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PLURALISMO JURÍDICO

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MUNDO JURÍDICO
Artigo de Antonio Carlos Wolkmer
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MUNDO JURÍDICO
Artigo de Antonio Carlos Wolkmer
Pluralismo jurídico: novo paradigma de legitimação
Antonio Carlos Wolkmer [1: Professor Titular de “História do Direito” dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFSC. Doutor em Direito. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (RJ). Pesquisador do CNPq. Autor de diversos livros, dentre os quais: Ideologia, Estado e Direito. 2. ed. SP: RT, 1995; Pluralismo Jurídico - Fundamentos de uma Nova Cultura no Direito. 2. ed. SP: Alfa-Omega, 1997; História do Direito no Brasil. RJ: Forense, 1998; Direito e Justiça na América Indígena: Da Conquista a Colonização. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1998.]
Sumário: Introdução. 1. Crise do Direito e Novos Paradigmas. 2. Problematização da Teoria Crítica. 3. O Pluralismo como Novo Modelo de Referência. 4. Pluralismo Jurídico: legitimidade a partir de Sujeitos Emergentes e de suas Necessidades.
 
INTRODUÇÃO
O artigo em questão compreenderá algumas reflexões teóricas acerca da crise da cultura jurídica tradicional e das possibilidades de se redefinir uma proposta mais democrática do Direito. Por conseqüência, os marcos teóricos desta incursão, por incidirem na especificidade da Sociologia e da Filosofia do Direito, escapam de um exame mais tecno-formalista, quer ao nível do Direito Privado oficial, quer ao do Direito Público dogmático.
A hipótese nuclear da proposta é a de que a ineficácia do modelo de legalidade liberal-individualista favorece, na atualidade, toda uma ampla discussão para se repensar os fundamentos, o objeto e as fontes de produção jurídica. Ademais, a condição primeira para a materialidade efetiva de um processo de mudança, em sociedades emergentes, instáveis e conflituosas implica, necessariamente, a reorganização democrática da sociedade civil, a transformação do Estado Nacional e a redefinição de uma ordem normativa identificada com as carências e as necessidades cotidianas de novos sujeitos coletivos. Para além das formas jurídicas, positivas e dogmaticamente instituídas, herdadas do processo de colonização, torna-se imperioso reconhecer a existência de outras manifestações normativas informais, não derivadas dos canais estatais, mas emergentes de lutas, conflitos e das flutuações de um processo histórico-social participativo em constante reafirmação.
Sendo assim, delimitar-se-á a presente exposição em quatro momentos: 1. Crise do Direito e Novos Paradigmas. 2. Problematização da Teoria Crítica. 3. Pluralismo como novo modelo de Referência. 4. Pluralismo Jurídico: legitimidade a partir de Sujeitos Emergentes e suas Necessidades .
1. CRISE DO DIREITO E NOVOS PARADIGMAS
Assinala-se que a crise que se abate sobre o arcabouço jurídico tradicional está perfeitamente em sintonia com o esgotamento e as mudanças que atravessam os modelos vigentes nas ciências humanas. Adverte-se que as verdades metafísicas e racionais que sustentaram durante séculos as formas de saber e de racionalidade dominantes, não mais mediatizam as inquietações e as necessidades do presente estágio da modernidade liberal-burguês-capitalista. Os modelos culturais, normativos e instrumentais que justificaram o mundo da vida, a organização social e os critérios de cientificidade tornaram-se insatisfeitos e limitados, abrindo espaço para se repensar padrões alternativos de referência e legitimação. Isso transposto para o jurídico nos permite consignar que a estrutura normativista do moderno Direito positivo estatal é ineficaz e não atende mais ao universo complexo e dinâmico das atuais sociedades de massa que passam por novas formas de produção de capital, por profundas contradições sociais e por instabilidades que refletem crises de legitimidade e crises na produção e aplicação da justiça.[2: Cf. WOLKMER, Antonio C. “Pluralismo Jurídico, Movimentos Sociales e Prácticas Alternativas”. In: El Otro Derecho. Bogotá: Ilsa, nº 7, enero de 1991. p. 32.]
Daí a obrigatoriedade de se propor a discussão sobre a “crise dos paradigmas”, delimitando o espaço de entendimento da crise na esfera específica do fenômeno jurídico. A crise portanto, no âmbito do Direito, significa o esgotamento e a contradição do paradigma teórico-prático liberal-individualista que não consegue mais dar respostas aos novos problemas emergentes, favorecendo, com isso, formas diferenciadas que ainda carecem de um conhecimento adequado.
As atuais exigências ético-políticas das estruturas sócio-econômicas do capitalismo periférico (caso de países como o Brasil) coloca a obrigatoriedade da busca de novos padrões normativos, que possam melhor solucionar as recentes necessidades, aproximando-se das práticas sociais cotidianas.
A construção de um novo paradigma de regulamentação que venha priorizar mais diretamente as prioridades da sociedade envolve a articulação de um projeto pedagógico desmistificador, emancipatório e popular. Tal processo pedagógico que se consubstancializa numa teoria, pensamento ou discurso crítico tem a função estratégica de preparar, em nível prático, os horizontes de um acesso mais democrático à justiça. Chega-se, assim, a alguns elementos caracterizadores da “teoria crítica” do Direito, enquanto instrumental de “transição” para uma juridicidade pluralista e emancipadora.
2. PROBLEMATIZAÇÃO DA TEORIA CRÍTICA 
Os primórdios de uma Teoria Crítica encontram toda sua fundamentação na tradição idealista que remonta ao criticismo kantiano, passando pela dialética hegeliana, pelo materialismo histórico marxista e pelo subjetivismo psicanalítico freudiano.[3: Para maior aprofundamento da temática, observar: WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 2 ed. São Paulo: Acadêmica, 1995. pp. 13-24.]
A teoria crítica, enquanto instrumental operante, expressa a idéia de razão vinculada ao processo histórico-social e à superação de uma realidade em constante transformação. De fato, a Teoria Crítica surge como uma teoria dinâmica, superando os limites naturais das teorias tradicionais, pois não se atém apenas a descrever o que está estabelecido ou a contemplar eqüidistantemente os fenômenos sociais e reais. Seus pressupostos de racionalidade são “críticos” na medida em que articulam, dialeticamente, a “teoria” com a “práxis”, o pensamento crítico revolucionário com a ação estratégica.
A intenção da Teoria Crítica consiste em definir um projeto que possibilite a mudança da sociedade em função de um novo tipo de “sujeito histórico”. Trata-se da emancipação do homem de sua condição de alienado, de sua reconciliação com a natureza não-repressora e com o processo histórico por ele moldado. A Teoria Crítica tem o mérito de demonstrar até que ponto os indivíduos estão coisificados e moldados pelos determinismos históricos, mas que nem sempre estão cientes das inculcações hegemônicas e das falácias ilusórias do mundo oficial. A Teoria Crítica provoca a autoconsciência dos atores sociais que estão em desvantagem e que sofrem as injustiças por parte dos setores dominantes, dos grupos ou das elites privilegiadas. Neste sentido, ideologicamente a Teoria Crítica tem uma formalização positiva na medida em que se torna processo adequado ao esclarecimento e à emancipação, indo ao encontro dos anseios, dos interesses e das necessidades dos realmente oprimidos.
Ainda que se admita ser fonte de ambigüidades, a categoria “crítica” aplicada ao Direito pode ser compreendida no sentido de não só despertar e emancipar um sujeito histórico, submerso numa normatividade sistêmica, mas também discutir e redefinir o processo de constituição de uma legalidade dominante injusta e opressora. Na verdade, a “teoria crítica” aplicado ao Direito pretende repensar, questionar e romper com a dogmática lógico-formal imperante em uma época ou em um determinado momento da cultura jurídica de um país, propiciando as condições para o amplo processo pedagógico de “esclarecimento”, “autoconsciência” e “emancipação”. A Teoria Crítica do Direito não só analisaas condições do dogmatismo técnico-formal e a pretensão de cientificidade do Direito vigente, como, sobretudo, propõe novos métodos de ensino e de pesquisa que conduzem à desmistificação e à tomada de consciência dos operadores jurídicos.
A instância ocupada pelas concepções da “crítica jurídica” não se reveste do que se poderia chamar de “novo Direito”, mesmo assim, esta acaba se legitimando como um caminho viável para chegar a um “novo modo de produção jurídica”, ou seja, criam-se as reais condições da passagem do paradigma legal convencional para a eficácia de uma “juridicidade emancipadora”. Esta “juridicidade emancipadora” envolve, presentemente, a percepção de um certo tipo específico de pluralismo jurídico que contemple a ação histórica de sujeitos coletivos emergentes (movimentos sociais em geral: campesinos, indígenas, negros, mulheres, etc.) e de suas necessidades.
3. PLURALISMO COMO NOVO MODELO DE REFERÊNCIA
A presente retomada do pluralismo como um projeto diferenciado, refere-se, de um lado, à superação das modalidades tradicionais de pluralismo identificado com a democracia liberal ou com o corporativismo societário, de outro, à edificação de um projeto-jurídico resultante do processo de práticas sociais insurgentes, motivada para a satisfação justa de necessidades essenciais.[4: Ver, também: WOLKMER, Antonio C. “Direito Comunitário Alternativo - Elementos para um Ordenamento Teórico-Prático”. In: Arruda Jr. E.L. (Org.). Lições de Direito Alternativo 2. São Paulo: Acadêmica, 1992. pp. 139-144.]
Torna-se prioritário, para isso, distinguir o pluralismo como projeto democrático de emancipação de sociedades emergentes, de uma outra prática de pluralismo que está sendo apresentada como a nova saída para os intentos de “neocolonialismo” ou do “neoliberalismo” dos países de capitalismo central exportado para a periferia. Ora, este tipo conservador de pluralismo vinculado a projetos da “pós-modernidade” e da “desregulação global da vida” é mais um embuste para escamotear a concentração violenta do capital no “centro”, excluindo em definitivo a “periferia”.
Naturalmente, a este pluralismo conservador se contrapõe radicalmente o pluralismo progressista de teor “democrático-popular” aqui proposto. A diferença entre o primeiro e o segundo está, fundamentalmente, no fato de que o pluralismo conservador inviabiliza a organização das massas e mascara a verdadeira participação, isto é, ele oferece falsos espaços alternativos, enquanto que o pluralismo progressista como estratégia mais democrática de integração procura promover e estimular a participação múltipla dos segmentos populares e dos novos sujeitos coletivos.
De igual modo, pode-se diferenciar o antigo pluralismo (de matriz liberal) daquele afinado com as novas exigências históricas.
Enquanto o pluralismo liberal era atomístico, consagrando uma estrutura privada de indivíduos isolados, mobilizados para alcançar seus intentos econômicos exclusivos, o novo pluralismo caracteriza-se por ser integrador, pois une indivíduos, sujeitos coletivos e grupos organizados em torno de necessidades comuns. Trata-se, como lembra Carlos Nelson Coutinho, da criação de um pluralismo de “sujeitos coletivos”, fundado num novo desafio: construir uma nova hegemonia que contemple o equilíbrio entre “predomínio da vontade geral (...) sem negar o pluralismo dos interesses particulares”. Ademais, a hegemonia do “pluralismo de sujeitos coletivos”, sedimentada nas bases de um largo processo de democratização, descentralização e participação, deve também resgatar alguns dos princípios da cultura política ocidental, como: o direito das minorias, o direito à diferença, à autonomia e à tolerância.[5: Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre Pluralismo. Texto inédito, out.1990. pp. 2-3.]
A percepção deste novo pluralismo - no âmbito da produção das normas e da resolução dos conflitos - passa, obrigatoriamente, pela redefinição das relações entre o poder de regulamentação do Estado e o esforço desafiador de auto-regulação dos movimentos sociais, grupos populares e associações profissionais. Tal pluralismo contempla também uma ampla gama de manifestações de normatividade paralela, institucionalizadas ou não, de cunho legislativo ou jurisdicional, “dentro” e “fora” do sistema estatal positivo. Tendo presente uma longa tradição ético-cultural introjetada e sedimentada no inconsciente da coletividade e das instituições latino-americanas, é praticamente impossível projetar uma cultura jurídica com a ausência total e absoluta do Estado. Neste sentido, o pluralismo, enquanto novo referencial do político e do jurídico, necessita contemplar a questão do Estado nacional, suas transformações e desdobramentos frente aos processos de globalização, principalmente de um Estado agora limitado pelo poder da sociedade civil e pressionado não só a reconhecer novos direitos, mas, sobretudo, diante da avalanche do “neoliberalismo”, de ter que garantir os direitos conquistados pelos cidadãos.
Por outro lado, há de se sublinhar a especificidade do pluralismo como projeção de um paradigma interdisciplinar do político e do jurídico. Com efeito, a compreensão mais abrangente e atualizada do pluralismo como um “sistema de decisão complexa” envolve hoje, no dizer de André-Jean Arnaud, um “cruzamento interdisciplinar” entre a normatividade (Direito) e o poder social (Sociedade), considerando obviamente a interação do “jurídico” com outros campos do conhecimento. Uma perspectiva crítico-interdisciplinar revela que a inter-relação fragmentada do legal não mais é vista como caótica e que é perfeitamente possível viver num mundo de juridicidade policêntrica.[6: Cf. ARNAUD, André-Jean. O Direito traído pela filosofia. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1991. pp. 219-239. ]
A proposta do pluralismo jurídico de teor comunitário-participativo para espaços institucionais periféricos passa, fundamentalmente, pela legitimidade instaurada por novos atores sociais e pela justa satisfação de suas necessidades.
 
4. PLURALISMO JURÍDICO: LEGITIMIDADE A PARTIR DE SUJEITOS EMERGENTES E DE SUAS NECESSIDADES
É preciso realçar o processo de formação da normatividade em função das contradições, interesses e necessidades de sujeitos sociais emergentes. Este direcionamento ressalta a relevância de se buscar formas plurais de fundamentação para a instância da juridicidade, contemplando uma construção comunitária participativa solidificada na realização existencial, material e cultural dos atores sociais. Trata-se, principalmente, daqueles sujeitos históricos que, na prática cotidiana de uma cultura político-institucional e um modelo sócio-econômico particular, são atingidos na sua dignidade pelo efeito perverso e injusto das condições de vida impostas pelo alijamento do processo de participação social e pela repressão da satisfação das mínimas necessidades. Na singularidade da crise que atravessa o imaginário jurídico-político e que degenera as relações da vida cotidiana, a resposta para transcender a exclusão e as privações provêm da força contingente de sujeitos coletivos populares que, pela consciência de seus reais interesses, são capazes de criar e instituir novos ditreitos. Assim, as contradições de vida experimentadas pelos diversos movimentos sociais, basicamente aquelas condições negadoras da satisfação das necesidades identificadas com a sobrevivência e a subsistência, acabam produzindo reivindicações que exigem e afirmam direitos. Os direitos objetivados pelos sujeitos coletivos expressam a intermediação entre necessidades, conflitos e demandas.
Importa aclarar que a estrutura do que se chama “necessidades humanas fundamentais” não se reduz meramente às necessidades sociais ou materiais, mas compreende necessidades existenciais (de vida), materiais (subsistência) e culturais. Ora, na real atribuição do que possa significar “necessidade”, “carência” e “reivindicação”, há uma propensão natural, quando se examina o desenvolvimento capitalista das sociedades latino-americanas, de se enfatizaruma leitura “economicista” dessas categorias, ou seja, priorizar-se as necessidades essenciais como resultantes do sistema de produção. Entretanto, ainda que se venha inserir grande parte da discussão das “necessidades” ou “carências” nas condições de qualidade, bem-estar e materialidade social de vida, não se pode desconsiderar as variáveis culturais, políticas, filosóficas, religiosas e biológicas. A dinâmica das necessidades e das carências que permeia o indivíduo e a coletividade refere-se, tanto a um processo de subjetividade, modos de vida, desejos e valores, quanto a constante “ausência” ou “vazio” de algo almejado e nem sempre realizável. Por serem inesgotáveis e ilimitadas no tempo e no espaço, as necessidades humanas estão em permanente redefinição e recriação. Entende-se, assim, a razão de novas motivações, interesses e situações históricas impulsionarem o surgimento de novas necessidades.[7: Examinar, neste aspecto: HELLER, Agnes. Teoría de las necessidades en Marx. Barcelona: Península, 1985.][8: Cf. NUNES, Edison. Carências urbanas, reivindicações sociais e valores democráticos. Lua Nova. São Paulo, nº 17, jun. 1989. p. 68; FALEIROS, Vicente de Paulo. A Política social do Estado Capitalista. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 1985. pp. 23-35; JACQUES, Manuel. Una concepción metodológica del uso alternativo del derecho. El Otro Derecho. Bogotá, Ilsa, nº 1, ago. 1988. p. 24. ]
Ao contrário das condições sociais, materiais e culturais reinantes nos países centrais do Primeiro Mundo, nas sociedades latino-americanas, as demandas e as lutas históricas têm como objetivo a implementação de direitos em função das necessidades de sobrevivência e subsistência da vida. Por isso, em tais sociedades, marcadas por um cenário de dominação política, espoliação econômica e desigualdades sociais, nada mais natural que configurar a pluralidade permanente de conflitos, contradições e demandas por direitos. Direitos calcados em necessárias prerrogativas de liberdade e segurança (tradição de governos autoritários, violência urbana, criminalidade, acesso à justiça, etc.), de participação política e democratização da vida comunitária (restrições burocráticas, poder econômico dirigente e o papel da mídia na condução dos processos eleitoral-participativos) e, finalmente, de direitos básicos de subsistência e de melhoria de qualidade de vida.
Neste espaço de sociedades divididas em estratos sociais com intereses profundamente antagônicos, instituições político-jurídicas precárias, emperradas no formalismo burocrático e movidas historicamente por avanços e recuos na conquista de direitos, nada mais significativo do que constatar que o pluralismo dessas manifestações por “novos” direitos é uma exigência contínua da própria coletividade frente às novas condições de vida e às crescentes prioridades impostas socialmente.
Tais direitos afirmam-se, sobretudo, como direitos materiais e sociais. Isso se deve à percepção de que os oprimidos, pobres e marginalizados socialmente “... encontram-se às voltas com problemas básicos de sobrevivência: desde a dificuldade de encontrar emprego, a exporação no trabalho, os baixos salários, a carestia, até a conservação da saúde, (...)”. Trata-se de direitos relacionados às “necessidades sem as quais não é possível ‘viver como gente’: trabalho, remuneração suficiente, alimentação, roupa, saúde, condições infra-estruturais (água, luz, etc.), educação, lazer, repouso, férias, etc.”. Essa especificidade explica a razão de a maioria das ações coletivas se organizarem e se mobilizarem para a implementação de “novos” direitos, pois, quase sempre, estão em busca de “necessidades não atendidas, com seus direitos desrespeitados, excluída, de fato, a cidadania”.[9: LESBAUPIN, Ivo. As classes populares e os direitos humanos. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 164.][10: Idem, ibidem. ][11: Idem, ibidem, op. cit., p. 165.]
Ainda que os chamados direitos “novos” nem sempre sejam inteiramente “novos”, na verdade, por vezes, o “novo” é o modo de obtenção de direitos que não passam mais pelas vias tradicionais - legislativa e juducial -, mas provêm de um processo de lutas e conquistas das identidades coletivas para o reconhecimento pelo Estado. Assim, a designação de novos direitos refere-se à afirmação e materialização de necessidades individuais (pessoais) ou coletivas (sociais) que emergem informalmente em toda e qualquer organização social, não estando necessariamente previstas ou contidas na legislação estatal positiva.
O lastro de abrangência dos “novos”direitos, legitimados pela consensualidade de forças populares emergentes, não está obrigatoriamente estabelecido ou sancionado por procedimentos técnico-formais, porquanto diz respeito a direitos concebidos pelas condições de vida e exigências de um devir, direitos que “só se efetivam, se conquistados”. [12: DEMO, Pedro. Participação é conquista. São Paulo: Cortez, 1988. p. 61. Ver também: ALDUNATE, José (Coord.) Direitos humanos, direitos dos pobres. São Paulo: Vozes, 1991. p. 191.]
Assim, pois, trata-se de configurar uma nova ordenação político-jurídica pluralista, duradouramente redefinida na minimização das insatisfações e na plena vivência de “direitos comunitários”. Direitos comunitários que se impõem como exigências de uma vida que vai dialeticamente se constituindo. Afinal, neste processo de afirmação de “novos direitos”, fundados na legitimidade de ação dos novos sujeitos coletivos, a inscrição plural e cotidiana do “jurídico” alcança uma humanização mais integral e democrática.
A imprevisibilidade, a autenticidade e a autonomia que transgride e escapa do “instituído” deve ser redimensionada num pluralismo comunitário-participativo, cuja fonte de direito é o próprio homem projetado em nível de ações coletivas, internalizadoras da historicidade concreta e da liberdade emancipada. Enfim, a formação de sujeitos coletivos e a ampliação de focos de poder social autodeterminados, num espaço de “invenção democrática” se processam, concomitantemente, com a “subversão contínua do estabelecido”, com a “reivindicação permanente do social e do político” e “a criação ininterrupta de novos direitos”, direitos que vão se refazendo na circunstancialidade das situações, direitos que vão se redefinindo a cada momento.[13: LEFORT, Claude. A invenção democrática. São Paulo: Brasiliense, 1983. pp. 11 e 59-60.]
Eis, portanto, que a emergência de uma juridicidade “nova”, plural e alternativa, passa, presentemente, pela delimitação do conceito de “justas necessidades” e “sujeitos sociais emergentes”.
Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 02.05.2003
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