do grupo falam e que a minha mãe falava também. É 
para sempre se mexer a panela em um mesmo sentido, nunca mudar, até conseguir mexer 
todo o conteúdo. Se mexer em vários sentidos, desanda". (Lúcia) 
 
O uso de “remédios naturais” é para elas uma tradição de família, aprendida com mães, 
avós, avôs e vizinhos. Muitas vezes, é justificado como uma opção mais barata aos 
medicamentos industrializados. “Quando se tem a quantidade de filhos que eu tive, era bem 
mais barato fazer um xarope de folhas em casa. Eu os levava no médico, saia de lá com 
uma receita e não tinha dinheiro para comprar”, conta Neusa. Esse diagnóstico é o que, 
para ela, define a importância do grupo na comunidade. O posto de saúde presta 
atendimento, mas não dispõe de todos os remédios. Essa percepção sobre a função social do 
grupo privilegia o aspecto econômico e é de longe a reflexão mais comum que justifica a 
importância do trabalho para suas integrantes. 
 
 41 
Perguntadas sobre recursos mágicos de cura, como as rezas, somente Neusa e Isabel 
afirmaram conhecer pessoas na comunidade que se dedicavam a essas práticas. A primeira 
conta que recorria com freqüência às rezadeiras quando os filhos eram pequenos e ficavam 
doentes. “Isso é do tempo da vovó mesmo, elas diziam que estava com o ‘vento virado’, a 
‘espinhela caída’. Eu sempre tive muita fé, não sei se dava certo porque eu acreditava ou 
porque curava mesmo. Hoje, quase não tem pessoas que rezam”, conta Neusa. Isabel ainda 
procura as rezadeiras para que rezem a sua cabeça quando não está se sentindo bem. Ela 
dize que quando tem uma dor de cabeça pede a Deus para passar, não usa remédio nem vai 
ao médico. 
 
Com exceção de Neusa e Isabel, observei a ausência do aspecto mágico de cura e a 
existência de um processo controlado de fabricação de medicamentos, principais 
características da Rede Fitovida no que diz respeito aos cuidados com a saúde. Na medida 
em que os grupos cresceram e saíram do ambiente doméstico, houve um processo de 
padronização, levado a cabo através da realização de cursos de formação. Misturaram-se o 
conhecimento tradicional sobre o uso de plantas medicinais e o conhecimento técnico de 
profissionais da área (farmacêuticos, biólogos e enfermeiro que contribuem ou até mesmo 
trabalham voluntariamente na Rede). O acesso aos serviços de saúde, ainda que precários, 
favoreceu o surgimento de novas categorias para definir as doenças. Nenhuma delas afirma 
sofrer de “vento virado”, “quebranto” ou “espinhela caída”, mas muitas afirmam ter sofrido 
com catarata, diabetes, mioma, câncer e hipertensão. A busca por um tratamento médico 
alopata está relacionada à gravidade da enfermidade e sempre que possível, elas o 
combinam com terapias naturais ou utilizam exclusivamente as plantas. Tal processo 
resultou em uma reflexão-chave para a Rede e seus grupos: universalizar um padrão de 
fabricação de medicamentos, ou seja, tornarem-se uma farmácia com remédios à base de 
plantas medicinais, ou reconhecer a variedade de procedimentos e usos e situá-los como um 
conjunto de saberes tradicionais sobre cuidados com a saúde. A escolha pela segunda opção 
ocorreu quando a Rede percebeu que jamais poderia ser bem-sucedida como produtora de 
medicamentos, o que seria inviável dadas as características dos grupos (trabalho voluntário, 
ausência de equipamento técnico para produção farmacológica etc) e que o objetivo maior 
 42 
era afirmar uma identidade cultural, que inclui formação de redes de solidariedade e a 
valorização do conhecimento tradicional. 
 
Quem chega mais cedo à cozinha comunitária checa a disponibilidade de material e começa 
a produzir. As ervas são provenientes da horta, dos jardins das casas das integrantes ou de 
mercados populares, como o Mercadão de Madureira. Passam por uma lavagem manual, 
folha a folha, e em seguida são levadas

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