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P A r T E i Aspectos clínicos da depressão 1 A DEfinição DE DEPrESSão buscar maximizar as satisfações e minimi- zar a dor. Segundo este há muito respeitado conceito de instinto de autopreservação, es- ses indivíduos deveriam tentar prolongar a vida, e não terminar com ela. Ainda que a depressão (ou melanco- lia) seja reconhecida como uma síndrome clínica há mais de 2 mil anos, até hoje não foi encontrada uma explicação plenamente satisfatória de suas características intrigan- tes e paradoxais. Ainda existem importantes questões não resolvidas sobre sua natureza, classificação e etiologia. Entre essas ques- tões estão as seguintes: 1. A depressão é o exagero de um estado de humor vivenciado por indivíduos normais, ou é qualitativa e quantitativa- mente diferente de um estado de humor normal? 2. Quais são as causas, as características de- finidoras, os resultados e os tratamentos efetivos da depressão? 3. A depressão é um tipo de reação (conceito meyeriano) ou uma doença (conceito kraepeliniano)? 4. A depressão é causada principalmente por estresse psicológico e conflito, ou está basicamente relacionada a uma desordem biológica? Não existem respostas universalmente aceitas para essas perguntas. Na verdade, há uma nítida discórdia entre os clínicos e in- vestigadores que escreveram sobre depres- são. Há considerável controvérsia quanto à classificação da depressão, e alguns escrito- PArAdoxos dA dePressão Um dia talvez a depressão venha a ser compreendida em termos de seus parado- xos. Existe, por exemplo, um contraste im- pressionante entre a imagem que a pessoa deprimida tem de si mesma e os fatos obje- tivos. Uma mulher rica lamenta -se por não ter recursos financeiros para alimentar seus filhos. Um ator de cinema amplamente re- conhecido implora por uma cirurgia plástica por acreditar -se feio. Uma física eminente repreende -se “por ser burra”. Apesar do sofrimento vivenciado em decorrência dessas ideias autodepreciativas, os pacientes não são facilmente demovidos por evidências objetivas ou por demonstra- ções lógicas da natureza insensata desses pensamentos. Além disso, os pacientes com frequência praticam atos que parecem au- mentar seu sofrimento. O homem abastado veste andrajos e humilha -se publicamente implorando por dinheiro para sustentar a si e sua família. Um clérigo com uma reputa- ção impecável tenta se enforcar porque se diz “o pior pecador do mundo”. Um cientista cujo trabalho foi confirmado por numerosos investigadores independentes “confessa” publicamente que suas descobertas eram uma farsa. Atitudes e comportamentos como esses são muito intrigantes – superficialmente, ao menos –, pois parecem contradizer alguns dos axiomas mais fortemente estabeleci- dos da natureza humana. De acordo com o “princípio do prazer”, os pacientes deveriam 14 AAron T. BECk & BrAD A. AlforD res não vêem justificativa para utilizar essa categoria nosológica. A natureza e a etiolo- gia da depressão estão sujeitas a opiniões ainda mais divididas. Algumas autoridades afirmam que a depressão é sobretudo um transtorno psicogênico; outras asseveram que ela é causada por fatores orgânicos. Um terceiro grupo defende o conceito de dois tipos diferentes de depressão: um psicogê- nico e outro orgânico. PreVAlênCIA dA dePressão A importância da depressão é reconhe- cida por todos no campo da saúde mental. Segundo Kline,1 a depressão tem causado mais sofrimento humano do que qualquer outra das doenças que afetam a humanida- de. A depressão só fica atrás da esquizofre- nia nas primeiras e segundas internações em hospitais psiquiátricos nos Estados Unidos, e estima -se que a prevalência da depressão fora dos hospitais é cinco vezes maior do que a da esquizofrenia.2 Murray e Lopez3 constataram que, mundialmente, a depres- são unipolar foi a segunda maior causa de invalidez em 1990, medida em anos vividos com alguma invalidez. A depressão unipolar foi responsável por mais do que um de cada dez anos vividos com alguma invalidez. Há mais de 40 anos, um levantamen- to sistemático da prevalência da depressão em uma área geográfica bem definida indi- cou que 3,9% da população de mais de 20 anos de idade sofria de depressão em algum momento especificado.4 De acordo com a quarta edição do Manual Diagnóstico e Es- tatístico de Transtornos Mentais (DSM -IV) da Associação Psiquiátrica Americana (APA),5 a probabilidade de desenvolvermos trans- torno depressivo maior durante nossa vida é de 12 a 15% para os homens e de 10 a 25% para as mulheres. Em qualquer ponto no tempo (“prevalência pontual”), de 2 a 3% da população masculina e de 5 a 9% da feminina sofrem de depressão maior. Picci- nelli6 analisou os estudos sobre diferenças de gênero na depressão e constatou que as diferenças de gênero se iniciam em meados da puberdade e continuam durante a vida adulta. TABelA 1.1 Principais causas de invalidez no mundo (1990) Total de anos vividos com Porcentagem deficiência (milhões) do total Todas as causas 427,7 1. Depressão maior unipolar 50,8 10,7 2. Anemia por deficiência de ferro 22,0 4,7 3. Quedas 22,0 4,6 4. uso de álcool 15,8 3,3 5. Doença pulmonar obstrutiva crônica 14,7 3,1 6. Transtorno bipolar 14,1 3,0 7. Anomalias congênitas 13,5 2,9 8. osteoartrite 13,3 2,8 9. Esquizofrenia 12,1 2,6 10. Transtorno obsessivo ‑compulsivo 10,2 2,2 Adaptado de lopez e Murray (1998). Para dados atualizados da oMS, visite http://www.who.int/mental_health/ management/depression/definition/en/ DEPrESSão 15 Prevalência e intensidade por tipos e idade de início As taxas de prevalência na vida de ou- tros transtornos de humor (ver Capítulo 4 para distinções entre os tipos) são descritas no DSM -IV5 como segue: transtorno distími- co, 6%; bipolar I, 0,4 -1,6%; bipolar II, 0,5%; ciclotímico, de 0,4 - 1%. O Instituto Nacional de Saúde Mental (EUA)7 relata que 18,8 mi- lhões de americanos adultos (9,5% da popu- lação de 18 anos ou mais) em um dado ano sofre de algum tipo de transtorno depressivo. O transtorno depressivo maior é a principal causa de invalidez nas economias de merca- do consagradas ao redor do mundo.7 A prevalência em 12 meses e as taxas de gravidade são fornecidas por Kessler e co- laboradores.8 O U.S. National Comorbidity Survey Replication incluiu um levantamento domiciliar face a face de representatividade nacional realizado entre fevereiro de 2001 e abril de 2003. O estudo empregou uma entrevista diagnóstica estruturada, uma ver- são da Composite International Diagnostic Interview, da World Mental Health Survey Initiative, da Organização Mundial da Saú- de (OMS). Os participantes incluíram 9.282 entrevistados fluentes em inglês com18 anos ou mais. A prevalência em12 meses e as estimativas dos transtornos de humor desse estudo constam na Tabela 1.3. As taxas de idade de início e prevalên- cia (a probabilidade de sofrer de um trans- torno do humor em algum momento na vida) são apresentadas nas Tabelas 1.4 e 1.5.9 TABelA 1.2 Prevalência de transtorno depressivo maior por gênero (%) Homens Mulheres na vida 5 a 12 10 a 25 Prevalência pontual 2 a 3 5 a 9 Adaptado de DSM ‑iV ‑Tr. TABelA 1.3 Prevalência em 12 meses e gravidade dos transtornos de humor (%) Intensidade Total Grave Moderada leve Transtorno depressivo maior 6,7 30,4 50,1 19,5 Distimia 1,5 49,7 32,1 18,2 Transtornos bipolares i e ii 2,6 82,9 17,1 0 Qualquer transtorno de humor 9,5 45,0 40,0 15,0 Adaptado de kessler et al. (2005). 16 AAron T. BECk & BrAD A. AlforD ConCeITos desCrITIVos dA dePressão A condição que hoje rotulamos de depressão foi descrita por alguns autores antigos sob a categoria de “melancolia”. A primeira descrição clínicada melancolia foi feita por Hipócrates no século IV a.C. Ele também se referiu a oscilações semelhantes a mania e depressão.10 Aretaeus, um médico que viveu no sé- culo II d.C., descreveu o paciente melancó- lico como “triste, consternado, insone [...] Eles emagrecem por causa de sua agitação e perda do sono reparador [...] Em idade mais avançada, queixam -se de milhares de futilidades e desejam a morte”. É digno de nota que Aretaeus delineou especificamente o ciclo maníaco -depressivo. Algumas autori- dades acreditam que ele antecipou a síntese de Kraepelin da psicose maníaco -depressiva, mas Jelliffe desconsidera esta hipótese. No século II d.C., Plutarco apresentou uma descrição particularmente vívida e de- talhada da melancolia: Ele vê a si mesmo como alguém que os Deuses odeiam e perseguem com sua raiva. Um mal muito pior o aguarda; ele não ousa tentar evitar ou remediar tal mal, por medo de encontrar -se lutando contra os deu- ses. O médico e o amigo consolador são afastados. “Deixe -me”, diz o infeliz, “eu, o ímpio, o amaldiçoado, odiado pelos deuses, sofrer meu cas- tigo”. Senta -se ao relento, enrolado em aniagem ou em trapos imundos. Vez ou outra rola nu sobre a sujeira, TABelA 1.5 Prevalência (%) ao longo da vida dos transtornos por idade Idade Total 18 ‑29 30 ‑44 45 ‑59 >60 Transtorno depressivo maior 16,6 15,4 19,8 18,8 10,6 Distimia 2,5 1,7 2,9 3,7 1,3 Transtornos bipolares i e ii 3,9 5,9 4,6 3,5 1,0 Qualquer transtorno de humor 20,8 21,4 24,6 22,9 11,9 Adaptado de kessler et al. (2005). TABelA 1.4 Percentis selecionados sobre distribuições de idade de início padronizadas dos transtornos de humor do DSM ‑iV/WMH ‑CiDi, com risco na vida projetado aos 75 anos Idade em percentis de idade de início selecionados 5 10 25 50 75 90 95 99 Transtorno depressivo maior 23,2 12 14 19 32 44 56 64 73 Distimia 3,4 7 11 17 31 43 51 57 73 Transtornos bipolares i e ii 5,1 11 13 17 25 42 50 57 65 Qualquer transtorno de humor 28,0 11 13 18 30 43 54 63 73 Adaptado de kessler et al. (2005). risco na vida projetado aos 75 anos (%) DEPrESSão 17 confessando sobre um ou outro peca- do. Ele comeu ou bebeu algo errado. Fez alguma coisa ou outra que o Ser Divino não aprovou. Os festejos em homenagem aos deuses não lhe tra- zem prazer e sim enchem -no de medo ou pavor. (citado em Zilboorg11) No início do século XIX, Pinel descre- veu a melancolia da seguinte maneira: Os sintomas geralmente abarcados pelo termo melancolia são taciturni- dade, um ar pensativo sério, suspeitas soturnas e amor à solidão. Esses tra- ços, sem dúvida, parecem distinguir a personalidade de alguns homens com boa saúde e frequentemente em circunstâncias prósperas. Contudo, nada pode ser mais abominável do que a figura do melancólico remoen- do seus imaginários infortúnios. Se ademais possuído de poder, e dotado de uma disposição perversa e de um coração sanguinário, a imagem torna -se ainda mais repulsiva. Esses relatos guardam uma seme- lhança impressionante com as descrições de depressão dos livros modernos e são si- milares também às descrições autobiográ- ficas contemporâneas, como as de Clifford W. Beers.12 Os sinais e sintomas cardinais atualmente utilizados no diagnóstico da depressão encontram -se nas descrições an- tigas: humor perturbado (triste, consterna- do, inútil), autopunições (“o amaldiçoado, odiado pelos deuses”), comportamentos au- todepreciativos (“enrolado em aniagem ou em trapos imundos”, “rola nu sobre a sujei- ra”), desejo de morrer, sintomas físicos e ve- getativos (agitação, perda de apetite e peso, insônia), e delírios de ter cometido pecados imperdoáveis. As descrições da depressão menciona- das incluem as características típicas dessa condição. Poucas são as síndromes psiquiá- tricas que têm descrições clínicas tão cons- tantes ao longo de sucessivas épocas da his- tória (para descrições da depressão através dos tempos, ver Burton13). É digno de nota que as descrições históricas da depressão in- dicam que se observam manifestações desse transtorno em todos os aspectos do compor- tamento, incluindo as divisões psicológicas tradicionais de afeição, cognição e conação. Uma vez que a perturbação das emo- ções é uma característica marcante da de- pressão, tornou -se comum considerar tal condição um “transtorno primário de hu- mor” ou um “transtorno afetivo”. A impor- tância central atribuída ao componente emocional da depressão é exemplificada pelo uso de listas de adjetivos afetivos para definir e medir o transtorno. A representa- ção da depressão como um transtorno afeti- vo é tão enganosa quanto seria descrever a escarlatina como uma “doença de pele” ou como uma “desordem basicamente febril”. Existem muitos outros componentes da de- pressão além dos desvios de humor. Em uma significativa parcela dos casos, não se obser- va absolutamente nenhuma anormalidade no paciente. Em nosso atual nível de conhe- cimento, não sabemos qual componente do quadro clínico da depressão é o principal ou se esses componentes são simplesmente manifestações externas de algum processo patológico desconhecido. A depressão pode hoje ser definida em termos dos seguintes atributos: 1. Alteração específica no humor: tristeza, solidão, apatia. 2. Autoconceito negativo associado a autor- recriminações e autoacusações. 3. Desejos regressivos e autopunitivos: de- sejos de fugir, esconder -se ou morrer. 4. Alterações vegetativas: anorexia, insônia, perda da libido. 5. Alteração no nível de atividade: retardo psicomotor ou agitação. seMânTICA dA dePressão Uma das dificuldades de se conceituar a depressão é essencialmente semântica: o termo tem sido variavelmente aplicado para designar um determinado tipo de sentimen- 18 AAron T. BECk & BrAD A. AlforD to ou sintoma, um complexo de sintomas (ou síndrome) e uma patologia bem definida. É comum indivíduos normais dizerem que estão deprimidos quando observam qualquer queda em sua disposição de ânimo para um nível mais baixo do que o costu- meiro. O indivíduo que vivencia tristeza ou solidão transitória pode dizer que está de- primido. É discutível se essa disposição de ânimo normal equivale ao sentimento viven- ciado na condição anormal da depressão ou mesmo se tem alguma relação com ela. Seja como for, quando alguém se queixa de estar se sentindo exageradamente desanimado, desesperançado ou infeliz, o termo deprimi- do com frequência é usado para rotular esse estado subjetivo. O termo depressão muitas vezes é usa- do para designar um complexo padrão de desvios nos sentimentos, na cognição e no comportamento (descritos na seção ante- rior) não representado como um transtorno psiquiátrico distinto. Nestes casos, a depres- são é considerada uma síndrome ou comple- xo de sintomas. O aglomerado de sinais e sintomas às vezes é conceituado como uma dimensão psicopatológica cuja intensidade (ou grau de anormalidade) varia de leve a grave. A síndrome da depressão pode ser concomitante a um transtorno psiquiátrico definido, tal como a reação esquizofrêni- ca; nesse caso, o diagnóstico seria “reação esquizofrênica com depressão”. Às vezes, a síndrome é uma manifestação secundária ou uma afecção orgânica do cérebro, como, por exemplo, paresia cerebral ou arterios- clerose cerebral. Por fim, o termo depressão tem sido usado também para designar uma entidade nosológica distinta. Geralmente é qualifica- do por algum adjetivo para indicar deter- minado tipo ou forma, como, por exemplo, depressão reativa, depressão agitada ou reação psicótico -depressiva. Quando a de- pressão é conceituada como uma entidade clínica específica, presume -se que possui al- guns atributos consistentes além dos sinais e sintomas característicos;esses atributos in- cluem um tipo especificável de início, curso, duração e resultado. O sistema de classificação da APA (APA)5 ilustra alguns desses aspectos. A APA categori- za os transtornos de humor em 1. transtornos depressivos (depressão uni- polar) e 2. transtornos bipolares. No primeiro tipo, não há história de episódio maníaco ou hipomaníaco; no se- gundo, existe essa história. Os transtornos depressivos incluem transtorno depressivo maior e transtorno distímico. O transtorno depressivo maior é definido por um ou mais episódios depres- sivos. Tais episódios incluem 2 semanas de humor deprimido ou perda de interesse e no mínimo quatro sintomas de depressão adi- cionais. O transtorno distímico é, em parte, definido por ao menos 2 anos de humor deprimido de baixa intensidade, e a pessoa está deprimida na maior parte dos dias. Os transtornos bipolares geralmente são acom- panhados por episódios de depressão maior e divididos em dois tipos: bipolar I e bipolar II.5 A classificação dos transtornos de humor será considerada mais minuciosamente no Capítulo 4. Na medicina, presume -se que uma entidade clínica ou doença responda a for- mas específicas de tratamento (não neces- sariamente já descobertos) e tenha uma etiologia específica. Existe um considerável conjunto de evidências indicativas de que a depressão responde a certas drogas e/ou eletroconvulsoterapia (ECT), mas ainda não existe consenso sobre sua etiologia. Essa questão será adicionalmente analisada na Parte II, “Aspectos Experimentais da Depres- são”. dePressão e esTAdos de huMor norMAIs Existe bastante discussão entre os es- tudiosos sobre a relação entre a depressão e mudanças de humor vivenciadas por indiví- duos normais. A palavra humor geralmente DEPrESSão 19 é aplicada a um espectro de sentimentos que vão da euforia e felicidade em um extremo à tristeza e infelicidade no outro. Os senti- mentos particulares abrangidos por essa pa- lavra, em consequência, estão diretamente relacionados ou à felicidade ou à tristeza. Estados subjetivos, tais como ansiedade ou raiva, que não se enquadram nas categorias de felicidade e tristeza geralmente não são incluídos. Alguns autores14 acreditam que todos os indivíduos têm oscilações de hu- mor e que indivíduos normais podem apre- sentar momentos de tristeza ou dias tristes. Esta crença tem sido respaldada por estudos sistemáticos das oscilações de humor em su- jeitos normais.15 Os episódios de humor deprimido ou de tristeza que ocorrem nos indivíduos nor- mais assemelham -se, em diversos aspectos, aos estados clínicos da depressão. Em pri- meiro lugar, existe uma semelhança entre as descrições da experiência subjetiva do humor deprimido normal e da depressão. As palavras usadas para descrever o humor deprimido normal tendem a ser as mesmas usadas por depressivos para descrever seus sentimentos – triste, infeliz, vazio, mal, so- litário. Contudo, é possível que esta seme- lhança se deva ao fato de que os pacientes deprimidos utilizam vocabulário familiar para descrever um estado patológico para o qual não dispõem de palavras. Na verdade, alguns pacientes afirmam que seus senti- mentos durante suas depressões são muito diferentes de qualquer sentimento já viven- ciado quando não estavam clinicamente de- primidos. Em segundo lugar, o comportamento do paciente deprimido se assemelha ao de uma pessoa que está triste ou infeliz, prin- cipalmente na expressão facial lúgubre e na voz baixa. Em terceiro lugar, algumas das manifestações vegetativas e físicas caracte- rísticas da depressão podem ser observadas em indivíduos que estão se sentindo tristes mas que não seriam considerados clinica- mente deprimidos. Uma pessoa que é repro- vada em uma prova, que perde um emprego ou que recebe um fora pode não apenas se sentir desanimada e desamparada, mas tam- bém apresentar anorexia, insônia e fadiga. Por fim, muitos indivíduos vivenciam estados de tristeza que parecem oscilar de maneira regular ou rítmica, independentemente de estímulos externos, sugerindo variações rít- micas na intensidade da depressão.15 A semelhança entre depressão e hu- mor deprimido de indivíduos normais levou ao conceito de que o patológico é simples- mente uma exacerbação do normal. À pri- meira vista, essa conclusão parece plausível. Como será discutido no Capítulo 2, cada sintoma de depressão pode ter sua intensi- dade graduada ao longo de uma dimensão, e as intensidades mais leves são com certeza semelhantes aos fenômenos observados em indivíduos normais que se sentem tristes. Em respaldo à perspectiva da continui- dade, Hankin e colaboradores16 utilizaram os procedimentos taxométricos de Meehl para analisar a estrutura da depressão em uma amostra de crianças e adolescentes. Levando em conta a assimetria dos sinto- mas depressivos, os autores descreveram a depressão nos jovens como um construto dimensional, não categórico. Ao discutirem as implicações de suas descobertas, Hankin e colaboradores16 assinalam que o poder es- tatístico da pesquisa aumenta com a utili- zação de escores distribuídos de forma con- tínua, assim auxiliando a capacidade dos pesquisadores de identificar corretamente as verdadeiras causas e consequências da depressão. À semelhança das descobertas de Han- kin e colaboradores,17 Haslam e Beck18 utili- zaram procedimentos taxométricos para testar a distinção (descontinuidade) de cin- co subtipos hipotéticos de depressão maior, incluindo as formas endógena, sociotrópica, autônoma, autocrítica e desesperançada. O estudo utilizou perfis de sintomas e de per- sonalidade autorrelatados de 531 pacientes ambulatoriais consecutivamente atendidos e diagnosticados com depressão maior. As características dos respectivos subtipos não apresentaram a covariância prevista, exce- tuando -se o subtipo endógeno.18 Pode -se afirmar que muitos estados pa tológicos que parecem situar -se em um 20 AAron T. BECk & BrAD A. AlforD con tinuum com o estado normal diferem do estado normal em sua qualidade essencial. Para ilustrar isso, considere -se uma analo- gia entre os desvios de humor e os desvios da temperatura corporal interna. Ainda que mudanças acentuadas na temperatura corporal estejam no mesmo continuum que tem peraturas normais, os fatores subjacen- tes que produzem os grandes desvios não são uma extensão do estado normal de saú- de: uma pessoa pode ter uma doença (por exemplo, febre tifoide) que se manifesta por uma progressão serial na temperatura e contudo é categoricamente diferente do estado normal. Do mesmo modo, o desvio de humor observado na depressão pode ser a manifestação de um processo patológico que é diferente do estado normal. Não há consenso absoluto entre as au- toridades sobre a relação entre depressão e oscilações de humor normais. Alguns escri- tores, notavelmente Kraepelin e seus segui- dores, consideram a depressão uma doença bem definida, muito distinta do humor nor- mal. Esses autores postularam a presença de uma desorganização biológica profunda como o fator essencial na depressão. Este conceito de uma dicotomia entre saúde e doença é em geral compartilhado pela esco- la somatogênica. Os ambientalistas parecem favoráveis à hipótese da continuidade. Em seu ponto de vista, existe uma série con- tínua de reações de humor que variam de normais a extremas em um indivíduo espe- cialmente suscetível. A escola psicobiológica criada por Adolph Meyer tende a favorecer esta visão. A resposta final para a questão de ha- ver uma dicotomia ou continuidade entre humor normal e depressão terá que esperar até que a questão da etiologia da depressão esteja plenamente resolvida.
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