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A periferia está na moda. Atrai a atenção e os interesses de atores públicos e privados, em busca de explorar o que parece ser um novo Eldorado, território ainda desconhecido e cujas riquezas não conseguiram mensurar. Mas a periferia que se quer desejo e objeto de consumo é uma representação, entre tantas outras possíveis. Essa periferia é vista e representada como espaço da carência – estrutural, mas também política e cultural – que precisa das iniciativas “de fora” para ser salva e ter seu valor produzido, (re)conhecido, comercializado. Todavia, nessas periferias estão se organizando, se encontrando e se (re)conhecendo muitos atores que recusam a etiqueta de “carentes”, e que afirmam seu direito de se autorrepresentarem através da cultura, da arte e da ação coletiva. Os ensaios e artigos reunidos na coletânea “Política Cultural com as Periferias: práticas e indagações de uma problemática contemporânea”, resultado do trabalho realizado no Curso de Extensão Periferias em Cena do Instituto Federal do Rio de Janeiro, descortinam essas outras periferias. Aqui o foco não é a carência, mas as expressões de luta, resistência, criatividade e ousadia quem marcam esses territórios. Nas periferias apresentadas aqui, a cultura é um recurso abundante, mas a cidadania ainda é um bem escasso. O Estado atua nas suas “margens” de forma arbitrária, hierarquizada e ilegal, transformando a exceção em regra e definindo de fora para dentro que cultura é legítima, e portanto passível de ser produzida e consumida, e o que deve ser rejeitado, através da criminalização. É o caso do Funk, objeto de diversos trabalhos aqui presentes. Mas a criminalização aparece também na roupagem de iniciativa de “prevenção ao crime” que é imputada a muitos projetos culturais, quando realizados nos territórios periféricos. Contudo, é sobre a dimensão de potência e resistência da cultura da periferia que se debruçam os ensaios: sobre o poder de falar sobre e pela periferia, sobre a possibilidade de produzir rupturas e escapes à cultura (política) hegemônica, sobre a inversão dos fluxos de intercâmbio cultural e político (não “de fora para dentro”, mas de dentro para o mundo), sobre a afirmação de identidades não mais vistas como marginais, mas ainda como marginalizadas. Diversas iniciativas, como o Instituto Favelarte do Morro da Providência, a APAFUNK, o Teatro da Laje de Vila Cruzeiro, a Rede Enraizados, são apresentadas e analisadas sob a perspectiva de quem produz arte e cultura nesses territórios, que reivindica sua voz, sua ação e sua (auto)representação. Assim, mostram que mesmo a militarização, que hoje domina e submete as periferias, não conseguirá impedir que os pobres, pretos e jovens moradores dos subúrbios, favelas e loteamentos transformem a arte e a cultura em uma ação coletiva com significados políticos radicais. Lia de Mattos Rocha é Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Aline Dantas Marisa S. Mello Pâmella Passos (Orgs.) Política Cultural com as Periferias: Práticas e Indagações de uma Problemática Contemporânea 1ª Edição Assis - SP Gráfica Storbem 2013 Este trabalho está licenciado por Creative Commons - Atribuição Uso não Comercial STORBEM GRÁFICA E EDITORA Editoração - Impressão CAIO AMORIM Capa Ficha catalográfica elaborada por Cristiane da Cunha Teixeira Bibliotecária e Documentalista – CRB7 5592 ________________________________________________________________ P289 Política cultural com as periferias: práticas e indagações de uma problemática contemporânea / Pâmella Passos, Aline Dantas, Marisa S. Mello [organizadoras]. – Rio de Janeiro: IFRJ, 2013. 55 f.: il. color. ; 21 cm. 1. Periferias – Aspectos sociais. 2. Periferias – Aspectos políticos. 3. Política cultural. I. Passos, Pâmella. II. Dantas, Aline. III. Mello, Marisa S. IV. Instituto Federal do Rio de Janeiro. V. Título. IFRJ/CMAR/CoBib CDU 304.4 ________________________________________________________________ ÍNDICE Agradecimentos..................................................................................................5 Apresentação.......................................................................................................7 Aline Dantas, Marisa S. Mello e Pâmella Passos Cultura e Periferias – uma política (im)possível?........................................11 Kátia Aguiar e Pâmella Passos Consumo Favela................................................................................................21 Adriana Facina “É tudo nosso”: disputas culturais em torno da construção da legitimidade discursiva como capital social e espacial das periferias do Rio de Janeiro.....................................................................................................45 Ana Lucia Enne e Mariana Gomes O Funk Carioca e a Lei - problemas e recomendações................................61 Luiz Fernando Moncau e Guilherme Pimentel Entre a política cultural e a política de segurança pública – um relato sobre ações culturais no Morro da Providência em tempos de paz midiática.............................................................................................................79 Bruno Coutinho de Souza Oliveira e João Guerreiro Teatro da Laje....................................................................................................99 Antonio Verissimo dos Santos Junior Jovens negros e negras na literatura brasileira sobre a pobreza..............113 Marisa S. Mello e Victor Hugo A. Pereira Jovens, desigualdades e NTICs em contextos de mobilização social......137 Julia Paiva Zanetti e Patrícia Lânes Araújo Análises periféricas em cena: da produção cultural industrial à produção de afectos alegres............................................................................................153 Alessandra Lacaz, Félix Berzins e Williana Louzada [ 5 ] AGRADECEMOS À Direção do Campus Rio de Janeiro do IFRJ, que, compreendendo a importância do projeto Periferias em Cena, viabilizou, com recursos próprios, esta publicação. Aos autores dos capítulos, colaboradores que aceitaram o desafio de produzir de maneira intensa e popular sobre temáticas culturais contemporâneas. Aos alunos da turma do Periferias em cena de 2011, que continuam fortalecendo o projeto, através de suas iniciativas pessoais e coletivas. A equipe da Biblioteca Profº. Eurico de Oliveira Assis, situada no Campus Rio de Janeiro do IFRJ, pelo intenso apoio nas questões organizativas e estímulo a produção literária na Unidade de Ensino. Aos Grupos de Pesquisa em Tecnologias Educação e Cultura (GPTEC) e Observatório da Indústria Cultural (Oicult) pela possibilidade de diálogo e produção conjunta. A Revista Vírus Planetário pelo apoio em mais esta iniciativa. [ 6 ] [ 7 ] APRESENTAÇÃO A presente publicação, intitulada Política Cultural com as Periferias: práticas e indagações de uma problemática contemporânea, abrange textos sobre a cultura com e nas periferias, tanto como modo de vida, sob o ponto de vista político, quanto a partir de expressões artísticas. O livro pretende abordar o assunto sob três aspectos: reflexão sobre a cultura da periferia: desde as políticas públicas, financiamento, novas tecnologias, até o contexto onde acontece a incorporação desta; as manifestações artísticas, comoo teatro, a literatura e a música; e uma análise do seminário de avaliação do curso 'Periferias em cena.' Trata-se do segundo livro no contexto do projeto de formação de agentes culturais populares. O primeiro foi o produto final do 4o curso de extensão para agentes culturais populares, intitulado ‘Periferias em cena’. A obra, retrato das periferias cariocas, foi escrita pelos próprios alunos e membros da equipe que realizou o curso. O livro buscou dar visibilidade e registrar a diversidade e a perspectiva cultural dos espaços que historicamente foram vistos como carentes de cultura. O curso de agentes culturais populares nasceu de uma perspectiva que reúne critica ao elitismo na arte, na cultura e ao mercado,parte de uma visão da cultura como trabalho criativo, e percepção de que é preciso construir políticas culturais democráticas e voltadas às demandas populares. O `Periferias em cena´ é um projeto de extensão que visa reconhecer os saberes de agentes culturais populares, capacitando-os e qualificando-os no desenvolvimento de atividades culturais. Seus objetivos principais são construir a emancipação de produtores culturais populares a partir da socialização de saberes acerca da captação de recursos culturais; a criação de uma rede colaborativa das periferias, contribuindo para um resgate e fortalecimento da cultura popular; e a democratização no oferecimento e acesso à bens culturais na cidade do Rio de Janeiro, atuando à favor de uma descentralização destes instrumentos na região central e sul da cidade. Kátia Aguiar e Pâmella Passos propõem uma reflexão acerca das possibilidades e desafios na construção de uma Política Cultural Periférica tendo como mote de análise o gênero edital. Partindo de experiências com formação dos setores populares as autoras articulam [ 8 ] macro e micropolítica em suas análises para pensar os reais processos de democratização e/ou capturas e aprisionamentos. Compreendendo uma relação intrínseca entre uma política cultural que se almeja periférica e especificidades da economia cultural as autoras situam suas discussões no contexto da indústria cultural contemporânea e das estratégias de dominação do capitalismo global. Adriana Facina, idealizadora do curso, e professora do Museu Nacional/UFRJ, reflete sobre a expansão de fronteiras de todo tipo de consumo nas favelas, e ressalta como neste território se recriam novas formas de sobrevivência dos pobres. A favela como negócio, desta maneira, concorre com as históricas representações estigmatizadoras deste como lugar de carência e da violência armada. Para analisar as diferentes práticas de consumo Adriana trabalha com três categorias: consumo como território, a partir dos tours de favelas para turistas; intervenções culturais de grande porte por empresas ou produtores culturais de fora da favela; e favela que consome, sobre os novos hábitos de consumo dos moradores. A autora destaca os limites da associação entre consumo e cidadania e, ao mesmo tempo, a capacidade do consumo inverter fluxos culturais, principalmente o que se volta para novas tecnologias informacionais. Ana Lucia Enne e Mariana Gomes trazem como chave de discussão as relações entre o espaço físico e o espaço social, percebendo ambos como espaços de luta, tendo a cultura um papel fundamental de produção de sentidos nesse contexto. Posicionando a lupa sobre a dimensão discursiva de tais embates, as autoras levantam reflexões sobre autoridade e legitimidade para enunciar. Discutindo a cidade e suas formas de ocupação, apresentam a disputa constitutiva da lógica de distribuição dos espaços, e resgatam uma série de experiências de coletivos culturais periféricos, como a APAFUNK, para embasar suas análises. Luiz Fernando Moncau e Guilherme Pimentel debateram a regulamentação cada vez maior de eventos na cidade do Rio de Janeiro, destacando as dificuldades enfrentadas pelas manifestações culturais populares, especialmente o funk. Os autores relacionam o tratamento conferido ao funk pelo poder público como o resultado de uma história de estigmatização e preconceito, não apenas com o estilo musical, mas com os pobres e sua cultura em geral. A legislação, nos últimos anos, especialmente a Resolução 013 tem dado poderes excessivos às [ 9 ] autoridades, configurando muitas vezes práticas de censura, exigências desproporcionais para pequenos eventos, excessiva burocracia, que acabam por incentivar a obtenção de vantagens ilícitas por parte dos agentes públicos e incentivar a informalidade. João Guerreiro e Bruno Coutinho apresentam uma análise das políticas culturais, a partir de oficinas de fotografia desenvolvidas no Morro da Providência (zona portuária do Rio de Janeiro) pelo Instituto Favelarte. Buscam evidenciar e compreender o papel dos sujeitos que atuam em organizações culturais e suas indagações frente à política de segurança pública estatal. Para os autores, a intenção do Estado com a nova política de segurança, por meio da criação da UPP, é a transformação da cultura simbólica de áreas ocupadas através de novas narrativas e discursos sobre os espaços dessas comunidades. O autor Antonio Verissimo Junior nos convida a refletir sobre a experiência de jovens atuantes no Grupo Teatro da Lage, numa perspectiva para além da expressão estética, mas como prática cultural que possibilitou aos sujeitos compartilhar experiências e atribuir sentido ao seu próprio cotidiano e ao mundo. Aponta para uma ressignificação da linguagem teatral ao estabelecer um diálogo entre o cotidiano e as práticas da favela Vila Cruzeiro/RJ e os clássicos da dramaturgia de Shakespeare e Jorge Amado, com a montagem de Tieta, o ônibus que Jorge Amado nunca imaginou; Montéquios, Capuletos e nós. Através do relato do espetáculo produzido pelo grupo A viagem da Vila Cruzeiro à Canaã de Ipanema numa página de Facebook, o autor apresenta como a prática teatral colocou em cena a criatividade, o protagonismo e o caráter autoral dos jovens da favela, em conjunto com a comunidade na qual vivem, na construção de suas identidades. Victor Hugo Pereira e Marisa S. Mello abordam a representação de jovens negros/as pobres como protagonistas na literatura brasileira e a articulação desses destinos com propostas de transformação social e com a realidade em que vivem estes/as jovens. A via que escolheram para refletir sobre o assunto foi discutir comparativamente o modo com que esses personagens surgiram na cena literária brasileira nos anos 1930, em textos de Jorge Amado e José Lins do Rego, e como são apresentados na atualidade em obras de ficção, em autores como Sacolinha, Conceição Evaristo e Férrez. A literatura ora aparece como possibilidade de transformação de destinos individuais, eora como [ 10 ] guardiã e difusora do testemunho comunitário; um dos caminhos possíveis para contar a história de um povo. Patrícia Lânes Araújo e Julia Zanetti buscam discutir o uso das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) entre jovens em situação de pobreza, oriundos de favelas e bairros populares da região metropolitana do Rio de Janeiro, a partir dos resultados da pesquisa Jovens Pobres e o uso das NTICs na criação de novas esferas públicas democráticas, realizada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) em parceria com o Centro de Pesquisas para o Desenvolvimento (IDRC)/Canadá. As autoras enfatizam as apropriações e usos que os jovens fazem das NTICs para mobilização social, melhoria de qualidade de vida e garantia de direitos. Alessandra Lacaz, Félix Berzins e Williana Louzada partem de uma Análise Institucional do projeto realizada no primeiro seminário de avaliação do curso 'Periferias em Cena'. Tal momento marcado pelo reencontro entre alunos, professores e gestores proporcionou a percepçãodo que os autores denominam de afectos alegres, possibilitando uma transversalização do campo de análise que levassem em conta aspectos macro e micropolíticos. Articulando os níveis local, nacional e global os autores refletem sobre o conceito de cultura para a partir de dispositivos de análise mapear as interferências desta formação (Projeto Periferias em Cena) em todos os sujeitos envolvidos. Gostaríamos de convidá-los/as à leitura e reflexão suscitada pelos debates aqui apresentados. Pâmella Passos, Aline Dantas e Marisa S. Mello Organizadoras do livro. [ 11 ] CULTURA E PERIFERIAS – UMA POLÍTICA (IM)POSSÍVEL? Katia Aguiar1 Pâmella Passos2 O caminhar de uma análise inscreve seus passos, regulares ou ziguezagueantes, em cima de um terreno habitado há muito tempo. Michel de Certeau Para dizer a que viemos Um terreno habitado há muito tempo! Essa pode ser uma das múltiplas definições para as periferias. Por isso, embora não somente, queremos iniciar este ensaio, dizendo de um encontro entre nós, autoras: aquele que fez convergir nossas inquietações profissionais, como professoras/pesquisadoras, desde diferentes campos de saber – a história e a psicologia – e que nos animou a tecer parcerias. Ainda que, a partir de nossos lugares de pertencimento, afirmemos apostas teórico-metodológicas nomeadas como dissidentes ou marginais e que façamos incursões por terrenos ainda considerados menos nobres no trabalho acadêmico, não estamos livres dos impasses colhidos como efeitos das relações hierarquizantes, ainda hegemônicas, estabelecidas entre o lugar social que ocupamos e a sociedade. Sendo assim, importa considerar que investimos numa política de pesquisa que se faz no exercício crítico e transgressivo de desnaturalização tanto dos objetos, quanto das relações implicadas na investigação. Uma atitude ético-política que em lugar de invalidar ou driblar as diferenças e as divergências, comumente isoladas numa zona de conflito a ser evitada, as reconhece e as recolhe como matéria de 1Professora e pesquisadora do Departamento Psicologia e do Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Pós-Doutorado em Psicologia Social (UERJ), membro do Laboratório de Subjetividade e Política - LaSP / UFF. 2 Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRJ- Campus Rio de Janeiro), Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenadora do Periferias em Cena e pesquisadora do Observatório da Indústria Cultural (Oicult) e do Grupo de Pesquisas em Tecnologia, Educação e Cultura (GPTEC) [ 12 ] ser entendidos como situações analisadoras, indicando a coexistência de variadas intencionalidades, afetividades e racionalidades no campo de trabalho/investigação. Nossa experiência se inscreve no contexto urbano do Rio de Janeiro onde, muitas vezes, as favelas ganham o sentido de periferias. Um território habitado há muito tempo, mas que é recorrentemente apresentado como local de falta ou de carência cultural – termo que costuma operar uma síntese das fragilidades em saúde, educação, habitação e, a reboque, sugerir como inadequados os hábitos e atitudes de seus moradores. Notamos que essa concepção, permeia os discursos mais conservadores e, por vezes, aparece mais ou menos intensificada naqueles que se nomeiam como progressistas, vislumbrando na presença do Estado a “salvação” desses territórios. Tal entendimento parece carregar as marcas dos percursos colonizadores e civilizatórios, nos quais as manifestações populares foram sistematicamente desqualificadas e silenciadas. Na última década, porém, temos observado uma inflexão nos discursos oficiais que passaram a atribuir valor às culturas populares não só ampliando a concepção do conceito, mas forjando declarações, plataformas e políticas de apoio e fomento a iniciativas nesse campo. Cabe ressaltar que não percebemos tal mudança como um real reconhecimento e valorização de modos de vida singulares, aproximando nosso entendimento daquela como uma modulação das políticas de prevenção das violências e da promoção da segurança mundial implementadas, por exemplo, pela UNESCO desde o pós- guerra. Não podemos deixar de considerar que as estratégias de controle e de ajuste em tempos neoliberais, têm investido energicamente no direcionamento (econômico e mercadológico) da educação e da cultura – estímulo ao empreendedorismo e ativação de uma racionalidade assentada no gerenciamento produtivista (Havey, 2008). Por tudo isso e entendendo que hoje os trabalhadores sociais se movem num campo minado, onde as práticas ganham sentidos cada vez mais paradoxais, é que propomos habitar a encruzilhada entre as práticas que veiculam de forma acrítica as políticas de governo, nomeadas públicas, e as práticas de oposição àquelas, as que recusam a participação. Entre esses dois mundos, entre integrados e apocalípticos (Eco, 2006) é que extraímos algumas considerações que tencionamos trazer aqui. Tais considerações, de caráter introdutório, estão referidas a [ 13 ] diferentes atividades de pesquisa e de extensão3 realizadas por cada uma de nós, nos últimos dez anos, período no qual a ansiada consolidação democrática ganhou novos tensionamentos gerados pelo contraditório fenômeno da globalização da economia, cujas estratégias de ajuste se assentam na proliferação dos dispositivos de segurança e na criminalização de entidades e pessoas que escapam aos modos de vida consentidos. O que aproxima os diferentes processos nos quais estivemos envolvidas é, em primeiro lugar, o fato de se apresentarem como experimentações, encontrando no caráter processual e na dimensão inventiva das práticas, elementos a privilegiar. Em segundo lugar, nos aproxima o fato de desenvolvermos aquelas ações culturais em territórios nomeados pelos discursos oficiais como “vulneráveis”. Tal categorização tem sido o mote para a alocação de recursos governamentais, não governamentais e empresariais, através de projetos e de programas, que objetivam desde o apoio a iniciativas, já em curso, envolvendo entidades e/ou pessoas que moram no local, até o financiamento para implementação de tecnologias inovadoras, de caráter multiplicador, já validadas em territórios afins. De todo modo, o que tem nos chamado a atenção nesse tempo, nos convocando a assumir um tom de prudência em nossos percursos, é o caráter paradoxal desses investimentos: se o dinheiro circula, numa atribuição de valor a territórios e pessoas historicamente excluídos de benefícios, não tarda para que os mesmos sejam transmutados em capital social, inscritos em novas estatísticas e devolvidos às engrenagens da gestão (econômica) dos riscos. Operação de controle, contenção, encarceramento ao ar livre. Mudanças para nada mudar... Assim, para além da reivindicação de direitos sociais e de políticas públicas que favoreçam os setores populares, importa colocarmos nossa atenção no modo de elaboração e de implementação dessas políticas. Num tempo em que “tudo é perigoso”, cabe usar desta assertiva para nos deslocar de pretensas zonas de conforto que só num estado de ignorância podem ser tranquilizadoras. 3 Katia Aguiar – Pesquisa-Intervenção: Subjetividade, Cultura e a Economia dos Setores Populares e o Curso de Extensão Viabilidade Econômica e Gestão Democrática de Empreendimentos Associativos Populares – promovidos pela Universidade Católica de Salvador e Capina- assessoria e apoio a projetos de inspiração alternativa. Pâmella Passos - Pesquisa de tese de doutoramento: Lan house na favela: cultura e práticas sociais em Acari e no Santa Marta e ProjetoPeriferias em Cena. [ 14 ] Entendendo que a construção de uma política cultural para a periferia está diretamente implicada numa economia cultural e, portanto, inscrita nas forças em luta que disputam concepções e projetos de desenvolvimento, é que trazemos à cena um instrumento que ganhou centralidade nas relações entre Estado, Sociedade e o mundo empresarial na última década, a saber: o Edital. Edital – entre o dicionário e o cotidiano das práticas Assumindo os riscos de não explorar todas as possibilidades do que aqui insinuamos como problema, é que nos aproximamos do Edital como figura incorporada às conversas e discussões entre pesquisadores, trabalhadores sociais e moradores das periferias, como condição nas relações de trabalho, já que é caminho de acesso a recursos financeiros, materiais e humanos. Queremos considerar como hipótese de trabalho que tal incorporação, quando naturalizada, pode impedir a observação e a análise tanto das condições de seu uso, quanto de seus efeitos – operação que cola ao edital um significado, apagando os múltiplos sentidos que com ele se efetuam. Numa consulta ao dicionário, Edital se define como: ato oficial contendo aviso, citação, determinação etc., que a autoridade competente ordena seja publicada em imprensa oficial ou não; forma de divulgação oficial, para conhecimento das próprias pessoas nele mencionadas, bem como às demais interessadas no assunto. Além disso, dependendo de seu objetivo, o Edital ganha diferentes denominações, referindo variados tipos de atividade, de áreas administrativas ou de públicos – concurso público, licitação, fomento à pesquisa ou a projetos socias, por exemplo. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Edital) Em artigo sobre uma pesquisa realizada no campo de estudos da linguagem (Santos e Nascimento, 2011), encontramos discussões que classificam o Edital como gênero linguístico. Os autores do referido artigo, utilizaram para a sua pesquisa documental três tipos de Edital, captados na rede mundial de computadores – concurso para provimento de cargos públicos, abertura de licitação e seleção para bolsa de estudo – para com eles compor o seu corpus de análise. Tal investigação, referenciada nos estudos dos gêneros discursivos, concluiu pela necessidade de maior elaboração do gênero Edital. Segundo os autores, os manuais normativos de elaboração, comumente utilizados por aqueles que redigem os textos, não contemplam as especificidades, as [ 15 ] necessidades e a complexidade requeridas por cada tipo de Edital. Em suas palavras, “(...) a literatura em relação às orientações para construção desse gênero ainda é precária e carece de critérios linguístico-discursivos mais consistentes. Isso é necessário pela própria função social desse gênero: sabemos que as instituições privadas e públicas mantêm, em grande parte, sua relação com a sociedade através do edital. ”(p.142). Os autores destacam, ainda, que essas dificuldades e inadequações na redação do texto, com “aplicações indevidas de termos”, favorecem problemas de interpretação, gerando muitos recursos (processos) aos órgãos responsáveis. Com isso, consideramos que o Edital embora tenha uma função normativa, não tem alcançado o seu intento na medida que a língua não é utilizada de forma adequada, “de maneira a atingir seu interlocutor e indicando como deve agir.” (p.142) Encontramos ressonância a essa observação em diálogos estabelecidos com um morador de Acari, dono de uma lan house local, quando tendo sido eliminado de uma seleção pública de projetos, comentava sua descrença nesses processos: Então, essas pessoas, eles sabem, porque muitos criadores de ONG, em sua grande maioria são políticos, são pessoas formadas, né, em determinada área, ou direito ou economia, entendeu? Agora tu traz projeto, bota um projeto desse e um cidadão ali, que mal terminou o segundo grau. Então como é que ele vai montar um projeto desse sozinho?(Passos, 2013, p.171) Mas a fala desse morador amplia a discussão para além da boa escritura e do mal entendido, trazendo com sua perplexidade a confirmação de uma operação já antiga no controle dos setores populares. É que ainda que mal redigidos, como observam os pesquisadores, e que declaradamente sejam endereçados aos habitantes das periferias, as exigências para a participação e concorrência, expõem outros direcionamentos e favorecimentos políticos, fazendo do Edital uma artimanha. Tendo participado de diferentes processos normatizados por [ 16 ] Editais seja na posição de solicitantes, de concorrentes ou de avaliadoras, afirmamos a pertinência de colocar em discussão tal instrumento. Muitas vezes ouvimos que esse era o caminho mais transparente e democrático de acesso aos recursos públicos, uma vez que coloca “em pé de igualdade todos aqueles que se interessam ou necessitam do fomento”. Ledo engano! As condições nas quais os Editais são publicizados – prazos, exigências e contrapartidas, além do caráter hermético dos textos - expõem por si só seus comprometimentos políticos, indicando que as benesses de tais iniciativas, na maioria das vezes, já têm nome e endereço certos. Eu queria ter certeza só, eu entrei também assim, mais pra ter certeza, entendeu?(...) Porque as coisas que eles colocam ali pro teu projeto são coisas absurdas, absurdas que pro pessoal de comunidade fica difícil. (...) eles põem tanta dificuldade, porque quem realmente sabe, né, como criar um projeto desses, são as ONGs, né, que são praticamente uma empresa, ali é uma empresa, pra meter a mão no dinheiro público, né? (Passos, 2013,p.170) Mais uma vez, a avaliação do morador de Acari está em sintonia com algumas análises sobre as práticas das organizações não governamentais (ONGs) nas últimas décadas. Numa pesquisa publicada sobre o tema, Coutinho (2011) estuda as relações estabelecidas entre as ONGs, o Estado e as políticas de ajuste do Banco Mundial (BM) para a América Latina – o que inclui programas de capacitação nas áreas de saúde, educação e cultura, dentre outras. Evidencia que mesmo entre as entidades mais ‘progressistas’ e ‘radicais’, é difícil manter a autonomia do sentido de suas ações, uma vez que as mesmas recebem financiamento de organizações internacionais e de governos dos países do norte, claramente comprometidos com as pautas do BM. Assim, para além dos limites de sua autonomia, as ONGs assumiram pouco a pouco funções de consultoria, preparando documentos, estratégias e políticas operacionais, tornando-se “capaz de atender às exigências da reestruturação produtiva, amenizando os efeitos do desemprego em massa” (Coutinho, 2011, p.14). Isso posto, ainda que o Edital apareça hoje como um mal necessário, dadas as relações estabelecidas entre o Estado e Sociedade, cabe observar que ele é indicativo da hegemonia de políticas de governo, se constituindo como dispositivo de controle e modulação das práticas [ 17 ] sociais. Desse modo, embora evocando seu significado de documento que “deve conter características de impessoalidade, do uso do padrão culto de linguagem, da clareza, da concisão, da formalidade” (Santos e Nascimento, 2011, p.134), sua operacionalização faz proliferar outros sentidos que merecem ser observados. Ao apontar a função social das ONGs como “colchão amortecedor”, “administradoras de consenso” (Coutinho, 2011, p.130) ou como “ventrílogos da escassez” (Oliveira, 2002, p.61), cabe alertar para o efeito de traição das intenções frequentemente declaradas pelos seus gestores, qual seja: a (real) democratização de recursos e o fortalecimento de iniciativas de caráter popular. Política Cultural Periférica e Economia Cultural Pelo exposto, cabe interrogar: como viabilizar uma atividade culturalna periferia? É bem verdade que a despeito dos patrocinadores e editais elas acontecem: rodas de samba, saraus, atividades esportivas, festas populares, festivais, são realizados ora com apoio de comerciantes locais, numa estratégia informal de patrocínio, ora na base de “interas”, as famosas “vaquinhas” colaborativas entre os moradores. Em nossas experiências encontramos muitos desses moradores que, a despeito de “ganharem o pão” com outras atividades, esperam sedentos a oportunidade de, quem sabe, sobreviver do que gostam de fazer e que denominam de cultura periférica. A necessidade imperiosa de ter acesso a informações pertinentes à elaboração de projetos, prestação de contas ou mesmo aos temas com maior chance de financiamento, coloca em cena o antigo lema “quem tem fome tem pressa”, proferido por Betinho. Mas, como diz a música: “a gente não quer só comida, agente quer comida, diversão e arte”... Como então habitar esse conflituoso território? De que maneira é possível perceber as capturas e manutenções de uma política cultural hegemônica regida por editais, dialogar com ela e diferir, produzindo rupturas e escapes? Longe de oferecer soluções mágicas, fazemos aqui três destaques que nos servem de orientadores na construção de dispositivos de análise (reflexão e debates) nos coletivos de trabalho, nas periferias. 1º. Colocar em discussão as condições de produção e de realização das atividades, avaliando as implicações da busca por [ 18 ] financiamento externo, como a possível perda de autonomia, cumprimento de prazos, etc.; 2º. Dessacralizar da militância, promovendo discussões sobre os prós e contras, os possíveis impasses, e o cenário político e econômico no qual proliferam os editais de financiamento. Considerar esse cenário mais amplo pode contribuir para pensar outras posições políticas fora do embate entre “militantes puro-sangue” (aqueles resistentes, que não participam de editais) e os “vendidos” (aqueles que querem concorrer, sobreviver de sua arte e/ou produção cultural); 3º. Conhecer as exigências e avaliar a adequação entre o que se quer fazer e o recurso disponibilizado, desfazendo ilusões quanto à estabilidade de vínculo e de remuneração. É recorrente a submissão de projetos populares com objetivos e metas muito além do que os recursos previstos podem garantir, levando ao excesso de trabalho mal remunerado; 4º. Fazer a gestão coletiva das atividades, desde a formulação do projeto até a aplicação dos recursos, inscrevendo o projeto no contexto das relações econômicas vigentes. O projeto serve assim, como uma experimentação que favorece a compreensão dos limites e das possibilidades da posição de cada um numa economia cultural. Entendemos que não é possível fazer uma discussão sobre política cultural sem considerar sua economia, o que implica atenção à indústria cultural, sua estrutura e funcionamento, em especial, o seu modelo de ação. Aqui, o chamado oligopólio de franja parece dominar a cena fazendo coexistir um centro oligopolístico (majors) e uma franja concorrencial (independentes), operando o domínio da distribuição, da busca especulativa de talentos e modismos (efeito moda) e dos direitos sobre as obras por longo período de tempo (efeito reserva). Tolila (2007) aponta que esse modelo “permite explicar vários fenômenos observáveis no setor das indústrias culturais (...). Coloca também, diretamente, a questão da criação artística em seus novos aspectos questionando os modos de intervenção das políticas públicas” – como e quando intervir. Importantes considerações para pensar a relação entre cultura e periferia e interrogar: uma política (im)possível? Referências Bibliográficas AGUIAR, Katia Faria de. 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(Trecho do poema Favelário, de Carlos Drummond de Andrade) O geógrafo Mike Davis, no livro Planeta Favela, diz que os favelados são pelo menos um terço da população urbana global. O impacto desse dado faz com que as projeções urbanísticas para um futuro próximo devam levar em consideração que (...) as cidades do futuro, em vez de feitas de vidro e aço, como fora previsto por gerações anteriores de urbanistas, serão construídas em grande parte de tijolo aparente, palha, plástico reciclado, blocos de cimento e restos de madeira. Em vez de cidades de luz arrojando-se aos céus, boa parte do mundo urbano do século XXI instala-se na miséria, cercada de poluição, excrementos e deterioração. (DAVIS, 2006: 28-9) Essa precariedade, no entanto, não inviabiliza o “esplendor”, no dizer de Vera Malaguti citando Foucault, necessário ao capitalismo vídeo-financeiro, que tem nas favelas uma de suas fronteiras mais promissoras para expansão de um ordenamento espetacularizado que combina consumo com controle social. Nas palavras da socióloga: Para ele [Foucault] esplendor seria a beleza visível da ordem e o brilho de uma força que se manifesta e que se irradia. Manter a ordem num campo de forças naquele território usado, desigual, múltiplo, controlando as populações. (MALAGUTI, 2011: 4) 4 Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002), com pós-doutorado pela mesma instituição (2008-2009). É professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ. Tem experiência nas áreas de Antropologia e História, com ênfase em Antropologia Urbana e História Cultural. [ 22 ] A ordem necessária ao esplendor é garantida pelaforça das armas, mas também pelo consenso construído a partir de subjetividades organizadas em torno do consumo. Sem querer demonizar o consumo, que inclui práticas muito heterogêneas, é fato que as demandas e necessidades geradas por essas práticas na sociedade contemporânea captura boa parte da vida e dos esforços de sobrevivência dos indivíduos, sobretudo os mais pobres. Podemos afirmar que a favela é hoje o centro desse processo, palco de ocupações armadas e cenário de uma expansão de fronteiras de todo tipo de consumo, em meio ao celebratório discurso das classes emergentes, nova face do capitalismo à brasileira. Assim, parte do Planeta Favela de que fala Davis, é o Consumo Favela, território de práticas diversas de financeirização da vida, mas também de recriação das formas de sobrevivência dos pobres. Em uma breve pesquisa no site de buscas Google a palavra favela descortina um mundo ligado ao diversos tipos de práticas de consumo. É fato: a favela está na moda. Concorrendo com as históricas representações estigmatizadoras da favela como lugar de carência e de violência armada, surge a imagem da favela como negócio, uma marca poderosa capaz de atrair investimentos públicos e privados para todo tipo de atividade econômica. Turismo, grandes lojas de varejo, pousadas para receber gringos, eventos culturais de grande porte, shoppings, festas e até mesmo um videogame online são parte desse cardápio à disposição de quem deseja consumir a favela. Há ainda uma recente e intensa valorização imobiliária, fenômeno que atinge sobretudo as áreas que receberam Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), e também uma presença frequente da favela como cenário ou tema de diversas produções da indústria cultural, sejam os chamados favela movies, sejam as novelas televisivas. Tornada consumo, a favela serve inclusive para vender coisas que não têm diretamente a ver com ela, sendo utilizada como sinal de modernidade criativa e “descolada”. É o caso de bares e estabelecimentos no Brasil e no exterior que ostentam o nome Favela, bem como de marcas como a Favela Hype. De acordo com o site da loja roupas, criada em 2001: A marca propõe um lifestyle repleto de referências urbanas e passa pelos mais variados universos. Cachaça Samba Club, Pobre Star, Soul do Rio e Toda Nudez Será Castigada são algumas das coleções criadas pela estilista.5 5 Retirado do site http://www.favelahype.com.br em 24/10/2013. [ 23 ] Sem deixar de portar um estigma que confere a seus habitantes uma identidade deteriorada, nos termos de Erving Goffman (1988), que transparece no uso do termo “favelado” como categoria de acusação, favela se torna também um signo que remete a significados outros. Para analisar essas ressignificações associadas a diferentes práticas de consumo, pretendo dividir estas em três categorias: 1. Consumo do território. Como exemplo desta categoria, tratarei os tours de favelas para turistas, em sua maioria, estrangeiros; 2. Intervenções culturais. Aqui está a realização de eventos de grande porte (shows, festas etc) por empresas ou produtores culturais de fora da favela, muitas vezes parte de um “pacote cultural” que acompanha a implementação de algumas UPPs; 3. Favela que consome. Enquanto nas categorias anteriores o foco está nos “de fora” consumindo a favela, aqui o olhar se volta para novos hábitos de consumo dos moradores e as iniciativas que buscam lucrar com esses hábitos. O consumo do território Território é um conceito em voga atualmente, sobretudo nos jargões das políticas culturais. Nos debates das Ciências Humanas, território aparece como algo mais do que um espaço delimitado por fronteiras físicas, tais como aquelas do Estado-Nação. Pierre Bourdieu chama atenção para a dimensão de poder presente na definição de qualquer território e para o aspecto simbólico que nos permite pensar o território como prática e não apenas como um espaço físico. Junto deste, haveria um espaço social marcado por distinções e hierarquizações demarcadas por relações de poder. (BOURDIEU 1989 e 1998) Assim, quando definimos a favela como um território, não estamos nos referindo somente ao espaço físico das diferentes favelas, mas também às construções simbólicas que informam as representações sobre elas, bem como às práticas culturais e experiências compartilhadas por seus moradores, por sua vez implicadas em processos de formação de identidades. O turismo em favelas organizado por agências situadas fora delas e voltado prioritariamente para turistas estrangeiros opera na ambiguidade das representações existentes sobre os territórios favelados. O exotismo com que o passeio é apresentado o uso de jeeps como veículos para a condução dos “gringos” fazem com que a associação com os safáris nas savanas africanas seja frequentemente acionada pelos [ 24 ] moradores de favela. Michel Silva, jovem morador da Rocinha, ativista e comunicador popular, expressa essa ideia nos seguintes termos: Acho legal quando saem para conversar, alguns até se mudam para cá, porque a vida é dura, mas é boa. Só não curto os que ficam presos dentro dos jipes. Parece um safári.(apud ABREU E SILVA, 2013: 99) A mesma crítica pode ser vista no cartaz abaixo, retirado do blog O Cotidiano (http://www.ocotidiano.com.br), do fotógrafo Franscisco Valdean, morador da favela da Maré: O exotismo tanto remete à violência e ao perigo, quanto a um conhecimento profundo sobre que seria a sociedade brasileira, como [ 25 ] está, em inglês, no site da empresa Favela Tour: “Se você quer entender o Brasil, não vá embora do Rio sem fazer o Favela Tour.”6 Já no site da empresa Jeep Tour, podemos ler: Numa comunidade é natural que todos estampem um soriso (sic) no rosto, mesmo com as dificuldades do cotidiano. No tour pelas favelas, é possível obter um choque cultural tendo uma aula prática de antropologia, conhecendo um lugar com uma diversidade enorme quando o assunto é a sobrevivência. Explore esta sensação, numa passagem fantástica entre realidades e contrastes de várias comunidades inseridas no cenário carioca.7 Em 2008, quando realizava trabalho de campo na Rocinha para minha pesquisa de pós-doutorado sobre o funk, vi diversas vezes os jeeps camuflados repletos de turistas estrangeiros, alguns realmente vestindo roupas e chapéus utilizadas em safáris, passeando pelas ruas da favela. Pude ver também as expressões faciais e ouvir os comentários dos moradores, sempre indignados com a cena. No livro Gringo na laje, Bianca Freire-Medeiros apresenta uma pesquisa sobre o turismo na Rocinha na qual demonstra que, ao lado de uma aceitação dessa atividade, existem tensões entre moradores e turistas, ou entre moradores e as agências de turismo. Segundo a pesquisa, realizada em 2009, os moradores vêm no turismo não tanto uma possibilidade de ganho econômico, mas sim uma atividade estratégica para a reversão do estigma que pesa sobre a favela. Mas, ao mesmo tempo, se incomodam com as câmeras, a exotização e a falta de interação entre eles e os turistas. (FREIRE-MEDEIROS, 2009) Essa atividade cresceu em várias favelas após o estabelecimento das UPPs, que criaram uma imagem das favelas pacificadas como lugares seguros aos visitantes de fora, em oposição às favelas não pacificadas, ainda tidas como “no-go areas”, termo que Les Back utiliza para falar da criminalização de uma região do sul de Londres habitada majoritariamente por negros e pobres. (LES BACK, 1996) De acordo com matéria publicada em O Globo em 21 de janeiro de 2013, baseada em 6http://www.favelatour.com.br/ing/whatis.htm, capturado em 24 de outubro de 2013.7 http://www.jeeptour.com.br/index.php/2013-02-18-15-26-11/favelas, capturado em 24 de outubro de 2013. [ 26 ] pesquisa realizada em 2011 pela FGV, mais da metade dos turistas que chegam ao Rio de Janeiro quer conhecer as favelas, o “Brasil Real”, nos termos de um turista canadense entrevistado pelo jornal. Ao mesmo tempo, a mesma pesquisa revela que os turistas pouco consomem nesses locais e que têm receio de comer nas favelas, pois vêm o lixo e esgoto nas ruas com “nojo”. De acordo com o jornal, O baixo consumo na favela contradiz com a percepção geral declarada por 82,1% dos turistas brasileiros entrevistados no aeroporto, de que esse tipo de atividade traria benefícios sociais à comunidade. Entre os estrangeiros, esse percentual foi de 73,2%. Percentual similar de estrangeiros — 73% — declarou que as operadoras de turismo lucram com a miséria, ante 65,8% dos brasileiros. O estudo ouviu 900 pessoas que deixavam o Rio, sendo metade brasileiros e metade estrangeiros; 400 estrangeiros que faziam o passeio no Dona Marta; e 25 moradores, trabalhadores e policiais do morro, que falaram na condição de anonimato. O levantamento tratou também de outra questão polêmica: o comportamento de quem visita a favela. Para 70,2% dos estrangeiros ouvidos no aeroporto, os turistas se comportam como num "zoológico de pobre". O percentual de brasileiros que pensam assim é menor: 46,1%.8 Desse modo, podemos perceber que nem sempre o turismo se apresenta como oportunidade econômica para os moradores de favelas, gerando inclusive tensões entre turistas e moradores. Ainda de acordo com O Globo, O levantamento no Dona Marta constatou que a relação entre moradores e turistas tem focos de tensão. Uma delas diz respeito à privacidade da população local, que reclama de visitantes que saem tirando fotos de tudo e todos, sem pedir licença. Houve inclusive moradores que expressaram temor com o destino das imagens, sobretudo de crianças, temendo a presença 8 http://oglobo.globo.com/rio/mais-da-metade-dos-turistas-quer-conhecer- favelas-do-rio-7349831, consultado em 24/10/2013. [ 27 ] de pedófilos entre os turistas estrangeiros.9 Atualmente desenvolvo pesquisa sobre produção cultural e práticas de letramento no Complexo do Alemão e no trabalho de campo sempre ouço falas que se referem à transformação daquele território em ponto turístico da cidade. Em matéria publicada na internet, o Governo do Estado celebra o fenômeno: Rio de Janeiro (RJ) – Os olhares curiosos, os cliques de câmeras fotográficas e os idiomas estrangeiros falados no vai e vem do teleférico do Morro do Alemão revelam que o turismo chegou ao local. De acordo com a Supervia Trens Urbanos, responsável pela administração do equipamento, 14 mil pessoas transitam diariamente pelos vagões suspensos da comunidade pacificada. Desse total, o turismo responde por 35,7% durante os dias úteis e 64,3% aos fins de semana. O quantitativo é superior ao registrado pelos vagões do Pão de Açúcar, conhecido como um dos principais pontos turísticos do estado.10 Até a ocupação militar de dezembro de 2010, essa era uma área sempre representada nos meios de comunicação como violenta, decadente economicamente, perigosa e sem atrativos portanto. A despeito disso, alguns coletivos, como o Instituto Raízes em Movimento e o Verdejar já se dedicavam a uma atividade de dar a conhecer o território para pessoas de fora, um certo tipo de “turismo de vivência”como define Alan Brum, sociólogo morador da favela e fundador do Raízes. No atual contexto após implementação de UPPs e a inauguração do teleférico que foi construído como parte do PAC (Programa de Aceleração ao Crescimento), diversos grupos de dentro e de fora da favela começaram a organizar visitas turísticas. Em decorrência disso, surgiram conflitos sobre os usos turísticos daquele território. Como no Santa Marta, moradores reclamam da falta de privacidade trazida pelos turistas, com o agravante que o teleférico permite que se olhe e fotografe cenas ocorridas dentro de suas casas e nas suas lajes, estes locais onde se festeja, pega sol, toma banho de mangueira etc. Atividades estas 9 Idem. 10 http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20130121.html , capturada em 28/10/2013. [ 28 ] consideradas do âmbito familiar privado. Essa visita turística que se faz pelo passeio no teleférico, com parada apenas em suas estações e imediações delas, é denominado por grupos de moradores que organizam visitas ao Complexo como sendo “turismo pelo alto”. Para eles, esse tipo de passeio não permite ao visitante conhecer de fato a favela e estabelece com seus moradores uma relação de exotização e exploração econômica considerada perversa. Em contraposição, esses grupos organizam visitas por becos e vielas, o chamado “turismo por baixo”, visto como mais verdadeiro e comprometido com a população da favela. Um exemplo é o Rolê Afetivo, organizado pelo coletivo Ocupa Alemão, formado por jovens moradores. Outro exemplo é o Fotoclube Alemão, criado pelo fotógrafo Bruno Itan, e que mistura moradores e visitantes em passeios por dentro das favelas do Complexo produzindo fotos e discutindo a criação de um novo olhar sobre o território. Pude comprovar a desvinculação do “turismo pelo alto” com a vida na favela um dia em que fui a um evento que acontecia na última das estações do teleférico, a de Palmeiras. Era um sábado de sol e havia muitos turistas no teleférico e na estação. De repente, caiu um temporal muito forte e o teleférico fechou. Um grupo de uns dez turistas ficou apavorado, perguntando aflito na bilheteria se o teleférico voltaria a funcionar. Diante da negativa do funcionário, ficaram muito assustados em ter de descer o morro em que fica a estação e pegar um transporte alternativo (Kombi, mototáxi etc) para chegar ao “asfalto”. Fui caminhando junto com eles, pois tinha de ir a outro evento na Praça do Conhecimento, na favela Nova Brasília. Ouvi seus comentários que misturavam tensão, medo, revolta e uma imensa vontade de sair correndo daquele lugar o mais rápido possível. Essas tensões em torno do consumo do território explicitam uma cidade em disputa, material e simbolicamente falando. Quais são as apropriações e as representações da cidade que os diversos tipos de turismo em favelas pode criar? O turismo que segrega favela e asfalto ou o turismo que integra e afirma “favela é cidade”?Ao consumo do território favelado como perversidade, se contrapõe um tipo de interação entre iguais no qual saberes sobre o território são trocado por novas imagens produzidas sobre ele, na contramão da estigmatização dominante. Assim como o turismo, a produção cultural também é um campo a ser explorado pelos agentes da comoditização da favela, reproduzindo desigualdades de diversos tipos que instituem as relações de poder em nossa sociedade. [ 29 ] Intervenções culturais Boa parte do que se entende como cultura carioca, ou mesmo brasileira, são criações produzidas ou relacionadas às populações e aos modos de vida existentes em favelas e periferias. É o caso do samba, música e dança identificados como típicos do Rio de Janeiro. É também o caso do funk que ganhou o adjetivo de carioca como afirmação de sua especificidade territorial. Assim, parece haver um consenso em torno da favela como locus de produção de arte e de cultura. No entanto, olhando com mais cuidado, vemos que não é bem assim. Um discurso frequentemente pronunciado por ONGs, representantes do Estado e pela mídia corporativa apresenta as favelas como lugar de carências. E a carência cultural é uma delas. No caso das ONGsvoltadas para o desenvolvimento de projetos culturais ou artísticos em favelas, observamos com frequência a associação entre a “necessidade da arte” e a prevenção, ou mesmo “recuperação”, da criminalidade entre os jovens habitantes desses territórios. A Cultura, com C maiúsculo, seria uma maneira de ampliar seus horizontes e retirar o poder simbólico dos criminosos enquanto referência identitária da comunidade. Por vezes, esta intenção é tão explícita que aparece já no nome da coisa, como é o caso da instituição “Dançando para não dançar”, que utiliza a gíria “dançar”, sinônimo de ir preso ou ser assassinado, em contraposição ao “dançando”, significando aprender balé clássico e fazer parte do projeto que hoje conta com diversos patrocínios e apoios, inclusive da Petrobrás. No site da instituição (www.dancandoparanaodancar.org.br), encontramos a seguinte descrição: Em 1998, foi fundada a Associação Dançando para não Dançar, em 10 de novembro, com o objetivo de ampliar o raio de atuação do projeto e dedicar-se mais à integração social de menores que vivem em situação de risco nas favelas da cidade. Além das aulas de balé clássico, passaram a ser ministradas aulas de dança contemporânea e de prática e teoria musicais. Passou-se a oferecer, também, suporte social-educativo com aulas de reforço escolar e de informática; atendimento médico, dentário, psicológico; apoios de assistente social e de fonoaudióloga, inclusive para os familiares diretos. [ 30 ] A Cultura que salva vem de fora e, mais do que elemento artístico ou de valor estético, importa a sua capacidade de integrar os “menores”, termo tipicamente criminalizante para designar jovens e crianças pobres, à sociedade. Entendida como algo universal, essa Cultura desconsidera as culturas dos espaços populares, ou aos toma como particularidades hierarquicamente inferiores. Apresentada como universal e politicamente neutra, tal concepção se encaixa perfeitamente na função de controle social dessa camada da população, contendo rebeldias e potencialidades pouco afeitas à ordem que resultam da experiência cotidiana da pobreza e da opressão. Nas palavras de Terry Eagleton, Não é, na verdade, apenas a cultura que está aqui em questão, mas uma seleção particular de valores culturais. Ser civilizado ou culto é ser abençoado com sentimentos refinados, paixões temperadas, maneiras agradáveis e uma mentalidade aberta. É portar-se razoável e moderadamente, com uma sensibilidade inata para o interesse dos outros, exercitar a autodisciplina e estar preparado para sacrificar os próprios interesses egoístas pelo bem do todo. Por mais esplêndidas que algumas dessas prescrições possam ser, certamente não são politicamente inocentes. Ao contrário, o indivíduo culto parece-se suspeitosamente com um liberal de tendências conservadoras. É como se os noticiaristas da BBC [poderíamos dizer TV GLOBO] fossem o paradigma da humanidade em geral. Esse indivíduo civilizado certamente não se parece com um revolucionário político, ainda que a revolução também faça parte da civilização. A palavra “razoável” significa aqui algo como “aberto à persuasão” ou “disposto a concessões”, como se toda convicção apaixonada fosse ipso facto irracional. A cultura está do lado do sentimento em vez do da paixão, o que quer dizer do lado das classes médias de boas maneiras em vez do das massas iradas. Dada a importância do equilíbrio, é difícil ver por que alguém não seria solicitado a contrabalançar uma objeção ao racismo com o seu oposto. Ser inequivocamente contrário ao racismo pareceria ser distintamente não pluralista. Já que a moderação é sempre uma virtude, um leve desagrado em relação à prostituição infantil pareceria mais apropriado do que uma oposição veemente a ela. E já [ 31 ] que a ação pareceria implicar um conjunto de escolhas razoavelmente definitivas, essa versão da cultura é, inevitavelmente, mais contemplativa do que engagé. (EAGLETON, 2005: 32-3) Esse “leve desagrado” pode ser traduzido no discurso crítico da “realidade social” feito de forma vaga, com o objetivo de não desagradar e afastar possíveis parceiros que possam viabilizar economicamente os projetos. É importante ainda, na corrida por investidores, apresentar a favela como território da ausência de Cultura. E a relação que se faz entre esta ausência e problemas sociais, notadamente a violência armada ligada ao crime, a favela torna-se valiosa para estratégias de captação de recursos públicos e privados para projetos culturais variados. A chegada das UPPs potencializa isso e abre caminho não somente para mega ONGs que trabalham como braço do Estado, notadamente o Afroreggae, mas também para que a própria polícia militar possa fazer esse “trabalho cultural”, militarizando ainda mais os territórios ocupados.A UPP se apresenta, sobretudo, na mídia corporativa, como oportunidade de levar “cultura” como complemento à pacificação armada. São inúmeras as notícias de soldados da PM oferecendo aulas de música ou de modalidades esportivas. No site oficial do governo de Estado do Rio de Janeiro uma notícia dessas merece destaque: UPP Babilônia/Chapéu Mangueira oferece aulas de violão Por Julia de Brito - Assessoria de Comunicação do Palácio O amor pela música e pela farda fizeram com que o soldado da PM Fausto Oliveira Cunha aceitasse o convite para dar aulas de violão, no projeto Vozes e Acordes, nas comunidades do morro da Babilônia e Chapéu Mangueira. A oportunidade oferecida pelo comandante da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), capitão Felipe Magalhães, que serve às duas comunidades, é considerada pelo PM uma realização pessoal que está levando crianças e adultos a conhecer a linguagem universal da música. - Este trabalho começou no fim de novembro do ano passado. Começamos no Chapéu Mangueira, mas agora houve um pedido para o Babilônia. Por dia, dou cinco aulas, nas terças e nas quintas. Sempre fui [ 32 ] músico e sou recém-formado na polícia. O capitão me perguntou se eu sabia ensinar, se já tinha dado aula de violão. Já trabalhei profissionalmente com música. Tenho um irmão mais velho que é músico. Tenho percebido um grande interesse dos alunos e acho que é um diferencial ter um policial passando este conhecimento para eles – ressalta. No armário do quarto, o violão encostado não possuía serventia até que Maria Lúcia Teodoro Pereira, de 42 anos, recebeu a notícia de que a UPP Babilônia/ Chapéu Mangueira estava oferecendo aulas gratuitas de violão. Agora, depois de aprender os primeiros acordes, o sonho acalentado há tempos está sendo realizado: - Só agora consegui realizar este sonho. Tinha o violão, mas não sabia nada. O professor Cunha deixa a gente muito à vontade, ele cobra, mas é paciente. No começo, foi difícil aprender violão. Comecei a me dedicar mais em casa. Gosto de MPB. Estou aprendendo músicas da Ana Carolina – conta. Instalada com o objetivo de garantir mais segurança aos moradores das comunidades e desmobilizar o mercado do tráfico nos morros, a UPP Babilônia/ Chapéu Mangueira está cumprindo com o seu papel pacifista ao estabelecer uma nova interação dos membros da corporação lotados nestas comunidades com seus moradores. Para a moradora do morro da Babilônia, de 45 anos, Arlete dos Santos, a tranquilidade dos moradores, depois da instalação da UPP, não é conversa de governo. - Acho que a interação está muito boa e jogou por terra muitos mitos. A UPP está mudando a visão do policial para a comunidade. Está havendo uma aproximação do policial com os moradores e esta interação é positiva. Quando o policial chegava à comunidade era de forma agressiva, acho que isto está mudando – diz. As aulas de violão tiveram início na comunidade Chapéu Mangueira, mas ogrande número de pedidos fez com que o curso abrisse vagas para alunos do morro da Babilônia esta semana. As aulas acontecem [ 33 ] nos turnos da manhã e da tarde, sempre às terças e quintas-feiras.11 O “diferencial” de que fala o soldado professor de música, o violão da moradora que estava “sem serventia” e passa a tocar “MPB”, símbolo de distinção social, a cultura que tem “papel pacifista” ao integrar policiais e moradores são significados atribuídos a cultura entendida como dispositivo de controle social, de transmissão de valores hegemônicos e deslegitimação de práticas culturais próprias daquele território. O baile funk, por exemplo, seguia proibido. Todas as atividades culturais envolvendo festejos que aconteciam antes da UPP devem agora ser submetidas à anuência do comandante policial local.Em 2012, participei de uma roda de funk organizada pela APAFUNK (Associação dos Profissionais e Amigos do Funk) no morro Chapéu Mangueira e as lideranças comunitárias responsáveis tiveram de ficar quase todo o tempo do evento, que ocorreu no final de tarde de um sábado, “desenrolando” com policiais para que eles não interrompessem a festa. Sendo que a UPP já havia sido comunicada com antecedência, fato que, em si, já demonstra o Estado de Exceção implementado nessas favelas. O mesmo ocorreu na Rocinha durante o sarau da APAFUNK em conjunto com a paulista Cooperifa. Apesar do horário de matinê, de haver um ambiente familiar com a presença de muitas crianças, do som estar numa altura dentro da lei, das comunidades estarem a favor da sua realização, ainda assim tivemos de aguentar a presença de policiais fortemente armados e nos olhando de forma intimidadora. O principal parceiro institucional da “cultura pacificada”, com apoio não somente dos governos municipal e estadual, mas também de empresários de setores variados, inclusive o poderoso setor financeiro, e, sobretudo da mídia corporativa, em particular as Organizações Globo, é o Afroreggae. Segundo seus estatutos, disponíveis em http://www.afroreggae.org/wp-content/uploads/2013/01/Estatuto- GAS.pdf e em http://www.afroreggae.org/wp- content/uploads/2013/01/Estatuto-GCAR.pdf, o Afroreggae é Associação Civil para Fins não Econômicos e é também Associação Grupo Cultural Afroreggae. Em ambos fica clara a definição da entidade como não possuindo fins lucrativos e em seus relatórios financeiros, bem 11 http://www.intranet.rj.gov.br/exibe_pagina.asp?id=8954, capturado em 30/10/2013. [ 34 ] como em declarações dadas por José Júnior, coordenador da mesmo, a receita em 2012 girou em torno de 22 milhões de reais. O Afroeggae ganhou destaque ao denunciar os horrores da Chacina de Vigário Geral, impetrada por policiaisem 1993, trabalhando com cultura, sobretudo música, como maneira de superar o trauma sofrido pela população daquela favela. Hoje em dia, o Afroeggae se especializou em buscar oferecer alternativas de vida a criminosos, sobretudo os comerciantes varejistas de drogas mais famosos, gerentes importantes ou mesmo dono de morros, estejam eles presos ou em liberdade. Seu coordenador ganhou destaque midiático ao buscar negociar com os bandidos do Complexo do Alemão a sua rendição ou não reação à ocupação militar daquele território ocorrida no final de 2010. Episódio nebuloso que possui várias versões. Para a mídia corporativa, José Júnior foi um herói destemido. Já para muitos moradores sua atuação foi, para dizer o mínimo, questionável. As intenções do Afroreggae, por meio das quais os apoios governamentais e de empresas como Santander e Natura são obtidos, podem ser resumidas em seu manifesto12: MANIFESTO AFROREGGAE Mundo degradado. Caos crescente. O planeta, uma grande favela. O homem continua desumano. Tudo parece, sob medida, para dar errado. Mas, há utopia. Loucos insistentes acreditam na transformação. Somos Afroreggae. Trocar o fuzil pelo berimbau. Derrubartodas as fronteiras com explosões de vitalidade e alegria. Das ruínas fazer nascer à liberdade e o orgulho de ser o que se é. SomosAfroreggae. 12http://www.afroreggae.org/manifesto, capturado em 30/10/2013. [ 35 ] Lutar pelo lado certo da vida errada. Por uma vida sem lado. Vida inteira de pessoas inteiras. Porque ninguém precisa ser o que não é. Somos Afroreggae. Lutar, mesmo só, porque ninguém está sozinho. Conexões humanas, conexões urbanas. Se tinha tudo para dar errado, porque está dando certo? Somos Afroreggae. Salve a arte que nos salva. No meio da guerra, tráfico da liberdade e da militância cultural. Mudar a vida das pessoas para mudar as nossas também. Salve a arte que nos salva. Somos Afroreggae. Porque nenhum motivo explica a guerra. O fuzil trocado pelo berimbau, a arte que salva, a ideia de que há uma guerra em curso. Como parte de um de seus projetos mais famosos, o Conexões Urbanas, o Afroreggae leva shows para favelas, com uma grande estrutura, com o discurso de levar a qualidade dos shows “da Zona Sul”, ou “da orla” para as favelas cariocas. Em setembro de 2007, por exemplo, com patrocínio da TIM, o projeto promoveu um show de Marisa Monte no Complexo do Alemão. O evento, muito noticiado na imprensa na ocasião, ocorreu poucos meses após a Chacina do Pan, quando no mínimo 19 pessoas foram mortas por forças militares do Estado em um só dia. A atuação como braço do Estado fica clara na notícia da Folha de S. Paulo: No local do show havia várias faixas anunciando a presença do governador do Rio, Sérgio Cabral, que acabou sendo representado pelo vice-governador Luiz Fernando Pezão. Essa segunda etapa do Conexões Urbanas está associada às obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Pezão anunciou um investimento de R$ 480 milhões para obras no complexo. José Junior, coordenador do Afroreggae, [ 36 ] disse que "é a primeira vez que o movimento tem relação de intimidade com o governo estadual". Nos últimos três dias a Força Nacional de Segurança passou a fazer o policiamento inclusive à noite, no lugar da Polícia Militar, para reduzir a tensão e permitir o show.13 Com eventos garantidos manu militari, como também o foi o recente Desafio pela Paz, corrida de rua promovida pela instituição, a “cultura que salva” é um ótimo negócio para o Afroreggae, conferindo legitimidade perante governos e elites (econômicas e culturais), oferecendo pouco pão e muito circo para os moradores de favelas. Perante a essas conexões estreitas com o Estado e ao apoio empresarial, tornam-se invisíveis as iniciativas culturais locais e as especificidades do território. Quanto custam esses shows? Quem escolhe os artistas que se apresentam? Quantos moradores participam efetivamente da produção desses eventos? Qual o papel dos artistas e agentes culturais das favelas nos quais eles ocorrem? Quais os impactos duradouros de iniciativas como essas nas localidades? Em julho de 2013, após o incêndio numa das sedes do Afroreggae no Complexo do Alemão, mais um misterioso fato envolvendo a instituição, a Prefeitura do Rio de Janeiro destinou 3,5 milhões para a mega ONG como resposta aos supostos ataques do comércio varejista de drogas. São cifras imensas na opinião dos grupos culturais que atuam no Complexo e que são invisibilizados pelo gigantismo da ONG cultural oficial, muitas delas lutando por fatias de verbas públicas conferidas em minguados editais. A atuação que apaga os grupos culturais locais foi algo comum nas intervenções do PAC, ao qual o Conexões Urbanas estava ligado. Um caso emblemático é o dos grafites que foram pintados no interior das estações do teleférico do Complexodo Alemão, realizados pelo Studio Kobra, do famoso grafiteiro de São Paulo. O Alemão possui artistas do grafite reconhecidos, como David Amen, uma referência naquele território. David jamais foi contactado, como artista do local, para pintar os painéis, que tratam da história e da realidade das favelas do Complexo. Ao mesmo tempo em que erguia seu monumento mais imponente, o PAC destruía uma das maiores galerias de grafite a céu aberto do Brasil, que ornava os muros da Avenida Central, no Morro do Alemão, com pinturas de artistas locais e de várias partes do mundo. 13 Ver, por exemplo, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/ fq0110200737.htm, visitado em 30/10/2013. [ 37 ] Essas intervenções sinalizam que a cultura como negócio tende a ser concentrada nas mãos de poucas instituições, capazes de tornar a favela consumível, já que ordenada e pacificada para caber nos gostos e tranquilizar os medos dos que com ela mais lucram, material ou simbolicamente falando. Mas, além de objeto de consumo, a favela consome, produzindo contradições tortuosas como seus becos e vielas, com muitos caminhos e possibilidades de reinvenção de desejos e práticas. A favela que consome Formada como complexidade, a favela sempre foi lugar de heterogeneidades e desigualdades. Segundo Licia Valladares, é um equívoco considerar a favela como lugar de pobreza, já que as desigualdades de renda e de níveis de consumo estão presentes em várias delas (VALLADARES, 2008). No entanto, recentemente, as favelas têm sido tomadas como exemplo da emergência econômica das classes C, D e E repetidamente afirmada em discursos governamentais desde a “era Lula”. No dia 30 de outubro de 2013, uma matéria veiculada pelo Jornal Nacional apresentou pesquisa realizada pelo instituto Data Popular, especializado em consumo popular e dirigido por Renato Meirelles, que afirmava que a classe média já formava a maioria dos moradores de favelas no Brasil. Em tom celebratório, os dados foram apresentados pelo diretor do Data Popular como sinal de que as favelas são um bom negócio, lugar bom de se investir. Na reportagem, o programa associava essa prosperidade, no Rio de Janeiro, à “chegada” das UPPs. Esta “chegada” levou à formalização de negócios e ao pagamento de contas de luz e outros encargos, vistos como fenômenos positivos, a despeito da fala do presidente da Associação de Moradores do Santa Marta afirmando que a tal prosperidade não era acompanhada de serviços essenciais, como saneamento básico. É significativo que de modo quase que simultâneo à instalação de UPPs, as favelas recebam agências bancárias, lojas de grandes redes de comércio varejista, empresas de TV a cabo procurando vender o serviço que antes era conseguido de modo gratuito com o gatonet. Serviços básicos historicamente obtidos “na marra” também são comoditizados, como luz elétrica, água e internet. Em diversas entrevistas e debates, o Repper Fiel, artista-ativista morador do Santa Marta, afirma que o efeito disso foi uma gentrificação da favela e uma “expulsão branca” dos moradores mais pobres. É preciso se estudar ainda o impacto da chegada [ 38 ] dessas grandes redes comerciais no pequeno comércio local, que não possuem recursos para competir com esses novos concorrentes. A ascensão do consumo na favela é noticiada por uma reportagem da revista Isto É em 21 de junho de 2013, significativamente intitulada Favela S/A. O personagem principal é Celso Athayde, fundador da CUFA (Central Única das Favelas) e apresentado como exemplo de empresário bem sucedido, capaz de transformar em cifras milionárias o ainda pouco explorado “Eldorado” das favelas: Favela S/A Conheça Celso Athayde, o empresário carioca que, com a parceria de potências como P&G, TIM e o Grupo Doimo, da Itália, está montando uma ampla teia de negócios para atuar exclusivamente nas favelas brasileiras. Sua meta é investir R$ 1,5 bilhão até 2017 Por Rosenildo Gomes FERREIRA Enquanto dirige seu utilitário-esportivo Freemont, na cor preta, pelas vielas da Cidade de Deus, bairro carente da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, o empresário Celso Athayde, 50 anos, dono da Favela Holding (FHolding), acena para conhecidos. Em diversas ocasiões ele é parado por gente em busca de ajuda para “dar um gás” em empreendimentos de pequena monta, como a roda de pagode que acontece no fim da tarde de domingo na quadra da Central Única das Favelas (Cufa). Seu extenso currículo como agitador cultural e ativista social o transformou em uma referência nas comunidades cariocas – jargão politicamente correto usado para designar os mais de mil morros e favelas do Rio de Janeiro. Atuando nos bastidores, Athayde se tornou amigo de artistas renomados, empresários e políticos daqui e do Exterior. Considerado um Ph.D. em matéria de baixa renda e um dos maiores conhecedores das favelas, o empreendedor carioca é requisitado pelo Banco Mundial para proferir palestras em toda a América Latina. Agora, ele quer transformar esses atributos em negócios. Para isso, Athayde e seus sócios pretendem investir R$ 1,5 bilhão, até 2017, em dez empreendimentos que cobrem desde áreas de entretenimento até logística, passando pela fabricação de móveis, venda de passagens aéreas e distribuição de peças de motocicleta. A maior parte dessa [ 39 ] dinheirama irá para a construção de shopping centers. Detalhe: todos esses negócios, que serão replicados em outros Estados, terão a favela como base. “Resolvi me tornar empreendedor porque percebi que ninguém vai querer promover os talentos das comunidades”, diz Athayde. “Além disso, percebi que não se faz revolução para valer sem a ajuda do capital.” A ambição de Athayde, um ex-morador de rua, está calcada em pesquisas que mostram as favelas brasileiras como uma espécie de Eldorado, ainda pouquíssimo explorado. São 12 milhões de moradores que gastam nada menos que R$ 56 bilhões na compra de bens e na contratação de serviços a cada ano, de acordo com estudo das consultorias Data Popular e Data Favela. Esse montante é superior ao Produto Interno Bruto (PIB) de países como a Bolívia ou o Paraguai. Mais: o poder de consumo médio dessa fatia da população triplicou nos últimos dez anos. Por conta disso, 3,2 milhões de moradores de favelas passaram a ser classificados como integrantes da classe média. A aposta de Athayde é simples: cobrir a lacuna deixada pelas grandes empresas. Hoje, é possível contar nos dedos das mãos as ações destinadas a dominar uma fatia desse apetitoso bolo. As poucas iniciativas se resumem em tentar convencer esse consumidor a adquirir produtos específicos ou serviços que, muitas vezes, só estão disponíveis nos bairros mais sofisticados das metrópoles. Por essas razões, Athayde já costurou uma série de parcerias no asfalto, com empresas dispostas a subir o morro. 14 Sócio de Renato Meirelles no Data Favela, projeto do Data Popular, o maior produtor de dados sobre consumo em favelas, Celso Athayde divulga dados que favorecem empreendedores com seu perfil, cuja legitimidade para comoditizar a favela vem de sua origem popular. “Se eu posso, todo favelado pode”, parece querer dizer com seu “exemplo”. No entanto, a população favelada aparece de modo 14 http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/122091_FAVELA+SA, capturado em 30/10/2013. [ 40 ] subalternizado em seus projetos, como clientela a ser explorada duplamente, como força de trabalho e como consumidores. Ainda que a força do consumo na favela seja um fato, em meu trabalho de campo no Complexo do Alemão tenho ouvido diversas críticas a essas iniciativas, entendidas, mesmo no caso de
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