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mil conexıes as sinapses com outros neurônios, isso significa trilhıes de conexıes! Impressionante, nªo? Imaginem a complexidade da rede elØtrica que permite acender e apagar todas as luzes de uma cidade de 12 milhıes de habitantes como o Rio de Janeiro. Pois a circuitaria neuronal de apenas um indivíduo Ø ainda mais complexa! Todos temos na cabeça um cØrebro que funciona de maneira muito semelhante em indivíduos muito diferentes. E para que ele funcione Ø necessÆrio que todos os cabos os axônios estejam corretamente conectados. Mas como o cØrebro, um órgªo assim tªo complexo, com tantas conexıes, Ø formado? Nªo podemos esquecer que nos originamos de uma só cØlula, que se divide vÆrias vezes, gerando cØlulas-filhas que adquirem progressivamente ca- racterísticas específicas e se reœnem para formar os diversos tecidos, órgªos e sistemas do corpo. Em determinado momento, durante o desenvolvimento Há 100 bilhões de neurônios em nosso cérebro. Se cada neurônio faz atØ 10 O cérebro humano, examinado em detalhe, parece um emaranhado de fios, que trazem ao seu interior dados obtidos pelos órgãos sensoriais e levam a todo o corpo informações, por exemplo, de movimento. Como essa complexa rede se forma? O que faz com que nossos 100 bilhões de neurônios, quando começam a crescer, ainda no embrião, projetem seus axônios na direção certa, para alvos às vezes próximos, às vezes distantes, criando as conexões necessárias ao funcionamento normal do sistema nervoso? Esse processo começa a ser desvendado pela ciência, mas ainda há muito a descobrir. Daniela Uziel Departamento de Anatomia, Universidade Federal do Rio de Janeiro 20 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 1 • n º 1 82 N E U R O B I O L O G I A MOLÉCULAS QUE O FechanFechan 4 do embriªo, uma pequena camada de cØlulas come- ça a mudar e dÆ origem ao sistema nervoso. Entre- tanto, Ø necessÆrio um grande nœmero de transfor- maçıes para que essa camada de tecido se torne um cØrebro, com variadas partes e regiıes, de formatos e funçıes diferentes. O que ocorre com as cØlulas nervosas durante a vida embrionÆria pode ser resumido em poucas eta- pas: na primeira, a proliferaçªo, essas cØlulas se multiplicam. Em seguida vem a migraçªo: elas perdem a capacidade de se multiplicar e deslocam- se para sua posiçªo definitiva. Começa entªo a di- ferenciaçªo, ou seja, cada cØlula ganha caracterís- ticas fisiológicas, bioquímicas e morfológicas es- pecíficas, alØm de forma e tamanho diferenciado, e emite vÆrios prolongamentos curtos, os dendritos, e apenas um mais longo, o axônio (figura 1). Os axônios serªo responsÆveis pela etapa se- guinte, a busca dos alvos, que nªo sªo necessaria- mente outros neurônios: podem ser, por exemplo, mœsculos ou glândulas. Seja qual for o alvo, Ø im- portante que o axônio o encontre, para fazer com ele as conexıes que possibilitarªo a passagem de in- formaçıes de uma cØlula para outra, nªo importan- do a distância entre elas. A ligaçªo das cØlulas com seus alvos gera nossa circuitaria neuronal: uma in- trincada rede de conexıes que transmite e proces- sa informaçıes. Feitas as conexıes, hÆ uma etapa final, que inclui um período posterior ao nascimen- to, em que as conexıes errôneas sªo desfeitas e muitas cØlulas morrem, em um processo de refina- mento dos circuitos cerebrais. m a i o d e 2 0 0 2 • C I Ê N C I A H O J E • 2 1 Figura 1. Esquema de um neurônio simples, com poucos dendritos partindo do corpo celular e um axônio com um cone de crescimento na extremidade (à direita) N E U R O B I O L O G I A A D A P TA D O D E FU N D A M EN TA L N EU R O S C IE N C E, 1 9 9 9 . RIENTAM A FORMAÇÃO DO CÉREBRO do circuitosdo circuitos 22 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 1 • n º 1 82 N E U R O B I O L O G I A cia, na extremidade dos axônios, de uma estrutura mais alarga- da, que chamou de cone de cres- cimento. Esse cone, segundo ele, poderia tatear o meio onde crescia, explorando-o e auxilian- do os axônios na busca por seus alvos. Ramon y Cajal estava cer- to, mas naquela Øpoca as tØcni- cas de microscopia nªo permi- tiam desvendar em detalhes co- mo isso ocorre. Hoje, graças a microscópios ópticos mais avan- A busca pelo alvo certo Vamos nos concentrar na fase em que os axônios crescem em direçªo a seus alvos. Às vezes esses axônios percorrem distâncias muito longas, mas chegam aos alvos com sucesso e formam as cone- xıes. Essa Ø a questªo que nos interessa: como um axônio faz para achar seu alvo? Como ele Ø capaz de distinguir um alvo de outro? O que o impede de se perder no meio do trajeto? A pergunta Ø antiga, e a resposta ainda nªo estÆ completa. Em 1893, o grande histologista espanhol Santia- go Ramon y Cajal (1852-1934) jÆ apontou a existŒn- Figura 2. Imagem de um cone de crescimento obtida em microscópio eletrônico de varredura, com aumento de 2.500 vezes EX TR A ÍD O D E W ES S ELS & N U TTA L, EX P . C ELL R ES ., V . 115 , P . 111, 19 7 8 . Figura 3. Os quadrantes da retina do olho de um sapo normal (A) conectam-se com o tecto óptico, no cérebro do animal, do seguinte modo: o quadrante nasal (vermelho) liga-se ao tecto posterior (vermelho), o temporal (verde) ao tecto anterior (verde), o dorsal (amarelo) ao tecto ventral (amarelo) e o ventral (azul) ao tecto dorsal (azul) çados (capazes de registrar axônios vivos e se mo- vendo) e aos microscópios eletrônicos, Ø possível analisar a funçªo e a estrutura dos cones (figura 2). Sabe-se, por exemplo, que esses cones sªo po- bres em organelas, e que sua estrutura bÆsica (o citoesqueleto) apresenta uma rede de microfibras, responsÆveis, em œltima anÆlise, por sua mobili- dade. Na superfície da membrana das cØlulas dos cones existem receptores (estruturas complexas com uma parte essencial protØica) capazes de se ligar a molØculas presentes no meio extracelular ou na superfície de outras cØlulas. Quando um re- ceptor se liga a alguma molØcula extracelular (cha- mada de ligante), esta œltima produz sinais, no in- terior da cØlula, que podem induzir o avanço ou a parada do cone, ou ainda uma mudança na dire- çªo do crescimento. Isso mostra que molØculas de composiçıes variadas, distribuídas ao longo da via de passagem de um axônio, podem interagir com seu cone e guiar sua trajetória. Em 1963, utilizando tØcnicas simples de cirur- gia, marcaçªo de axônios e microscopia óptica, o neurobiólogo norte-americano Roger Sperry (1913- 1994) deu um largo passo na identificaçªo dessas molØculas-guias. O estudo de rªs e salamandras, ani- mais cujo sistema nervoso apresenta rÆpida rege- neraçªo após uma lesªo, o levou à sua renomada hipótese da quimioafinidade. A D A P TA D O D E P R IN C IP LES O F N EU R O S C IEN C E, 2 0 0 0 . m a i o d e 2 0 0 2 • C I Ê N C I A H O J E • 2 3 N E U R O B I O L O G I A na (x+1) liga-se à regiªo y+1 do tecto e assim por diante um sistema de coordenadas que forma um verdadeiro mapa topogrÆfico. Sperry cortou o nervo óptico (constituído pelos axônios da retina que se dirigem ao cØrebro) de um olho dos animais, retirou esse olho e o recolocou de cabeça para baixo (com rotaçªo de 180°). Sua per- gunta era: após a rotaçªo do olho, os axônios dos neurônios da retina atingirªo os mesmos alvos que tinham antes no cØrebro, ou escolherªo alvos ro- dados em 180°? Após a regeneraçªo dos axônios, ele constatou que eles se conectaram com os alvos antigos no tecto óptico e nªo com alvos novos, apesar da rotaçªo do olho (figura 4). A conseqüŒncia funcional era que os animais com os olhos rodados viam o mundo tambØm rodado e se dirigiam erroneamentea seus alvos (figura 5). Com isso, Sperry sugeriu que, ao longo da via de pas- sagem desses axônios, estariam distribuídas vÆ- rias molØculas que atuariam como verdadeiras pis- tas, indicando o caminho e direcionando-os para seu alvo correto. A tecnologia da Øpoca, porØm, nªo permitia a identificaçªo das características mole- culares (se sªo proteínas, gorduras, açœcares etc.) dessas pistas. 4 ‘Pistas’ de atração ou repulsão O progresso das tØcnicas de biologia celular e mo- lecular nos œltimos 10 anos permitiu conhecer mais a fundo essas pistas. Com a decodificaçªo do nos- so código genØtico, aprendemos que muitos genes humanos tambØm fazem parte do DNA de vÆrias ou- tras espØcies. O sistema nervoso nªo foge a essa re- gra: muitas pistas moleculares para o crescimento de neurônios hoje descritas em camundongos e humanos foram identificadas de início nas moscas- das-frutas (do gŒnero Drosophila) ou no verme ne- matóide Caenorhabditis elegans. Observou-se experimentalmente que as pistas poderiam ser atrativas ou repulsivas ao crescimen- to, ou seja, puxariam axônios em direçªo a elas ou Figura 4. Após a rotação do olho em 180°, a regeneração dos axônios da retina poderia levar a novas conexões (juntando, por exemplo, a ‘nova’ retina nasal – antes temporal – ao tecto posterior, o que produziria uma visão normal) ou à reconstrução das conexões anteriores à cirurgia (o que de fato acontece, levando a uma visão ‘invertida’) Para que um animal possa ver, a retina recebe informaçıes lumi- nosas do meio externo e as trans- mite ao sistema nervoso, para que este as processe e compreenda. As conexıes dos neurônios da retina com alvos no tecto óptico (uma Ærea do cØrebro) sªo topo- grÆficas (figura 3). Isso significa que um ponto x da retina esquer- da liga-se à regiªo y no tecto, enquanto o ponto vizinho na reti- Figura 5. Sapos com olhos normais dirigem a língua corretamente a uma presa (A). Um animal que sofresse a rotação do olho e criasse conexões alteradas entre a retina e o tecto óptico também acertaria seu alvo (B), mas na verdade o sapo operado refaz as mesmas conexões que tinha antes da cirurgia, e por isso dirige a língua no sentido errado (C) A D A P TA D O D E P R IN C IP LE S O F N EU R O S C IE N C E, 2 0 0 0 . A D A P TA D O D E P R IN C IP LE S O F N EU R O S C IE N C E, 2 0 0 0 . 24 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 1 • n º 182 N E U R O B I O L O G I A os empurrariam no sentido contrÆrio. Um primei- ro e importante exemplo sªo as netrinas. Elas fo- ram descobertas, em vertebrados, a partir de expe- rimentos do grupo do neurobiólogo Marc Tessier- Lavigne, da Universidade de Stanford (Estados Uni- dos), com a medula espinhal de pintos. A medula, conectada à base do cØrebro, passa por dentro da coluna vertebral e dela partem os nervos que se dirigem a quase todos os órgªos e te- cidos do corpo. Essa estrutura quase cilíndrica, que pode ser dividida em duas metades, contØm gru- pos de neurônios que projetam seus axônios para o mesmo lado (ipsolaterais) ou para o lado opos- to (contralaterais). Os neurônios contralaterais só atravessam de um lado para o outro em um local denominado placa do assoalho, situado na regiªo ventral (inferior) da linha imaginÆria que divide as duas metades (figura 6). Tessier-Lavigne e equipe queriam saber como os axônios de neurônios cujo corpo celular se loca- liza na parte dorsal da medula sªo guiados para a linha mediana, para que possam cruzÆ-la. Eles acom- panharam o crescimento dos neurônios medulares em embriıes de pintos e descobriram que cØlulas da placa do assoalho da medula produziam e libera- vam uma molØcula capaz de atrair esses axônios. Após purificar a nova pista e estudar sua es- trutura (o que revelou uma grande analogia com a UNC-6, molØcula de açªo semelhante no verme C. elegans, um animal invertebrado), os pesquisado- res a batizaram de netrina (a partir de uma palavra do sânscrito que significa direcionar). Para conse- guir a purificaçªo e a identificaçªo da seqüŒncia genØtica que orienta a montagem dessa proteína foram dissecados nada mais nada menos que 20 mil embriıes de pinto um trabalho e tanto! Mas o esforço foi recompensado, jÆ que a netrina represen- Figura 6. Localização da medula espinhal de um rato adulto e cortes mostrando como a netrina, produzida por células da placa do assoalho, difunde-se lateralmente (degradé azul), orientando os axônios: os emitidos por neurônios comissurais dorsais, que em geral cruzam a linha mediana, são atraídos pela netrina, mas os de neurônios motores trocleares, com corpos situados na área ventral, são repelidos por essa molécula e crescem no sentido contrário Figura 7. Neurônios da placa cortical (triângulos) em formação emitem axônios que crescem ao longo da zona intermediária para alvos fora do córtex. Esses axônios são repelidos pela semaforina 3A presente na zona marginal (acima dos corpos neuronais) e são atraídos pela semaforina 3C produzida e liberada por células (em azul) da zona subventricular, mas não entram nessa camada ou na zona ventricular, onde outras células (em vermelho) também produzem e liberam a semaforina 3A tou um ponto de partida impor- tante para a purificaçªo de vÆrias outras pistas moleculares. Logo outros grupos de pesqui- sa identificaram outras molØcu- las capazes de direcionar os axônios. A família das semafo- rinas verdadeiros semÆforos biológicos que determinam a pa- rada ou a continuaçªo do cresci- mento dos axônios parece atuar em diversos sistemas: em axô- nios de nervos que trazem infor- A D A P TA D O D E P R IN C IP LES O F N EU R O S C IEN C E, 2 0 0 0 . A D A P TA D O D E B A G N A R D E O U TR O S , 19 9 8 . m a i o d e 2 0 0 2 • C I Ê N C I A H O J E • 2 5 N E U R O B I O L O G I A 4 maçıes sensoriais perifØricas, em axônios de nervos cranianos, em conexıes entre o córtex cerebral e o tÆlamo (duas partes do sistema nervoso central) e em outros. No desenvolvimento do córtex, os axônios que se dirigem ao tÆlamo sofrem influŒncia repulsiva da semaforina 3A e alteram sua trajetória, atØ en- contrar regiıes onde hÆ semaforina 3C, que favo- rece seu crescimento (figura 7). Como a distribui- çªo dessas semaforinas nªo Ø uniforme, a dire- çªo seguida pelo axônio Ø dada pela interaçªo dos receptores do seu cone de crescimento com as quantidades variÆveis de molØculas no meio. A mesma família de molØculas pode ter alguns tipos que repelem, como a semaforina 3A, e outros que atraem, como a 3C. Mas essa atraçªo ou repul- sªo nªo acontece todas às vezes. A netrina, por exemplo, nem sempre atrai axônios. Tudo depen- de do tipo de receptor com o qual ela vai interagir e da resposta que isso provocarÆ nas vias bioquími- cas da cØlula. Assim, outros grupos de axônios, como os chamados axônios motores trocleares, que nunca se aproximam da linha mØdia, sªo repelidos pela netrina. Outra família de molØculas interessantes Ø a das efrinas. Sperry havia sugerido um mecanismo de interaçªo de receptores com pistas que geravam as conexıes da retina, e recentemente descobriu-se que tais pistas sªo as efrinas. Tais molØculas tŒm receptores específicos, conhecidos pela sigla Eph (do inglŒs ephrin). Tanto os ligantes (efrinas) quanto seus receptores (Eph) estªo distribuídos em quanti- dades crescentes dentro da retina e do tecto essa distribuiçªo característica Ø essencial para a forma- çªo de conexıes entre eles (figura 8). As efrinas tŒm um efeito repulsor e atuam sem- pre ligadas às membranas plasmÆticas das cØlulas. Assim, um axônio que apresente grande quantidade do receptorØ repelido mais fortemente que um axônio com menos receptores. Essa Ø a base mole- cular da formaçªo das conexıes entre retina e tecto óptico. Do tálamo ao córtex cerebral AtØ aqui falamos de pistas que ajudam os axônios a atingirem seus alvos. Agora, surge uma segunda pergunta: como eles fazem para identificar esses alvos, penetrÆ-los e formarem as conexıes propria- mente ditas? O sistema retina-tecto Ø mais simples Figura 8. Representação da imagem do campo visual do animal, na retina e no tecto óptico (A): cada ponto do campo tem seus correspondentes na retina e no tecto. Os gradientes de concentração de efrinas no tecto e de seus receptores Eph na retina (B) orientam a distribuição topográfica das conexões: axônios que partem da retina nasal, com pequenas quantidades do receptor, conectam-se ao tecto posterior, rico em ligantes, e os que saem da retina temporal ligam-se ao tecto anterior, pobre em ligantes Figura 9. Cérebro humano (A) em vista lateral, com o plano do corte mostrado em (B), onde aparecem as substâncias cinzenta (em rosa) e branca do córtex cerebral, outras estruturas subcorticais e a indicação da área ampliada em (C) – esta exibe as seis camadas do córtex (de espessura variável, de acordo com a região cerebral), cada uma com tipos de neurônios diferentes (visualizados com métodos de coloração específicos) A D A P TA D O D E P R IN C IP LE S O F N EU R O S C IE N C E, 2 0 0 0 . A D A P TA D O D E FU N D A M EN TA L N EU R O S C IE N C E, 1 9 9 9 . 26 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 1 • n º 182 N E U R O B I O L O G I A e os axônios podem encontrar seus alvos com base em um esquema simples de distribuiçªo de molØ- culas. JÆ o córtex cerebral, por exemplo, Ø bem mais complexo. No caso do neocórtex (figura 9), existem seis camadas distintas, alvos de inœmeros axônios que partem principalmente do tÆlamo estrutura intermediÆria essencial no processamento de in- formaçıes que chegam do meio externo ao cØrebro. O tÆlamo Ø dividido anatomicamente em nœ- cleos, e os grupos de cØlulas nervosas de cada nœ- cleo dirigem seus axônios a uma determinada re- giªo do córtex cerebral e nªo a outras. O nœcleo ventrobasal do tÆlamo, por exemplo, conecta-se com o córtex sensorial, trazendo informaçıes de tato (figura 10). As cØlulas desse nœcleo nunca se ligam a regiıes relacionadas à visªo ou à emoçªo. Como os axônios emitidos identificam a Ærea e a camada cortical correta? SerÆ que os axônios jÆ carregam essa informaçªo ao chegar às regiıes nas quais devem criar conexıes? As pistas que dire- cionam os axônios atØ seus alvos tambØm sªo œteis nessa etapa? As efrinas, que atuam como sinalizadores na formaçªo de conexıes entre retina e tecto óptico, estªo presentes tambØm no córtex, mas ali sua estratØgia de açªo Ø outra: elas parecem definir os limites de certas Æreas dessa parte do cØrebro. A efrina-A5, por exemplo, Ø produzida por cØlulas do córtex sensorial somÆtico e parece realmente deli- mitar suas bordas. Em meu doutorado, associado ao grupo do pes- quisador Jürgen Bolz, na Universidade Friedrich Schiller, em Jena (Alemanha), comparei a anato- mia das conexıes entre o tÆlamo e o córtex em ca- mundongos normais e em animais sem o gene da efrina-A5 (animais nocautes, em que esse gene foi retirado por engenharia genØtica). Essa compara- çªo evidenciou que a presença dessa molØcula im- pede a invasªo da regiªo sensorial somÆtica por Figura 10. Corte do cérebro de camundongo, mostrando, em A, toda a via do tálamo ao córtex somato-sensorial: núcleo ventrobasal (VB) do tálamo, cápsula interna (CI) e córtex sensorial somático (S1). Em B, aproximação da área pontilhada à esquerda, após a aplicação de um marcador de neurônios no núcleo, que permite visualizar os axônios que atravessam a cápsula interna e chegam ao córtex, terminando especificamente nas camadas 4 e 6 (em animais normais, só o córtex sensorial somático aparece marcado) Figura 11. Hibridização in situ (método que permite visualizar RNA mensageiro) para efrina-A5 no cérebro de um camundongo com um dia de vida – como a concentração dessa molécula é maior nas áreas mais claras, a imagem revela que ela está mais presente na região dorsal (pontilhada), em especial na área sensorial somática A D A P TA D O D E D . U ZIEL (TES E D E D O U TO R A D O ), 2 0 0 1. A D A P TA D O D E M A C K A R ETS C H IA N E O U TR O S , 19 9 9 . A B m a i o d e 2 0 0 2 • C I Ê N C I A H O J E • 2 7 N E U R O B I O L O G I A Sugestões para leitura EAGLESON, K. L. & LEVITT, P. ‘Complex signaling responsible for molecular regionalization of the cerebral cortex’, in Cerebral Cortex, v. 9 (6), p. 562, 1999. GOODMAN, C. S. & TESSIER- LAVIGNE, M. ‘Molecular mechanisms of axon guidance and target recognition’, in Molecular and cellular approaches to neural development, Nova York, Oxford University Press, 1997. RAGSDALE, C. W. & GROVE, E. A. ‘Patterning the mammalian cerebral cortex, in Current Opinion in Neurobiology, v. 11(1), p. 50, 2001. UZIEL, D. ‘Pistas moleculares no desenvolvimento da via tálamo- cortical’ (tese de doutorado), Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (UFRJ), 2001. outros axônios vindos do tÆlamo que nªo sejam os lançados por neurônios do nœcleo ventrobasal (figura 11). Axônios de outros nœcleos, que expressam receptores para efrina-A5, sªo repe- lidos e nªo entram nessa Ærea. Em animais nocau- tes, que nªo produzem a efrina-A5 no córtex, a re- giªo sensorial Ø erroneamente invadida por axô- nios que normalmente inervam o córtex cingu- lar, vinculado às emoçıes. Outra questªo aparece nesse ponto: depois que o axônio identifica sua Ærea cortical adequada, co- mo ele reconhece a camada certa do córtex, entre as seis existentes? Os axônios que chegam do nœcleo ventrobasal do tÆlamo conectam-se com cØlulas das camadas 4 e 6, mas nªo ou muito pouco com as camadas 1, 2/3 e 5. Existiriam entªo identificado- res específicos de camada? É o que outros dados de meu trabalho indicam. Para se conectarem com as cØlulas do córtex, os axônios que ali chegam emitem pequenos ramos que irªo tocar essas cØlulas e formar sinapses nes- ses pontos. Por que isso nªo acontece em outras camadas? No caso do córtex sensorial somÆtico, a efrina-A5 estÆ expressa na camada 4 no momento em que os axônios talâmicos a invadem (figura 12), e a presença dessa molØcula estimula a formaçªo das ramificaçıes na extremidade desses axônios. Para estudar esses pequenos ramos trabalhamos com fatias de cØrebro cortadas de forma a preser- var o trajeto dos axônios do tÆlamo atØ o córtex. Corantes adequados permitem que essas pequenas Ærvores nas extremidades dos axônios sejam vistas em um microscópio confocal, capaz de obter ima- gens em planos de foco diferentes. Foi constatado que, nos animais geneticamente modificados, sem a efrina-A5, os axônios oriundos do tÆlamo formam menos ramos na camada 4, em relaçªo aos animais normais, o que prejudica a conexªo. No entanto, mesmo na ausŒncia dessa molØcula nªo hÆ invasªo das camadas adjacentes (3 e 5). Uma possível ex- plicaçªo para isso Ø a existŒncia de outras molØcu- las, ainda nªo identificadas, que limitariam o acesso dos axônios apenas à camada 4 assim, o território das camadas adjacentes nªo favoreceria o cres- cimento de ramos. Perguntas sem resposta Esses exemplos demonstram a complexidade dos mecanismos utilizados pelo cØrebro para esta- belecer suas conexıes correta- mente e de modo semelhante em bilhıes de indivíduos isso con- tando apenas a espØcie humana. Fica claro que essas conexıesnªo sªo feitas ao acaso. HÆ de fato um papel ativo de determinadas molØculas, que atraem os axônios em crescimento para seus alvos corretos e os afas- tam dos errôneos. Muitas perguntas, porØm, ainda estªo sem res- posta. Por exemplo: serÆ que um axônio sabe com que cØlulas exatamente vai se ligar? A comprova- da existŒncia de pistas moleculares explica como os axônios acham seu alvo em um contexto mais geral, mas serÆ que uma determinada cØlula (ou um grupo delas) apresenta um sinal específico de alvo? É como se uma pessoa tivesse um endereço onde constassem o país, a cidade, o bairro e a rua, mas faltasse o nœmero da casa. Quando chegasse ao lo- cal, ela saberia onde procurar? Como o axônio faz para reconhecer aquela cØlula-alvo? Se tudo isso jÆ parece complexo, pensem que este texto só aborda, e de forma resumida, uma das etapas do desenvolvimento dos neurônios! Ain- da existem outras molØculas que atuam na migra- çªo dessas cØlulas, em sua diferenciaçªo e em ou- tros aspectos da formaçªo do cØrebro, e muitas podem participar de diferentes etapas. TambØm devemos somar a essas molØculas produzidas em nosso organismo os sinalizadores intrínsecos as possíveis influŒncias do meio externo sobre o processo de desenvolvimento neuronal. Podemos deduzir daí que cada passo desse pro- cesso pode sofrer alteraçıes, mutaçıes e erros, que talvez sejam responsÆveis por uma parte das doenças que afetam o sistema nervoso. Entretan- to, mesmo envolvendo mecanismos tªo comple- xos e tªo sujeitos a erros , esse desenvolvimen- to, surpreendentemente, produz um cØrebro nor- mal na imensa maioria das pessoas! Ainda hÆ muito a descobrir antes que possamos entender co- mo sªo orquestrados e executados esses inœme- ros passos, atØ que o cØrebro esteja completo, mas estamos chegando lÆ! n Figura 12. Hibridização in situ para efrina-A5 no cérebro de um camundongo com seis dias de vida, indicando que essa molécula se concentra na camada 4, delimitando-a. Essa efrina primeiro define a área-alvo (ver a figura 11) e poucos dias depois delimita uma camada específica, atuando como uma ‘etiqueta’ de regiões que devem ou não ser inervadas A D A P TA D O D E C A S TE LL A N I E O U TR O S , 1 9 9 8 .
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