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Discurso Genero e Sexualidade

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Resumo. Este artigo analisa os conceitos de sexualidade e gênero nacontemporaneidade. Procura-se identificar as produções bibliográficas recentes emvários campos de conhecimento e seus limites e avanços epistemológicos paraentender outras relações sociais e os novos contextos diaspóricos na produção desexualidades, raça, gênero, afetividade e corpo na pós-colonialidade.Palavras-chave: Discurso. Gênero. Sexualidade. Pós-colonialidade.
DISCOURSE, GENDER AND SEXUALITY: CONTEMPORARY ISSUESAbstract. This article examines the concepts of sexuality and gender incontemporary times. It seeks to identify the recent bibliographic literature indifferent fields of knowledge and its epistemological limits and advances tounderstand other social relations and new diasporic contexts in the production ofsexualities, race, gender, and body warmth in postcoloniality.Keywords: Discourse, Gender, Sexuality, Postcoloniality.
DISCURSO, GÊNERO E SEXUALIDADE:QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS
Recebido em: 09/07/2012Aceito em: 08/08/2012Publicado em: 08/09/2012
* Uma versão preliminar deste artigo foi proferida como palestra no II Evento do II Ciclo de EventosLinguísticos, Literários e Culturais (II CELIC), realizado na Universidade Estadual dpo Sudoeste daBahia (UESB), em 13 de dezembro de 2011, no campus de Jequié, BA.# Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Professora Assistente no Departamento de CiênciasHumanas e Letras (DCHL), na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus deJequié, BA.
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IntroduçãoAo falar do conceito de sexualidade, na contemporaneidade, nãopoderia deixar de citar a , de MichelFoucault (1976), quando este afirma que o conceito de sexualidadesurge enquanto um discurso institucionalizado, a partir do século XIX, nomundo ocidental. O século XIX é o momento em que há, segundo Foucault,a institucionalização do saber, das instituições médicas, da religião, dasclínicas, das prisões, das ciências e da sexualidade. A sexualidade expressaria aprópria força maior da repressão do sexo traduzida em manuais, textoscientíficos de como conter ou analisar os corpos. É a era dos discursosmédicos e psicanalíticos sobre os corpos e da educação como instrumentopara entender e controlar o comportamento sexual das crianças, das mulherese dos homossexuais. Ainda que houvesse uma evolução significativa do“sexo” e de sua apropriação pelo saber, houve, segundo Foucault, umcontrole sobre a sexualidade dos indivíduos na modernidade.
Se antes o “sexo” era visto como algo que não deveria ser discutido,principalmente na esfera familiar e na esfera pública; porque este era vistocomo um pecado, um tabu, algo a ser silenciado (a exemplo da masturbação);o discurso sobre o sexo, ou seja, a sexualidade aparece como uma expressãodas Instituições modernas, assim, como sua objetivação premente no campodas ciências biológicas; o sexo passa a ser estudado e pesquisado pela Ciência,a sexologia e a psicanálise freudiana retiraram a sexualidade do escopo docontrole médico e a introduziu no campo das humanidades, ao propor umaconstrução do “eu” que é forjada na produção da identidade do indivíduo.(FOUCAULT, 1976, p. 19)
Porém, mesmo com o avanço da sexualidade, enquanto camposemântico na modernidade, há uma persistência desse controle sobre oscorpos, “a sexualidade é uma elaboração social que opera dentro dos camposdo poder”(GIDDENS, 1993, p. 3) A ideia do controle se perpetua através dodiscurso da perversão do sexo que passa ser institucionalizado pelaPsicanálise. A confissão, diz Foucault, ela é repressiva porque se baseia namesma ideia do confessionário do sexo da igreja católica; reprimir ediagnosticar as práticas sexuais, como se estas fossem dotadas de natureza,ou como se estas fossem uma perversão, um desvio, uma anormalidade, oque, de fato, não são. Tais classificações tomam “o sexo” como umdispositivo importante de poder- saber no campo da produção técnica dotrabalho e no controle das populações no espaço e no tempo, na “anátomo-política do corpo humano” desenvolvida e controlada pelo Estado moderno
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e por outras instituições modernas.
A discursividade sobre o sexo e sobre a reprodução começa a seseparar. Uma coisa é o sexo; outra coisa é a reprodução. Sexo e reproduçãosão duas coisas que não se combinam mais na modernidade devido à lógicada produção e da hierarquização dos saberes, do conhecimento e daprodutividade, porém tais discursos aparecem como discursos naturalizados enão como produções discursivas de divisões sociais; controle social, práticashistóricas que são engendradas e reproduzidas pelos mecanismos das relaçõespolíticas do poder. (FOUCAULT, 1976, p. 21)
Mas, embora a análise de Foucault seja importante para pensarmos agenealogia do conceito de sexualidade e seus efeitos no campo da “hipóteserepressiva, do biopoder e dos corpos”, como adverte o sociólogo AnthonyGiddens (1993), ela não é suficiente para analisar outros filtros desubjetivações produzidos pelos indivíduos na sociedade moderna econtemporânea. Ou seja, como indivíduos e grupos contrariam estesdiscursos hegemônicos e produzem outros discursos que são construídos emsuas experiências cotidianas? O limite da análise de Foucault é justamenteesse. Ele demonstra como os textos produzem corpos disciplinados erevoltados, mas não demonstra como os corpos transformam estes textos, oumelhor, falando, de como os sujeitos constroem e re-escrevem outros textos;a análise foucaultiana prende-se excessivamente ao discurso científico, dizGiddens, e como pensar a sexualidade fora do campo apenas discursivo?
Giddens propõe o conceito de “sexualidade plástica” para entender aprodução dessas novas subjetividades sexuais na modernidade que eledenomina de “reflexividade institucional”. Tentando suprir esta lacuna daanálise de Foucault, entende que a “sexualidade plástica” passou a seconstituir na sociedade pós-industrial em que os indivíduos utilizam-se detodo um aparato tecnológico e textual, como: a comunicação a literaturapopular, os romances, os livros de auto-ajuda, os programas de televisão, ostextos que circulam na internet, nos blogs, nos sites de relacionamentos, etc,para Giddens esta reflexividade do “eu” é processual e cotidiana e ela ensejanovos discursos sobre a sexualidade e novas possibilidades de reflexão sobreo corpo e a intimidade sob perspectivas múltiplas da identidades sexual.
A produção dessas novas identidades sexuais, deve-se, segundoGiddens, aos grandes marcos da chamada modernidade, que tanto Foucault eStuart Hall, também reconhecem. Refiro-me a revolução sexual que ocorreunas últimas quatro décadas do século XX instituídas pelos movimentossociais contemporâneos: o movimento gay, lésbico; o movimento feminista; e,
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eu acrescentaria o feminismo negro nos contextos europeu e estadunidense,respectivamente.
Pode-se afirmar que, tanto Foucault como Giddens inauguraram umnovo campo interpretativo acerca da sexualidade no mundo contemporâneo,ambos colocaram em xeque o conceito monolítico, isomorfo e universal daIdentidade sexual. Entretanto, apesar da grande contribuição que essesautores deram para pensarmos sociologicamente e epistemologicamente ahistória da sexualidade no mundo ocidental, não há como pensar estesreferenciais analíticos sem atentarmos para os limites teóricos que estesencerram. Nenhum dos dois autores citados buscou entender a dinâmica dasexualidade em sociedades ocidentais e não ocidentais e mesmo Foucault,considerado o grande marco do pensamento pós-estruturalista e pós-moderno, não percebeu o limite de sua crítica aos mecanismos do controlesocial pelas empresas coloniais sobre os corpos negros colonizados.
Como demonstra a antropóloga Olívia Maria Gomes da Cunha(2002) no seu artigo Reflexões sobre biopoder e pos-colonialismo: relendoFanon e Foucault; há uma ausência significativa na análise de Foucault sobreo biopoder e sua conexão com os efeitos da racialização no corpo no mundopós-colonial, esses elemento são essenciais para se entender a construção desubjetivações dos indivíduosnegros (as) e sua intimidade, sexualidade eafetividades tão presentes nos escritos de Franz Fanon.
Sexualidade, raça e pós-colonialidade
Se a modernidade produziu, segundo Giddens, uma “sexualidadeplástica” ela não o fez, entretanto, fora dos efeitos do racismo engendradosem corpos negros sexualizados femininos, masculinos, de mulheres e dehomens negros, de feminilidades e masculinidades racializadas egenerifificadas das populações negras na Diáspora.
Fanon (1983) demonstra que a constituição do saber colonialproduziu um “ outro colonizado” visto como selvagem e primitivo cujasmarcas expressariam sinais de uma aberração da natureza, referindo-se a umabiologização da sexualidade negra, a hipersexualidade do negro e suarepresentação e linguagem como elementos destituídos de humanidade.
Mesmo se tratando de um período e de um contexto culturaldiferenciado, é significativa a discussão construída por esse autor no que serefere à análise do racismo enquanto um sistema de opressão que se expressano corpo, na linguagem, na imagem,
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na sexualidade, no campo da afetividade e na regulação das preferênciasafetivo - sexuais dos indivíduos.
Foi sobre os corpos negros de homens e, especialmente, das mulheresque, no processo de escravidão e pós-abolição, ergueram-se grandesempreendimentos da máquina colonizadora, como afirma a antropóloga,Laura Moutinho (2004), materializados no “macho branco colonizador ecolonizado no poder”
Bell Hooks, uma feminista negra e intelectual afro-americana, falandodo contexto estadunidense acentua a necessidade de analisar como os corposdas mulheres negras são representados no período escravista e pós- escravista.Para essa autora
[...] Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negrastêm sido consideradas “só corpo, sem mente”. A utilização de corposfemininos negros na escravidão como incubadoras para a geração deoutros escravos era a exemplificação prática da idéia de que as“mulheres desregradas” deviam ser controladas. Para justificar aexploração masculina branca e o estupro das negras durante aescravidão, a cultura branca teve que produzir uma iconografia decorpos de negras que insistia em representá-las como altamente dotadasde sexo, a perfeita encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado.(HOOKS, 1995, p. 464-478).
Tais representações sociais sobre a sexualidade e afetividade dasmulheres negras, estão presentes, também, no nosso imaginário culturalbrasileiro. Para González, as imagens das negras estão vinculadas, quasesempre, aos estereótipos de servilismo profissional e sexual semelhante aoque Hooks afirmara em outro contexto, segundo Gonzalez (1979, p. 13).
A mulher negra é vista pelo restante da sociedade a partir de dois tiposde qualificação “profissional”: doméstica e mulata. A profissão de“mulata” é uma das mais recentes criações do sistema hegemônico nosentido de um tipo especial de “mercado de trabalho” [...] produto deexportação.
Essas representações sociais passaram a fazer parte das produçõesdiscursivas do saber ocidental, sobretudo a partir do século XIX. Os negros eas mulheres foram associados ao mundo da natureza, devido às suascaracterísticas físicas e biológicas “animalescas”; às mulheres foram atribuídasas funções de “reproduzir a espécie e a raça” como adverte Stolcke (1991, p.102).
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Munanga (2004), ao estudar a história e o conceito de miscigenação,identificou que a raça (ou a miscigenação como resultante do contato sexualentre os povos) é um material biológico pelo qual se elabora “fatos sociais,psicológicas, econômicos e político-ideológicos”. Para esse autor, asconcepções ideológicas decorrentes das diferenças físicas observáveis entre ospovos foram sendo elaboradas como justificativas políticas através docontrole e do intercurso sexual com mulheres não-brancas. Munangademonstra que, no Brasil e em outros países, foi nos corpos das mulheresnegras escravizadas que tais ideologias raciais foram perpetradas.
Torna-se difícil não reconhecer como os discursos de ideologiasraciais e de gênero são estruturantes e ordenam um conjunto de práticascorporais racializadas vividas pelo gênero, na sexualidade, no trabalho, naafetividade e em outros lugares sociais que são “destinados” às mulheresnegras, na Bahia e no Brasil. Isso ficou evidente numa pesquisa realizadarecentemente sobre a cultura negra baiana. Osmundo de Araújo Pinho, umjovem negro, antropólogo baiano, identificou em sua pesquisa três tipos deestereótipos negativos sexualizados e racializados elaborados sobre asmulheres negras na Bahia. Segundo Pinho (2004, p. 113):
A fixação da mulata não poderia permanecer incólume ao avanço damercadoria e do espetáculo. Graças à modernidade e aos fluxostransnacionais, a Bahia agora é vista também como um território livrepara o safári sexual colonial [...] A indústria que produz a Bahia comoimagem e reduz a cultura baiana a slogans, alimenta-se do mesmo soloque faz florescer outra indústria, a do comércio sexual de mulheres e daprostituição “étnica” em Salvador.
Além do estereótipo da “mulata sexual”, Pinho identificou oestereótipo naturalizado da Baiana de Acarajé, que circula nos grandes centroshistóricos e turísticos da cidade de Salvador como uma figura folclórica “Ora,a imagem da Bahia é a repetição da imagem da crioula escrava”. O terceiroestereótipo associa à imagem da mulher negra que “é [...] a empregadadoméstica, a criada e a ama-de-leite. Também nesse caso o motivo é colonial eescravista” (PINHO, 2004, p. 115). É evidente que o autor está se referindo atais imagens folclorizadas na forma como a sociedade percebe o trabalho dasbaianas de acarajé e das trabalhadoras domésticas, associando-as ao trabalhovisto e tratado como se fosse escravo. Isso se expressa, inclusive, nadesvalorização e desqualificação do chamado trabalho doméstico exercido porboa parte das mulheres negras na Bahia.
A pesquisa de Pacheco (2008) procurou investigar as representações
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sociais em relação às mulheres negras no cenário baiano e brasileiro e decomo estas influenciam e ordenam as vidas e a afetividade desses sujeitos. Ouseja, além dos estereótipos mencionados, há uma representação social baseadana raça e no gênero a qual regula as escolhas afetivas das mulheres negras.Dentro desta lógica, a mulher negra e mestiça estariam fora do “mercadoafetivo” e naturalizada no “mercado do sexo”, da erotização, do trabalhodoméstico, feminilizado e “escravizado”; em contraposição, as mulheresbrancas seriam, nessas elaborações, pertencentes “à cultura do afetivo”, docasamento, da união estável.
Obviamente, não pretendo tomar essas classificações como naturais,nem o tema de interesse aqui pesquisado, nem o conceito de afetividade e desolidão. Como sugere Bourdieu (1989) na sua taxionomia sobre o ofício dosociólogo, no caso do antropólogo (a), todo objeto científico é construídoporque emana de circunstâncias sociais nos quais o pesquisador estáenvolvido. Os interesses das pesquisas são socialmente estruturados e o quevai garantir sua “validade científica” não é o método exageradamenteempregado, mas o esforço do investigador (a) em pôr em causa (crítica) aspré-construções e suas próprias formulações no interior do campo do qualfaz parte. “Olhar para a história social dos problemas e as próprias categoriasde entendimento, perceber como foram socialmente produzidos”(BORDIEU, 1989, p. 36) em determinados contextos, como é o casoanalisado, não é naturalizá-los, mas percebê- los a partir de um lugar e de umconjunto de relações.
Entendo, assim como Bourdieu, que as escolhas dos objetos deestudos emanam de interesses diversos e das disputas simbólicas e políticasdos agentes situados no interior de um determinado campo. Tanto é assim,que não é à toa que o tema desta pesquisa provocou reações diversas emdiferentes campos que eu, enquanto pesquisadora e ativista me situo: do“feminismo”, dos estudos de gênero e das relações raciais. Esses campos secruzam, gerando conflitos que são antes políticos do que propriamentecientíficos. Em váriosmomentos quando apresentei a minha pesquisa, fuiquestionada por homens negros militantes e pesquisadores sobre o tema, porpesquisadoras e feministas brancas sobre a questão da solidão entre mulheresnegras. Por que será que esta pesquisa sobre solidão entre mulheres negrasincomoda tanto aos agentes desses campos?
Discursos sobre Gênero e feminismos na contemporaneidade
Em 1980, embaladas pela explosão do feminismo negro norte-americano e do movimento negro, as mulheres negras, nesse contexto,
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apareceram como sujeitos de pesquisa. Estas enfatizaram a necessidade depensar as diferentes experiências históricas das mulheres, inclusive o própriofeminismo “branco de classe média e heterossexual” que sustentava a tese deuma experiência única e universal feminina. Tal formulação não avaliava oimpacto e nem a articulação das categorias de gênero-raça-classe e sexualidadee outras categorias na constituição histórica das mulheres em contextosespecíficos e diferenciados. Segundo Dona Haraway (1990), a política dasdiferenças ou de identidades, produzidas nos anos 80 por esses novos sujeitos,foi importante para desconstruir a noção totalitária da identidade única,isomorfa do feminismo.
Ribeiro (1995) e Moreira (2011), ao analisar a trajetória doMovimento de Mulheres Negras (MMN) no Brasil contemporâneo,assinalaram a importância de se entender a especificidade e as diferenças entreas mulheres negras e brancas no interior do movimento feminista mais amplo.Para essa autora, um dos problemas do feminismo foi negar a especificidadedas mulheres, não reconhecida nas agendas políticas mais gerais dosEncontros Feministas dos anos 60 e 70. As críticas foram erigidas dasmulheres negras em relação a esse movimento. Ribeiro, citando Bairros,aponta uma dessas críticas:
Quando a mulher negra percebe a especificidade de sua questão, elavolta-se para o movimento feminista como uma forma de se armar detoda uma teoria que o feminismo vem construindo e da qual estávamosdistanciadas. Nesta procura coloca-se um outro nível de dificuldade (...)questões soavam estranhas, fora de lugar nas cabeças da mulher negra(...) falava-se da necessidade de a mulher pensar o próprio prazer,conhecer o corpo, mas reservava-se à mulher pobre, negra em suamaioria, apenas o direito de pensar na reivindicação da bica d`água.(RIBEIRO, 1995, p. 448-449)
As discussões sobre o corpo e a sexualidade para o movimentofeminista expressavam a contradição com relação à realidade concreta dasmulheres negras e pobres como afirmava Bairros. As reivindicações dasnegras não estavam em consonância com os projetos políticos deemancipação do feminismo; havia um desencontro histórico entre ambos.Enquanto as feministas brancas lutavam pelo direito ao aborto e pelo celibato,as negras denunciavam o processo de esterilização contra as mulheres negrase pobres; alegava-se a necessidade de planejamento familiar e não deesterilização, principal ponto de reivindicação do MMN. Enquanto algumascorrentes do feminismo criticavam o casamento formal, a constituição de
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família, as mulheres negras falavam de “solidão” e da ausência de parceirosfixos, denunciando e atribuindo tais práticas ao racismo e ao sexismo.
Bell Hooks (2000) mais uma vez lança uma pista para analisar tal“contradição” em sociedades alicerçadas sobre os sistemas do racismo,sexismo e do capitalismo. Segundo a autora, há de se considerar como oscorpos femininos são produzidos historicamente. Hooks refere-se àsexperiências culturais diversas entre e das mulheres, especialmente ao ato deamar. É sobre o ato de amar e ser amada que as representações elaboradas árespeito do corpo da negra/mestiça se alojam as hierarquias sociais prescritasem que se estruturam suas escolhas e sua afetividade. É, tentando desafiar ashierarquias sociais, que as teorias do feminismo negro me possibilitamentender como certas realidades e sistemas classificatórios de mundo sãomodificados e pensados nas várias experiências das mulheres.
Nessa perspectiva de gênero, o gênero ( e suas diferenças) pode serlido através da raça. Dito de outro modo, nos discursos institucionalizadoshegemônicos sobre a Bahia, tais hierarquias conjugadas precisam serocultadas e/ou negadas na nossa constituição enquanto “Povo”, ouparafraseando DaMatta (1987), na “fábula das três raças à brasileira”, em quea mulher negra/mestiça assume um papel fundamental na reproduçãoideológica desse modelo “harmônico” de Nação. Falar de afetividade, deescolhas, de solidão é colocar em xeque (desmontar) os sistemas depreferências que prescindem a idéia de brasilidade, posto que as mulheresnegras aparecem como corpos sexuados e racializados, não afetivos, naconstrução da Nação. Daí a ocultação da “cor/raça” nos discursos sobre a“solidão” entre mulheres na Bahia, e o silenciamento desse tema ou atentativa de desqualificar, negar ou contestar esta pesquisa.
Como já havia assinalado, a década de 80 foi um marco naressignificação do lugar das mulheres negras. Intelectuais e ativistas dofeminismo negro no contexto norte-americano questionaram a primaziadessas categorias “mulher”, “homem e mulher”, “masculino e feminino”como entidades universais e duais. Criticaram a homogeneização da categoriamulher branca, de classe média e heterossexual, assim como os gaysreclamavam a sua invisibilidade nas formulações das teorias do feminismo enas agendas políticas desses movimentos.
Nesse período, o black feminism e as intelectuais negras começaram aformular teorias para analisar as especificidades das mulheres negras,atentando para as suas diversas especificidades. Segundo a feminista negraestadunidense, Patrícia Hill Collins, as teorias do ponto de vista assinalam que:
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[...] Primeiro, a posição política e econômica das Mulheres Negras lhesfornece uma visão diferente da realidade material daquelas disponíveispara outros grupos. [...] Segundo, estas experiências estimulam umapercepção peculiar do feminismo negro no que se refere a sua realidadematerial.Em poucas palavras, um grupo subordinado não sóexperimenta uma realidade diferente daquela do grupo hegemônico,mas um grupo subordinado pode entender aquela realidadediferentemente da do grupo dominante. (COLLINS, 1989, p. 747-748).
Bairros (1995), analisando os principais fundamentos do feministstandpoint, chama atenção para a interconexão que deve haver entre raça,gênero e classe social. Segundo essa autora não existe uma identidade única,homogeneizadora de “ser mulher”, principalmente, numa sociedade desigual,racista, sexista e homofóbica.
Castro (1991), numa linha semelhante, critica os estudos feministas eo feminismo tradicional que advogam “teses calcadas nos essencialismos”,sem perceber a dinâmica dos vários sistemas sociais que se intercruzam, o queautora denomina de “alquimia de categorias sociais”
De acordo com Castro: na literatura feminista é lugar comum asdisputas de competência entre o gênero versus classe. Também nos escritossobre raça, tais disputas se repetem, antepondo alguns, mesclando outros, aspropriedades de um sistema de raça versus as de um sistema de classe.
A alquimia seria de como sujeitos concretos percebem e re-elaboramos sistemas de opressão – raça, gênero, geração e classe social – em suastrajetórias por práticas sociais e projetos específicos.
De acordo com essas formulações, compreendo que não é possível sefalar em sobre determinação de uma ou outra categoria, de exclusão, ou atémesmo de adição, mas pensar em relações que se processam mutuamente emcontextos sócio-culturais específicos. O que refutaria, por exemplo, certasconcepções do feminismo ou do feminismo negro ou do movimento deMulheres Negras no Brasil que tendem, em seus discursos, aniquilar asdiferenças.
Acredito que as teorias do Standpoint e a teoria dos saberes situadospodem fornecer a chave interpretativa de uma abordagem que resgate aperspectiva teórica e prática dos sujeitos feministas, sem perder de vista aanálise relacional da categoria gênero e da categoria “mulheres”.
Como adverte Suely Kofes,Mas, uma perspectiva de gênero pode, e este é, do meu ponto de vista,um de seus méritos, por um lado nos resvelar esta crença no binarismo
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sexual e, por um lado explodi-lo deslocando o referente em seusdiversos sentidos culturais, políticos, e históricos. Daí porque gêneronão é sinônimo de “mulheres”. Nem o relacional que uma perspectivade gênero pede se resolveria apenas no simples acréscimo, homens emulheres. Mesmo porque, a perspectiva relacional é intrínseca aoconceito de gênero e não está na dependência dos recortes empíricos.Quero dizer que, mesmo recortando-se empiricamente apenas mulheres(ou homens, ou mídia, ou qualquer outro recorte) a interpretaçãopoderá fazer-se sob a perspectiva de gênero. (KOFES, 1993, p. 6).
Nessa ótica, gênero e mulher não são categorias excludentes edicotômicas e, portanto, podem ser relacionais e mapeadas, também, pelasteorias do gênero. Dessa forma, impede-se que certas indagações sobre aescolha desse objeto empírico “mulheres negras solitárias” seja erroneamentepensada como algo intrínseco ou naturalizado, uma identidade pré-existente,pré-discursiva, naturalizada, como advertiu Judith Butler em(1990) acerca da definição do gênero como algo desruptivo da noção dasexualidade e do corpo deslocados da natureza. Nesse sentido, adotando estaperspectiva, posso afirmar que para nós mulheres negras não é interessantenos apropriarmos dos discursos produzidos da naturalização e estereotipiassexuais dos nossos corpos negros e sim explodi-los em categoriascontestatórias de gênero para modificar os textos e as concepções quesubjazem a negação de nós mesmas como sujeitos pensantes e afetivos;principalmente, quando os referenciais históricos são pensados no rastro daescravidão e da colonização que o racismo e o sexismo forjaram no solo daNação brasileira.
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