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Memorial do Bruxo Conhecendo Machado de Assis José Antonio Martino 4 As imagens deste livro são de Domínio Público pelo fato de já ter passado mais de setenta anos desde a morte de seus proprietários e, portanto, encontram-se disponíveis para uso público sem ressalvas de Direito Autoral. O autor permite a reprodução de qualquer parte deste texto, desde que citada a fonte. 5 Joaquim Maria Machado de Assis 6 7 Introdução Na época em que Machado de Assis nasceu, o Rio de Janeiro era uma cidade bem diferente daquela que ele iria registrar brilhantemente em crônicas anos depois. Apesar das inúmeras melhorias que ela vinha recebendo desde a chegada da Família Real em 1808, o Rio de Janeiro ainda conservava muitos aspectos da antiga vida colonial. Com cerca de duzentos mil habitantes, a cidade era suja, pestilenta, malcheirosa. Doenças como varíola, sarampo, cólera-morbo e peste bubônica afligiam a população e eram raras as pessoas que chegavam aos sessenta anos. Como não existia um sistema de esgoto organizado, cabia aos escravos retirar da casa dos senhores as águas servidas. Juntavam-se os excrementos durante o dia inteiro num barril e, ao anoitecer, um negro se incumbia de ir lançar a imundície no mar. Se estivesse chovendo, a tarefa do escravo tornava-se mais fácil, pois bastava despejar o conteúdo do barril pelas ruas, que as águas da chuva se encarregavam de fazer o resto. Mas enquanto a noite não chegava, o barril permanecia exalando aromas nauseabundos pela casa, juntando moscas e mosquitos, muitas vezes transmissores de doenças graves. Uma verdadeira procissão de escravos se dirigia toda noite para as imediações do palácio do imperador, pois era ali o local preferido para se esvaziarem os barris. Por causa disso, ninguém entrava nas praias, uma vez que elas recebiam os detritos fecais. Vez por outra, um desses negros menos afortunados escorregava, entornando sobre si todos os resíduos fétidos. A pele do escravo acabava irremediavelmente manchada com listras e dizem que por causa dessa aparência é que eles ficaram conhecidos pela população como tigres. Com exceção do Passeio Público, quase não havia árvores pelas ruas, sempre mal iluminadas, pois ainda se usava óleo de baleia como combustível para as lamparinas. A maioria das casas era de madeira, muito úmidas e infestadas por todo tipo de inseto e os principais meios de transportes do tempo eram puxados por tração animal, como gôndolas e diligências. Nesta cidade pouco salubre e ainda com muitas características dos tempos da colônia é que nasceu Joaquim Maria Machado de Assis. 8 9 A Chácara do Livramento O ano era 1839. Quem caminhasse pela praia da Gamboa e olhasse para o alto do Morro do Livramento veria um antigo palacete, sólido, austero, pesado, como costumavam ser as velhas construções que vinham do tempo do Brasil Colônia. Esta residência que tinha mais de 150 anos era a sede de uma enorme chácara, que se estendia por todo o morro e ia terminar próximo à orla do oceano, junto ao Cemitério dos Ingleses. Naquela época, pouquíssimas construções podiam ser observadas no Morro do Livramento, quase sempre modestos casebres de gente muito pobre. Além da mansão que servia de sede para a chácara, havia também uma pequenina capela particular dedicada a Nossa Senhora do Livramento, erguida ali em 1670 por um certo José Caieiro da Silva, o primeiro proprietário daquelas terras. Por causa dela, não somente a chácara, mas todo o morro ficou conhecido como Livramento. Quando José Caieiro da Silva faleceu, a chácara foi vendida por seus herdeiros ao capitão Manuel Pinto da Cunha; por sua vez, este a legou ao morrer à sua filha, dona Ana Teresa Angélica da Cunha e Sousa. Próximo à chácara, ao pé do Morro do Livramento, ficava o Cemitério dos Ingleses, um dos poucos da cidade, se não o único, em que os corpos eram sepultados em covas abertas diretamente no chão. Naquele tempo, era costume se enterrar os mortos nas igrejas. Defronte ao cemitério, havia uma praia suja, onde o pequeno Machado deveria passar as tardes, após descer correndo o morro. A chácara localizava-se relativamente perto do centro da cidade, num bairro de gente humilde, como os outros das imediações: Saúde, Gamboa, Saco do Alferes, Praia Formosa e São Cristóvão. Tanto que na praia do Valongo, ali perto, era o ponto de desembarque dos navios negreiros. Antes de prosseguir, é necessário apresentar dona Ana Teresa Angélica, bem como algumas outras pessoas que viveram na Chácara do Livramento e, dessa forma, foram nomes importantes ligados à infância de Machado de Assis. Ana Teresa Angélica da Cunha e Sousa Ana Teresa Angélica era uma senhora solteirona, muito rica, pertencente a ilustre família Pinto da Cunha. Dizem que era irmã do célebre Cônego Felipe, com quem morava na Chácara do Livramento. Para bem dirigir as suas terras, que possuíam inúmeros escravos e agregados, sendo que a maioria deles constituía-se de pardos forros (escravos libertos), Ana Teresa Angélica da Cunha e Sousa contratara os serviços de Bento Barroso Pereira, um brigadeiro reformado, que lhe ajudava a administrar sua quinta. 10 Tão bons serviços ele prestou à generosa senhora, que quando esta morreu no dia 19 de setembro de 1827, passou a maior parte das terras para o amigo. Consta que Maria José de Mendonça Barroso Pereira, esposa do Bento e futura madrinha de Machado de Assis, vinha emprestando muito dinheiro à dona Ana Teresa Angélica, que se viu obrigada a saldar suas dívidas com a doação. É provável que a sua situação financeira nessa época já não fosse das mais tranqüilas, como nos tempos em que ela era moça e a chácara opulenta. Porém, o fato inquestionável é que o tabelião Perdigão passou a escritura de grande parte das terras de dona Ana Teresa Angélica para as mãos do Bento Barroso Pereira no dia 10 de fevereiro de 1827, conforme demonstrou Gondin da Fonseca. E após a morte dela, quando inúmeros parentes acorreram de toda parte para acompanhar a abertura do testamento, viram-se praticamente de mãos vazias... Cônego Felipe Há pouquíssimas informações a respeito da vida do Cônego Felipe. Grande parte do que sabemos são conjecturas e hipóteses levantadas por historiadores, nem sempre endossadas por fontes seguras. Sabe-se que ele nascera no século XVIII, na cidade do Rio de Janeiro e chamava-se Felipe Pinto da Cunha e Sousa. Com a chegada de Dom João VI, fora promovido a monsenhor presbítero da Capela Real. Informa Vieira Fazenda que ele era um tanto excêntrico, mas respeitado como sacerdote. Segundo Barreto Filho, ele seria um dos antigos proprietários da Chácara do Livramento. A teoria mais aceita é que Felipe era filho do Capitão Manuel Pinto da Cunha e, portanto, irmão de Ana Teresa Angélica da Cunha e Sousa. Se esta tese for verdadeira, o cônego deve ter recebido a Chácara do Livramento como herança de seu pai e legado as terras à sua irmã quando faleceu. Certo mesmo, é que o Cônego Felipe adquiriu na sociedade do tempo uma triste reputação, tendo virado motivo de chacota entre o povo, em virtude de sua extrema ingenuidade, pobreza de espírito e apoucada inteligência. Sobre ele, corriam anedotas curiosas, como aquela a respeito de uma tela, em que o pintor retratava Suzana banhando-se num riacho. Diziam as más línguas que ela era observada pelo Cônego Felipe, que permanecia escondido atrás de uma árvore... Este quadro de fato existiu, pois Machado se refere a ele em crônica, afirmando que o via diariamente em sua infância. Possivelmente, decorava uma das paredes do casarão de sua madrinha, na Chácara do Livramento. Sobre a simplicidade do Cônego Felipe, Álvares de Azevedo deixouo seguinte poema: 11 O CÔNEGO FELIPE O Cônego Felipe, Ó nome eterno! Cinzas ilustres que da terra escura Fazes rir nos ciprestes as corujas! Por que tão pobre lira o céu doou-me Que não consinta meu inglório gênio Em vasto e heróico poema decantar-te? Voltemos ao assunto. A minha musa Como um falado imperador romano Distrai-se às vezes apanhando moscas. Por estradas mais longas ando sempre, Com o cônego ilustre me pareço. Quando ele já sentia vir o sono, Para poupar caminho até a vela, Sobre a vela atirava a carapuça. Então no escuro, em camisola branca Ia apalpando procurar na sala - Para o queijo flamengo da quereca Dos defluxos guardar - o negro saco. No Diário do Rio de Janeiro de 17 de julho de 1864, Machado de Assis escreveu uma crônica, onde ele defende o Cônego Felipe, contestando esta suposta ingenuidade que lhe atribuíam. Diz que o sacerdote deixou um testamento “sério, grave, cheio de lucidez e razão”. O escritor sentia-se ligado à tradição da Chácara do Livramento, de sua gente e de sua história e por isso veio a público defender a honra do sacerdote. Morreu o Cônego Felipe em data anterior ao ano de 1812, portanto muito antes do nascimento de Machado. Foi enterrado na igreja de São Bento. Bento Barroso Pereira Nascido em Minas Gerais, o general Bento Barroso Pereira foi um proeminente político de seu tempo. Em 1824, alguns patriotas de Pernambuco tentaram instaurar a república no país. Destacado por Dom Pedro I para combater esta revolução, desempenhou com tamanha eficiência sua tarefa, que a coroa, agradecida, nomeou-o senador no ano de 1826, representando a província de Pernambuco. Tão influente era no meio político, que Bento chegou a ser presidente do senado por mais de 2 anos. De 12 20 de novembro de 1827 até 15 de junho de 1829, assumiu o cargo de Ministro da Guerra, o qual também ocupou no período da Regência Trina. Bento Barroso Pereira veio a falecer no dia 8 de fevereiro de 1837. Morava com a família no casarão da Chácara do Livramento, administrada por ele até a morte de Ana Teresa Angélica da Cunha e Sousa. Com o passamento desta, Bento herdou grande parte das terras, como já ficou dito. O que ainda não se disse - e creio que nenhum dos biógrafos de Machado atentou para este ponto - é que Bento Barroso Pereira teria sido escolhido padrinho do escritor, caso ele não tivesse falecido dois anos antes de Machado nascer. Sabe-se que a esposa do Bento, Maria José de Mendonça Barroso Pereira, então viúva em 1839, foi escolhida para ser madrinha do autor de Quincas Borba. Para padrinho, chamaram um genro de Maria José, Joaquim Alberto de Sousa da Silveira, que era viador do Paço Imperial, Comendador da Ordem de Cristo e Oficial da Ordem Imperial do Cruzeiro. Este incidente biográfico pouca importância teria na vida de Machado, se não fosse um pequeno detalhe. Os pais do futuro escritor, Francisco José e Maria Leopoldina, para agradecer tamanha distinção e homenagear aquelas pessoas tão nobres e generosas, que se dispunham a apadrinhar uma criança de classe social inferior a deles, haviam prometido batizar o menino com o nome dos padrinhos, Joaquim e Maria. É por isso que ele recebeu na pia batismal o nome de Joaquim Maria Machado de Assis. Ora, se Bento Barroso Pereira ainda fosse vivo, é natural que ele fosse o padrinho escolhido. Decorre daí, que o escritor possivelmente não receberia o nome de Joaquim Maria, mas de Bento Maria Machado de Assis. Ele próprio saberia disso, como parece nos querer informar pelas entrelinhas de sua obra. Em Dom Casmurro, um romance em que há muitos elementos biográficos como se verá, Machado não teve dúvidas em crismar seu personagem principal de Bento. Bentinho não seria, portanto, uma máscara sutilmente engendrada para esconder alguns traços ainda obscuros, mas fundamentais para a compreensão da vida do bruxo do Cosme Velho? Fica aí a pergunta, para que outros estudiosos, dotados de mais luzes e novos materiais de pesquisa, possam responder a tal indagação. Maria José de Mendonça Barroso Pereira Maria José era a proprietária da Chácara do Livramento em 1839. Nasceu na cidade de Braga, em Portugal. Há dúvida quanto a data de seu nascimento. O seu assento de batismo diz que ela fora exposta no dia 4 de março de 1773, na casa de um certo Miguel Ferreira. Ela seria, portanto, uma senhora de 66 anos, ao tempo em que batizou o pequeno Machado. O 13 problema é que a sua certidão de óbito dá outra data, registrando que Maria José teria nascido três anos antes, em 1770. Não se sabe em que condições ou quando ela chegou ao Brasil. Informação certa, porém, é que ainda em Portugal, no ano de 1802, Maria José casou-se por procuração firmada na cidade do Porto com um brasileiro, Joaquim José de Mendonça Cardoso. Este retornou a Portugal e o casal teve 2 filhos, um menino com o nome do pai, Joaquim José de Mendonça e uma menina chamada Antônia Margarida de Mendonça Figueira de Azevedo. Em 1823, esta contrai matrimônio com Joaquim Alberto de Sousa da Silveira, o futuro padrinho de Machado de Assis. Conta-se que o filho de Maria José, já moço no Brasil, endoidecera por causa de um amor não correspondido. Dizem que se apaixonou pela mãe de Machado de Assis, que era então agregada na chácara, mas a diferença de classe social parece ter sido uma barreira intransponível para que a união deles se efetivasse. Verdade ou fantasia? O certo é que Machado escreveu um romance chamado Casa Velha, nunca publicado em livro durante a sua vida (apenas em folhetim no jornal de modas A Estação), onde narra uma história com muitas semelhanças àquele episódio. Vamos encontrar Joaquim José de Mendonça Cardoso, primeiro marido de Maria José, ocupando o posto de Desembargador Intendente do Ouro no início do século XIX. Todavia, não deve ter permanecido por muito tempo nesta ocupação, pois veio a falecer no dia 17 de outubro de 1807. Em 1826, tendo mais de 53 anos, Maria José contrai novas núpcias, unindo-se agora a Bento Barroso Pereira, 12 anos mais novo do que ela e que não possuía filhos. A boa senhora gostava muito de Maria Leopoldina, a mãe de Machado, e deve ter se afeiçoado também ao afilhado Joaquim Maria, dispensando ao pequeno carinhos ternos de avó. Morreu em virtude de uma epidemia de sarampo, no dia 11 de outubro de 1845, já setuagenária. Tendo apresentado algumas pessoas de importância capital na biografia de Machado de Assis, que habitavam a Chácara do Livramento, é tempo de escrever meia dúzia de linhas a respeito das origens familiares do escritor. Porém, com a ressalva de que ainda restam muitas lacunas sobre este assunto, tanto do lado paterno, quanto do lado materno e é possível que tais dúvidas nunca sejas esclarecidas. Os avós paternos Os avós paternos de Machado chamavam-se Francisco José de Assis e Inácia Maria Rosa. Ambos eram pardos forros e trabalhavam como agregados na Chácara do Livramento, onde recebiam grande estima por parte de todos. Curiosamente, os dois nasceram de mães negras e escravas que também moravam na chácara, mas se desconhece o paradeiro de seus pais. 14 Sabe-se que pelo menos um deles, ou o pai de Francisco José ou o de Inácia Maria Rosa, não era escravo, daí serem os avós de Machado mestiços e não negros. Gondin da Fonseca conta uma história muito plausível a respeito deste episódio. Baseando-se no fato do casamento de Francisco José de Assis e Inácia Maria Rosa não ter sido celebrado na capela do Livramento, como seria natural, mas num oratório particular longe da chácara, ele acredita que esta mudança inesperada do local do matrimônio só pode indicar uma coisa: que o pai de um dos noivos era sacerdote, provavelmente ligado à chácara. Cita, inclusive, o nome de um eclesiástico, o açorianoAntônio de Azevedo. Este assistiu ao casamento, mudado de endereço por questão de uma conveniência social. Este fato é muito importante e explica por que os avós de Machado eram tão queridos na chácara, haja vista que os próprios padrinhos do enlace, que aconteceu no dia 4 de agosto de 1805, eram membros da nobre família Pinto da Cunha. Avós maternos Os avós maternos de Machado de Assis foram pessoas muito pobres, originárias da ilha dos Açores. Antes de mais nada, é necessário explicar que tanto seu avô, Estevão José Machado, quanto sua avó, Ana Rosa da Câmara, tinham a pele clara. É possível que Ana Rosa trouxesse até olhos verdes ou azuis, como grande parte das mulheres que habitam os Açores. Filho de pais incógnitos, Estevão José Machado era um mocinho de apenas 18 anos, quando resolveu contrair matrimônio com a viúva Ana Rosa, ocorrido no dia 9 de junho de 1809. Ela tinha 5 anos a mais do que ele, ainda muito moça é certo, mas já havia perdido seu primeiro marido, Antônio da Câmara. O que se sabe deste é que deveria ser pescador e teve uma triste sina, pois ao morrer “não foi sepultado por cair no mar, donde nunca saiu”. Viúva em tão tenra idade, a vida de Ana Rosa nos aparece envolta em mistério, pois nada mais dela sabemos. Talvez Machado de Assis ouvisse em sua infância, pela boca de Maria Leopoldina, sua mãe, a triste história da avó, que perdera seu primeiro esposo no mar. Não teria ela permanecido inconscientemente na memória do escritor, como reminiscência querida, de maneira que viesse a justificar a obsessão dele por viuvinhas jovens em sua obra? É uma hipótese admissível, como outras que serão defendidas neste livro, mas que talvez nunca sejam esclarecidas na biografia de Joaquim Maria. Sabe-se que ele tinha verdadeiro pavor pelo mar, tanto que jamais desejou se aventurar em viagens através do oceano. Além do mais, alguns de seus personagens morreram tragados pelas ondas, como o próprio Escobar de Dom Casmurro. Feito a apresentação dos avós do escritor, é tempo de apresentar um breve resumo da vida dos pais dele, Maria Leopoldina e Francisco José. 15 Maria Leopoldina Machado da Câmara Segundo filho do casal Estevão José Machado e Ana Rosa da Câmara, Maria Leopoldina nasceu no dia 7 de março de 1812, na cidade de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, nos Açores. Portanto, a mãe de Machado de Assis era branca e não negra como afirmaram alguns biógrafos. O sempre bem informado Augusto Meyer chegou mesmo a declarar que ela teria olhos azuis, como a maioria das mulheres de São Miguel. Outro erro muito comum que se costuma atribuir à biografia de Maria Leopoldina é alegar que ela era lavadeira. Isso é uma grande bobagem, uma vez que no século XIX cabia apenas às escravas esse tipo de serviço. Não existiam lavadeiras assalariadas. Talvez ela cozinhasse, engomasse, bordasse, fizesse trabalhos de costura e até mesmo lavasse roupa uma vez ou outra, ajudando nas tarefas domésticas, mas daí a dizer que esta era a sua profissão vai uma grande diferença. Há de se ficar bem claro que Maria Leopoldina não era escrava, mas uma pessoa livre, que vivia como agregada na Chácara do Livramento, onde ela era muito estimada pela proprietária, dona Maria José. E como ela teria chegado à Chácara do Livramento? Nas primeiras décadas do século XIX, houve uma grande emigração de açorianos para o Brasil. Isto se deu por dois motivos básicos. Primeiro porque, naquela época, a população existente nas ilhas era extremamente pobre, não havia alimentos para todos e muitos foram obrigados a abandonar suas famílias para não morrerem de fome. Segundo, porque a Inglaterra passou a colocar uma série de empecilhos para dificultar cada vez mais o tráfico de escravos africanos, chegando mesmo a perseguir os navios negreiros. O rendoso comércio de negros já não era mais o mesmo e a saída encontrada foi buscar “trabalhadores livres” açorianos para substituir a falta de mão-de-obra na lavoura. Isto porque havia uma lei que não permitia o tráfico de escravos, mas autorizava o transporte de açorianos nos mesmos navios negreiros, quase sempre em condições desumanas. As pessoas se amontoavam feito animais em porões fétidos, na mais absoluta falta de higiene, e assim atravessavam o oceano que parecia não ter mais fim. Esse modo de comércio transformou-se numa alternativa rendosa para os traficantes. Quem estivesse interessado em contratar algum trabalhador desembarcado no Brasil, pagava ao capitão do navio a quantia estabelecida por ele, ou seja, o valor da passagem. Não se tratava, portanto, de uma compra simples como era feito com relação aos escravos e, em teoria, o trabalhador açoriano não pertencia a ninguém. Todavia, era uma liberdade simplesmente no nome. O contrato estabelecido é que ele teria de trabalhar para o senhor até saldar sua dívida, que, em muitos casos, durava a vida toda. Inúmeras açorianas caíram na prostituição e fica muito evidente que a situação desse emigrante não era em nada diferente que a de um escravo. 16 Acredita-se que Maria Leopoldina tenha vindo para o Brasil numa dessas levas de açorianos, espremida como gado num navio negreiro. Uma das questões mais controversas em sua biografia é saber se Maria Leopoldina chegou ao Brasil já moça ou ainda menina. A opinião dos estudiosos divide-se radicalmente quanto a isso e creio que nunca haverá um consenso, uma vez que não há dados concretos sobre este assunto. Por minha parte, estou inclinado a acreditar que ela chegou aqui por volta dos três anos, ou seja, em torno de 1815. Esta hipótese, defendida por alguns comentadores da obra de Machado, é fundamentada por dois fatos principais. Gondin da Fonseca, que esmiuçou a vida de Machado por todos os lados, chegando, inclusive, a viajar para os Açores, encontrou o assento de batismo da mãe do escritor na igreja de São Sebastião, localizada na cidade de Ponta Delgada. Curiosamente, os pais dela batizaram a menina simplesmente como Maria e mais nada. Sem qualquer sobrenome. Ora, o Leopoldina que lhe foi acrescentado posteriormente só pode ter sido em homenagem a Arquiduquesa da Áustria, D. Leopoldina, primeira mulher de D. Pedro I. A imperatriz chegou ao Brasil em 1817, ano em que muitas crianças receberam na pia batismal o seu nome, por estar na moda. A fim de colaborar ainda mais com esta opinião, basta lembrar que Maria Leopoldina sabia ler e escrever. Praticamente todos açorianos que vieram para o Brasil no início do século eram analfabetos. Por isso, acredita- se que ela tenha aprendido a ler e escrever ainda menina na chácara do Livramento, aos cuidados de dona Maria José. Ignora-se como Maria Leopoldina ligou-se à gente da chácara, nem se ainda devia algum dinheiro a alguém pelos custos da viagem. O certo é que granjeou grande estima de dona Maria José, que a tratava como uma filha. Aos 14 anos esteve para se casar, porém o consórcio acabou não se realizando por algum motivo ignorado. Três anos depois, encontramos a menina noiva novamente e mais uma vez frustraram-se os seus planos nupciais (nesta oportunidade, o noivo teria sido Joaquim José de Mendonça, filho de Maria José). A terceira tentativa de casamento ocorreu aos 21 anos e também dessa vez não houve matrimônio. Quem defende essa idéia é ainda Gondin da Fonseca, afirmando que Maria Leopoldina já se via solteirona e somente por isso aceitou a proposta de casamento do pai de Machado. Segundo Gondin, ela casou-se aos 26 anos com Francisco José por medo da solidão e sem nenhum amor a ele. Mas há quem conteste este julgamento, como o francês Jean-Michel Massa, também outro grande estudioso da vida de Machado de Assis. De qualquer forma, os pais do escritor casaram-se no dia 19 de agosto de 1838 na capela do Livramento. O casal teve dois filhos: uma menina, que foi batizada com o mesmonome da mãe, Maria, e um menino, Joaquim Maria, que viria a se tornar um dos maiores escritores da literatura mundial. O pequeno era muito apegado à 17 mãe. Ela contava-lhe histórias tão lindas, que o menino ouvia sempre curioso e atento. Foi Maria Leopoldina quem lhe ensinou as primeiras letras. Alguns anos depois, Machado se lembraria dela numa poesia: MINHA MÃE Quem foi que o berço me embalou na infância entre as doçuras que do empíreo vêm? e nos beijos de célica fragrância velou meu sono puro? Minha mãe! Se devo ter no peito uma lembrança, é dela, que os meus sonhos de criança dourou: é minha mãe! Quem foi que ao entoar canções mimosas cheia de um terno amor, - anjo do bem, minha fronte infantil encheu de rosas de mimosos sorrisos? Minha mãe! Se dentro do meu peito macilento, o fogo da saudade me arde, lento, é dela: minha mãe! Qual o anjo que as mãos me uniu outrora e as rezas me ensinou que da alma vêm? e a imagem me mostrou que o mundo adora, e ensinou a adorá-la? Minha mãe! Não devemos nós crer num puro riso desse anjo gentil do paraíso que chamou-se uma mãe? Por ela rezarei eternamente, que ela reza por mim no céu também; nas santas rezas do meu peito ardente repetirei um nome: minha mãe! Se devem louros ter meus cantos d’alma, ó! do povir eu trocaria a palma para ter minha mãe! Depois dessa poesia, Machado silenciou e quase mais nada escreveu sobre ela pelo resto de seus dias. Para o escritor, deveria ser uma recordação muito dolorosa lembrar-se de sua querida mãe, que partira desta vida ainda 18 tão jovem, com apenas 36 anos de idade. No século XIX, a tuberculose era uma doença que matava sem piedade, escolhendo indistintamente suas vítimas em qualquer classe social. Maria Leopoldina apanhara a tísica e morrera no dia 18 de janeiro de 1849, quando o pequeno Joaquim Maria tinha apenas nove anos. Este fato deixou profundas marcas na existência de Machado. A dor provocada pela morte de uma pessoa tão próxima feriu irremediavelmente a alma daquele pobre menino indefeso, agora desprotegido e entregue à crueldade do mundo. Logo compreendeu que tudo na vida era transitório e inseguro. O que prova que Maria Leopoldina seria uma pessoa muito querida na Chácara do Livramento, é que ela foi enterrada no Convento de Santo Antônio, bem ao lado de dona Maria José, a madrinha de Machado. Francisco José de Assis Desconhece-se quantos filhos tiveram o casal Francisco José de Assis e Inácia Maria Rosa, os avós paternos do escritor. Sabe-se que no ano de 1806, nasce-lhes um robusto menino, que foi batizado no dia 11 de outubro do mesmo ano na igreja de Nossa Senhora do Rosário e não na capela do Livramento, como era de se esperar. Isto levou alguns biógrafos a imaginarem que os avós de Machado poderiam já não morar na chácara por essa época. Curiosamente, a criança recebeu na pia batismal o mesmo nome do pai, Francisco José de Assis. O menino teve por padrinho o padre Antônio de Azevedo, aquele velho sacerdote açoriano, que assistiu ao casamento dos avós do escritor e imagina-se que poderia ser pai de algum deles. Já a madrinha do pequeno foi ninguém menos do que Nossa Senhora das Dores. Francisco José era pardo forrado e não negro. No século XIX, não era comum que os escravos recebessem alforria gratuitamente, uma vez que eles valiam dinheiro, sendo bens preciosos para seu proprietário. Era costume, sim, forrar os escravos bastardos, os filhos do amor ilegítimo entre um senhor e sua escrava. Este fato colabora ainda mais para reforçar a hipótese de que Francisco José de Assis (o avô) - ou Inácia Maria Rosa - seria filho de padre. O menino foi crescendo na chácara e sua infância não deve ter sido muito diferente da de outros meninos pobres do bairro. Como Maria Leopoldina, Francisco José também recebia grande estima por parte de todos no Livramento, uma vez que era “quase” da família, descendente direto do sacerdote açoriano. Aí lhe ensinaram a ler, escrever, contar e o rapazinho aprendeu o necessário para que pudesse ter sucesso numa profissão de homens livres. Escolheu ser pintor de casas e dourador. Cedo conseguiu quem lhe ensinasse os rudimentos da pintura e o aprendiz dominou bem rápido as 19 técnicas necessárias à profissão. Constantemente era requisitado para caiar igrejas, retocar detalhes em afrescos, pintar o solar de alguma família rica e aristocrática. Não há notícias de como Francisco José conheceu Maria Leopoldina. Alguns biógrafos afirmaram que, por essa época, ele já não morava mais no Livramento e, muito provavelmente, encontrou-se com ela alguma vez em que foi à quinta prestar seus serviços. Particularmente, creio que eles já se conheciam desde pequenos e, se não eram amigos íntimos, ao menos deveriam se ver com certa freqüência na chácara. Um dia, Francisco José deparou-se com Maria Leopoldina caminhando entre os pomares ou os jardins da casa. Achou-a mais bela que de costume, fresca, sadia, uma mulher com todos os predicados para se tornar uma excelente esposa e mãe de família. Trocaram sorrisos espontâneos e algumas palavras amáveis. Depois, passaram a se encontrar com mais constância pelos cantos silenciosos e solitários da chácara. Maria Leopoldina já estava com 26 anos, via-se quase como uma solteirona, e deve ter aceitado de bom grado a corte que aquele rapaz simpático vinha lhe fazer com tanto respeito. Provavelmente, dona Maria José, futura madrinha de Machado, dava-lhe conselhos para aceitar as honradas intenções daquele moço trabalhador e honesto. Com amor ou sem ele, Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado da Câmara casaram-se no dia 19 de agosto de 1838, na pequena capela da chácara e foram morar numa casinha da rua Nova do Livramento, número 131, rua que fora aberta alguns anos antes, em 1818. Os amigos de Francisco José consideravam-no um homem inteligente e até com alguma bagagem de leitura. Sabe-se que no ano de 1845, ele era um dos assinantes do Almanaque Laemmert. Tinha, portanto, um pouco mais de instrução que o grosso dos homens de sua classe social. Por isso mesmo, não queria que Machado seguisse a sua profissão. Isso de levar pincéis e latas de tintas para todo lado, carregar escadas nas costas, era um trabalho muito desgastante. O filho iria para o comércio! Quem sabe não arranjaria lugar para ele como caixeiro em alguma loja da cidade? Só não queria que o pequeno tivesse o seu mesmo destino. Francisco José era uma pessoa muito religiosa e, aos domingos, fazia questão de levar toda a família para assistir missa na capela do Livramento. Decorre daí que, desde muito pequeno, Machado de Assis freqüentou igrejas e templos, aprendendo cedo os rituais e ofícios cristãos. Com a morte de Maria Leopoldina, em 1849, Francisco José viu-se em dificuldades para criar seu filho, que tinha apenas dez anos incompletos. A solução encontrada foi unir-se a outra mulher. Ele sabia que a madrasta jamais substituiria a mãe verdadeira, mas poderia ser de grande ajuda para completar a educação do menino e auxiliar nas tarefas domésticas. Assim, Francisco José, já considerado velho para a época, liga-se sem sacramentos a 20 Maria Inês da Silva, que era doceira e negra. O casal viveu em concubinato por algum tempo, até que se casaram definitivamente no dia 18 de junho de 1854, tendo ela 33 anos de idade, enquanto ele ia pelos seus 48 anos. O enlace realizou-se na igreja do Engenho Novo, próximo ao bairro de São Cristóvão, e por isso se acredita que eles já não morassem mais na Chácara do Livramento. Afirmam alguns estudiosos machadianos que o menino teria sofrido muito, vendo sua mãe substituída por outra mulher. Se assim foi, creio que o sofrimento de Machado limitou-se apenas aos primeiros meses da união. MariaInês revelou-se uma excelente madrasta para ele, dedicada e atenciosa. Muito provavelmente depois da morte de Maria Leopoldina, a família teve de se mudar para São Cristóvão, num sobradinho da rua de São Luís Gonzaga. Naquele tempo, São Cristóvão era um bairro de subúrbio, para onde se ia de barca. Toda noite, Francisco José saía de casa para conversar com um vigário, com quem fizera boa camaradagem. É possível que numa destas palestras, o sacerdote tenha sugerido ao amigo que trouxesse seu filho para ser coroinha. Talvez em troca desta ajuda na igreja, o vigário até lhe arranjasse alguma pessoa com quem o menino pudesse tomar aulas, visto que ele era inteligente e muito estudioso. Francisco José de Assis faleceu no dia 22 de abril de 1864, deixando viúva Maria Inês da Silva, a boa madrasta de Joaquim Maria. Maria Inês da Silva Muito pouco se sabe sobre a madrasta de Machado de Assis. Maria Inês teria nascido no Rio de Janeiro em 1821 e era cozinheira e doceira de profissão. Durante algum tempo, trabalhou no Colégio das Meneses, uma escola para meninas, onde ela fazia balas. Uniu-se a Francisco José de Assis, provavelmente algum tempo depois da morte de Maria Leopoldina. Não teve filhos e talvez por isso mesmo tenha se afeiçoado tanto a Machado de Assis. Josué Montello, apoiando-se em Luiz Viana Filho, acredita que o escritor não se deu bem com a madrasta, tese contestada por Gondin da Fonseca. Segundo este autor, Maria Inês teria sido para seu enteado uma segunda mãe. É provável que, antes de colocarem Machado na escola pública, ela tenha servido de mestra ao pequeno, ensinando-lhe o pouco que deveria saber, uma vez que o menino mostrava grande interesse pelo estudo. À noite, quando Francisco José saía para conversar com o vigário, Maria Inês permanecia em casa, o pequenino quarto iluminado por uma luz frouxa, dando-lhe lições elementares de álgebra e português. Porém, em pouco tempo a bondosa madrasta já não teria mais o que ensinar a Machado. O escritor não deve ter vivido muito tempo com ela. Quando entrou na adolescência, Machado logo passou a procurar emprego, a fim de ajudar 21 na renda da família, uma vez que o salário de seu pai deveria ser baixo e incerto. E em breve deixaria a casa da rua de São Luís Gonzaga, seduzido pelos encantos da cidade. Machado, portanto, talvez tenha vivido com a madrasta por cerca de uns cinco anos e ela ter-lhe-ia dedicado um zelo maternal, sacrificando-se pelo menino. Reza a lenda, que o escritor abandonara a pobre madrasta depois que ele começou a ficar famoso e nunca mais havia retornado para lhe fazer uma visita. Deve-se essa crença injusta, sobretudo, a uma carta publicada pelo professor Hemetério dos Santos, repleta de impropérios contra o autor de Quincas Borba. Na verdade, Machado não abandonou Maria Inês, a quem ele sempre auxiliava financeiramente quando podia. Tanto é verdade que não a abandonou, que, ao saber de sua morte, fez questão de se despedir da querida madrasta. Quem conta esta anedota é o escritor Coelho Neto: “Estávamos palestrando à porta do Garnier, num grupo, como a miúdo fazíamos. Machado de Assis, mais nervoso que de costume, perguntou-me se tinha algum compromisso naquela tarde. Como não o tivesse, perguntou-me se queria acompanhá-lo a um enterro... Conversaríamos no carro... Aceitei. A vitória levou-nos a um casebre pelos lados de Vila Isabel. Machado de Assis apeou e eu fiquei no carro à sua espera. Depois de pequena demora voltou, e acompanhamos o humilde enterro ao cemitério.” Somente após algum tempo, Machado lhe disse: “Era minha mãe.” O crítico Agrippino Grieco acredita que esta história contada pelo Coelho Neto seja romanceada e talvez não tenha se passado da maneira como ele a narra. De qualquer forma, mostra que Machado trazia Maria Inês dentro do coração, tratando-a por mãe. É sabido que Joaquim Maria não falava de seu passado nem com os amigos mais íntimos. O próprio Mário de Alencar escrevera sobre o mestre: “Machado foi reservado e escondia em segredo os anos da infância e adolescência”. Deixo aqui algumas questões problemáticas sobre a sua biografia. Teria o escritor revelado à Carolina as suas origens humildes? Teria Machado de Assis convidado a madrasta Maria Inês para o seu casamento com Carolina? E esta, chegara a conhecer Maria Inês em vida? 22 Novamente, encontramo-nos diante de perguntas que talvez nunca terão uma resposta satisfatória. Maria Inês passou os últimos quatorze anos de sua vida na casa de Eduardo Marcelino da Paixão e foi morrer já bem velha, aos setenta anos de idade, no dia 2 de julho de 1891. Citei o nome do professor Hemetério dos Santos e sua famosa carta, a partir da qual se iniciou a tradição de que Machado teria sido um enteado ingrato. Aproveito para abrir aqui um parêntese e fazer uma referência a Hemetério e este episódio. Hemetério dos Santos Professor de escola normal, gramático e poeta sem qualquer relevo, Hemetério dos Santos nasceu no Maranhão em 1858. Seu nome hoje estaria repousando de maneira justa no esquecimento, se não fosse uma carta que ele redigira contra Machado de Assis, acusando-o das maiores perversidades. O corpo do escritor nem esfriara na sepultura, quando o maranhense escreveu na Gazeta de Notícias de 29 de novembro de 1908 um texto cheio de acusações covardes, que nunca em vida de Machado ele teria coragem de publicar. Negava-lhe não só a grandeza da obra, como também lançava diversas acusações sobre o seu caráter. Em suma, desancava-o impiedosamente e, por causa desse artigo, a imagem do escritor por muito tempo foi pintada como a de um homem insensível às questões sociais de seu tempo. Hemetério não se conformava que um literato da estatura de Machado de Assis, tido por todos como o chefe incontestável da literatura nacional, não se batesse publicamente pela causa da abolição, como Patrocínio ou Silva Jardim. Hemetério dos Santos era um negro retinto, que andava pela rua do Ouvidor de fraque e óculos, fumando charutos enormes. Deveria parecer uma figura extremamente grotesca aos olhos do povo e a piada corriqueira do tempo era dizer a seu respeito, quando o viam caminhando desajeitado pelas ruas: lá vai um charuto fumando outro! Publicou na velhice um livro medíocre de versos, intitulado Frutos Cadivos e costumava assinar seu nome de maneira boboca: M Etério. O polemista Carlos de Laet chegou certa vez a lhe chamar de “negrinho burro”. Por que Hemetério dos Santos teria toda essa revolta guardada contra Machado de Assis? Na certa, o autor de Dom Casmurro deve ter dito palavras pouco louváveis a respeito de alguns de seus versos. Talvez eles se encontrassem na Livraria Garnier e Machado, solicitado a opinar a respeito de alguma poesia do gramático, tenha dito a verdade... 23 Certo é que havia muita gente que não tinha Hemetério em grande conta. A respeito dele, o poeta Emílio de Meneses publicara os seguintes versos: H. de S. O preto não ensina só gramática. É pelo menos o que o mundo diz. Mete-se na dinâmica, na estática E em muitas coisas mais mete o nariz. Dizem que, quando ensina matemática, As lições de mais b, de igual a x, Em vez de em lousa, com saber e prática, Sobre a palma da mão escreve a giz. Uma aluna dizia: - Este Hemetério Do ensino fez um verdadeiro angu, Com que empaturra todo o magistério. E é um felizardo, o príncipe zulu. Quando manda um parente ao cemitério, Tem um luto barato: fica nu. Eis alguns trechos da carta de Hemetério dos Santos, em que o maranhense tece afirmações levianas contra Machado de Assis: “Eu conheci essa boa mulata velha (Maria Inês), comendo de estranhos, com amor, e conforto máximo, chorando, porém, pelo abandono nojoso em que a lançara o enteado de outrora,nunca mais a procurando desde a sua mudança de São Cristóvão, lugarejo de operários, para o opulento nicho de glória nas Laranjeiras.” “A sua poesia foi tão incolor, como os seus trabalhos ulteriores...” “A arte de Machado de Assis (...) é uma arte doentia, de uma perversidade fria, não sentida diretamente do meio, mas copiada de leituras pacientemente ruminadas, de romances franceses e ingleses...” 24 “O Brás Cubas e o Dom Casmurro, tantas vezes lidos e relidos, pelo autor, seriam um belo tratado das misérias humanas, um “abc” doirado para os mancebos libertinos, se não tivessem tantas e tão variadas incorreções de forma e de estilo.” Pelos exemplos citados, vê-se que o professor Hemetério dos Santos nutria um ódio antigo pelo autor de Esaú e Jacó. Fecho aqui o parêntese e passo a descrever episódios ligados aos primeiros anos de Machado de Assis. A infância de Machado de Assis Quando Machado nasceu, o Brasil independente ainda não era maior de idade. D. Pedro II não tinha subido ao trono e o país se encontrava sob o período da Regência. Joaquim Maria Machado de Assis veio ao mundo numa sexta-feira gelada, primeiro dia do inverno, a 21 de junho de 1839. Maria Leopoldina, sua mãe, deu à luz na Chácara do Livramento, cidade do Rio de Janeiro, a um menino de três quilos, segundo nos informa o escritor Monteiro Lobato. Era o primeiro filho dela e de seu marido Francisco José, um casal de gente muito pobre. Eles haviam se casado no ano anterior e viviam como agregados na chácara do Livramento, cuja proprietária era uma rica senhora portuguesa, dona Maria José de Mendonça Barroso Pereira. Curiosamente, houve certa demora para realizarem o batismo da criança e isto prova que Machado nasceu saudável. Caso contrário, seus pais teriam se apressado em levá-lo à pia batismal, com receio de que ele pudesse morrer pagão. O batizado só ocorreu quase cinco meses após o nascimento, na capela da chácara, a 13 de novembro de 1839, conforme está assentado em seu registro de batismo no livro n. 8, folha 167, da Paróquia de Santa Rita. Foi o padre Narciso José de Morais Marques quem pôs os santos óleos sobre a cabeça do menino, que teve por padrinhos gente nobre e muito importante: Maria José de Mendonça Barroso Pereira e seu genro, o viador do paço imperial Joaquim Alberto de Sousa da Silveira. Pouco se sabe sobre os primeiros anos de vida do escritor. A maioria das informações corresponde a generalidades e serve para qualquer criança pobre do tempo. A fim de preencher este vazio biográfico, os estudiosos de Machado apelaram para conjecturas possíveis, completando as lacunas por conta própria. A verdade é que a infância de Joaquim Maria é quase que totalmente desconhecida, uma vez que ele nunca se pronunciou a respeito desse período, como se quisesse esquecer suas origens humildes. Alguns dados passaram à tradição através de gente que “ouviu dizer” pela boca dos mais velhos. Outros foram tirados diretamente do que Machado escreveu em contos, crônicas, romances, meras inferências nem sempre confiáveis. Por 25 isso, não passam de deduções extraídas da obra machadiana e apoiar a biografia de alguém em elementos ficcionais deixados pelo escritor em seus textos corresponde a uma atitude pouco científica e ainda menos fiel à realidade. O próprio crítico Agrippino Grieco afirmou que muito do que foi dito a respeito da infância e adolescência de Machado de Assis iria por água abaixo, caso algum dia aparecessem páginas em que o escritor confessasse as suas memórias. Com certeza, ele haveria de ficar pasmado com tudo o que dele já se disse e talvez desse boas gargalhadas. Até entregador de roupas lavadas pela madrasta já afirmaram que ele teria sido nos anos de sua meninice. Morava Joaquim Maria com seus pais numa casa da rua Nova do Livramento, 131. A família era pobre, mas não se pode dizer que miserável. Contudo, o menino não sofreu com a pobreza em seus primeiros anos. Grande parte do tempo, passava na casa da madrinha, onde lhe davam guloseimas e frutas. Ali deve ter visto muitas figuras da burguesia imperial e afeiçoou-se às formalidades do tempo. Foi no convívio com esta sociedade abastada, que Machado desenvolveu o gosto de escrever sobre a elite, seus costumes, suas ambições e mediocridades. Período vivido intensamente no que tange às impressões do mundo, Machado colheu na infância um rico manancial de sensações que mais tarde haveria de espalhar por toda sua obra. Muitos de seus personagens, como Capitu e Flora, saíram dessas reminiscências infantis. Depois de que Lúcia Miguel Pereira, uma das primeiras biógrafas de Machado, afirmou que em criança ele fora um menino doentio e teve umas “coisas esquisitas”, virou clichê dizer que o pequeno Joaquim Maria teria sido um garoto enfermiço, padecendo de tonturas e todo tipo de achaque. Pintam-no como um menino raquítico, gago e feio, que vivia apartado dos outros moleques do morro, vagando sozinho pelos bairros do Livramento, Conceição, Saúde, Gamboa e São Cristóvão. Quanta mentira! Teve vertigens na infância, é certo, primeiros sintomas da epilepsia que iria lhe flagelar a existência, manifestada principalmente em anos da maturidade. Tanto era saudável, que não adoeceu de sarampo, que levou sua irmã e sua madrinha para a cova, tampouco se contaminou com a tuberculose da mãe, apesar da convivência. Também não foi vítima de epidemias como a febre amarela, que tanta gente matou entre 1851 e 1853, nem adoeceu em virtude da cólera. Enfim, fora um garoto alegre como tantos outros e gostava de brincar no morro com os companheiros da mesma idade. Talvez não tivesse muitos amigos, como afirmaram alguns, não apenas porque ele era tímido e introvertido por natural temperamento, como também porque o bairro era muito pouco povoado. De qualquer forma, teve uma infância tranqüila e simples. Gostava de arruar à toa, “caçar lagartixas” e dizem que sua maior distração seria caminhar pelo morros e pelas praias. 26 Quando ele foi para a escola pública, talvez a escola do Costa que aparece em um de seus contos, localizada ao pé do Morro do Livramento, é possível que ele já teria aprendido a ler com sua mãe. Menino estudioso, o pequeno Joaquim Maria aprendia fácil e tudo que lhe ensinavam era insuficiente para satisfazer a sua curiosidade intelectual. Talvez tenha sido na casa da madrinha que Machado tomara contato pela primeira vez com livros. O velho solar haveria de ter uma biblioteca - como aquela citada no romance Casa Velha - e o menino passaria trancado lá dentro grande parte do tempo, folheando aqueles livros raros, cheios de gravuras e histórias maravilhosas. Provavelmente foi lá que o pequeno viu o Almanaque Laemmert e, tomado por sua curiosidade viva, tenha insistido com o pai para fazer uma assinatura. De fato, no ano de 1845, constatamos que Francisco José de Assis era um dos assinantes do almanaque, talvez até mesmo fosse um presente da madrinha para o afilhado... Alfredo Pujol, primeiro biógrafo efetivo de Machado, afirma erroneamente que o menino teria sido sacristão, mas quanto a isso não se encontrou qualquer documento. Talvez Joaquim Maria tenha sido coroinha, ajudado em missas, tocado sino na igreja da Lampadosa, o que é bem diferente de ser sacristão. De fato, ele fala muito em sinos na sua obra e o próprio Elói Pontes, outro de seus biógrafos, não acha um despautério que Machado tenha sido sineiro em criança. Numa crônica, o escritor diz que em toda sua vida havia conhecido apenas três sineiros, sendo que um em particular ele afirmou que não revelaria a identidade. Este pudor com que trata o assunto não significa que Machado estaria escondendo a si próprio como sineiro? Fato curioso é que na infância de Machado, as quatro mulheres com quem ele conviveu chamavam-seMaria: Maria José, a madrinha, Maria Leopoldina, a mãe, Maria Inês, a madrasta e Maria, a irmã. A respeito das três primeiras já se disse alguma coisa neste livro. Resta dizer algo da irmã de Joaquim Maria. A irmã de Machado de Assis Maria Machado de Assis, irmã do escritor, era dois anos mais nova do que ele e nascera no dia 3 de maio de 1841, também na Chácara do Livramento. Pouco tempo, porém, os dois conviveram juntos, uma vez que a menina apanhou sarampo e veio a falecer vítima dessa moléstia, no ano de 1845, com apenas quatro anos de idade. A mesma epidemia levara também naquele ano terrível a madrinha de Machado, Maria José. Com toda certeza, estas duas mortes tão próximas impressionaram muito o pequeno Joaquim Maria, principalmente a de sua irmã, que ele cantou em versos juvenis, com epígrafe de seu amigo Augusto Emílio Zaluar: 27 UM ANJO (à memória de minha irmã) Se deixou da vida o porto teve outra vida nos céus. A. E. Zaluar Foste a rosa desfolhada na urna da eternidade pra sorrir mais animada, mais bela, mais perfumada lá na etérea imensidade. Rasgaste o manto da vida e anjo subiste ao céu como a flor enlanguescida que o vento pô-la caída e pouco a pouco morreu! Tua alma foi um perfume erguido ao sólio divino; levada ao celeste cume, com os anjos oraste ao Nume nas harmonias de um hino. Alheia ao mundo devasso passaste a vida sorrindo; derrubou-te, ó ave, um braço mas abrindo asas no espaço ao céu voaste, anjo lindo. Esse invólucro mundano trocaste por outro véu; deste negro pego insano não sofreste o menor dano que tua alma era do céu. Foste a rosa desfolhada na urna da eternidade pra sorrir mais animada mais bela, mais perfumada, lá na etérea imensidade. Rio, outubro de 1855 28 Entre os dez e quinze anos Praticamente nada deste período se sabe a respeito de Machado de Assis, uma vez que em seus textos ele não se refere a esta fase de sua vida, silenciando por completo os episódios que lhe sucederam. Há, porém, muita especulação por parte dos biógrafos. Afirmam que, além de coroinha, o menino teria estudado num colégio feminino, aprendido francês com um padeiro, tomado aulas particulares com um padre camarada. Sabe-se que Francisco José havia arranjado um serviço para o rapazinho, colocando-o como caixeiro (balconista) em uma papelaria da cidade, mas o trabalho não agradou a Joaquim Maria, que nele permaneceu por apenas três dias. Não apresentava temperamento para o comércio e desde cedo ele tinha certeza de que o seu destino estaria ligado às letras, apesar da oposição de seu pai. Machado havia entendido que a única maneira dele conseguir mudar de vida seria através do estudo. Tem plena consciência de que a sociedade está dividida entre homens que possuem belas quintas, roupas novas e perfumadas, almoços e jantares fartos, sempre admirados e respeitados pelos seus pares, e homens que passam a vida toda se esfalfando num trabalho degradante, sujos, mal vestidos e mal alimentados. Bastava-lhe comparar como era a vida na casa de sua madrinha rica e a pobreza humilde que via na modesta casa de seus pais. Logo compreendeu que o destino não era justo e que para subir na vida e ter uma posição de destaque na sociedade, ele precisaria estudar com afinco e determinação, pois somente assim conseguiria atingir seus objetivos. Machado era um menino ambicioso, queria ser alguém, queria fazer parte daquele mundo que ele observava de longe e o único trampolim social que via diante de si era a instrução. Dotado de uma curiosidade intelectual inata, o rapazinho ia lendo tudo que lhe caía às mãos, buscando ajuda e conforto nos livros, os quais muito amava. Tanto que a única imagem que temos de Machado adolescente é dele segurando um livro, muito concentrado na leitura, enquanto vinha na barca de São Cristóvão para o centro. Talvez viesse para a Praça da Constituição - que é como se chamava ao tempo o Largo do Rossio - olhar a vitrine das livrarias, admirar aquele mundo urbano, cuja vida pulsava repleta de promessas e esperanças, tão próximo e ao mesmo tempo tão distante da periferia pobre em que vivia. Machado baleiro no Colégio das Meneses Maria Inês era excelente doceira e trabalhava no Colégio das Meneses, uma escola feminina que se localizava em São Cristóvão. Os quitutes preparados pela madrasta de Machado eram muito disputados pelas meninas da escola, que assim ajudava o marido, completando o orçamento 29 doméstico. Joaquim Maria também auxiliava no que podia, saindo a vender os doces com o tabuleiro na mão ou entregando as encomendas solicitadas pelos clientes. Talvez não fosse o melhor dos vendedores, uma vez que falava baixo e era um tanto tímido. Por ser muito querida pelas donas do colégio, Maria Inês conseguiu fazer um acordo com elas. Pediu-lhes que deixassem o enteado assistir as aulas, no fundo das salas ou ainda nos corredores, silencioso atrás de uma porta, e em troca o menino trabalharia com ela no colégio, vendendo balas. A princípio, estranharam o pedido e não se mostraram muito animadas a aceitar a proposta. Afinal, aquela era uma escola da alta sociedade para meninas finas e educadas e Joaquim Maria, apesar de tímido e recatado, não passava de um molecote de morro que deveria causar péssima impressão àquelas delicadas meninas burguesas e enjoadas. Tanto instou Maria Inês, que ela conseguiu convencer as generosas proprietárias do colégio, com a condição de que o menino não se misturasse com as alunas. Assim foi feito e logo elas perceberam o quanto o rapazinho era interessado e estudioso. Deve ter chegado até a receber livros emprestados na escola. Mas a convivência com meninas ricas marcaria para sempre em seu espírito, e de maneira profunda, a existência das diferenças sociais. Muitas alunas retornavam para suas casas em luxuosas Vitórias ou Berlindas, enquanto ele e sua madrasta tinham de caminhar a pé, após um dia estafante de trabalho. O que mais lhe magoava, porém, era a indiferença com que as meninas lhe compravam as balas na hora do recreio. Ignoravam-no por completo, machucando-lhe o amor-próprio de menino extremamente sensível. Quantas vezes não teria desejado mostrar a elas que também ele era inteligente, que apesar de pobre tinha brios e dignidade e, se Deus ajudasse, haveria de ser alguém na vida. Dentre as meninas do colégio, havia uma que se chamava Joana Maria e que viria a fazer parte da vida de Machado em anos vindouros. Ela se casaria em segundas núpcias com Miguel Xavier de Novais, irmão de Carolina e, portanto, viria a ser concunhada do escritor. O forneiro francês e Madame Gallot Provavelmente depois de ter freqüentado durante algum tempo o Colégio das Meneses, Joaquim Maria começou a aprender francês. A língua lhe seduzia, não apenas por ser, no século XIX, um meio de expressão culto e sofisticado das elites, como também pela própria beleza, sonoridade e clareza inerente ao idioma. O universo intelectual exprimia-se em francês e o jovem Machado sabia que para continuar com seu projeto de ascensão social, o aprendizado da língua lhe seria de extrema necessidade. Muito jovem ele dominou o idioma, mas não se sabe ao certo onde o aprendeu e tampouco 30 quem foram os seus mestres. É possível que tenha tomado o primeiro contato com a língua no próprio Colégio das Meneses. Segundo a lenda, Machado teria aprendido o idioma com um forneiro que trabalhava numa padaria em São Cristóvão, cuja proprietária seria uma certa madame Gallot. Além de sua simplicidade e delicadeza naturais, Joaquim Maria costumava cativar as pessoas através de sua simpatia. Talvez tenha angariado a amizade deste forneiro, quando aí fosse comprar pão. Enquantoesperava sair a nova fornada, ficava conversando com o francês. O homem, saudoso da pátria, devia contar suas histórias ao rapazinho, que se dispunha a ouvi-lo com atenção. Vendo-o interessado nas coisas de França, é possível que o forneiro tenha lhe ministrado algumas aulas gratuitas, simplesmente pelo prazer de ensinar e recordar assuntos caros ao seu coração. Ninguém conhece o nome deste forneiro. Sabe-se que a padaria pertencia a uma certa madame Gallot, mas muitos estudiosos de Machado contestam essas informações, uma vez que não há qualquer prova a respeito disso. Não existia nenhuma padaria com esse nome naquela época e a própria rua de São Luís Gonzaga, onde alguns biógrafos afirmaram que a padaria se localizava, somente recebeu este nome em 1863, quando Machado já teria 24 anos. Lúcia Miguel Pereira declarou que o escritor freqüentava a casa de uma família de francesas, onde ia conversar para adquirir prática na expressão oral da língua. Não parece verdade, uma vez que Joaquim Maria era tímido. Deve, sim, ter tirado muitas dúvidas com seu amigo Charles Ribeyrolles, jornalista e exilado francês, que havia lutado nas barricadas de 1848 e aqui aportou no final da década de 1850. Por falar nesta revolução, Astrojildo Pereira levanta a hipótese de que Madame Gallot e o forneiro podem também ter sido exilados franceses de 1848. Padre Silveira Sarmento Depois que Machado de Assis deixou a escola pública, passou a receber lições particulares do padre Silveira Sarmento. Mário de Alencar afirmou que o sacerdote teria ministrado aulas a Joaquim Maria até quando este tinha a idade de quatorze ou quinze anos. Ignora-se como eles se conheceram. O mais provável é que o pai de Machado, Francisco José, grande amigo de vigários, tenha convencido o padre Silveira Sarmento a tornar-se preceptor de seu filho, e em troca, o rapazinho se comprometeria a ajudar na missa. Outra hipótese é que Machado já fosse coroinha na igreja da Lampadosa, onde viria a conhecer o sacerdote. Este, vendo que Joaquim Maria era inteligente e interessado em livros, teria se colocado a sua disposição para lhe ensinar de graça. 31 Sabe-se que o padre Silveira Sarmento era cura da capela de São João Batista, na Quinta da Boa Vista e deve ter ensinado a Machado “latim, doutrina e história sagrada”, como o padre Cabral ensinava Bentinho em Dom Casmurro. Não é improvável que os dois discutissem as escrituras e é muito plausível que tenha sido o padre Silveira Sarmento quem apresentara o Eclesiastes a Machado, uma de suas leituras preferidas, à qual ele retornou durante toda sua vida. O coroinha Joaquim Maria Foi um dos amigos da juventude de Machado de Assis, Francisco Ramos Paz, quem informou o biógrafo Alfredo Pujol que o escritor teria sido sacristão na igreja da Lampadosa. Esta é outra das inverdades que se costuma dizer a respeito do autor de Quincas Borba. Os investigadores da vida de Machado esmiuçaram todos os arquivos da velha ermida em busca de algum papel mofado que pudesse elucidar o caso. Trabalho em vão. Nunca se achou qualquer referência de que o escritor tenha ocupado tal ofício nesta igreja. Muito provavelmente foi coroinha, tocara sinos, ajudara missa e mais nada. A igreja da Lampadosa localizava-se perto da Praça da Constituição, junto à célebre casa que pertenceu a José Bonifácio. Ao final do dia, Machado deveria receber uma moeda e, feliz da vida, ia olhar as vitrines das lojas que vendiam livros. Ali perto ficava uma livraria famosa naquele tempo, a livraria de Paula Brito, que seria o primeiro grande incentivador de Joaquim Maria. O menino, tímido e receoso, deve ter entrado na loja muitas vezes para não comprar nada, apenas observar os livros nas estantes e as pessoas que freqüentavam o estabelecimento. Quanta gente importante comparecia àquela livraria, políticos de prestígio e escritores de renome! Mas isto já é assunto para outro capítulo e, por ora, fiquemos na igreja da Lampadosa. Coroinha ou sacristão, a verdade é que todo o tempo que ele permaneceu vinculado à igreja marcou-lhe definitivamente o espírito, tanto que há inúmeras referências ligadas ao universo cristão em sua obra. A própria igreja da Lampadosa é citada de maneira explícita no conto “Fulano”, publicado no livro Histórias Sem Data. Com o tempo, Machado tornou-se agnóstico, mas sempre escreveu sobre a igreja e assuntos religiosos com o mais profundo respeito. Verdade que alguma vez procurou satirizar a decadência dos costumes do clero, mas a sua crítica sempre buscava golpear os aspectos exteriores da religião e nunca a sua essência. 32 Machado e a Petalógica: os primeiros versos Em 1854, algumas ruas centrais da cidade do Rio de Janeiro passaram a receber iluminação a gás. Isso foi um grande avanço para a época, permitindo que os cidadãos pudessem circular com maior segurança ao escurecer e possibilitando o desenvolvimento de uma vida noturna, ainda insipiente. Machado já havia deixado o emprego de caixeiro numa papelaria, onde permanecera por apenas três dias, segundo nos informa Araripe Júnior, e vinha para a cidade diariamente em busca de emprego. Ali na Praça da Constituição, antigo Rossio, número 64, havia uma livraria e tipografia com belas vitrines, onde inúmeros livros eram expostos a fim de chamar a atenção do público. A loja vendia de tudo, desde cera, drogas, papel, tinta, fumo, livros e até mesmo chá, conforme se podia ler num anúncio da porta: neste estabelecimento vende-se “chá, o melhor que há”. Contudo, a Tipografia Dois de Dezembro (nome dado em homenagem a D. Pedro II, data de seu natalício), cujo proprietário era o mulato Paula Brito, não se tornaria conhecida pela excelente qualidade de seus chás, mas em função dela ter se tornado um ponto de encontro de grandes homens do tempo. Com efeito, desde o ano anterior, 1853, essa loja abria suas portas para a reunião de intelectuais, que aí falavam de poesia, discutiam arte, debatiam política. Aos sábados à tarde, inúmeros poetas, escritores e políticos de prestígio como Montezuma, Joaquim Manuel de Macedo e Manuel Antônio de Almeida vinham participar daquelas reuniões literárias e artísticas, podendo-se afirmar que em meados da década de 1850, a loja de Paula Brito era o centro do universo das letras no Brasil. Esse grupo, uma espécie de clube sem sócios nem estatutos, ficou conhecido com o nome de Petalógica. Nestas reuniões informais, discutia-se de tudo. Em um de seus textos em que trata do livro de um certo José Antônio, Machado de Assis lembra-se da Petalógica com carinho, recordando-se dela cheio de saudades: “Este livro é uma recordação - é a recordação da Petalógica dos primeiros tempos, a Petalógica de Paula Brito - o café Procópio de certa época - onde ia toda a gente, os políticos, os poetas, os dramaturgos, os artistas, os viajantes, os simples amadores, amigos e curiosos - onde se conversava de tudo - desde a retirada de um ministro até a pirueta da dançarina da moda; onde se discutia tudo, desde o dó do peito do Tamberlick até os discursos do marquês do Paraná, verdadeiro campo neutro, onde o estreante das letras se encontrava com o conselheiro, onde o cantor italiano dialogava com ex-ministros. Dão-me saudades da Petalógica lendo o livro de José Antônio - não porque esse livro reúna todos os 33 caracteres daquela sociedade; dão-me saudades porque foi no tempo do esplendor da Petalógica primitiva que os versos de José Antônio foram compostos e em que saiu à luz a primeira edição das Lembranças. Cada qual tinha sua família em casa; aquela era a família da rua - le menage en ville, - entrar ali era tomar parte na mesma ceia (a ceia vem aqui por metáfora), porque o Licurgo daquela república assim o entendia, e assim o entendiam todos quantos transpunham aqueles umbrais.Quereis saber do último acontecimento parlamentar? Era ir à Petalógica. Da nova ópera italiana? Do novo livro publicado? Do último baile de E...? Da última peça de Macedo ou Alencar? Do estado da praça? Dos boatos de qualquer espécie? Não precisava ir mais longe, era ir à Petalógica.” Não se sabe como Machado e Paula Brito se conheceram. O fato da Praça da Constituição ficar muito próximo à igreja da Lampadosa indica que o rapazinho ali deveria ir passear após cumprir com suas obrigações de coroinha. Não só os livros das vitrines excitariam a curiosidade de Joaquim Maria, como também todas aquelas pessoas ilustres que se dirigiam para a livraria. Muitas vezes deve ter ficado de longe, olhando algum escritor famoso. Anos depois, os papéis se inverteriam e ele próprio seria o alvo das admirações na Livraria Garnier. Sentado num banco, ao fundo da loja, quando via os meninotes lhe observando cheios de consideração e respeito, não poderia deixar de pensar em si mesmo tantos anos atrás, ainda molecote, diante da livraria de Paula Brito. Machado vinha economizando algumas moedas para comprar um livro que há tempos estava namorando na vitrine. Finalmente, quando conseguiu arranjar a quantia necessária, foi direto para a Praça da Constituição e entrou apressado na loja. Paula Brito, sempre solícito e atencioso, veio ver o que desejava o menino. E aí se deu o encontro mais importante da juventude de Machado de Assis. Simpático e inteligente como todos afirmam que ele era, Joaquim Maria deve ter cativado de imediato o bom livreiro, que muito ajudaria o autor de Quincas Borba em seus primeiros passos no mundo das letras. Talvez o livro comprado fosse de poesia e Paula Brito aproveitasse a ocasião para confessar ao rapazinho que ele próprio também era poeta. Não é improvável supor que tenha recitado ao jovem Machado alguns de seus versos escritos naquela mesma manhã, recebendo deste os elogios da praxe. O vivo interesse que os dois nutriam pela literatura logo cimentou aquela amizade. É possível que Joaquim Maria tenha lhe confessado que procurava algum emprego na cidade. Nessa época, Paula Brito tinha mais de sessenta empregados em sua tipografia e talvez tenha lhe 34 oferecido trabalho como caixeiro da loja de livros ou mesmo aprendiz de tipógrafo, conforme atesta Salvador de Mendonça. Seja como for, em fins de 1854 e início de 1855, Machado já estava ligado ao grupo da Petalógica e começava a estampar seus versos juvenis nas folhas cariocas. Por muito tempo, acreditou-se que seu primeiro trabalho publicado teria sido a poesia “Ela”, que saiu no jornal Marmota Fluminense no dia 12 de janeiro de 1855. “Ela” traz por epígrafe quatro versos de um amigo de Joaquim Maria, o poeta português Francisco Gonçalves Braga. Alguns comentadores da obra de Machado afirmaram erroneamente que a glória do primeiro poema impresso caberia a “A Palmeira”, publicado também na Marmota Fluminense, mas no dia 16 de janeiro. Estes versos eram dedicados ao mesmo Francisco Gonçalves Braga e a confusão se deu porque “A Palmeira” trazia a data de 6 de janeiro junto a si. Tudo isso veio abaixo, depois que o professor e pesquisador J. Galante de Sousa descobriu no Periódico dos Pobres, um jornalzinho sem grande importância daquela época e que vinha sendo editado desde 1850, um soneto de Machado de Assis intitulado simplesmente “Soneto”. A data é de 3 de outubro de 1854 e o poeta dedicava-o a uma mulher casada, “À Ilma. Sra. D. P. J. A.”, uma tal Petronilha. Até que novas descobertas apareçam, eis a primeira produção literária do autor de Dom Casmurro: SONETO À Ilma. Sra. D. P. J. A. Quem pode em um momento descrever Tantas virtudes de que sois dotada Que fazem dos viventes ser amada Que mesmo em vida faz de amor morrer! O gênio que vos faz enobrecer, Virtude e graça de que sois c’roada Vos fazem do esposo ser amada (Quanto é doce no mundo tal viver!) A natureza nessa obra primorosa, Obra que dentre todas as mais brilha, Ostenta-se brilhante e majestosa! Vós sois de vossa mãe a cara filha, Do esposo feliz, a grata esposa, Todos os dotes tens, ó Petronilha. 35 Fato curioso é que as primeiras poesias que Machado publicou sempre foram dedicadas para alguém. Assim foi com seu primeiro soneto, oferecido a tal Petronilha, mulher casada e que ninguém sabe quem foi. Para seu amigo Francisco Gonçalves Braga ele dedicou não só “A Palmeira”, mas também a poesia “Saudades”, publicada na Marmota Fluminense em 1o. de maio de 1855 (mas datada de 25 de fevereiro de 1855). Por essa época, o Braga encontrava-se em viagem a Portugal e Machado sentia saudades do amigo ausente. Joaquim Maria o adorava e, talvez por causa destes versos, Gondin da Fonseca viu entre os dois uma amizade íntima demais. Ainda em 1855, Machado dedica o poema “A Saudade”, publicado no dia 20 de março, a seu primo Henrique José Moreira. Nada mais sabemos deste parente do escritor, pois ele jamais voltou a tocar em seu nome. O próprio imperador não foi esquecido de ser homenageado por Machado. Quando D. Pedro II completou trinta anos, a 2 de dezembro de 1855, Joaquim Maria publicou na primeira página da Marmota Fluminense uma poesia dedicada ao ilustre monarca, a quem o escritor respeitou por toda a vida. Aliás, inúmeros poemas que Machado escreveu por esta época estão ligados à monarquia. As cantoras líricas que atuavam no teatro do tempo eram muito admiradas pelo jovem poeta e várias delas foram citadas nominalmente na obra machadiana. No início de 1856, a 7 de fevereiro, Joaquim Maria dedica um poema “À madame Arsène Charton Demeur”, publicado no Diário do Rio de Janeiro. Pela primeira vez, assinava versos com seu nome completo. A Charton fez muito sucesso no Brasil e era uma das cantoras preferidas de José de Alencar. Rival de Annetta Casaloni e Rosina Stoltz (esta era a predileta de D. Pedro II), a Charton estava para deixar o Brasil, quando Machado escreveu o poema, onde lhe pede para ficar no país: Os ecos do teu canto sonoroso, A cada som pungindo uma saudade! Oh, sol que o céu das artes iluminas, É cedo o ocaso teu na nossa terra! Um dia mais, um dia mais de enlevos: Fica, Charton - contigo a luz gozamos; Sem ti - sombria treva a cena envolve! A primeira musa Por esse tempo, como todo rapaz sonhador, Machado não podia deixar de compor poesias românticas. Aos 16 anos, escreveu uma série de poemas de amor para alguma mocinha que ele não quis revelar e que os críticos batizaram de “ciclo de poesias dedicadas à primeira musa”. Ao todo, 36 são 6 poemas oferecidos a uma cantora italiana, escondida sob o nome de Júlia. Sabe-se que nessa época, não havia nenhuma atriz ou cantora italiana com esse nome atuando na cidade do Rio de Janeiro. Por causa deste mistério, aventaram-se diversos nomes de possíveis atrizes líricas que poderiam ter despertado tal paixão no peito do jovem Joaquim Maria. Alfredo Pujol sugere o nome de Annetta Casaloni, uma das rivais da Charton. Já o professor Jean-Michel Massa acredita que a mulher em questão seria Augusta Candiani. Tornara-se muito comum escrever poesias e dedicá-las às cantoras de ópera. Era um tempo em que as mulheres de família quase não colocavam os pés nas ruas, de maneira que restavam aos rapazes apaixonados ou as prostitutas ou essas atrizes cobertas de glória. Na verdade, elas tinham incontáveis adoradores, que duelavam pelos jornais, cada qual defendendo em versos a sua musa. Houve mesmo uma verdadeira batalha nas gazetas entre as facções casalonistas e as chartonistas. Cada poeta tinha a sua dama para louvar, uma autêntica transposição moderna do amor cortês. Quando uma delas entrava no palco, os seus admiradores cobriam-na com pétalas de rosas, enquanto os adversários deitavam vaias e assobios. Machadoadorava ópera e teatro, mas era pobre e quase nunca conseguia dinheiro para assistir aos espetáculos. Mais de uma vez, deve ter ficado junto à porta, do lado de fora do teatro, observando o alegre movimento, admirando todas aquelas carruagens e pessoas elegantes. Sabia que diversão daquela espécie não era para gente como ele, pelo menos enquanto não arranjasse um bom emprego e pudesse pagar o preço do ingresso. De qualquer forma, é provável que tenha visto algumas atrizes entrando ou saindo do teatro, de longe e rodeadas por muitos outros admiradores. Depois, retornaria para sua humilde casa lá no bairro de São Cristóvão e no silêncio triste do seu quartinho mal iluminado, pegava da pena e se punha a escrever poemas românticos, onde procurava expressar seu amor platônico: MEU ANJO És um anjo de amor - um livro d’ouro Onde leio o meu fado És estrela brilhante do horizonte Do bardo namorado Foste tu, que me deste a doce lira Onde amores descanto. 37 Lúcia Miguel Pereira também sugere que a mulher amada seria a Casaloni, uma cantora de ópera muito famosa naquela quadra. A título de curiosidade, observe-se como uma crônica da época descreve a artista: “A Casaloni tem o aspecto viril, o meneio precipitado, displicente, a fronte arquejada, bojuda, os olhos verdoengos, grandes, sem ação, retentos, atontados. Tem a cútis adensada, as espáduas largas, o talho agigantado, as proporções da antiga Palas, as carnes flácidas, o peito inflexo, espaçoso”. Pela descrição, notamos que a natureza não fora muito generosa com a Casaloni, no tocante à beleza e demais atributos físicos. Se não era bela, também não era jovem e a verdade é que ela conquistava seus admiradores através de sua voz poderosa, que fazia tremer até os tetos dos teatros. Segundo Machado, ela tinha um vozeirão que valia por toda uma companhia. A seguinte quadra de Francisco Otaviano bem define a Casaloni: Que importa que digam que é velha, que é feia, Que pinta o cabelo, que enfeita o carão, Se as vozes que partem daquela sereia Despertam nas almas suave emoção. Francisco Gonçalves Braga e novos amigos Na loja de Paula Brito, Machado começou a fazer amizade com poetas e escritores. Um dos primeiros que conheceu foi Francisco Gonçalves Braga, assíduo freqüentador da Petalógica, que se tornaria grande amigo de Joaquim Maria. Francisco Gonçalves Braga nasceu a 25 de julho de 1836, na cidade de Braga, em Portugal. Machado tinha pouco mais de quinze anos e ele cerca de dezoito, quando os dois se conheceram. Tendo vindo criança ao Brasil, vamos encontrá-lo feito caixeiro na adolescência. Escritor esforçado, mas sem qualquer inspiração, foi o primeiro modelo em quem Machado de Assis se espelhou. Seus amigos tinham-no por excelente poeta, uma vez que lia muito e era hábil imitador de versos alheios. Machado mesmo cansou de bajulá-lo, dedicando-lhe poesias que nunca reuniu em livro. Sabe-se que ele publicava seus versos no jornal Periódico dos Pobres e é provável que tenha Annetta Casaloni 38 sido através do amigo, que Machado conseguira publicar seu primeiro trabalho, o já citado soneto à Petronilha. Em 1855, Francisco Gonçalves Braga fez uma viagem a Portugal, mas não se sabe com que finalidade, tendo retornado no mesmo ano. Joaquim Maria, saudoso do amigo, dedica-lhe então um poema. Ainda muito jovem, contraíra tuberculose, vindo a falecer aos vinte e três anos, em março de 1860. É provável que tenha sido Francisco Gonçalves Braga quem levara Machado pela primeira vez até o Gabinete Português de Leitura. Depois que ele descobriu que poderia ler o que quisesse em salas de leituras gratuitas, tornou-se assíduo freqüentador delas. Leitor contumaz e dotado de uma extraordinária memória, sempre que tinha tempo, dirigia-se à biblioteca do Gabinete Português de Leitura, que possuía mais de 15 mil livros, para haurir todo o conhecimento que pudesse. Segundo Mário de Alencar, amigo íntimo do escritor em seus últimos anos de vida, Machado costumava fazer anotações em folhas separadas de tudo que ia lendo, para assimilar com maior facilidade o que lhe interessava. Ainda segundo o filho de José de Alencar, Machado lera muito os clássicos sem adquirir livro algum, pois em lhe faltando “meios para comprá-los, lia de empréstimo, como assinante do Gabinete Português de Leitura”. Tanta influência lusa recebeu, que durante algum tempo, ele assinou seus textos como Machado d’Assis. Alguns biógrafos do escritor insistem que ele teria sido uma pessoa pouco afetuosa, sobretudo em seus anos da velhice. Esta idéia explica-se em parte pelo fato de que muito de seus amigos da juventude morreram cedo e a imagem que temos do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, aquele homem meticuloso ao extremo, burocrata exemplar, o metódico e solene presidente da Academia Brasileira de Letras, esta imagem de escritor sério e circunspecto foi construída pelos seus amigos do final da vida e não corresponde à verdade absoluta. Machado foi um moço sempre alegre, que gostava de rir e conversar. Prova disso é que no Gabinete Português de Leitura fizera grandes amizades, sobretudo com jovens portugueses: Augusto Emílio Zaluar, Ernesto Cibrão, Manuel de Melo, Francisco Ramos Paz. Citemos algumas palavras a respeito destes amigos de Machado. Augusto Emílio Zaluar nascera em Lisboa, no dia 25 de fevereiro de 1825. Estudou Medicina durante algum tempo e moço emigrou para o Brasil. Escreveu diversos volumes de versos, contos e romances, mas seu único livro importante de fato que chegou até nossos dias é Peregrinação Pela Província de São Paulo. Naturalizou-se brasileiro e acabou recebendo o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa em 1876. Foi o redator-chefe do jornal O Paraíba, onde Machado iria colaborar assiduamente. Sobre Augusto Emílio Zaluar, narra Sacramento Blake um caso curioso. Estava ele traduzindo para um jornal fluminense o romance Moicanos de Paris, de Alexandre Dumas, à medida que chegavam os folhetins franceses ao Brasil. Romance enorme, que 39 não acabava mais. A certa altura, Dumas interrompeu o romance por motivos particulares. O que fez Zaluar? Simplesmente terminou o romance por sua conta, dando a ele um final que Alexandre Dumas nunca teria imaginado. Pior de tudo aconteceu depois, quando o francês retomou o livro e os folhetins passaram a chegar novamente ao Rio de Janeiro. Augusto Emílio Zaluar não teve dúvidas e continuou sua tradução normalmente, como se já não tivesse rematado o livro meses antes. Faleceu na cidade do Rio de Janeiro a 3 de abril de 1882. Ernesto Cibrão nasceu em Valença do Minho, Portugal, a 22 de julho de 1836. Era poeta, cronista e dramaturgo sem talento e seu nome somente chegou até nós por estar ligado ao autor de Quincas Borba. Foi a ele que Machado de Assis dedicou sua famosa poesia “Menina e moça”, publicada na Semana Ilustrada de Henrique Fleiuss e, posteriormente, no volume das Falenas. Em resposta, Cibrão compôs um poema medíocre, intitulado “Flor e Fruto”. Escrevia nesta mesma Semana Ilustrada com o pseudônimo de Boileau-Mirim e, em 1859, viu o seu drama Luís ser representado no Teatro Ginásio. Viajou para a Europa, onde passou uma temporada na Suíça. Em 1868, Machado escreveu para ele o prefácio de seu livro A Casa de João Jacques Rousseau. Ernesto Cibrão era diretor da Companhia Pastoril Mineira e, por volta de 1890, convida Machado, Carolina e alguns amigos para acompanhá-lo em viagem a fazendas em Minas Gerais, onde ele iria fazer algumas inspeções. Este curioso episódio será narrado adiante com mais detalhes. Manuel de Melo nasceu em Aveiro, Portugal. Inteligente e culto, escrevia textos num português impecável e sem mácula. Notável filólogo, falava diversas línguas européias e possuía vasta erudição. Machado
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