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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Curso de Graduação em Direito ANÁLISE JURÍDICA DA OBRA “O PROCESSO”, DE FRANZ KAFKA Aluno: Arthur Alexandre Alves Rossi Figueira Professor: Joaquim Márcio de Castro Almeida Disciplina: Direito Processual Penal Belo Horizonte 2016 INTRODUÇÃO O presente trabalho possui como finalidade elucidar os principais aspectos da obra de Franz Kafka de modo a estabelecer sua relação com o atual sistema processual penal brasileiro. Serão apresentados trechos do livro “O Processo” e, posteriormente, comentários relativos ao ordenamento jurídico no que tange ao seu aspecto penal. Portanto, a presente análise objetiva precipuamente desenvolver uma linha de raciocínio crítica referente aos principais aspectos jurídicos da obra. ANÁLISE Em um primeiro momento, quando do início da obra, logo deparamo-nos com uma situação que enseja atenção; o principal personagem da obra, o banqueiro “K”., encontra-se detido na residência onde vivia, detenção esta injustificada pelos oficiais responsáveis por tal ato. “( ... )- o senhor não tem o direito de ir-se embora, porque está detido.” “ O processo judicial acaba de ser instaurado, e saberá tudo na altura oportuna.” Observando esta situação, pode-se dizer que tal ato hoje se encaixaria naquilo que o sistema penal considera como denúnica inepta, uma vez que não cumpre sua finalidade prescípua, qual seja, proporcionar ao acusado o conhecimento do inteiro teor da acusação que lhe é feita, com todos os seus por menores, a fim de lhe possibilitar o exercício da ampla defesa. Há ainda, quando da primeira audiência de K., um outro trecho que demonstra o total desconhecimento da personagem quanto à pessoa que o acusou. Hora, analisando sobre o prisma da atualidade, é evidente que tal ato praticado pelo juiz fere o Princípio da Fundamentação das Decisões jurisdicionais. Tal principio encontra-se previsto na constituição federal: ART. 93, IX, CF/88 - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação “ (...) quem me acusa? Que autoridades lançaram o processo judicial? Os senhores são funcionários (...)” Posteriormente, em um momento seguinte, quando os oficiais queriam as coisas de K com o intuito de depositá-las, observa-se outro trecho de considerável relevância. “ E como estes processos se eternizam, sobretudo neste últimos tempos!” Neste ponto, observamos um acontecimento que fere um dos princípios que norteiam a Convenção de Direitos Humanos, qual seja, aquele onde toda pessoa tem o direito de ser julgada em um prazo razoável ou ser posta em liberdade sem o prejuízo do processo. Além disso, também temos nesta seara o princípio da razoabilidade da duração do processo do STJ. Em outro trecho da obra, observamos o seguinte diálogo entre o protagonista e a Menina Burstner: “(...) até mais do que sei, porque não se tratava de uma comissão de inquérito; eu designo-a assim à falta de arranjar-lhe outro nome. Não houve inquérito, fui simplesmente detido, mas por uma comissão.” No trecho acima, verifica-se que K. teve sua liberdade privada por um ato não fundado em provas, seja pelos indícios de autoria ou pela materialidade do crime. Aqui, vislumbra-se um atentado ao que denomina-se contemporâneamente de Presunção de Inocência ou Estado de Inocência, onde entende-se que todo homem é presumivelmente inocente até que se prove sua responsabilidade penal. Ou seja, ninguém será considerado culpado até o transito em julgado da sentença penal condenatória. Adiante, K. foi avisado por telefone da data de seu interrogatório: “K. tinha sido avisado por telefone de que no domingo seguinte realizar-se-ia um pequeno interrogatório no âmbito de seu caso.” No atual sistema processual penal brasileiro, a intimação que se regula pelo capítulo II do Código de Processo Penal não admite a intimação por telefone, devendo ela ser realizada por outros meios. Em um outro momento da obra, percebe-se uma cena que se assemelha demasiadamente com as apresentadas contemporaneamente nos tribunais do juri, quando da sustentação oral com fins de absolvição. “ Seguiram-se aplausos novamente do lado direito. <<Eis pessoas fáceis de conquistar>>, pensou K., e só ficou perturbado com o silêncio do lado esquerdo da sala, que ficava exatamente atrás dele (...)” “ Quando K. se pôs a falar, ficou convencido de que concordavam com ele”. Dando continuidade à história, percebe-se em determinado parágrafo da obra, que o sistema penal da época tinha traços de uma “ organização criminosa”, onde um forte esquema de corrupção existia de forma velada. “(...) não resta qualquer dúvida de que por detrás de todos os procedimentos deste tribunal, portanto no meu caso preciso, por detrás da detenção e da presente instrução, dissimula-se uma vasta organização. Uma organização que não só emprega guardas corruptos, inspectores estúpidos e juízes de instrução modestos no melhor dos casos, mas sustenta além disso uma alta magistratura e uma magistratura suprema, com o seu incontornável cortejo de oficiais de diligências, de escrivães, de polícias e de outros auxiliares, talvez mesmo os seus carrascos, a palavra não me mete medo. E qual é o sentido desta vasta organização, senhores? Consiste em fazer prender pessoas inocentes e em intentar contra elas processos judiciais loucos e, na maior parte das vezes, como no meu caso, sem resultado.” “ Eis porque os guardas procuram despojar o acusado das suas roupas, eis porque os inspetores entram abusivamente na casa de outrem, eis porque, em vez de os submeterem a um interrogatório, humilham inocentes diante de vastas assembléias.” Portanto, analisando os dois trechos acima retirados da obra, constata-se que mesmo no passado, sistemas jurídicos corruptos eram facilmente encontrados, sistemas estes que beneficiavam poucos. Outro elemento importante a se destacar se refere à invasão dos inspetores na casa do banqueiro; hoje, com o amparo constitucional, sabe- se da existência da denominada inviolabilidade do domicílio. Temos no Código de Processo Penal, em seu artigo 283, §2: § 2o A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio. Além disso, alude a Constituição da República no seguinte dispositivo: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; Dando prosseguimento, K. ao encontrar o seu tio (que se mostra preocupado com o processo) lhe profere às seguintes palavras: “ Antes de tudo, meu tio – disse K -, não se trata de um processo perante um tribunal normal.” O que fora dito pelo banqueiro ao seu tio demonstraa forma desigual como são tratados os casos pelos tribunais da época, ficando desta forma evidente que o princípio do devido processo legal (normas pré estabelecidas em lei e recepcionadas pela CR/88) seria realmente algo inconcebível. Dando continuidade, quando do encontro de K. com Leni, o seguinte diálogo acontece: “(...) não há meio de lutar contra este tribunal, somos obrigados a confessar. Faça logo confissões na primeira ocasião. É indispensável para arranjar um meio de se livrar, é indispensável. E mesmo isso é impossível sem ajuda do exterior; mas não deve inquietar-se por causa dessa ajuda, sou eu própria quem lhe dará.” Nota-se no presente trecho extraido da obra que a aplicação do princípio do contraditório seria algo imprescindível, no sentido de permitir ao acusado que participasse de fato na construção do provimento jurisdicional. Desta forma, teriamos a efetivação do princípio anteriormente dito, das fundamentações das decisões jurisdicionais, onde os argumentos de natureza fática e jurídica apresentados pelas partes seriam enfrentados pelo juiz, que então os refutaria ou acolheria de forma racionalmente aceitável. Além disso, um outro trecho posterior ao primeiro vem a ratificar tudo o que fora dito: “ Porque, na realidade, a lei não autoriza a defesa, tolera- a simplemente; e a questão de saber se a alínea em causa deve ser interpretada pelo menos no sentido da tolerância, é ela própria controversa.” Em um dado momento da obra, Josef K. entra em conflito consigo mesmo, pois não sabe se deve continuar com o seu advogado (amigo de seu tio) ou dispensá-lo: “ Perguntava muitas vezes a sí próprio se não seria bom preparar uma defesa por escrito e apresentá-la no tribunal”. No atual sistema processual penal brasileiro, é sabido que não há possibilidade de uma pessoa ser julgada sem um advogado. Portanto, a intenção de Josef K. não seria válida caso se aplicasse à sistemática atual. Ainda nesta seara, torna-se importante demonstrar que o principio institutivo da ampla defesa se divide em defesa técnica (exercida pelo profissional habilitado) e autodefesa (exercida pelo próprio acusado, como por exemplo no interrogatório). A análise da obra sob a óptica contemporânea, nos leva à constatação de que outro principio constitucional não seria aplicável ao sistema processual da época; O principio da Publicidade, que tem como pressuposto que os atos processuais são em regra públicos. Um determinado trecho da obra transmite de forma clara o que fora dito anteriormente. “ K. não devia esquecer que o processo judicial não é público; se o tribunal o julgar necessário, pode torná-lo público, mas a lei não o exige. Segue-se que os documentos conservados no tribunal, e sobretudo, a peça de acusação, são inacessíveis ao acusado e à sua defesa; por isso é que em geral não se sabe, ou pelo menos exatamente, sobre o que o primeiro requerimento deve tratar, de tal modo que só por efeito do acaso ele pode conter alguma coisa importante para o processo.” “ (...) em geral o processo judicial é mantido secreto não só para o público, mas também para o acusado.” Em seguida, a obra de Kafka evidencia outro aspecto que vai de encontro ao que estabelece a recente lei 13245/16. Em seu texto, a lei não afasta a natureza inquisitória do inquérito, pois sua condução continua nas mãos do delegado de polícia. Contudo, a sobredita lei prevê a possibilidade do advogado acompanhar o seu cliente durante o seu interrogatório. Cabe ressaltar que a lei não previu a possibilidade do advogado acompanhar o depoimento das testemunhas. A seguir, temos um breve trecho da obra que trata da temática em discussão; “Em geral, os advogados não tem o direito de estar presentes nos interrogatórios; por isso, é depois do interrogatório, e se possível ao sair da sala de audiências, que eles devem sondar o acusado sobre o interrogatório, e nesses relatos já muito esbatidos encontrar elementos úteis à defesa”. Posteriormente, quando Josef K. encontra-se com o pintor, surge a seguinte conversa entre ambos: “ O senhor conhece certamente o tribunal muito melhor do que eu; não sei mais do que o que ouvi dizer, mas por todo o genero de pessoas. Contudo, todos pareciam de acordo num ponto: nenhuma acusação é lançada de ânimo leve; e quando emite uma acusação, o tribunal está firmemente convencido da culpabilidade do acusado e deixa-se muito dificilmente persuadir do contrário.” Analisando o que descrito no trecho acima, verifica-se que o órgão judiciário da época já tem o seu convencimento formado, independente das provas e fundamentos demonstrados pelas partes. Portanto é possível afirmar que o réu é aqui apenas um objeto do processo, onde não existem garantias fundamentais como o contraditório e a ampla defesa, traços estes que marcam o sistema inquisitório. Dando sequência, é possível que alguns leitores da obra observem que o sistema judiciário da época não era totalmente diverso do sistema vigente em nosso país. Como se sabe, infelizmente inúmeros casos de corrupção do judiciário vêm ao conhecimento público, assim como muitos outros continuam em segredo. À época de K. não era diferente, pois como visto na obra, podiam os magistrados ser subornados de algum jeito, de forma à conduzir o caso para um desfecho pré-determinado. “ Apenas eu, sozinho, o poderei livrar de problemas. – E como o fará? – perguntou K. – O senhor mesmo acaba de dizer que a justiça é inacessível às provas. – Inacessível apenas às provas apresentadas ao tribunal – disse o pintor, erguendo o indicador, como se K. não tivesse notado uma subtil distinção -, mas não o é relativamente às provas produzidas oficiosamente, na sala de audiências, nos corredores ou neste estúdio. Quanto aos desfechos pré-determinados acima mencionados, era possível ainda que o acusado, conhecendo os meios possíveis para sua obtenção, escolhesse aquele que melhor atendesse sua situação; “ – Esqueci-me de começar por perguntar-lhe que tipo de absolvição deseja. Existem três possibilidades: a verdadeira absolvição, a absolvição aparente e o adiamento judicial dilatório.” Por fim, o banqueiro deparou-se com uma situação onde não tinha uma saída; enfrentava um processo em que nada conhecida, não sabia nem mesmo qual havia sido a acusação que lhe fora imputada. Sabia o protagonista que o seu processo assim como todos os outros levaria anos para se chegar a algum lugar. Tinha ciência de que independente das alegações que fizesse, das provas que apresentasse, dos advogados que contratasse, de nada valeriam perante o sistema penal que vigorava em seu tempo. Assim, como ato derradeiro, Josef K. foi levado a óbito por dois senhores, que o mataram a seu pedido. CONCLUSÃO Diante de tudo o que fora exposto na análise jurídica da obra “O Processo” de Franz Kafka, é possível afirmar que o sistema processual penal da época era evidentemente inquisitório. Em um primeiro momento, percebe-se que não existiam órgãos distintos que tratavam da acusação, da defesa e do julgamento dos casos, sendo todos estes atos afetos a um único órgão. Em um dado momento, nota-se um segundo ponto marcante do sistema inquisitório, qual seja, o caráter sigiloso do processo, onde nenhuma das partes tinha ciência sequer da acusação que lhe era atribuída. Como terceira característica do sistema inquisitório que se apresenta claramente no decorrer da obra, tem-se do acusado como mero objeto do processo, uma vez que não foram concedidas garantiasindividuais a ele. A seguir, um trecho extraído da obra mostra de forma clara o que fora dito: “ O senhor observou há pouco que o tribunal se conserva surdo aos argumentos de prova, a seguir limitou esta afirmação à justiça oficial e agora chega até a dizer que o inocente não precisa de ajuda perante o tribunal. Já aqui existe uma contradução. Disse também há pouco que podem influenciar-se pessoalmente os juízes, mas contesta agora que se possa alguam vez obter a verdadeira absolvição, como a designa, usando da influência pessoal. - Estas contradições são fáceis de resolveri – disse o pintor. – Trata-se aqui de duas coisas diferentes, por um lado, o que a lei determina e, por outro, o que eu pessoalmente verifiquei: O senhor não deve confundi-las. Na lei ... que para dizer a verdade eu não li... é estipulado que o inocente é absolvido, mas não diz que os juízes possam ser influenciados.” Ao final, em uma análise do ordenamento jurídico como um todo, conclui-se que o sistema processual penal ao longo do tempo sofreu diversas transformaçõe positivas, principalmente com os princípios engendrados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Contudo, ainda hoje, notam-se traços do sistema inquisitório em nossos tribunais, por mais que na teoria seja o nosso sistema acusatório. É evidente que com a aplicação dos princípios processuais penais constitucionais ( Juízo Natural, proibição de tribunais de exceção, imparcialidade do órgão judicial, razoabilidade da duração do processo, presunção de inocência, contraditório, ampla defesa, fundamentação das decisões jurisdicionais, devido processo legal, publicidade etc) o sistema jurídico brasileiro dará um importante passo em direção a um verdadeiro estado democrático de direito. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. BRASIL. Presidência da República. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 24 mai. 2016. 2. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em 23 mai. 2016. 3. KAFKA, Franz. O Processo. Tradução: Guimarães Editores. 3ª Ed. São Paulo: Publicações Dom Quixote, 2009 (Livro em versão eletrônica – Kindle Samsung).
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