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1 MATERIAL DIDÁTICO AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA E PSICOPATOLOGIA CREDENCIADA JUNTO AO MEC PELA PORTARIA Nº 1.282 DO DIA 26/10/2010 0800 283 8380 www.ucamprominas.com.br Impressão e Editoração 2 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 3 UNIDADE 1 – A VALIAÇÃO PSICOLÓGICA ........................................................ 6 1.1 Testes padronizados .................................................................................... 7 1.2 Entrevista psicológica ................................................................................. 12 1.3 Avaliação e perícia psicológica ................................................................... 18 1.4 Lei, ética e avaliação psicológica ................................................................ 23 UNIDADE 2 – PSICOPATOLOGIA FORENSE ................................................... 27 UNIDADE 3 – DETERMINANTES BIOPSICOSSOCIAIS DO COMPORTAMENTO ............................................................................................................................. 33 UNIDADE 4 – A CAPACIDADE DE IMPUTAÇÃO E INIMPUTABILIDADE DO PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL ......................................................... 37 4.1 Definição de conceitos básicos ................................................................... 37 4.2 Responsabilidade e inimputabilidade ......................................................... 40 UNIDADE 5 – TRANTORNOS MENTAIS NA CID-10 ......................................... 45 5.1 Classificação Internacional de Doenças – CID-10 ...................................... 45 5.2 Transtornos mentais e Psicologia Jurídica ................................................. 50 UNIDADE 6 – TRANSTORNOS COGNITIVOS ................................................... 53 UNIDADE 7 – TRANSTORNOS AFETIVOS........................................................ 59 UNIDADE 8 – TRANSTORNOS DE PERSONALIDADE .................................... 60 8.1 - F60.2 – Personalidade dissocial (psicopatia ou transtorno de personalidade antissocial) ................................................................................ 62 UNIDADE 9 – DEPENDÊNCIA QUÍMICA............................................................ 67 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 70 3 INTRODUÇÃO Iremos entrar numa parte bastante intrigante: a avaliação psicológica e psicopatologia forense. Desde o início, temos reforçado a visão de que a prática do psicólogo jurídico não pode se restringir à aplicação de testes, realização de perícia e consequente emissão de laudos, porém, não se pode deixar de afirmar que esta parte é muito importante e merece a atenção de muitos profissionais como psicólogo, psiquiatra e assistente social. Como mostra a citação a seguir, a avaliação é uma prática complexa, de grande responsabilidade e envolve várias questões: A avaliação psiquiátrico-forense da responsabilidade penal é realizada com base na análise da capacidade de entendimento e determinação. Por sua vez, a avaliação desses aspectos envolve o estudo cuidadoso dos autos do processo, de antecedentes pessoais, familiares e psicossociais do periciando, além do exame psicopatológico. Este último implica o conhecimento da psicopatologia e exploração minuciosa de todas as funções psíquicas do indivíduo durante a entrevista psiquiátrica, como consciência, juízo de realidade, sensório-percepção, inteligência, afetividade e vontade. Sem dúvida, o exame psicopatológico constitui peça fundamental na avaliação da responsabilidade penal (VALENÇA et al., 2005, p.252). O ser humano é único e complexo, seu comportamento é determinado a partir de influências biopsicossociais e, em certas situações, os juízes – responsáveis pelas decisões finais – recorrem à ajuda de profissionais técnicos em saúde mental para realizar perícias e auxiliá-los em sua tomada de decisões. Como falamos na apostila sobre Sistema Penal, a sociedade, a partir de uma série de influências ideológicas, cobra das autoridades o controle social, assim deseja que os mesmos levem os criminosos para a prisão, acreditando que as instituições que visam vigiar e punir determinados grupos sociais marginalizados por si só sejam responsáveis por garantir a reabilitação dos detentos, ao mesmo tempo em que garantam a segurança da população. Entretanto, sabe-se que a prisão por si só não é responsável por garantir a reabilitação dos cidadãos infratores e a segurança do restante da população. 4 Além dessas situações gerais, nas quais se cometem delitos intencionalmente, há casos particulares em que as pessoas, devido a transtornos mentais, cometem delitos sem terem consciência do que fizeram, assim, fica subentendido que elas não têm condições de serem punidas por um delito que nem elas mesmas sabem terem cometido. Nesses casos, a perícia multiprofissional se faz essencial para buscar constatar a real presença de um transtorno mental para, assim, dar aos indivíduos o tipo de tratamento adequado. “Às vezes, usamos nossa mente não para descobrir fatos, mas para encobri-los... ainda que nem sempre de maneira intencional” (DAMÁSIO, 2000, p. 49 apud FIORELLI; MANGINI, 2015, p.7). A citação ilustra o cuidado que os profissionais da área jurídica e da saúde mental devem tomar. Deve-se investigar cuidadosamente a verdade, a sanidade ou insanidade mental e a possibilidade de simulação ou dissimulação, bastante presentes nesse contexto: Sidney Shine em Avaliação Psicológica e lei, afirma que a relação que une o psicólogo – perito ao sujeito – periciando será permeada por intenções conscientes de simulação e dissimulação no limite da possibilidade de resguardar seus próprios interesses. Portanto, este cenário se apresenta como bastante distinto da relação de ajuda própria do trabalho psicológico em enquadre clínico, onde o interesse do sujeito que demanda ajuda coincide com o fato de ser ele próprio veículo e objeto da ação do profissional, ou seja, há uma convergência de interesses entre a demanda e a motivação do sujeito para a ação profissional. No contexto jurídico, a demanda apresentada pelo operador do Direito requer uma resposta do perito que pode ser ou não benéfico ao interesse próprio do sujeito – periciando. Este fará tudo para que o interlocutor (psicólogo) seja intermediário de uma boa resposta ao destinatário (operador do Direito) da informação relevante (MAIA, 2015, p.6). Os objetivos deste material já foram explícitos ao início desta apostila. As principais obras serão AMBIEL; RABELO; PACANARO; ALVES; LEME (2011); FIORELLI; MANGINI (2015); DALGALARRONDO (2008); MIRA Y LÓPEZ (2015); GONÇALVES; BRANDÃO (2011); ROVINSKI; CRUZ (2009), dentre outros livros, artigos científicos e documentos consultados, citados e devidamente referenciados. 5 6 UNIDADE 1 – A VALIAÇÃO PSICOLÓGICA Como afirmamos no início deste material, o início da profissão do psicólogo jurídico foi marcado pela intensa realização de avaliações psicológicas e consequente elaboração de laudos psicológicos, os quais auxiliavam os juízes em suas tomadas de decisões. A obra de Mira y López (2015) detalha claramente esse trabalho, tema que reforçaremos ao longo deste material. Com o passar dos anos, a práxis do psicólogo jurídico foi se ampliando para além das avaliações psicológicas.Ao longo dos estudos pudemos observar várias possibilidades de atuação que ultrapassam esse contexto, sejam elas em meio à Justiça de Família; junto a vítimas e agressores em situações de violência de gênero e violência contra o idoso; juntamente com menores, nos abrigos, internatos, atuando em contextos de adoção e defendendo as medidas socioeducativas junto aos adolescentes infratores; assim como diretamente no sistema penitenciário. Recapitulando conteúdos que já foram abordados anteriormente, em todos esses contextos reforçamos que há demanda para a realização de avaliações psicológicas, porém o trabalho do psicólogo jurídico não pode se reduzir a esse tipo de atividade. As avaliações realmente podem auxiliar os juízes em sua tomada de decisão, porém há críticas a esse respeito. Sabe-se que o ser humano é um ser dinâmico, possui traços estáveis de personalidade, mas, ao mesmo tempo, é marcado por sua capacidade de adaptação e mudança. Com isso, concluímos que, em muitas situações, confiar apenas num laudo psicológico poderia ser um ato preconceituoso e responsável por reafirmar estigmas e prejudicar determinados grupos, ao invés de promover seres humanos dignos, livres e comprometidos com a sociedade. A partir de conteúdos que já foram estudados nos materiais anteriores, percebemos que a avaliação psicológica (seja ela na forma de entrevista ou com a aplicação de testes) é defendida por leis e decretos – como, por exemplo, em pessoas que desejam adotar um filho e em presos. Em ambas as situações há justificativas plausíveis à sua realização, ao mesmo tempo em que existem críticas a esse tipo de prática. 7 Também já defendemos desde o início deste material que, por ser um curso a distância, optamos por não detalhar testes e instrumentos psicológicos, visto que são uma área destinada exclusivamente a psicólogos e, num curso a distância, essa exclusividade pode ser questionada. Assim, nessa seção, iremos discorrer acerca da avaliação psicológica, abordar os tipos de avaliação que o psicólogo jurídico precisa realizar, comentar prós e contras dessa prática, sem, no entanto, detalhar o processo de aplicação de cada teste especificamente. 1.1 Testes padronizados Já falamos de avaliação psicológica ao longo desse curso, mencionamos que o psicólogo jurídico lança mão de instrumentos de avaliação, por isso, faz-se indispensável compreender o que é avaliação psicológica. Para isso, primeiramente, iremos recorrer à definição de teste: A palavra teste, tal como usada em português, originou-se do termo latim testis, que significa testemunha, e, posteriormente, do inglês test, com o sentido de prova. Portanto, etimologicamente, realizar um teste é realizar uma prova e dar testemunho de alguma coisa. Nesse sentido, quando se trata de testes psicológicos, seu principal uso é como ferramenta na tomada de decisões que envolvem pessoas, a partir do desempenho ou do autorrelato em provas, questionários ou escalas que avaliem características psicológicas (URBINA, 2007 apud AMBIEL; PACANARO, 2011, p.11-12). Observa-se claramente, a partir da definição anterior, que o objetivo da testagem coincide com o primeiro objetivo da psicologia jurídica, em seus primórdios: avaliar os indivíduos para fornecer provas que auxiliassem os magistrados em suas decisões. Destaca-se que, nas primeiras décadas do século XX, os testes psicológicos, independente do seu tipo, rapidamente atenderam às necessidades da sociedade da época e foram inseridos nos contextos militar, industrial e institucional. [...] No final dos anos oitenta, surgiram processos judiciais em decorrência de decisões referentes ao psicotécnico na área da seleção, bem como a descrença da prática de 8 alguns psicólogos despreparados para a utilização de testes psicológicos (ALVES; SOUZA; BAPTISTA, 2011, p.112). A citação anterior ilustra claramente a preocupação do psicólogo que irá lidar com a aplicação de testes. É imprescindível conhecer bem o instrumento que se está aplicando, suas finalidades, visto que o teste irá fornecer resultados precisos sobre os aspectos investigados, porém, caso o psicólogo não demonstre segurança junto ao teste, o indivíduo testado poderá questionar o resultado obtido. Convém ressaltar que a citação ilustra casos dos quais se recorreram na justiça devido a resultados de testes utilizados no processo de seleção de pessoal. Imagine a situação do psicólogo jurídico, o qual, durante processos de avaliação psicológica, precisa definir, por exemplo, se um indivíduo é apto à adoção; ou imagine na hora de realizar a avaliação psicológica de um preso, já excluído socialmente? A questão é demasiadamente séria e exige do psicólogo jurídico a formação continuada na área dos testes. Convém destacar que, como enfatizam Ambiel e Pacanaro (2011), além de serem objeto de aplicação exclusiva dos psicólogos ou estagiários de psicologia sob supervisão de um profissional capacitado, no contexto brasileiro, inicialmente, os testes psicológicos eram usados de maneira indiscriminada, com bastante empolgação por parte dos profissionais. Houve também períodos marcados por várias críticas ao uso dos mesmos, sendo que, após esse período, aconteceu um processo de organização e regulamentação do uso dos testes. Dentre essas críticas, vale a pena destacar algumas que também podem dizer respeito aos testes aplicados no contexto jurídico: uso indiscriminado de testes estrangeiros sem adaptação à realidade brasileira, baixa qualidade da formação dos profissionais quanto ao uso dos testes, dentre outras. Em 2003, o CFP publicou a resolução 02/2003, a qual instituiu critérios mínimos de qualidade para se considerar um teste psicológico apto para o uso profissional (AMBIEL; PACANARO, 2011). A partir dessa resolução, testes que não se enquadraram às exigências foram retirados do mercado, o que gerou transtornos para muitos profissionais, já acostumados ao uso desses instrumentos, mas foi um acontecimento positivo, pois sinalizou maior critério quanto aos testes disponíveis (o que garante mais segurança não só aos 9 profissionais, mas àqueles que são submetidos aos mesmos) e, de certa forma, motiva o profissional a buscar formação continuada frente a um trabalho tão sério. Dois quesitos se fazem essenciais em relação aos testes psicológicos: a validade e a precisão dos mesmos. Em relação à validade, é importante considerar que os testes possuem “evidências de validade”. Um mesmo teste pode servir a um objeto de avaliação e não servir a outro diferente. Podem ocorrer variações em decorrência da população testada (estudantes, pacientes psiquiátricos, população em geral, entre outros) e do contexto no qual ocorre a avaliação (clínica, instituição, entre outros) (ALVES; SOUZA; BAPTISTA, 2011). Também se faz importante compreender sobre a precisão dos testes, pois a validade e a precisão são essenciais para a aplicação correta dos mesmos e, consequentemente, para se chegar a resultados confiáveis a partir dessa análise: A precisão (também conhecida como confiabilidade ou, ainda, fidedignidade) refere-se à estabilidade do teste, de maneira que, quanto mais próximas forem as pontuações obtidas por métodos ou em situações diferentes, maior será a consistência do teste (ANASTASI; URBINA, 2000; CROMBACH, 1996 apud ALVES; SOUZA; BAPTISTA, 2011, p.120). Nesse sentido, é importante destacar que há várias situações que podem comprometer a precisão dos testes, como se pode observar a seguir. Segundo Alves, Souza e Baptista (2011), nenhuma medida está livre de erros, os quais interferem noresultado do teste e podem ser decorrentes de diversas fontes, relacionados ao contexto da testagem (avaliador, aplicador, ambiente e motivos de aplicação do teste), ao testando e ao teste em si. Essas fontes de erro incluem condições emocionais, como disposição, ansiedade, fadiga, ou acertos ao acaso em determinadas situações, familiaridade com o conteúdo, subjetividade, ambiente barulhento, dentre outras. Se os devidos cuidados forem tomados no desenvolvimento, na seleção, na aplicação e na correção dos testes, parte dos erros provindos dessas três fontes pode ser anulada ou minimizada. Em contraposição, em situações nas quais o testando não responde às questões ou tenta falsear respostas que pensa ser desejáveis, não é 10 possível manipular o erro, porém pode ser possível detectá-lo. Por isso, é importante saber das práticas adequadas e dos procedimentos padronizados no uso dos testes, porque são formas de reduzir os erros na testagem (URBINA, 2007 apud ALVES; SOUZA; BAPTISTA, 2011, p.121). Refletir sobre a possibilidade de erro no resultado de um teste e por quais motivos esse erro pode acontecer é importante para o psicólogo jurídico. Em contexto de avaliação, é comum os profissionais recorrerem ao uso de testes, pois os resultados dos mesmos são objetivos, embasados cientificamente, o que ampara o profissional responsável pela sua aplicação, correção e consequente elaboração do laudo psicológico em caso de suas conclusões serem questionadas. Entretanto, é essencial saber que, mesmo se o teste for aprovado devido aos seus critérios de validade e confiabilidade, seus resultados podem ser comprometidos em função de variáveis do ambiente, da forma como o mesmo foi aplicado e corrigido (ou seja, do avaliador) e do avaliado, que pode tentar burlar seus resultados em busca de algum tipo de benefício próprio. É importante padronizar as condições de aplicação dos testes psicológicos com o intuito de garantir que a coleta de dados sobre o sujeito seja de boa qualidade. Uma má aplicação pode comprometer o resultado dos testes, tornando-os inválidos, mesmo quando da utilização de uma boa ferramenta. Vale ressaltar que uma má aplicação não invalida a qualidade psicométrica do teste, mas, sim, invalida o protocolo do sujeito, ou seja, os dados obtidos na avaliação não serão confiáveis (RABELO; BRITO; REGO, 2011, p.134). A tabela a seguir ilustra alguns requisitos que o psicólogo deve levar em consideração visando a aplicação correta dos testes psicológicos. Tabela 1: Cuidados necessários para a aplicação de testes psicológicos Requisitos Cuidados necessários Material de testagem Qualidade do teste: utilizar apenas instrumentos válidos e precisos, visto que, se esses parâmetros não forem obedecidos corre-se o risco de processos judiciais e condenações éticas, o que inviabilizaria o processo. Pertinência do teste: conhecer bem o teste para assim escolher aquele 11 que melhor se aplica à necessidade do sujeito naquele momento. Adaptação: seguir à risca as recomendações explícitas nos manuais, porém tomando o cuidado de adequar o teste à realidade da pessoa avaliada (intelectual, profissional, entre outras). Ambiente de testagem Ambiente físico: minimizar a presença de distratores ou excluir os mesmos, tonar o ambiente agradável, com móveis adequados e confortáveis, boa higiene, iluminação e temperatura adequadas. Condições psicológicas (do profissional e do avaliado): observar se o avaliado apresenta-se em condições normais de saúde (física e psicológica) e se entendeu as orientações. Estabelecimento de um bom rapport 1 ajuda a minimizar a ansiedade do avaliando. Momento: quando a bateria de testes for muito extensa, recomenda-se dividir a mesma para que se evite fadiga e outros inconvenientes que poderiam interferir negativamente no andamento da testagem. Situações adversas: deve-se levar em consideração que alguns tipos de avaliações – como perícias e seleção de pessoal – o avaliado pode se encontrar em situações físicas e psicológicas adversas, o que também pode interferir negativamente no andamento do processo. Condições de aplicação Condições desfavoráveis para a aplicação de testes psicológicos podem causar efeitos no desempenho. Deve-se atentar para os seguintes fatores: tempo suficiente; nível de dificuldade das palavras e maneira de apresentar as instruções; controle dos fatores que podem diminuir a atenção do avaliado. Aplicador do teste Formação profissional necessariamente em psicologia, já que os testes são de uso exclusivo deste profissional. Atentar-se para: conhecimento profundo do material utilizado, o que transmite segurança; boa aparência, evitar excessos; conduzir as sessões de forma a manter um clima de ordem e respeito; gravação das sessões somente com o consentimento do avaliado. Fonte: adaptado de Rabelo, Brito e Rego (2011). 1 Rapport: assumir uma postura que faça o cliente sentir-se à vontade ao fazer o teste. Para isso, o examinador deve se mostrar motivado, não se irritar ou manifestar expressões faciais ou corporais que poderiam ser interpretadas pelo avaliado como atitudes desagradáveis (RABELO, BRITO, REGO, 2011). 12 1.2 Entrevista psicológica Ao contrário dos testes que são de uso exclusivo do psicólogo, a entrevista pode ser utilizada por diversos profissionais que compõem a equipe multiprofissional. No contexto jurídico é muito usual que psicólogos e assistentes sociais realizem diversos tipos de entrevistas. Em algumas situações, a atuação multiprofissional se faz de suma importância, visto que os dados coletados podem se complementar ou contradizer. Nesse sentido, importante destacar o compromisso ético com o sigilo profissional, porém, no trabalho em equipe multiprofissional, compartilhar as informações não se caracteriza como falta de ética. A entrevista psicológica é o principal instrumento utilizado pelo psicólogo para chegar ao conhecimento do outro [...]. Na área forense, a entrevista psicológica pode estar relacionada a vários objetivos, dependendo da demanda jurídica a que estiver associada. Conforme Melton e colaboradores (1997), nas avaliações psicológicas forenses o objetivo será buscar, através da compreensão psicológica do caso, a resposta a uma questão legal expressa pelo juiz ou por outro agente jurídico. As demandas das avaliações forenses, geralmente, versam sobre situações da vida real, como cuidar dos filhos, capacidade para o trabalho, ou outras que envolvam previsibilidade de condutas, extrapolando questões exclusivamente voltadas a um diagnóstico clínico. Um outro diferencial dessas avaliações, conforme discutido por Rovinski (2004), é a necessidade dos entrevistadores forenses lidarem constantemente com a possibilidade da simulação ou dissimulação dos entrevistados. Aqui não se faz referência à possibilidade de resistência no relato das informações por conflitos inconscientes, mas a atuações premeditadas de distorção e omissão. De modo geral, poder-se-ia dizer que a entrevista no contexto de avaliação forense deve extrapolar o objetivo da investigação do mundo interno do avaliando, para valorizar, também, aspectos de sua realidade objetiva (ROVINSKI; STEIN, 2009, p.67-68). Segundo Dalgalarrondo (2008), além dos dados verbais coletados na entrevista (fala do avaliado), o entrevistador deve estar atento também aos dados não verbais (postura, expressões faciais, entre outros), já que os mesmos podem informar dados bastante importantes que o indivíduo pode não ter falado.13 Importante destacar que uma entrevista pode ter finalidades informativas ou terapêuticas. O psicólogo jurídico normalmente não lança mão das finalidades terapêuticas deste instrumento, ele e os demais profissionais que podem compor a equipe multidisciplinar usam a entrevista como um importante método de coleta de dados, o qual pode fazer parte da avaliação psicológica. Ainda em relação às diferenças entre as entrevistas realizadas no contexto forense e cínico, tem-se que a entrevista clínica busca a investigação do mundo interno, com a descrição de sua dinâmica e das percepções pessoais de cada indivíduo. Por outro lado, a entrevista forense objetiva a valorização do mundo externo e a discriminação entre as experiências internas em relação àquelas realmente vividas (ROVINSKI; STEIN, 2009). A citação a seguir diz respeito à entrevista em saúde mental, mas serve para ilustrar acerca desse tipo de instrumento na prática jurídica: Sullivan afirmava que o domínio da técnica de realizar entrevistas é o que qualifica especificamente o profissional habilidoso. Nesse sentido, por exemplo, ele define o psiquiatra (poderia ser um psicólogo clínico ou enfermeiro em saúde mental) como ‘um perito do campo das relações interpessoais’, ou seja, um expert em realizar entrevistas que sejam realmente úteis, pelas informações que fornecem e pelos efeitos terapêuticos que exercem sobre os pacientes (SULLIVAN, 1983 apud DALGALARRONDO, 2008, p.66). A técnica e a habilidade em realizar entrevistas são atributos fundamentais de alguns profissionais, como o psicólogo e outros profissionais da equipe de saúde. Essa habilidade é, em partes, aprendida, mas não se pode deixar de levar em consideração que em partes deriva da personalidade do profissional, de sua habilidade frente às relações interpessoais. Essa habilidade se caracteriza pelas perguntas que o mesmo formula, por aquelas que ele evita formular e pela decisão de como falar, o que falar, ou permanecer em silêncio. Para a realização de uma entrevista proveitosa, o profissional deve, também, ser capaz de estabelecer, com o entrevistando, uma relação que seja ao mesmo tempo empática e útil do ponto de vista técnico (DALGALARRONDO, 2008). 14 O entrevistador pode recorrer a um roteiro de entrevista estruturado, padronizado por ele mesmo ou pela instituição, semiestruturado, ou pode deixar que a entrevista flua de maneira mais natural, porém sem deixar se perder de seus objetivos. Segundo Dalgalarrondo (2008), o profissional, ao realizar uma entrevista, precisa acolher e ouvir o entrevistado, tendo paciência e, ao mesmo tempo, habilidade para estabelecer limites frente a indivíduos agressivos ou invasivos. Há boas entrevistas em que o profissional pouco fala, dando espaço para o paciente se colocar, enquanto há outras também favoráveis nas quais o profissional precisa ser mais ativo e participante. O estilo da entrevista pode variar em função das seguintes variáveis ilustradas por Dalgalarrondo (2008): 1. Do paciente: da sua personalidade, do seu estado mental e emocional no momento da entrevista, de suas capacidades cognitivas, entre outros. 2. Do contexto institucional no qual ocorre a entrevista (voltando-se para a psicologia jurídica, podemos citar o fórum, a prisão, o abrigo, o internato – no caso do psicólogo jurídico técnico judiciário – e o consultório particular – no caso do psicólogo clínico externo à justiça que pode ser nomeado pelo juiz para realizar a avaliação). 3. Dos objetivos (no caso da psicologia jurídica, destacam-se o diagnóstico clínico e as finalidades forenses em geral). 4. A personalidade do entrevistador: que define, por exemplo, o estilo da entrevista (se irá permanecer mais silencioso ou ser mais participativo). Na entrevista, o profissional deve estar ciente que os dados obtidos podem ser superestimados ou subestimados pelo entrevistado. “O profissional deve exercer toda a sua habilidade para buscar diferenciar as informações verdadeiras, confiáveis e consistentes das falsas consistências” (DALGALARRONDO, 2008, p.77). Um tipo de entrevista muito utilizado no contexto forense é a entrevista investigativa. Seu objetivo é recuperar informações relacionadas a determinado evento de forma a elucidar fatos que possam ter ocorrido e ser ou não de interesse da Justiça. As entrevistas investigativas são utilizadas na avaliação psicológica de crianças supostamente vítimas de abuso sexual. Nesses casos, o objetivo não é avaliar as condições emocionais da criança, mas sim buscar dados 15 detalhados acerca da experiência sofrida, para o profissional fornecer informações necessárias aos autos relacionadas ao evento sofrido (ROVINSKI; STEIN, 2009). Em outros momentos, já mencionamos sobre a importância da recuperação de memórias para o psicólogo jurídico. A Psicologia do Testemunho é uma área bastante delicada, já que evidências mostram que, além de poder falhar, a memória humana também pode “pregar peças”, o que seria extremamente prejudicial à justiça. Vimos também que na Justiça de Família, essa observação também se faz pertinente, visto que nos casos de alienação parental, o alienador busca incessantemente plantar falsas memórias na criança de forma a denegrir a imagem do genitor alienado. No processo de perícia, o psicólogo pode ser convocado a realizar entrevistas com o intuito de se recuperar dados da memória. O processamento da memória é altamente complexo, mas podemos esquematizá-lo em três estágios: a codificação, o armazenamento e a recuperação da informação. Há muitas variáveis presentes nesses três estágios e que interferem diretamente nos mesmos, tais como relações entre o evento, o contexto, o estado de espírito, o conhecimento do observador acerca dos fatos que ocorreram, crenças, estereótipos do observador e as novas informações que ele passa a receber. No momento de recuperação das memórias já codificadas e armazenadas, que ocorre através de um controle consciente, ocorre o erro de se acreditar que as informações, uma vez armazenadas, podem ser acessadas sempre que se desejar (ROVINSKI; STEIN, 2009). A entrevista investigativa pode ser de grande aplicabilidade para o perito porque: O foco da entrevista investigativa está centrado nesta última etapa do processo de memorização, nos mecanismos de recuperação. No momento de realização da entrevista não se tem acesso a informações de como se deu o processo de codificação e nem se sabe que tipos de dados podem ser codificados. Toda a fonte de informação do entrevistador restringe-se ao seu próprio entrevistado (ROVINSKI; STEIN, 2009, p.70). 16 Assim, conforme Pinho (2006 apud ROVINSKI; STEIN, 2009, p.70), a estratégia da entrevista deve ser no sentido de guiar a testemunha dos fatos na busca de informações que estão armazenadas em sua memória e que possam ter relevância para a questão legal, facilitando a comunicação das mesmas ao entrevistador. A entrevista investigativa com crianças é uma situação ainda mais delicada, pois, além das dificuldades características em relação ao acesso das informações armazenadas, conforme explicado na citação, soma-se a questão da criança ser um ser em desenvolvimento, imaturo. A experiência do profissional é decisiva para o sucesso do processo, deve-se levar em conta que o ambiente forense pode inibir a criança. O profissional deve conhecer os limites e potencialidades da criança para se buscar relatos mais detalhados e acurados, porém precisa evitar uma atitude sugestiva, a qual poderia auxiliar a produção da prova esperada (ROVINSKI; STEIN, 2009). Detectar mentirasnuma entrevista forense é de suma importância para os profissionais que as realizam, como os psicólogos, os assistentes sociais, os advogados, os juízes, os policiais, os médicos, dentre outros que podem exercer esse tipo de função. O depoimento de um suspeito ou testemunha pode ser caracterizado nas seguintes categorias (GRIESEL; YUILLE, 2007 apud BULL; FEIX; STEIN, 2009): 1. Informações corretas baseadas na memória do indivíduo (que podem conter erros não intencionais). 2. Enganoso / mentiroso (relato de informações inverídicas, de forma intencional, para induzir o entrevistador ao erro). 3. Narrativa equivocada, mas subjetivamente verdadeira (o relato é baseado em recordações que não correspondem exatamente às situações vivenciadas, mas que, para o entrevistado, corresponde à realidade, ou seja, não há intenção em induzir o entrevistador ao erro – corresponde ao fenômeno de falsa memória). Importante diferenciar mentiras e falsas memórias. Enquanto as mentiras se caracterizam por tentativas deliberadas de enganar os outros, as falsas memórias não são intencionais, devido a uma distorção, o indivíduo também acredita em seu próprio relato. 17 Os profissionais buscam detectar mentiras a partir do pressuposto de que a intenção de simular cria consequências emocionais e cognitivas passíveis de serem detectáveis através do comportamento do indivíduo que mente. Deve-se levar em consideração que as pessoas podem reagir de forma diferente. Quando as pessoas sentem fortes emoções frequentemente, torna-se mais difícil de se lembrarem de eventos, mesmo se forem recentes. Essa dificuldade em recordar gera ansiedade, especialmente quando a pessoa se encontra em situações específicas e tensas, como um interrogatório. Devido a essa ansiedade que desencadeia sintomas fisiológicos já não se consideram o uso do polígrafo adequado para a detecção de mentiras (BPS, 2004 apud BULL; FEIX; STEIN, 2009). Por outro lado, alguns criminosos podem não se sentir mobilizados emocionalmente pelos seus crimes, nem durante as entrevistas forenses (as quais eles podem ter experimentado diversas vezes). Além disso, elas podem, em alguns casos, estar preparados para o interrogatório, praticando a sua versão inventada dos fatos, de modo que as lembranças venham à mente com muita facilidade. Desse modo, especialmente criminosos experientes conseguiriam desenvolver certa naturalidade ao simular durante uma entrevista (BULL; FEIX; STEIN, 2009, p.77). Também deve-se levar em consideração que há muitas informações sobre possíveis sinais das mentiras, assim, algumas pessoas treinam para não apresentar nenhuma dessas reações características e assim, consequentemente, não levar o outro a encontrar possíveis provas de seu comportamento (BULL, 1989 apud BULL; FEIX; STEIN, 2009). Em síntese, a detecção de mentiras é algo um tanto delicado, visto que sinais comportamentais por si só não são suficientes para fornecer um relato fidedigno da situação, associado ao fato de que o entrevistado pode buscar, a todo curso, enganar o entrevistador através de sua narrativa ou mesmo pela comunicação não verbal. 18 Treinamento e experiência do entrevistador não são garantias absolutas na detecção de mentirosos. Recomenda-se o uso de entrevista investigativa que enfatize o uso estratégico da informação (BULL; FEIX; STEIN, 2009). O entrevistador deve buscar motivar o suspeito a fornecer um relato o mais complexo possível da sua versão de fatos, encorajando-o a falar o máximo possível desde o início da entrevista. Somente depois de ter fornecido informações suficientes é que o entrevistador pode desafiar mais efetivamente as inconstâncias do relato do suspeito, com base nas informações que coletou antes da entrevista. Esse método parece corroborar não apenas com o resultado de pesquisas recentes, mas também com o enfoque psicológico sobre o motivo pelo qual, muitos criminosos, ao final da entrevista, escolhem voluntariamente por confessar (BULL; FEIX; STEIN, 2009, p.85). 1.3 Avaliação e perícia psicológica Cabe aqui ressaltar que os testes psicológicos são instrumentos peculiares de avaliação psicológica, porém, os mesmos não são os únicos recursos para se realizar uma avaliação psicológica, e é importante que o psicólogo jurídico compreenda isso, como mostra claramente a citação a seguir: Os testes psicológicos diferenciam-se de outras técnicas de avaliação, por se tratar de procedimentos referenciados a normas e a diretrizes interpretativas padronizadas, com base em categorias preestabelecidas. Outros procedimentos também são utilizados em contextos de avaliação psicológica, como meios de acesso ao universo psicológico do indivíduo, visando a maior compreensão de sua singularidade para melhor adequação das formas de intervenção quando necessárias. Alguns tipos de entrevistas, técnicas de observação, aplicação de atividades lúdicas, entre outros, constituem exemplos de estratégias de avaliação psicológica que não pertencem à categoria de testagem (RABELO; BRITO; REGO, 2011, p.129). Retornamos novamente à questão da importância de se conhecer bem o teste, saber aplicá-lo, corrigi-lo e redigir um laudo consistente para se fazer uma avaliação psicológica criteriosa e confiável. Segundo Urbina (2007 apud RABELO; 19 BRITO; REGO, 2011), o psicólogo, ao realizar testagem psicológica ou outras formas de avaliação, deve levar em consideração a experiência profissional, o conhecimento do constructo que está sendo avaliado e o embasamento teórico consistente. Associando-se esses fatores a outros métodos de observação e análise, torna-se possível garantir a confiabilidade dos resultados que se integrarão com o objetivo de compor uma avaliação coerente com os objetivos de tal avaliação. Já definimos o que são testes, mas, o que se entende por avaliação psicológica? Pode-se definir a Avaliação Psicológica como um processo técnico e científico de coleta de dados e interpretações, com pessoas ou grupos de pessoas, por meio de informações obtidas em questionários, métodos, instrumentos psicológicos, entrevistas, entre outros (NORONHA; ALCHIERI, 2002; PRIMI; FLORES-MENDONÇA; CASTILHO, 1998; WESCHLER, 1999). Enquanto a Avaliação Psicológica refere-se a um processo amplo que envolve a integração de informações provenientes de diversas fontes, como testes, entrevistas, observações, análises de documentos, entre outras, a testagem psicológica deve ser considerada como uma das etapas da avaliação, por meio da utilização de testes psicológicos de diferentes tipos (PELLINI; LEME, 2011, p.163-164). O Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2003, p.3) também fornece uma definição detalhada para avaliação psicológica e seus respectivos resultados: A avaliação psicológica é entendida como o processo técnico-científico de coleta de dados, estudos e interpretação de informações a respeito dos fenômenos psicológicos, que são resultantes da relação do indivíduo com a sociedade, utilizando-se, para tanto, de estratégias psicológicas – métodos, técnicas e instrumentos. Os resultados das avaliações devem considerar e analisar os condicionantes históricos e sociais e seus efeitos no psiquismo, com a finalidade de servirem como instrumentos para atuar não somente sobre o indivíduo, mas na modificação desses 20 condicionantes que operam desde a formulação da demanda até a conclusão do processo de avaliação psicológica. Os testes são instrumentos específicos para utilização do psicólogo devidamente capacitado para trabalhar com essestipos de materiais, porém há várias outras formas de avaliação psicológica que podem ser usadas em conjunto com o objetivo de se chegar a conclusões mais precisas e embasadas. O psicólogo jurídico, em sua função de avaliador, pode lançar mão desses diferentes recursos, porém é imprescindível conhecer bem cada método, saber que cada um pode se enquadrar melhor a determinada situação, assim como saber que alguns podem não ser adequados para determinados casos: Métodos que envolvem o ato de desenhar, narrar histórias, realizar encenações ou brincar com bonecos, em geral, não se propõem a apresentar estudos normativos ou indicadores metodológicos de interpretação, ficando assim também caracterizados fora do que é considerado testagem psicológica. Apesar de não pertencer à categoria de testes, os resultados de tais instrumentos podem ter credibilidade, desde que as conclusões apresentadas pelo psicólogo estejam correlacionadas a um referencial teórico válido, que sustente as interpretações segundo o pressuposto do determinismo psíquico (RABELO; BRITO; REGO, 2011, p.130). Uma avaliação psicológica de qualidade relaciona-se à utilização de técnicas de avaliação reconhecidas pela Psicologia. Segundo Pellini e Leme (2011), além de só utilizar testes devidamente reconhecidos e aprovados pelo CFP, o psicólogo precisa se comprometer a não copiar os materiais de testes, os quais são devidamente comercializados e não passar os mesmos para outros profissionais que não são formados em psicologia. O psicólogo e o assistente social que atuam como técnicos judiciários têm a incumbência de realizar perícias quando solicitados pelo juiz ou promotor. O termo “perícia” pode apresentar vários significados. Definimos brevemente que os serviços de perícia objetivam “elucidar situações, fazer averiguações e assim por diante”. Importante destacar que a perícia pode ser feita na esfera judicial, a pedido do juiz, e na esfera extrajudicial, a serviço do processo, com o intuito de 21 constituir-se num documento, a serviço de quem o solicitou, para evidenciar determinada questão (PIZOL, 2009, p.26). [...] as partes e o Ministério Público podem requerer a produção da prova pericial, porém, o profissional que irá efetuá-la é da confiança do juiz. Dentro do possível, o juiz deve procurar nomear profissional especializado, de sua confiança e que responda fidedignamente, de forma imparcial e com o devido conhecimento técnico (PIZOL, 2009, p.27). Convém destacar que, nos trabalhos de perícia psicológica (realizada pelo psicólogo) e perícia social (realizada pelo assistente social) é comum que o perito perceba a demanda de intervenção, porém a intervenção não é objetivo da perícia, mas sim tomar conhecimento da situação e oferecer uma solução concreta. Ao final da perícia, o profissional deve elaborar um laudo e, nesses casos, no documento, deve-se mencionar essa necessidade de intervenção. Nos casos em que o laudo é multiprofissional, a coleta de dados e a observação podem ser conjuntas, mas cada profissional deve emitir seu laudo separadamente (PIZOL, 2009). A partir dos dados coletados durante a perícia e a elaboração do laudo é necessário esclarecer que: [...] o parecer do perito e a sentença da autoridade são coisas de forma e valores diferentes. O perito deve, em seu parecer ou em suas conclusões, expressar o seu posicionamento técnico sobre os fatos e, se for o caso, sugerir a melhor solução para a situação concreta, sem pretender ou almejar adiantar o que poderá ser decidido, pois seu trabalho não passa de efetuar investigação, diagnóstico e conclusão. A decisão que a autoridade solicitante venha a tomar, por certo, faz parte do que lhe é assegurado, ou do que lhe é obrigado, pela função que desempenha (PIZOL, 2009, p.31). Há outros detalhes específicos acerca da perícia, tais como a nomeação do perito, prazos para entrega do laudo, honorários do perito, importância da 22 perícia judicial, dentre outros, porém não iremos nos ater a esses pormenores para não deixar o material muito exaustivo. No contexto jurídico, após a realização de avaliação ou perícia psicológica – solicitada pelo juiz ou outra autoridade – o psicólogo precisa emitir um laudo psicológico acerca de suas conclusões ou mesmo um relato do caso por escrito. Quando a avaliação também foi composta pela aplicação de testes, os resultados obtidos a partir da aplicação dos mesmos também precisam constar nesse documento, especificando o tipo de teste utilizado, o período em que a avaliação psicológica foi realizada e outras informações pertinentes. Em síntese, o profissional deve levar em conta que: O relato escrito de um caso tem, além de valor médico, importante valor legal. É um documento que, sendo bem redigido, poderá ser decisivo em questões legais futuras, impensáveis no momento em que a avaliação está sendo feita. No momento em que o entrevistador redige os dados que coletou, deve lembrar que a história clínica deve ser redigida com uma linguagem simples, precisa e compreensível. O relato deve ser pormenorizado, mas não prolixo, detalhado naquilo que é essencial ao caso e conciso naquilo que é secundário (DALGALARRONDO, 2008, p.79). O conteúdo das devolutivas deve obedecer a certas características, além de resguardar ao máximo possível as informações confidenciais do paciente, as mesmas devem ser redigidas direcionadas especificamente à entidade que as solicitou, quando for esse o caso. Preocupação especial com o uso da norma culta da Língua Portuguesa, essencial nesse tipo de redação. Especificamente quando a solicitação se dá por ordem judicial deve-se levar em conta que: Uma solicitação feita por um juiz, por exemplo, que nomeia um psicólogo como perito no sistema judiciário, deve resultar em um laudo ou em um parecer, sendo que esses tipos de documentos escritos devem ser formulados com os devidos cuidados de redação e transmitindo somente o que for necessário para a tomada de decisões e para que os operadores de Direito possam compreendê-los (PELLINI; LEME, 2011, p.173). 23 O CFP elaborou o Manual de Elaboração de Documentos Escritos Produzidos pelo Psicólogo (Resolução CFP 007/2003), o qual explica claramente a padronização deste tipo de material. Ressalta-se que a linguagem deve ser clara, bem estruturada, respeitando-se os padrões da norma culta da língua. A comunicação deve se caracterizar pela clareza, concisão e harmonia. Importante destacar que documentos como Declaração, Atestado, Relatório/Laudo psicológico e Parecer psicológico são diferentes entre si e devem seguir as diretrizes expostas nesse mesmo documento. 1.4 Lei, ética e avaliação psicológica O psicólogo é um profissional perito e, conforme temos ressaltado, a aplicação de testes é uma exclusividade de sua profissão. Por lei, os peritos devem prestar serviços de qualidade à sociedade, e essa qualidade pode ser judicialmente procurada por parte das leis pertinentes. O psicólogo responde por sua conduta nesta área de testes. A lei considera o psicólogo como perito e, portanto, legalmente responsável em sua atuação profissional (RABELO; BRITO; REGO, 2011, p.139-140). Deve-se ressaltar que o psicólogo deve seguir os princípios do Código de Nuremberg (1947), o qual postula que se deve respeitar os seres humanos participantes de experimentos médicos e científicos e da Declaração de Helsinque, que reafirma a necessidade do consentimento livre e esclarecido e prioriza o bem-estar do sujeito. Os Comitês de Ética e Pesquisa em Psicologia, inclusive noBrasil, elaboram normas a serem seguidas na aplicação de testes. As diretrizes da American Psychological Association (APA) definem bem essa questão (RABELO; BRITO; REGO, 2011). Em relação ao sigilo profissional, já apresentamos, em outros estudos, resoluções e documentos do CFP que versam a esse sentido. Cabe ressaltar que a pessoa submetida ao teste tem direito aos resultados da avaliação, assim como também o solicitante, como, por exemplo, os juízes em caso de perícia judicial. Ressalta-se que, nesses casos, o solicitante tem direito apenas às informações 24 estritamente necessárias à resposta da solicitação (RABELO; BRITO; REGO, 2011). Os registros do profissional acerca da avaliação devem ser arquivados sob a responsabilidade do profissional, as identidades dos indivíduos devem ser codificadas de forma que somente o profissional responsável possa identificar o indivíduo que foi submetido aos testes. Em processos judiciais, o juiz pode solicitar a abertura de registros sigilosos. É preciso ter em mente que o indivíduo não pode sair indevidamente prejudicado com a exposição de informações sigilosas (RABELO; BRITO; REGO, 2011, p.141). Pellini e Leme (2011) reforçam que o material produzido que fundamentou uma avaliação psicológica deve ser guardado pelo profissional responsável por um prazo mínimo de cinco anos. Resta a reflexão de que o psicólogo deve ter sempre claro em seu trabalho o objetivo de se estar realizando uma avaliação, o que pode acontecer, como já mencionamos, não a partir da demanda do próprio avaliando, mas a partir da solicitação de pessoas e instituições, como no caso do Judiciário. A questão da avaliação é tão séria que o resultado obtido através da mesma pode ser responsável por ocasionar modificações profundas na vida do avaliado, tais como mudar o destino de uma pessoa, de uma família, o desenvolvimento de uma criança ou uma decisão judicial. A Comissão Técnica de Avaliação (CTC) visa à obtenção de dados sobre a personalidade dos condenados à pena privativa de liberdade, visando classificar e estabelecer parâmetros do tratamento penal (CARVALHO, 2011). Em suma: Ao longo dos 25 anos de vigência da Lei de Execução Penal (LEP), consolidou-se determinada forma de atuar dos peritos-criminólogos voltada quase exclusivamente à satisfação das demandas do Poder Judiciário através da elaboração de laudos e pareceres. No entanto, alteração produzida com o advento da Lei 10.792/03 possibilitou reavaliar o papel dos autores da execução, dentre eles o corpo criminológico formado por profissionais das áreas da psicologia, medicina (psiquiatria) e serviço social (CARVALHO, 2011, p.175). 25 Algumas leis foram se modificando no decorrer dos anos, entidades como o CFP se posicionaram contra tal medida. Não iremos pormenorizar a situação, visto que já foi abordado em outros estudos, porém não é possível falar de avaliação psicológica em psicologia jurídica sem mencionar essa situação. Destaca-se que a LEP foi criada a partir de um discurso psiquiátrico-social que propunha legitimar o discurso jurídico, atuando como seu suporte. Assim, a teoria criminológica proclamou-se como o único discurso da verdade no processo de execução penal, o que acabava por se constituir num sistema de provas, objetivo que rejeitava outros tipos de contraprova ou contra-argumento. O objeto de discussão do direito deixa de ser o fato concreto em detrimento para a valorização da identidade do indivíduo como um fator decisório, fonte da única verdade possível. “Não por outro motivo os diagnósticos [laudos e pareceres criminológicos] são repletos de conteúdo moral e com duvidosas doses de cientificidade” (BATISTA, 1997, p.84 apud CARVALHO, 2011, p.192). Ainda a este respeito, enfocando a questão da ética profissional: [...] a pena privativa de liberdade não pode ter, sob nenhuma justificativa, o efeito de comprometer a personalidade e a intimidade do condenado, de tal sorte que os técnicos que atuam na execução não estão isentos do segredo profissional inerente aos seus cargos (CARVALHO, 2011, p.195). Ao final desta seção, ressaltamos que, como já havia sido avisado, não iríamos detalhar acerca de testes psicológicos que podem ser utilizados no contexto de avaliação psicológica jurídica ou forense, pretendemos discorrer acerca do processo de avaliação psicológica em si, questões éticas e legais que norteiam esse tema. A leitura do Manual do CFP citado e referenciado é de suma importância para a confecção de documentos padronizados e válidos. Em suma: Evidencia-se a necessidade de reunir-se o saber das diversas disciplinas das ciências sociais e psicológicas para responder às complexidades 26 destas demandas – contribuindo-se para a eficácia da prestação jurisdicional e, inclusive, evitando-se nulidades processuais. Os auxiliares judiciais, por sua vez, devem ser conhecedores do compromisso e da missão da Justiça. Devem ter ciência dos serviços que lhe compete e da adequada aplicação de seus conhecimentos profissionais diante da questão judicial em andamento. O trabalho do auxiliar da justiça tanto no aspecto operacional, assim como no oferecimento de subsídios teóricos, deve contribuir substancialmente com o magistrado para que a sentença venha a ser a mais justa, exequível e adequada (PIZZOL, 2009, p.42). 27 UNIDADE 2 – PSICOPATOLOGIA FORENSE A psicopatologia forense é uma área que desperta o interesse, aguça a curiosidade, mas também causa o medo das pessoas em geral. De tempos em tempos, é comum vermos na mídia casos de delitos os mais variados, muitos com requintes de crueldade e torna-se importante para a polícia e as autoridades cabíveis descobrir quem é o autor do delito, quais foram suas motivações e, finalmente, se o mesmo é portador de algum transtorno psicopatológico que justificasse suas ações. Quando descoberto o real autor do delito, psicólogos e psiquiatras são convocados para realizar avaliação psicológica do mesmo em busca de encontrar evidências que possam apontar um transtorno psicopatológico ou mesmo para excluir essa possibilidade. Isso se faz indispensável, já que o doente mental é considerado inimputável e, quando sua reclusão se faz necessária como medida de proteção dele próprio e da comunidade, isso precisa acontecer em instituições especializadas ao tratamento psiquiátrico, sob a tutela do Estado, não em prisões comuns, junto com os demais cidadãos infratores. Neste material, iremos discorrer sobre os tipos de transtornos mentais, a questão da inimputabilidade, o tipo de atitude tomada pela Justiça junto a esses casos, além de discorrer sobre o papel da equipe multidisciplinar – na qual se inclui o psicólogo – junto a essas situações específicas. Nosso ponto de partida será o conceito de psicopatologia. Recorremos à definição de Campbell (1986 apud DALGALARRONDO, 2008, p.27): a psicopatologia como o ramo da ciência que trata da natureza essencial da doença mental – suas causas, as mudanças estruturais e funcionais associadas a ela e suas formas de manifestação. Entretanto, nem todo estudo psicopatológico segue a rigor os ditames de uma ciência sensu strictu. A psicopatologia, em acepção mais ampla, pode ser definida como o conjunto de conhecimentos referentes ao adoecimento mental do ser humano. Estudar a psicopatologia nos remete aos conceitos de normal e patológico. Em alguns casos, torna-se evidente compreender os quadros nos 28 quais há completa fuga da realidade, mas não se pode deixar de levar em conta situações pelas quais há poucoafastamento dos padrões de normalidade. Além disso, o conceito de normalidade também não é tão objetivo quanto se pode parecer. O mesmo está diretamente relacionado a questões biopsicossociais, históricas e culturais, por isso se torna bastante complexo. Pensar, então, sobre a normalidade implica em estabelecer comparações entre o normal e patológico. O conceito de saúde e doença mental possui diversos desdobramentos, em função da área que se deseja investigar. Iremos direcionar nosso estudo apenas à nossa área de interesse: Psiquiatria legal ou forense. A determinação de anormalidade psicopatológica pode ter importantes implicações legais, criminais e éticas, podendo definir o destino social, institucional e legal de uma pessoa (DALGALARRONDO, 2008, p.31-32). Vê-se claramente na citação que pelo viés da psicopatologia forense, a determinação da psicopatologia em determinado sujeito pode acarretar no mesmo diversas implicações, inclusive do ponto de vista criminal, legal e ético. As implicações de determinada condição psicopatológica impactam na vida daquele que sofre do transtorno e das pessoas ao seu redor. Aprofundando no conceito de transtorno mental, recorremos ao CID-10, no qual também é possível se deparar com a distinção entre normalidade e anormalidade: A expressão transtorno mental, adotada em lugar de ‘doença’, acompanha o critério da CID-10: o desvio ou conflito social sozinho, sem comprometimento do funcionamento do indivíduo, não deve ser incluído em transtorno mental. Há comprometimento quando: • funções mentais superiores recebem interferência, dificultando ou afetando a atuação (por exemplo, o indivíduo não consegue lembrar-se de compromissos); • atividades da vida diária, rotineiras, usualmente necessárias, sofrem comprometimento em algum grau (CID-10 1993, p. 5 apud FIORELLI; MANGINI, 2015, p.97). 29 Antes de voltarmos à questão da normalidade, vale a pena enfatizar o conteúdo da citação anterior, pois elucida que, ao contrário do que acontecia anteriormente, a condição de transtorno mental passa a se diferenciar do conceito de doença e só se caracteriza como tal quando o transtorno é responsável por comprometer o funcionamento do indivíduo. Para a psicopatologia forense, torna- se importante investigar os transtornos que podem ser diretamente associados à ocorrência de um delito. Da condição de portador de transtorno mental, implica-se que o indivíduo não tem condições de ser responsabilizado por seu ato, visto que pode ter cometido o mesmo em estado mental alterado devido à sua condição psicopatológica. Fiorelli e Mangini (2015) continuam ao afirmar que o transtorno mental (conforme definido pela CID-10) impossibilita que o indivíduo se enquadre nos padrões de normalidade impostos em seu meio social e, ao mesmo tempo, faz com que as pessoas também inseridas nesse meio percebam essa fuga àquilo que é considerado como normal. Antes de prosseguirmos à definição de psicopatologia forense, faz-se necessário dar leves pinceladas sobre o contexto da história da loucura e da saúde mental no Brasil. Se pretendêssemos uma discussão mais aprofundada sobre o tema, precisaríamos recorrer a fatos relacionados à história mundial, como, por exemplo, as Bruxas da Inquisição da Idade Média, as histéricas de Freud, dentre outros exemplos que mostram claramente situações nas quais há fuga aos padrões de normalidade impostos pela época, o medo da população frente ao diferente e as diversas formas de “tratar” ou “conter” os diferentes – que, na realidade, sinalizavam formas de excluir essas pessoas do meio social, a despeito do que acontecesse com elas, numa forma de “proteger” a sociedade do imprevisível. Segundo Arantes (2011), a obra de Castel mostra que o sucesso da Medicina Mental da França ocorreu devido ao fato de que provia um novo tipo de gestão técnica dos antagonismos sociais. Assim, percebe-se que a Psiquiatria pode ser considerada uma Ciência Política, já que respondeu a um problema do governo ao reduzir a loucura às condições de sua administração. 30 No Antigo Regime, a responsabilidade pela interdição dos indivíduos considerados insanos era compartilhada pelo poder judiciário e executivo. [...] Ao postularem a minoridade do louco e o seu isolamento como medida terapêutica necessária ao controle de sua periculosidade, os alienistas ofereceram uma justificativa médica à sua repressão. Neste momento posterior, ao desfazer-se à rígida separação entre o normal e o patológico, sobre a qual repousavam as internações dos alienados, [...] as atividades de perícia se estendem aos vários setores da vida pessoal e social (CASTEL, 1978, p.20 apud ARANTES, 2011, p.18-19). Já citamos algumas noções sobre o contexto brasileiro na apostila de Sistema Penal. Mais uma vez recorreremos à obra de Arbex (2013), a qual relata a dura realidade de um manicômio bastante famoso no Brasil, localizado em Barbacena – MG, a Colônia. A despeito do que preconiza o CID-10, nesta época (bastante recente, como relatos de situações que ocorreram aproximadamente entre as décadas de 1930 e 1970), variados eram os motivos que podiam ser enquadrados como doença mental e, consequentemente, culminavam com a internação compulsória nos hospitais psiquiátricos. Faltava critério médico para as internações, ao passo que tudo mais era padronizado, inclusive os diagnósticos médicos. Assim, tudo parecia motivo para a internação: tristeza, homossexualidade, militância política, alcoolismo, racismo, pobreza, falta de documentos e todos os tipos de indesejados. “A teoria eugenista, que sustentava a ideia da limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar” (ARBEX, 2013, p.26). Dada a multiplicidade de fatores que podiam ser caracterizados como doença mental e, consequentemente, acarretar na internação num local superlotado, sem as mínimas condições de higiene, respeito aos direitos humanos, humanização da assistência em saúde e, principalmente, métodos realmente eficazes e seguros de tratamento (quando realmente o interno sofria de algum tipo de transtorno), as pessoas chegavam até o hospital de diversas formas, muitas das quais envolviam autoridades policiais ou jurídicas, como se pode observar a seguir: 31 Além do trem, muita gente era enviada para o hospital de ônibus ou em viatura policial. Várias requisições de internação eram assinadas por delegados. Antes da construção da Colônia, muitos dos chamados loucos de Minas tinham como destino as cadeias públicas ou as Santas Casas de Misericórdia, onde eram mantidos em anexos. Como a psiquiatria se constituiu no Brasil somente no início do século XIX, a assistência aos alienados ainda era algo incipiente no país, que teve o seu primeiro hospício, o Pedro II, instituído por decreto em 1841. Por isso, apesar de ser um hospital, o Colônia era carente de médicos. Até o final da década de 50, psiquiatras e clínicos ainda eram uma raridade por lá (ARBEX, 2013, p.30). Assim, pode-se verificar que o destino de todos os considerados loucos ficava perdido ora entre a área da saúde, ora entre as autoridades policiais. Médicos, policiais e delegados respondiam pelo destino de pessoas, muitas das quais nem possuíam diagnóstico comprovado de saúde mental. A polícia intervinha de forma a retirar essas pessoas do convívio social e manter a ordem – a exemplo do que até hoje é feito com o segmento da população que é considerada marginalizada. Até hoje, sabe-se que alguns delitosacontecem em decorrência de transtorno mental – daí a importância da psicopatologia jurídica – e, além disso, já se sabe que não se pode punir essas pessoas a exemplo do que se faz com os ditos normais – aqueles que têm total consciência por suas ações. A psicopatologia forense é de suma importância para se realizar diagnósticos que realmente comprovem a existência de algum transtorno e, assim, poder garantir ao portador de transtorno mental que tenha cometido algum tipo de delito um tratamento digno, diferente do que acontecia na Colônia, mesmo que a exclusão social seja necessária como forma de garantir a segurança do paciente e da sociedade. Dessa forma, após apresentarmos o conceito de psicopatologia, mostrarmos a questão do normal e do patológico, além deste breve apanhado histórico sobre a saúde mental no Brasil, torna-se pertinente definir o que é psicopatologia forense. De forma bastante simples, pode-se compreender que a psicopatologia forense consiste na aplicação dos conhecimentos científicos na área da saúde mental (a partir de um viés da psicologia e da psiquiatria) em 32 situações em que se faça necessária a comprovação do estado mental do indivíduo. Esse tipo de avaliação pode ocorrer em consequência de situações civis, penais ou laborais e visa ao estudo dos casos mórbidos, assim como os limites e modificadores anormais da responsabilidade (penal), da capacidade (civil) e os problemas afins. A citação a seguir ilustra melhor essa definição, elucidando os vieses da psiquiatria e da psicopatologia: A psicopatologia, conhecida popularmente como psiquiatria, é o ramo da medicina que se ocupa do estudo e compreensão do fato psíquico patológico, do homem enfermo psicologicamente. A mesma, adota uma visão referente à perspectiva clinica, condizendo que a conduta delitiva, no caso de enfermos que chegam a cometer algum delito, é pura expressão de um determinado transtorno patológico da personalidade, ao qual aflige um determinado indivíduo. Porquanto, a psicologia busca delinear e explanar o estudo da estrutura, etiologia e desenvolvimento cognitivo do comportamento humano, tal conceito no âmbito da criminologia, a mesma tem por função primordial buscar o motivo de um dado indivíduo ter cometido uma conduta delituosa (ARAÚJO, 2010). Para avançarmos no estudo da psicopatologia forense, faz-se necessário aprofundar em algumas questões acerca do psiquismo humano. Pretendemos agora fornecer um panorama mais sintético para assim avançarmos em outras questões relativas a esta área. 33 UNIDADE 3 – DETERMINANTES BIOPSICOSSOCIAIS DO COMPORTAMENTO A partir da leitura de Mira y López (2015), estudamos que o comportamento do indivíduo é decorrente de muitas variáveis. Se pretendermos compreender os fatores responsáveis pelas reações do indivíduo, deve-se levar em consideração que há fatores genéticos, adquiridos ou mistos. Para compreender melhor as dimensões biopsicossociais, recorremos a estudos na área da psicologia da saúde, os quais enfatizam a importância desse modelo. A perspectiva biopsicossocial (mente-corpo) postula que as forças biológicas, psicológicas e socioculturais agem em conjunto para determinar a saúde e a vulnerabilidade do sujeito à doença, ou seja, tanto a saúde quanto a doença devem ser aplicadas a partir desses múltiplos contextos nos quais o homem se encontra inserido (STRAUB, 2014). Os contextos nos quais o homem está inserido serão brevemente apresentados a seguir de forma de fornecer uma compreensão acerca da perspectiva biopsicossocial: O contexto biológico abrange a constituição genética, os sistemas nervoso, imune e endócrino, os quais influenciam diretamente os processos de saúde e doença. No contexto psicológico, destacam-se as crenças do paciente acerca sua saúde, doença e tratamentos; as intervenções psicológicas utilizadas para administrar as tensões do meio. Finalmente, no contexto social destacam-se as influências culturais, familiares que norteiam a maneira como se pensa e se relaciona com os outros e o ambiente (STRAUB, 2014). A tabela a seguir ilustra, de forma sintética, os principais fatores e uma breve descrição dos mesmos. Importante destacar que a natureza dos determinantes (biológica, psicológica ou social) nem sempre é única, em determinadas situações não há consenso entre os autores, assim como há situações em que um único determinante deriva de mais de uma fonte. Também se deve levar em consideração que há muitos determinantes do comportamento, nem todos estão explícitos nessa tabela, da mesma forma que não hesitamos em 34 afirmar que um determinado comportamento pode ser proveniente de mais de uma fonte. Tabela 2: Determinantes biopsicossociais do comportamento Determinante Descrição Constituição corporal “Conjunto de propriedades morfológicas e bioquímicas transmitidas ao indivíduo pela hereditariedade” (MIRA Y LÓPEZ, 2015, p.40). Certas reações do indivíduo apresentam relação direta com sua constituição corporal, assim como há influência de fatores relacionados ao sistema nervoso autônomo simpático e parassimpático (reações de ataque e fuga). Funções mentais superiores (percepção, atenção, memória, pensamento, linguagem, inteligência, entre outras) “O cérebro é palco das funções mentais superiores, o que a mente comanda não ultrapassa os limites de funcionamento das estruturas cerebrais e as possibilidades dessas funções, por meio do processamento do que ali se encontra armazenado.” “As funções mentais superiores (separadas apenas por motivos didáticos, porque se constituem num todo integrado) constituem uma espécie de programação por meio da qual os indivíduos desenvolvem imagens mentais de si mesmos e do mundo que os rodeia, interpretam os estímulos que recebem, elaboram a realidade psíquica e emitem comportamentos” (FIORELLI; MANGINI, 2015, p.11). Emoções “Um completo estado de sentimentos, com componentes somáticos, psíquicos e comportamentais, relacionados ao afeto e ao humor” (KAPLAN; SADOCK, 1993, p.230 apud FIORELLI; MANGINI, 2015, p.30). Há uma íntima relação entre a emoção e a razão: “A emoção delimita o campo de ação e conduz a razão” (FIORELLI; MANGINI, 2015, p.30). As emoções influenciam todas as funções mentais superiores. Temperamentos O temperamento é definido por Mira y López (2015) como “a resultante funcional direta da constituição, que marca a cada momento a especial modalidade da primitiva tendência da reação ante os estímulos ambientais” (p.40). Gazzaninga e Heatherton (2005) elucidam que os temperamentos podem ser compreendidos como tendências gerais a agir ou sentir de determinada maneira. Caráter O caráter constitui o termo de transição entre os fatores endógenos e os fatores exógenos integrantes da personalidade, e representa 35 definitivamente o resultado da sua luta. Os fatores endógenos impeliriam o homem a uma conduta puramente animal baseada na satisfação de seus instintos e tendência apetitivas ou repulsivas. Os fatores exógenos, ao contrário, o conduziriam à completa submissão ao meio externo; é a clássica oposição entre o homem e o mundo (a luta pela vida) a que é simbolizada na luta entre o elemento endógeno e o exógeno, isto é, o caráter (MIRA Y LÓPEZ, 2015, p.43). Personalidade Garante a singularidade do indivíduo. Segundo a abordagem psicodinâmica, os motivos e conflitos inconscientes que são experienciados durante toda a vida, mas especialmente na infância, moldam a personalidade. Os humanistas acreditam que cada pessoa é única ecapaz de realizar um grande potencial. Os teóricos do traço descrevem o comportamento das pessoas com base em disposições de traços. Os teóricos cognitivo- sociais focalizam como as interpretações e crenças cognitivas afetam a percepção das pessoas de seu ambiente social. Essas variadas abordagens não se opõem, necessariamente, umas às outras. Elas compartilham o objetivo comum de tentar compreender de que maneira as pessoas são semelhantes e diferentes entre si (GAZZANINGA; HEATHERTON, 2005, p.479). Aprendizagem A criança (ou o adulto) aprende a partir das situações e interações que ocorrem no meio em que ela está inserida. Fonte: adaptado de Gazzaninga e Heatherton (2005); Mira y López (2015); Fiorelli; Mangini (2015). Enfim, quando o comportamento relaciona-se à conduta moral há uma diversidade de variáveis a ser consideradas, além do que se devem levar em conta as variáveis individuais e situacionais do momento, como é possível verificar a seguir: a) conduta moral não obedece à existência de um só fator geral; b) em sua determinação intervêm muito mais eficazmente as atitudes afetivas que o raciocínio lógico; c) não existem critérios morais padronizados que permitam uma valorização ética constante dos distintos tipos possíveis de conduta moral perante situações concretas; d) não só varia consideravelmente o critério julgador dos 36 atos morais de umas e outras pessoas, mas também em uma só se observam notáveis diferenças de rigor ao colocar-se em atitude crítica perante os diversos tipos de ações imorais; e) existem grupos humanos que são coletivamente julgados como deficientes éticos e que, não obstante, em provas de conduta, se mostram mais generosos que os considerados como normais (MIRA Y LÓPEZ, 2015, p.122). 37 UNIDADE 4 – A CAPACIDADE DE IMPUTAÇÃO E INIMPUTABILIDADE DO PORTADOR DE TRANSTORNO MENTAL Na tabela anterior recapitulamos que os comportamentos podem ser provenientes de diversas fontes – biológicas, psicológicas e sociais/ambientais – e mesmo da interação entre mais de um fator. Alguns desses fatores relacionam- se às funções cognitivas e à personalidade. Quando o indivíduo apresenta transtorno associado a uma dessas instâncias e, após avaliação multiprofissional, é caracterizado como portador de transtorno mental e/ou doente mental. Fica subentendido que determinados comportamentos podem ser em decorrência de sua condição, ou seja, o indivíduo não tem condições de se responsabilizar por seus atos e, consequentemente, não tem condições de ser punido pelos mesmos a exemplo do que acontece com as pessoas consideradas normais. Nesta mesma apostila, já compreendemos a importância da avaliação psicológica e as críticas a esse tipo de trabalho. Entretanto, quando há suspeita de algum desvio psicopatológico, esse tipo de trabalho se faz necessário em busca de um diagnóstico que poderá direcionar o tipo de punição empregada, dentre outros fatores. 4.1 Definição de conceitos básicos Antes de aprofundarmos no estudo, faz-se necessário realizarmos algumas definições: a) Responsabilidade penal: Do ponto de vista jurídico, a responsabilidade pressupõe no agente, contemporaneamente à ação ou à omissão, a capacidade de entender o caráter criminoso do fato e também a de determinar-se de acordo com esse entendimento. É possível então definir-se a responsabilidade como a existência dos pressupostos psíquicos pelos quais alguém é chamado a responder penalmente pelo crime que praticou (VALENÇA; CHALUD; MENDLOWICS; MESCLER; NARDI, 2005, p.249). 38 A responsabilidade penal pressupõe a obrigação do indivíduo de responder penalmente devido a alguma ação, desde que seja comprovada sua imputabilidade. Um indivíduo considerado responsável, ao cometer um delito, será submetido a uma pena. Termo relacionado ao Direito Penal (VALENÇA et al., 2005). A responsabilidade penal implica, então, em atribuir certo ato considerado como crime a um indivíduo, que somente sofrerá a punição adequada a sua ação se tiver capacidade (condições psíquicas, intelectovolitivas) de entender o caráter ilícito do ato praticado (NUNES, 2003, p.27). Para que um indivíduo seja responsabilizado penalmente por ter cometido algum delito, as seguintes condições devem ser observadas: ter praticado o delito; à época dele ter tido entendimento do caráter criminoso da ação; à época ter sido livre para escolher entre praticar e não praticar (VALENÇA et al, 2005, p.249). Convém ressaltar que o termo capacidade civil relaciona-se à capacidade do indivíduo de realizar atos relacionados à vida civil, tais como contrair matrimônio e administrar bens (FIORELLI; MANGINI, 2015). b) Imputabilidade Define-se brevemente a imputabilidade como a condição psíquica da punibilidade (VALENÇA et al., 2005). De acordo com Vargas (1990), o conceito básico de imputabilidade seria a condição de quem tem aptidão para realizar com pleno discernimento um ato. Representa a imputabilidade uma relação de causalidade psíquica entre o fato e o seu autor. Com uma frase interessante, Von Liszt apud Lutz (1941), resume bem essa questão: “imputável é todo indivíduo mentalmente desenvolvido e mentalmente são” (VALENÇA et al. 2005, p.249). Compreende-se a imputabilidade como a capacidade do indivíduo de ter consciência se os atos cometidos por ele foram bons ou maus (NUNES, 2003). 39 c) Inimputabilidade Compreende-se como inimputabilidade, a incapacidade do indivíduo em responder por sua conduta delituosa, ou seja, o indivíduo não tem capacidade de compreender que determinado fato é ilícito e de agir de acordo com esse entendimento. A inimputabilidade exclui a culpabilidade, já que o indivíduo não possui condições de compreender o porquê de seu ato ser reprovável, por isso não é possível impor algum tipo de pena ao cidadão infrator (DIREITO NET, 2015). São causas da inimputabilidade: a) doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado; b) menoridade; c) embriaguez completa, decorrente de caso fortuito ou força maior; e, d) dependência de substância entorpecente (DIREITO NET, 2015, s.p.). d) Periculosidade Questão bastante debatida, passou a ser criticada mais recentemente devido ao seu viés determinista, preconceituoso e, consequentemente, reforçador da exclusão social de determinados grupos pré-selecionados. Parte-se do pressuposto de que os comportamentos humanos podem ser determinados por uma série de fatores de ordem biopsicossocial. Em linhas gerais, todas as pessoas têm condições de tomar determinadas ações, dentre essas as delituosas. Assim, torna-se complicado afirmar com veemência quem seria mais propenso a tomar determinadas atitudes. Diferentemente dos liberais que tinham como objeto os delitos e as penas, os adeptos da Escola Positiva de Direito Penal voltam-se para o homem delinquente e as características que os distinguem dos demais. Com esse objetivo, tentam individualizar os fatores que condicionam o comportamento criminoso e, apoiados em pressupostos deterministas e na noção de hereditariedade, passam a criticar a noção de livre arbítrio e a questionar a responsabilidade dos criminosos. Segundo eles, a liberdade de escolha não podia ser considerada relevante no julgamento de um ato criminoso, uma vez que o comportamento humano estava predeterminado por causas inatas. No entanto, se os criminosos não podiam ser considerados, sob este ponto de vista, moralmente responsáveis, deviam ser tratados como socialmente responsáveis pelo 40 perigo
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