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Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 205 Sumário 1. Introdução Estudar o Estado significa estudar os motivos de sua crise e a possibilidade de alternativas de solução. Como motivação da crise, pode-se falar na globalização, que atin- ge diretamente a soberania, e na evolução da sociedade, com conseqüente alargamen- to das demandas sociais, que atinge a efici- ência e a legitimidade do Estado. Vê-se, assim, uma fragilização do Esta- do. Ele já não consegue mais fazer frente às injunções externas e, internamente, é inca- paz de atender à satisfação das necessida- des básicas de sua nação, considerando-se a sua configuração de bem-estar. Acontece, no entanto, que as questões de soberania, legitimidade e eficiência consti- tuem apenas uma visão da crise, que se acre- dita secundária. O cerne da questão está na cidadania e na democratização do povo. E é nesses termos que se devem buscar soluções. A centralização do poder estatal atua positiva e fortemente sobre a problemática da soberania, da eficiência e da legitimida- de, tendo, no entanto, tênue atuação no que diz respeito à garantia da cidadania e da democratização. Assim sendo, a descentra- lização faz-se necessária para garantir um Crise do Estado: participação e solidariedade Karina Brunet 1. Introdução. 2. Evolução do Estado. 3. Cri- se do Estado: A) Contornos estruturais da crise. B) Soberania e globalização. 4. Poder local e so- lidariedade. 5. Conclusão. Karina Brunet é mestranda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos –UNISI- NOS. Revista de Informação Legislativa206 povo democrático e cidadão. O deslocamen- to das decisões para espaços locais de con- vivência social permite a efetiva participa- ção do cidadão na definição e controle das políticas de desenvolvimento. 2. Evolução do Estado A concepção que se tem hoje de Estado é uma evolução gradual dos princípios con- tratualistas de Hobbes, Locke e Rousseau. Por meio do contrato social, o homem con- cebeu o Estado como algo artificial, como uma construção racional que se fez neces- sária em dado momento histórico. Verifica- se, assim, o fim do Estado Natural e o início do Estado Civil política e socialmente orga- nizado. O contrato social, nesses termos, é o pac- to político que dá origem ao Estado Civil. Acontece, porém, que a forma de apresenta- ção da organização estatal da sociedade difere entre os contratualistas, apesar da racionalidade do Estado, comum a todos. Em Hobbes, verifica-se o absolutismo; em Locke, o liberalismo; e, em Rousseau, a de- mocracia. Diz-se, então, que, a partir do contratua- lismo, foi construída a noção de Estado Moderno, conceitualmente constituído de três elementos: nação, território e soberania. Assim sendo, em um determinado espaço físico, o Estado é soberano, exercendo seu poder sobre o povo que ali vive e a ele se submete, bem como frente a intervenções externas. Não havendo distinções a respei- to dos dois primeiros elementos, algumas divergências, no entanto, quanto à sobera- nia são evidentes. Na visão absolutista de Hobbes, a sobe- rania pertence ao monarca (soberano) que detém poder absoluto. Em Locke, o poder soberano é limitado pela garantia dos direi- tos liberais do estado pré-social. Já Rous- seau, em sua característica democrática, confere soberania ao próprio povo. Vê-se, assim, que é no contratualismo hobbesiano que a soberania atinge seu ápice em termos de absolutização e perpetuidade (MORA- ES, Do direito..., 1996, p. 40), absoluto, pois não sofre limitações sequer quanto à sua dura- ção, por isso também perpétuo (Idem, As cri- ses..., 1996, p. 39). A partir da concepção soberana absolu- tista, conjugada com as noções de território e nação, consolida-se, no século XVI, o Esta- do Moderno, sob a forma de Monarquias Absolutistas. Essa forma de apresentação da organização estatal perdura até o século XVIII, com o advento do liberalismo como teoria política1. Surge, então, a figura do Es- tado Liberal Mínimo, em que o exercício da soberania fica reduzido a garantia da paz social. No século XX, verifica-se uma terceira apresentação do Estado Moderno. Ainda sob a ótica do liberalismo, procura-se um enfrentamento das questões sociais – nega- das do Estado Liberal Mínimo –, configu- rando-se, assim, o Estado de Bem-Estar. Busca-se uma interação entre liberalismo e democracia, uma incorporação de grupos sociais aos benefícios da sociedade contem- porânea (MORAES, Do direito..., 1996, p. 44), de modo que a soberania passa a ser conju- gada com a solidariedade. Assim sendo, dentro da concepção polí- tica de um Estado liberal, verifica-se a pre- sença do elemento social, por meio de uma preocupação com a igualdade e a dignida- de, não sendo mais suficiente apenas a ga- rantia da liberdade. A própria manutenção do capitalismo, consolidado no Estado Li- beral Mínimo, passou a depender do acesso dos novos grupos sociais emergentes aos benefícios da sociedade de mercado. A com- pleta exclusão dessas novas camadas soci- ais levaria à ruína da própria política libe- ral. A industrialização e os novos padrões de comportamento social determinaram uma maior estratificação da sociedade. Es- ses novos estratos (operários e mulheres, por exemplo) passaram a exigir participa- ção política e a legitimidade do Estado foi posta em cheque. Com isso, para garantir a Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 207 manutenção do poder numa perspectiva li- beral, o Estado teve de atender às novas de- mandas sociais oriundas da representativi- dade alcançada pelos novos atores sociais. Sob pena de perder a legitimidade, o Es- tado incorporou o aumento dos limites de- mocráticos impostos pela nova ordem soci- al. A participação política foi, assim, garan- tida pela democracia representativa, como uma forma de apenas se delimitar deman- das, sem haver real influência na tomada de decisões. O Estado tomou para si a ativi- dade de garantir a igualdade e a dignidade. Incluiu, assim, os novos grupos sociais na sua atividade providenciária, havendo um evidente alargamento das demandas so- ciais. A ilusória manutenção da democracia, por meio dos instrumentos capitalistas do Estado Liberal, ainda que democrático e de direito, é uma forma de se “infantilizar” a sociedade. A cidadania passa a ser oferta- da pelo Estado juntamente com os benefíci- os sociais, tais como saúde, previdência, sa- neamento básico, educação, entre outros. A paternidade estatal, com estreitamento do cordão umbilical, gera uma dominação, pois o cidadão não tem consciência de sua cida- dania, nem de sua capacidade de autode- senvolvimento (condições de sobreviver in- dependentemente da prestação estatal su- focante, exagerada...) Acontece, porém, que a sociedade evo- luiu para além da capacidade de atendimen- to de demandas que o capitalismo pode su- portar, seja pelo seu volume, seja pela sua diversidade. O Estado tornou-se, assim, ine- ficiente, pois não já não tem mais condições de garantir nem a igualdade, muito menos a dignidade. 3. Crise do Estado Em face da sua incapacidade de atender às demandas sociais, garantindo a igual- dade e a dignidade como corolários da de- mocracia e da cidadania, o Estado Contem- porâneo2 está em crise. A crise do Estado pode ser vista sob a ótica estrutural – finan- ciamento, eficácia econômica e social e mu- tações culturais (ROSANVALLON, 1997, p. 7) – e conceitual (MORAES, As crises..., 1996, p. 38). A) Contornos estruturais da crise O alargamento das demandas sociais gerou uma incapacidade quantitativa de seu atendimento por parte do Estado, em face da rapidez com que se proliferam em relação às receitas estatais. Assim, num pri- meiro aspecto, a crise manifesta-se numa questão de custeio das políticas sociais. Para garantir sua legitimidade, o Esta- do tomou para si a implementação de polí- ticassociais de bem-estar, independente- mente dos custos que isso pudesse oferecer. Assim, além de um aumento numérico das prestações estatais já existentes, com a evo- lução social e o reconhecimento de necessi- dade de democratização, houve igualmente uma diversificação do conteúdo das deman- das. A diferença oriunda do processo de- mocrático exigiu, então, o implemento de novas políticas e, conseqüentemente, novos investimentos para custear essa diversi- dade. Acontece, porém, que o Estado não se preocupou em garantir meios financeiros de atender às demandas sociais. E com o au- mento constante das mesmas, chegou a um estágio de total esgotamento de sua capaci- dade de financiamento das políticas soci- ais que se viu obrigado a implementar. Vê-se, assim, que nesse primeiro aspec- to, a crise estrutural do Estado está centra- da numa questão de orçamento. Mas como há um evidente déficit entre demandas e re- ceitas públicas, a organização estatal preci- sa encontrar meios de aumentar a arrecada- ção ou diminuir as despesas para que se restabeleça a eficiência estatal. Nesses termos, Pierre Rosanvallon en- tende que não há uma crise de financiamen- to do Estado Contemporâneo. Entende que existem soluções, tais como o aumento da carga fiscal, mas que a implantação das téc- Revista de Informação Legislativa208 nicas de aumento de receitas públicas afeta o equilíbrio social à medida que produz al- terações nos orçamentos privados de cada cidadão. É preciso saber, assim, qual é o grau de socialização tolerável de um certo núme- ro de bens e serviços (1997, p. 15). E, a esse respeito, diz que: “... não se pode fixar a priori limites intransponíveis para o Estado-provi- dência que se deduziriam de uma aná- lise estritamente econômica e finan- ceira. ... O verdadeiro objeto de uma interro- gação sobre o futuro do Estado-provi- dência é a própria sociedade: qual é a plasticidade das relações sociais? Como analisar a rigidez e a flexibili- dade da estrutura social?” (p. 17). Vê-se, com isso, que a crise do Estado Contemporâneo não está apenas em sua capacidade de financiamento de políticas sociais, mas nos limites de tolerância da sociedade para aceitar a dicotomia entre custos sociais/benefícios públicos. A ques- tão passa, então, por uma reflexão ideológi- ca, quanto a sua eficácia econômica e so- cial. O Estado Contemporâneo vive um em- bate ideológico bastante evidente. A contem- poraneidade estatal verifica-se no enfrenta- mento das questões sociais, na busca pela igualdade e dignidade, por meio de instru- mentos democráticos de participação polí- tica. Mas o Estado não deixa de garantir igualmente a liberdade já consolidada no Estado Liberal Mínimo, uma vez que se es- trutura como providência, sob a ótica do li- beralismo. Evidencia-se, assim, a influência capitalista e socialista no Estado Contem- porâneo. O Estado procura reduzir as diferenças por meio de políticas sociais, mas não se preocupa com a efetiva igualdade. Assim, tem-se a implementação de prestações esta- tais que garantem condições mínimas de vida humana digna, mas não põem fim à distinção de classes. Numa perspectiva ca- pitalista, mantém-se a luta de classes, mas, ao mesmo tempo, garante-se a satisfação de necessidades básicas. Essa é a lógica do Estado Contemporâneo. Acontece, porém, que, em face do alarga- mento de demandas sociais, o Estado não está mais conseguindo satisfazer as neces- sidades para uma sobrevivência digna, nem mesmo garantir um mínimo de igualdade social. Surge uma desconfiança em relação à organização estatal, em face da sua inefi- ciência no atendimento de tais demandas. Isso só aumenta a diferença de classes e a supremacia do mercado, uma vez que o se- tor privado, mediante altos custos, presta o serviço que cabia ao Estado e aqueles que não têm condições de pagar são excluídos do processo. Vê-se, assim, que, para garantir sua legi- timidade, o próprio Estado causou o seu descrédito como instituição. E essa situação faz com que não haja condescendência com as políticas de aumento de arrecadação, ain- da que sob o pretexto de novas ou melhores prestações sociais. As classes dominantes não dependem do Estado para a satisfação de suas necessidades, pois têm condições de buscá-la no mercado. As classes domi- nadas, por sua vez, esperam a atitude pa- ternalista do Estado como garantia da pró- pria sobrevivência, mas o seu grau de ex- clusão é tão grande que não têm quaisquer condições de reivindicação. Ainda quanto à estrutura do Estado Con- temporâneo, pode-se falar em um aspecto mais filosófico da crise. Trata-se – usando terminologia de Pierre Rosanvallon – da questão da solidariedade automática. Ao assumir para si o compromisso de atendimento de demandas sociais, redistri- buindo bens e serviços, o Estado torna-se o agente central de organização da solidarie- dade substituindo-se às relações face-a-face entre indivíduos e grupos (p. 32). Assim, o homem não precisa se preocupar com espa- ços de atuação solidária, havendo um evi- dente isolamento e perda de sua identidade e autonomia, pois o Estado passa a ser o Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 209 principal recurso para a satisfação de suas necessidades. Acontece, no entanto, que, com a insufi- ciência estatal para atender às demandas sociais, satisfazendo as necessidades da sociedade, há uma incapacidade econômi- ca da solidariedade automática que, aliada a sua inadaptação sociológica, aumenta a crise do Estado. O Estado, assim, não tem condições de aumentar suas receitas por meio de contri- buições sociais, pois já não há um espaço de discussão entre o estatal e o social. A ca- pacidade de composição de problemas por parte da sociedade foi intensamente deterio- rada pela providência do Estado. Nesse sen- tido, Pierre Rosanvallon diz que: “A crise da solidariedade provém da decomposição, ou, mais exatamen- te, da deslocação do tecido social de modo mecânico, e involuntário, é ób- vio, gerada pelo desenvolvimento do Estado-providência. Já não há ‘social’ suficiente entre o Estado e os indiví- duos. É por isso que os limites do Es- tado-providência devem ser estendi- dos a partir das formas de sociabilida- de que ele induz e não a partir do grau de socialização da demanda (percen- tagem dos descontos obrigatórios) ” (p. 38). Entende-se, nesses termos, que a crise estrutural do Estado Contemporâneo está centrada na integração de aspectos econô- micos, sociais e culturais. É preciso que se tenha uma cultura solidária, a fim de com- preender a necessidade de um sacrifício so- cial que tenha por objetivo implementar al- ternativas de cunho econômico, visando a sustentação do Estado em seu pleno e efeti- vo desenvolvimento. B) Soberania e globalização A soberania como poder juridicamente incontrastável, que define e decide a respei- to do conteúdo e aplicação das normas, im- pondo-se coercitivamente num determina- do território, e faz frente a eventuais injun- ções externas (MORAES, As crises..., 1996, p. 39), já não existe mais. A própria passagem do Estado Liberal Mínimo para o Estado de Bem-Estar conferiu novos contornos à sobe- rania ao agregar a concepção solidária. O poder soberano deixou de ser único, deven- do ser conjugado com a solidariedade para ser legítimo e efetivo. Foi com a globalização, no entanto, que a soberania se viu realmente ameaçada, ao transpor os limites internos e externos que circunscrevem o exercício de seu poder. O Estado deixa de ser soberano, uma vez que perde a capacidade de decisões políticas autônomas. Mas essa realidade global não é absoluta, pois os efeitos da globalização são mais ou menos intensos conforme as políticas sociais e econômicas desenvolvi- das pelos Estados. Para se poder falar em restrições à sobe- rania por meio da globalização é preciso compreendê-la em sua integridade.A glo- balização é um fenômeno capitalista de in- ternacionalização – ou mundialização – do capital. Existe desde o Império Romano, passando pelo período das Grandes Nave- gações e atingindo seu ápice nos dias atu- ais. O avanço tecnológico permitiu uma “desterritorialização” das atividades econô- micas pela facilidade que dá à formação de oligopólios transnacionais, mercados de capital globais, nova divisão internacional do trabalho, espaços de produção globali- zada (CORSI, 1997, p. 103). Com isso, for- mou-se um mercado financeiro global que passou a “controlar” as atividades políti- cas dos Estados nacionais, por meio da im- posição de posturas globalizantes para in- vestimentos e financiamentos, sob pena de retaliações econômicas. Assim, toda a polí- tica social e econômica dos países passou a ser influenciada pelas coordenadas globais dos grupos financeiros mundiais. Assim sendo, o Estado já não tem mais condições de fazer frente às injunções exter- nas em suas condições de governabilidade, o que afeta diretamente a sua soberania. E, Revista de Informação Legislativa210 em nível interno, igualmente não tem con- dições de contornar a “subcidadania” (AL- MEIDA, 1997, p. 182) que se forma com a exclusão gerada pela globalização. A globalização inclui Estados, mas ex- clui cidadãos. A fim de acumular capital, o capitalismo globalizante não se preocupa com as diferenças de cada nação. Interessa apenas que todos se incluam no seu proces- so de transnacionalização financeira, inde- pendentemente de que e em que condições isso ocorre. Assim, aqueles que não têm con- dições de se adaptar à nova sistemática mundial são terminantemente excluídos. E os Estados muito pouco podem fazer, pois dependem do mercado financeiro global para desenvolver suas próprias políticas de democratização e cidadania. A globalização é uma realidade, mas, no entanto, não se pode negar completamente a soberania em sua função. O Estado deve dimensionar o exercício de seu poder sobe- rano dentro dos limites que a realidade glo- bal lhe possibilita. Assim, nas questões que lhe são internas e para as quais tem recur- sos próprios, o Estado deve impor suas po- líticas de forma independente. Acredita-se, nesses termos, que a soberania estatal pode ser deslocada, com eficiência, para as ques- tões locais. 4. Poder local e solidariedade Diante da crise do Estado contemporâ- neo e dos efeitos da globalização, algumas propostas têm sido freqüentemente formu- ladas pelos cientistas políticos e econômi- cos como soluções para o problema. Fala-se indiscriminadamente em integração, desre- gulação, desestatização, entre outros. Como bem observa Sérgio Sérvulo da Cunha, o pre- fixo des é revelador e indica as duas faces de um movimento que integra dissolvendo (as integrações regionais, por exemplo, estimu- lam a desintegração nacional) (1995, p. 92). Em face do descontrolado alargamento das demandas sociais e da impossibilidade de aumento de arrecadação, o neoliberalis- mo pretende – ainda que assim não o decla- re – uma redução do papel do Estado e, quem sabe, um retorno ao Estado Liberal Clássi- co, ou seja, Mínimo. Acontece, porém, que as soluções des, com conseqüente redução das prestações estatais, não resolvem os pro- blemas de fundo da globalização: a sobera- nia, a democracia e a cidadania. As respostas do neoliberalismo para a crise são efetivas para a manutenção dos interesses excludentes do capitalismo, mas não têm qualquer efetividade na composi- ção da problemática social que se estabele- ce. Nesse sentido, Pierre Rosanvallon enten- de que a dicotomia privatização/estatiza- ção é irrelevante para a verdadeira crise do Estado, pois restringe-se apenas ao seu as- pecto financeiro. Esse é um roteiro insufici- ente por não pensar a crise nos seus pro- gressos sociais futuros, no desenvolvimen- to de novas necessidades, sendo preciso sair dessa dualidade e redefinir as fronteiras entre o Estado e a sociedade civil (p. 85). A fim de atender todas as demandas so- ciais emergentes, o Estado foi, aos poucos, aumentando sua complexidade enquanto sistema social, trazendo para si uma plura- lidade de prestações que eram compatíveis com sua estrutura. Acontece que, com a evo- lução da sociedade, com a globalização e com o processo de democratização, o nível de complexidade estatal extrapolou os limi- tes de atendibilidade, para além de sua ca- pacidade estrutural. Com isso, o Estado pre- cisa reduzir sua complexidade, limitando as ações que pretende e pode realizar, entre as tantas que lhe cabe implementar. Manuel Garcia-Pelayo diz que um siste- ma incapaz de reduzir sua complexidade ambiental perde sua autonomia até ser, fi- nalmente, absorvido pelo ambiente (p. 183). Nesse sentido, a redução da complexidade estatal é condição para a própria existência do Estado, a fim de que o mesmo não se tor- ne completamente dependente dos organis- mos transnacionais. O Estado precisa, assim, manter-se sim- ples mediante a complexidade do espaço Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 211 global. E acredita-se que para isso é preciso uma revalorização da capacidade interna de organização estatal. Faz-se necessário rever as estruturas locais de manifestação do poder soberano. A globalização deslocou a discussão sobre os problemas do Estado para níveis globais, em detrimento de alternativas lo- cais que possam existir. Essa atitude, na verdade, fez com que se sobrepusesse o as- pecto econômico da crise sobre qualquer outro. Evidencia-se que o objetivo da inter- nacionalização do capital é a acumulação, sem que haja preocupação com os prejuízos sociais que daí possam advir. Mas, como já referido, o aspecto econô- mico da crise do Estado é o que mais facil- mente se consegue resolver. A dificuldade está no desenvolvimento da sociedade em face da exclusão gerada pela globalização e pela perda da soberania. São os aspectos sociológicos e políticos que devem ser estu- dados. É a partir de uma visão democrática socializante que se terá condições de “sal- var” o Estado. Nesse sentido, entende-se que é preciso reinserir a solidariedade na sociedade, bem como estabelecer limites locais de atividade estatal. O Estado de Bem-Estar, ao procurar cor- rigir e compensar os efeitos negativos do mercado, afastou o indivíduo da sociedade, entendida em seu sentido de vivência co- munitária. Isso fez com que os cidadãos passassem a depender da providência esta- tal para a satisfação de suas necessidades, numa concepção clientelista. Agora, em situação de crise, o cidadão já não sabe como sobreviver sem a prestação estatal. Não tem condições de buscar na própria sociedade alternativas para um de- senvolvimento independente do Estado. Assim sendo, para conseguir manter uma certa eficiência interna, faz-se necessário estabelecer e reforçar novos vínculos de so- lidariedade. Pierre Rosanvallon fala da necessidade de se reconhecer formas de manifestação social antes negadas: a existência de redes subterrâneas familiares com representações econômicas, que traduzem a capacidade de o tecido social produzir, em seu seio, modos de resistência aos choques externos (p. 92- 93). A importância desse reconhecimento está, inclusive, no fato de que a demanda estatal teria sido ainda maior se não hou- vesse tais organizações sociais solidárias. Assim sendo, entende-se que uma solu- ção para a ineficiência estatal em face do alargamento das demandas sociais talvez seja o estímulo para o desenvolvimento de mais redes subterrâneas familiares com re- presentação econômica. Aumentando a so- lidariedade e as atividades econômicas au- tônomas, mais os cidadãos terão consciên- cia de sua própria capacidade de satisfação de necessidades, independentemente da prestação por parte do Estado. A auto-suficiência do cidadão em rela- ção à satisfação de suas necessidadesgera uma maior consciência, também, de sua re- levância para o desenvolvimento do próprio Estado. O cidadão passa, assim, a ser um efetivo cidadão, com condições de influir nas decisões estatais políticas e econômicas por meio de um processo democrático de parti- cipação. Entende-se, nesses termos, que o exercí- cio pleno da cidadania, com participação nas decisões do Estado, faz com que o cida- dão tenha mais forças para se manter digno frente ao processo de exclusão ocasionado pela globalização. O povo, assim, poderá criar mecanismos próprios de inclusão, con- forme as condições da sociedade na qual se insere. Sendo insignificante para o espaço glo- bal – que procura excluí-lo –, o indivíduo deve buscar sua cidadania, por meio do exer- cício efetivo da democracia nos espaços lo- cais de decisão. A centralização do poder estatal priva o cidadão de uma participação efetiva na transformação da sociedade em que vive. O governo toma decisões que atingem a nação em sua completude, independentemente de Revista de Informação Legislativa212 suas diferenças regionais ou locais. O cida- dão, assim, não tem qualquer contribuição para o seu próprio desenvolvimento. As políticas são implementadas verticalmente, o que pode gerar insatisfações em face da sua inadaptabilidade para a sociedade local. Entende-se, com isso, que a descentrali- zação é uma boa alternativa para a crise do Estado. A transferência das decisões para o âmbito local permite ao Estado voltar sua atenção para a manutenção de sua sobera- nia e para a fixação de seu valor no plano internacional. Transferindo a implementa- ção de políticas públicas de atendimento de demandas sociais para os espaços locais, o Estado tem mais condições de garantir a efi- ciência de sua prestação, reservando forças para preocupar-se com políticas de desen- volvimento externo, com questões de macro- economia, entre outras de viés globalizante. A transferência das decisões para o âm- bito local permite ao cidadão a participação efetiva no desenvolvimento e controle de políticas públicas que afetam diretamente a sua vida. Essa é uma forma bastante produ- tiva de se aproximar Estado e sociedade e, assim, garantir a sua legitimidade e eficiên- cia. Nesse sentido, Ladislau Dowbor diz que: “Nesse plano, é indiscutível que aproximar o poder de decisão e de controle das pessoas que arcarão com o benefício ou o prejuízo, e que estão portanto diretamente interessadas nos resultados, constitui simplesmente boa política administrativa” (1999, p. 31). A implementação de políticas locais de desenvolvimento fortalece, inclusive, a pró- pria cidadania, por meio da democracia participativa. O cidadão participa das deci- sões que lhe dizem respeito por meio do va- lor direto de sua palavra. A participação não se limita à representatividade dos partidos políticos e sindicatos, mas se desenvolve num terceiro eixo (p. 24), representado pela organização comunitária: “Não se trata naturalmente de re- duzir a sociedade ao ‘espaço local’, na linha poética de um ‘small is beau- tiful’ generalizado. Trata-se, isto sim, de entender a evolução das formas de organização política que dão susten- to ao Estado: a modernidade exige, além dos partidos e de sindicatos or- ganizados em torno dos seus interes- ses, comunidades organizadas para gerir o nosso dia-a-dia. Este ‘tripé’ de sustentação da gestão dos interesses públicos, que pode ser caracterizado como democracia participativa, é in- discutivelmente mais firme do que o equilíbrio precário centrado apenas em partidos políticos” (1998, p. 366- 367). 5. Conclusão O Estado Moderno, configurado pela conjugação da soberania, território e nação, teve três diferentes momentos de materiali- zação ao longo da história: absolutista em sua origem, liberal clássico (mínimo) em sua fase intermediária e liberal de bem-estar na contemporaneidade. Nessa última fase, no entanto, o Estado encontrou a sua crise mais grave. A crise do Estado é analisada sob a ótica conceitual quando se verificam as ingerên- cias globalizadas nas nações soberanas. En- tende-se que a globalização afeta diretamen- te a soberania e, assim, a própria concepção de Estado. Essa visão, no entanto, mostra apenas uma face do problema. A globalização, ainda que tenha preten- sões sociais e culturais, é evidentemente eco- nômica. Os Estados, assim, precisam sub- meter-se às exigências globais para se inse- rirem no mundo globalizado. E, uma vez inseridos, são soberanos para as suas deci- sões internas. Acontece, porém, que o preço que se paga por essa inclusão é a cidada- nia. Para fazer parte da “aldeia global”, o Estado se vê na contingência de adotar me- didas econômicas que destroem a cidada- nia. Garante-se a inclusão global, mantém- se a soberania, mas se perde o povo enquanto cidadão. Brasília a. 38 n. 152 out./dez. 2001 213 Quanto à ótica estrutural da crise do Es- tado, a problemática não é muito diferente. Na verdade, existem mecanismos para re- solver as questões de financiamento das políticas públicas, mas não se tem condi- ções de aplicá-los sem uma total negação da pouca cidadania que existe. A sociedade não aceita as políticas econômico-financei- ras, bem como não tem condições de desen- volver medidas públicas não-estatais, pois não tem consciência de sua capacidade de atuação social. Os cidadãos são, assim, clien- tes do Estado, inclusive em sua cidadania. Vê-se, com isso, que a crise do Estado não é realmente uma crise do Estado, mas sim uma crise da cidadania, do processo democrático de constituição de uma nação cidadã. O Estado, em sua concepção tradi- cional, tem meios de garantir a sua manu- tenção como Estado de Bem-Estar, inserido no mundo globalizado de forma soberana. Mas já não tem mais condições, e quiçá inte- resse, em garantir a cidadania de seu povo. A crise existe, sim, se entender-se que a nação como elemento do Estado deve ser cidadã, deve participar democraticamente das decisões estatais. Nesse aspecto, a crise pode ser formulada, debatida e solucionada. Posta a crise do Estado como a crise da cidadania, entende-se que a descentraliza- ção do poder estatal pode ser uma alternati- va de solução. A transferência das decisões estatais para o âmbito local garante a demo- cracia participativa e a cidadania da nação, que poderá controlar o seu próprio desen- volvimento. Nesse sentido, fazem-se imperiosas as palavras de Ladislau Dowbor: “... a humanidade precisa urgentemen- te de puxar as rédeas sobre o seu de- senvolvimento, e dotar-se dos instru- mentos institucionais capazes de efe- tivamente capitalizar os avanços ci- entíficos para um desenvolvimento humano. Os objetivos gerais são hoje claros. Precisamos de um desenvolvimento socialmente justo, economicamente viável e ambientalmente sustentável. Dividir estes objetivos entre o Estado que executa políticas sociais, as em- presas que produzem, e as organiza- ções não governamentais ou comuni- tárias que batalham objetivos ambien- tais, cada um puxando para o seu lado, nos traz à mente aquele desenho dos burros que tentam cada um alcan- çar o seu monte de capim, puxando em sentidos contrários, em vez de co- mer juntos cada monte. Podemos, na- turalmente, e segundo nossas posi- ções ideológicas, ter cada um uma opinião diferente sobre qual dos bur- ros é o culpado. Mas isso não altera- ria o resultado final” (1998, p. 413- 414). Notas 1 Em Locke, o liberalismo apresenta-se como manutenção dos direitos individuais anteriores ao contrato social. No século XVIII, a teoria liberal prevê a redução do papel do Estado em face da suficiên- cia da auto-regulação da economia de mercado. 2 Estado Contemporâneo – é o Estado Moderno em seus limites conceituais (soberania, nação e ter- ritório), politicamente organizado em Estado De- mocrático de Direito, numa concepçãoliberal de providência – Estado de Bem-Estar. Bibliografia CUNHA, Sérgio Sérvulo. Estado, sociedade e parti- cipação: perspectivas socialistas. Revista de Informa- ção Legislativa. Brasília: Senado Federal, Subsecreta- ria de Edições Técnicas, n. 128, p. 91-93, 1995. DOWBOR, Ladislau. A reprodução social: proposta para uma gestão descentralizada. Petrópolis: Vo- zes, 1998. ______. O que é poder local. São Paulo: Brasiliense, 1999. DOWBOR, Ladislau; IANNI, Octavio; RESENDE, Paulo-Edgar A. (Orgs.). Desafios da globalização . Petrópolis: Vozes, 1997. FARIA, José Eduardo. O direito na economia globa- lizada. São Paulo: Malheiros, 1999. 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