COMO RECONHECER a arte Gótica Maria Cristina Gozzoli Revisão de Adriano de Gusmão da Academia Nacional de Belas Artes Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Título original: Come Riconoscere I’Arte Gotica 1978 Rizzoli Editore Concepção e maquete: Harry C. Lindinger Grafismo: Gerry Valsecchi Paginação: Giuseppe Villa Desenhos: Fulvio Cocchi e Franco Testa Tradução de Carmen de Carvalho Todos os direitos para a Língua Portuguesa reservados por Edições 70, Lisboa, Portugal Composto e paginado por Fotocompográfica Impresso por Resopal para EDIÇÕES 70, em Fevereiro de 1984 Depósito legal 4634/84 Livraria Martins Fontes - Rua Conselheiro Ramalho, 330-340 São Paulo Fontes fotográficas Almasy: p. 33; Cauchetier: p. 4, 5, 8, 9, 11, 25, 27, 29, 31, 39; Giraudon: p. 47; Hassmann: p. 19, 21, 23, 53; Kunsthistorisches Museum, Viena: p. 41; Nationalgalerie, Praga: p. 49; Photo Marburg: p. 61; Pubbliaerfoto: p. 37; Radnicky: p. 17; Rizzoli: p. 34/35, 38, 43, 45, 57, 59; Scala: p. 15, 47; Sheridan: p. 7, 12, 13, 51. Introdução A arte gótica desenvolveu-se na Europa na última fase da Idade Média (séculos XII e XIV), num período de profundas transformações em que se assistiu à superação da sociedade feudal e à formação de novos centros de poder: as primeiras monarquias, as grandes cidades, o clero, as classes «novas» e ricas dos comerciantes e dos banqueiros. Se o quadro económico e social em que tal estilo floresceu é bastante claro, continua a ser pouco compreensível o motivo por que os historiadores tia arte o denominaram gótico: com certeza que não terá sido por os godos - um povo originário da Escandinávia, muito provavelmente da ilha de Gotland - se terem distinguido pela sua habilidade como arquitectos (como todas as tribos bárbaras, eram nómadas, que pouco se preocupavam com casas menos ainda com igrejas, tanto mais que eram pagãos); e também não por os godos terem vivido na zona que o viu nascer, uma vez que, no século I antes de Cristo, eles se tinham deslocado para a foz do Vístula e que, em seguida, se mudaram para o Sul, ocupando a margem esquerda do Danúbio. É muito provável que os humanistas do Renascimento tenham adoptado o termo «gótico» como sinónimo de bárbaro, no sentido de proveniente da região de além-Alpes, por oposição a românico. Seja como for, permanece o facto de esta arte ter o nome de gótica, ainda que tenha nascido no coração da França (tomada reino sob a disnatia dos Capetos), precisamente na Ile-de-France, a fértil e próspera região a Norte de Paris, onde ainda hoje se pode encontrar um óptimo tipo de rocha calcária, resistente e fácil de trabalhar. Entre 1140 e 1144, foi reconstruído o coro da abadia de Saint-Denis, perto de Paris: quem quer que tenha sido o seu arquitecto, poderá ser apontado como o inventor do estilo gótico. A partir desse momento, as cidades francesas pareceram competir entre si na construção ou reconstrução das suas próprias igrejas no estilo gótico: a fachada da catedral de Chartres, Notre-Dame de Paris, a catedral de Reims, Notre-Dame de Amiens e a catedral de Beauvais assinalam o apogeu do gótico francês. Da Ile-de-France, o estilo espalha-se por toda a Europa. O primeiro edifício gótico inglês, a catedral de Cantuária, foi começado a construir em 1174 por um arquitecto francês, Guillaume de Sens; seguiram-se-lhe outras obras-primas: a catedral de Lincoln, iniciada em 1192, Saint Andreas de Wells, a abadia de Westminster (1254), a catedral de Saint Trinity, em Gloucester. O gótico alemão não só abrange a Alemanha propriamente dita, como todo o território lingüístico das populações germânicas e estende a sua influência à Europa oriental e à Escandinávia: exemplos seus são a catedral de Colónia, cuja primeira pedra foi lançada em 1248, a catedral de Friburgo, Santo Estêvão em Viena, iniciada na primeira metade do século XIII. Em Espanha e na Itália, o gótico é menos puro, surge, por assim dizer, latinizado, perdendo as suas características mais puras. As manifestações extremas datam dos finais do século XV, com o chamado gótico «flamejante», que, no entanto, não tem a vitalidade criativa anterior(1) Pintura Pode afirmar-se que, em geral, durante o período gótico, a pintura não se reveste do papel fundamental desempenhado em outras épocas da história da arte. De facto, a catedral gótica, devido a preponderância dos espaços vazios sobre os cheios e à falta de paredes compactas, não interrompidas por aberturas, não se presta à presença de uma decoração pictórica: assim, desaparecem os grandes cicios narrativos pintados, a fresco sobre as paredes das igrejas. Excepção feita à Itália, onde se não alcançou o nível de movimento vertical e de leveza das igrejas francesas, inglesas e alemãs e onde, por isso mesmo, sobreviveu o gosto pela pintura mural em ciclos do tema religioso. Pelo contrário, existe uma certa preponderância da pintura profana no adorno das salas dos castelos, das residências senhoriais e dos edifícios públicos. O motivo do seu sucesso é, em grande parte, económico: os frescos representavam um elemento decorativo menos dispendioso, em relação às preciosas tapeçarias com que se recobriam as paredes. Os assuntos preferidos são histórias romanescas ou cenas da vida da corte. Voltando à pintura religiosa, no período que examinamos, na Europa, assiste-se, sobretudo, à difusão das pinturas sobre madeira. Nobres e ricos burgueses encomendavam para a prática das suas devoções, pequenos retábulos ou altares portáteis, enquanto o clero mandava fazer, para os altares das igrejas, grandes pinturas que podem surgir como um ou mais painéis (retábulo), ou serem dobradas em várias partes (políptico). O políptico é uma das formas preferidas da pintura gótica e é a manifestação mais característica dela: trata-se de um conjunto geralmente de grandes dimensões, constituído por vários painéis unidos entre si; quando é apenas de dois painéis, toma o nome de díptico; quando é de três chama-se tríptico. Cada painel é emoldurado por um agudo arco quebrado, às vezes trilobado, apoiado em finos colunelos - uma estrutura que lembra a das janelas góticas. Também a sua decoração, com os seus pináculos e motivos florais, repete os temas característicos da arquitectura. A técnica é, em parte, a mesma da iluminura, com uma grande atenção aos pormenores. O fundo dos painéis é dourado e cria, em volta da figura, uma atmosfera extraterrena, fazendo sobressair, ao mesmo tempo, as outras cores da pintura. Ao artista gótico interessa menos dar a profundidade espacial, ou seja a terceira dimensão que daria realismo à pintura, do que exprimir a atmosfera mística e divina do episódio religioso. Os rostos das personagens, sobretudo das femininas, são doces, serenos, cheios de graça, com linhas ligeiramente estilizadas, segundo um modelo ideal de figura. O mundo figurativo da pintura gótica é um universo de graça, de beleza, de quietude, de equilíbrio, do qual foram eliminados o pecado, a dor, a vulgaridade quotidiana. Naturalmente, o mundo exterior não é assim, mas o artista elimina a realidade que o rodeia, aquela que todos os dias vê, e representa figuras idealizadas, aristocráticas, Madonnas de vestes ondulantes, nas quais o panejamento cai rico e com naturalidade, modelado numa série de linhas curvas que exprimem amor pela geometria (são os temas preferidos, por exemplo por Stefan Lochner e Simone Martini), cavaleiros castos e valorosos nas suas reluzentes armaduras, prelados explendidamente vestidos e ajoelhados em oração. Em geral, estas figuras estão inseridas em estruturas arquitectónicas estilizadas e, quando o artista introduz elementos naturalistas - rochas, árvores, flores - para «criar ambiente», também estes aparecem reproduzidos de maneira bastante esquemática. Existem, como é lógico, excepções a este dicurso sobre as características mais típicas da arte gótica: a mais importante delas é a constituída pela pintura de Giotto