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Para entender o antigo testamento - Estevão Bettencourt

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• .1 9! 
p 
4..- 	 - 
O estudo da Sagrada Fitura des- 
perta cada vez maior Interêsse em 
nossos dias. Os problemas da hora 
presente têm obrigado os homens a 
recorrer sequlosamente às fontes onde 
possam encontrar a sabedoria da vi-
da, as normas para proceder no mo-
mento atual. Ora entre essas fontes 
se acham em lugar eminente os livros 
da Biblia, que contêm os princípios 
sõbre os quais se construiram quase 
20 séculos de civilização cristã. 
que explica que estudiosos de corren-
tes assaz diversas estejam voltando 
atenção crescente para a Escritura 
Sagrada e as questões a elas atinen-
tes; haja vista o grande Interésse 
com que têm sido analisados por ca-
tólicos, protestantes, judeus e racio-
nalistas os manuscritos recéxn-desco-
bertos junto ao Mar Morto (alguns 
julgaram poder haurir dêles nova 
compreensão da civilização contem-
porânea). Em particular, aos fiéis ca-
tólicos impõe-se a necessidade de 
aprofundarem seus conhecimentos de 
Sagrada Escritura, já que esta é o 
manancial por excelência da vida e 
da piedade cristãs. 
Contudo não é fácil, ao primeiro 
contato, compreender os livros da Bi-
blia; foram redigidos em épocas muito 
remotas (os mais recentes datam do 
fim do séc. 1 d. O., enquanto os mais 
antigos são do séc. XIII a. O.), em 
ambiente semita ou helenista e se-
gundo modos de falar bem diversos 
dos que hoje estão em uso. Principal-
mente o Antigo Testamento apresenta 
dificuldades, não raro ventiladas em 
conferências ou em simples conversas 
de amigos. Católicos e não-católicos 
nessas ocasiões gostariam de conhe-
cer melhor a mentalidade, a alma 
religiosa, que movia os judeus do An-
tigo Testamento; gostariam também 
de possuir normas objetivas, deriva-
das da moderna filologia, arqueologia, 
etc., que os ajudassem a interpretar 
as passagens controvertidas. 
Foi em vista de tais dlficuldade, 
que o presente livro se originou. 
A obra começa por propor algumas 
noções concernentes á redação dos li-
vros sagrados: o conceito de inspira-
ção biblica (esta não dispensa, mas, 
ao contrário, utiliza o cabedal de 
cultura, rica ou pobre, de um autor 
humano), a mentalidade e os modos 
de falar característicos dos judeus (o 
"gênio" da língua hebraica), o em-
prêgo de antropomorfismos, nomes e 
números na literatura semita. Vêm 
depois questões referentes ao conteú-
do dos livros sagrados: antes do mais, 
é exposto o significado positivo, o va-
lor perene que o Antigo Testamento 
(continua na 2. 11 orelha) 
- 
t .. 
' 	 I 
PARA ENTENDER 
roi 
ANTIGO TESTAMENTO 
DOM ESTÊVÃO BETTENCOURT O.S.B. 
PARA ENTENDER 
ANTIGO TESTAMENTO 
"Quando nasceu..., padeceu, ressus-
citou e subiu aos céus, Cristo abriu o livro 
do Antigo Testamento, pois realizou por 
atos quanto ali por figuras era insinuado". 
(Berengáudio, séc. IX). 
1956 
L2vrarza AG 1 R &dgarc, 
RIO DE JANEIRO 
Copyright de 
ARTES GRAFICAS INDÚSTRIAS REUNIDAS S. A. 
( A G I R ) 
NIHIL OBSTAT 
Côn. J. A. de Castro Pinto 
Rio, 9-7-1956 
PODE IMPRIfl-SE 
Rio, iO de julho de 1956 
Mons. Caruso 
Vigário Geral 
CUM PERMISSU SUPERIOR UM ORDINIS 
L2vrana AG 1 R 
Rua Bráulio Gomes, 125 Rua México, 98-E Av. Afonso Pena, 919 
(ao lado da Bibi. Mun.) Caixa Postal 3291 Caixa Postal 733 
Caixa Postal 6040 'rei.: 	 2-3038 
'rei.: 34-8300 Tel.: 	 42-8327 Belo Horizonte 
São Paulo, S. P. Rio de Janeiro Minas Gerais 
ENDEREÇO TELEGRAFICO: "AGIRSA" 
INDICE 
Págs 
ABREVIATURAS E EXPLICAÇÕES 	 9 
PREFACIO.........................................................11 
CAI'. 1—O PROBLEMA BÍBLICO E SEU PRINCÍPIO DE SOLUÇAO.. 15 
§ 	 l.° O 	 problema 	 ........................................ 15 
§ 2.° O 	 princípio 	 de 	 solução 	 ............................. 19 
o tema da Sagrada Escritura ............... 19 
a Escritura, patrimônio da Igreja . .......... 21 
CAI'. ri— LIVRO INSPIRADO POR DEUS ........................... 25 
§ 	 1.0 Que se entende por inspiração bíblica 9 25 
2.° A Sagrada Escritura e as Ciências Naturais ....... 30 
§ 3.0 Como o israelita escrevia a História 	 ................ 32 
CAP. m - PARTICULARIDADES DE LINGUAGEM DOS SEMITAS.. 39 
§ 	 1.0 O génio da língua hebraica 
	 ......................... 40 
2.0 Os 	 antropomorfbsmos bíblicos 
	 ...................... 52 
1. A 	 natureza 	 personificada 	 .......................... 52 
2. Deus semelhante ao homem no Antigo Testamento .. 53 
a) 	 o significado geral dos antropomorfismos .. 54 
b) 	 o sentido de alguns antropomorfismos em 
particular 	 ................................ 57 
Apêndice 
- O valor da linguagem shnbolista .............. 60 
CAI'. IV 
- NOME E NÚMEROS NA SAGRADA ESCRITURA .......... 61 
§ 1.0 A 	 filosofia 	 do 	 nome 	 ............................... 61 
* 2.0 Os números nos textos bíblicos 	 ..................... 65 
 Os números simbolos de qualidades 	 ................ 65 
 Alguns aspectos do simbolismo dos números ........ 67 
A - O simbolismo do número como tal ........... 61 
E - O simbolismo peculiar de alguns números 68 
a) 	 o 	 número 	 sete 	 ........................... 69 
b) 	 o 	 número 	 três 	 ........................... 70 
c) 	 o 	 número 	 dez 	 ........................... 70 
d) 	 o 	 número 	 doze 	 .......................... 71 
S. Enumerações proverbiais e arredondadas 	 .......... 71 
 Números mal transmitidos 	 ......................... 74 
 Sentido exclusivo e sentido precisivo 	 ............... 17 
6 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
Págs. 
GAP. V - O SIGNIFICADO DO ANTIGO TESTAMENTO ............19 
§ 1.0 Diversas etapas e uma só meta .....................80 
§ 2.0 Os tipos bíblicos ...................................86 
CAP. VI— AS LINHAS MESTRAS DA SAGRADA ESCRITURA ...... 93 
§ 	 1.0 A artéria central da Sagrada Escritura: a figura do 
Messias.......................................... 94 
§ 29 Os fios condutores do Antigo Testamento ........... 98 
 O tema da escolha gratuita ou da fôrça de Deus que 
se manifesta na fraqueza do homem ............. 98 
 O 	 tema 	 da 	 Aliança 	 ................................ 101 
 
O tema da prevaricação e da restauração corres- 
pondente 	 ........................................ 103 
 O 	 tema 	 do 	 deserto 	 ................................. 105 
 
O tema da habitação de Deus 	 ..................... 105 
 O 	 tema 	 do 	 maná 	 .................................. 107 
 O 	 tema 	 da 	 videira 	 ................................ 110 
 O 	 tema 	 do pastor 	 .................................. 112 
CAP. VII - A MORALIDADE DO ANTIGO TESTAMENTO (1) - O 
HERDEIRO EM IDADE INFANTIL .................. 115 
CAP. VIII— A MORALIDADE DO ANTIGO TESTAMENTO (II) - OS 
DESMANDOS DA CRIANÇA ......................... 123 
§ 1.0 A 	 lei 	 do 	 talião 	 .................................... 123 
§ 2.0 O 	 externiinlo 	 dos 	 inimigos 	 ........................ 125 
§ 3.0 As 	 imprecações 	 .................................... 132 
§ 4? Poligamia, 	 divórcio 	 e 	 incesto 	 ...................... 134 
poligamia 	 .................................. 134 
divórcio 	 .................................... 137 
e) 	 ulteriores 	 aspectos 	 ......................... 138 
§ 5.0 Mentira 	 e 	 fraude 	 .................................. 140 
a fraudulência do Patriarca Jacó 	 .......... 140 
Judite, Aod e Jael: a amabilidade a serviço 
do 	 morticínio 	 ........................... 114 
§ 6.0 Pureza 	 e 	 impureza 	 ritual 	 .......................... 146 
7.° A 	 escravatura 	 ..................................... 150 
CAP. IX 
- O "DEUS DE JUSTIÇA" DO ANTIGO TESTAMENTO ..... 151 
§ 1.0 Um 	 principio 	 geral 	 ................................ 151 
§ 2 0 O recenseamento pecaminoso 	 ...................... 152 
§ 3.0 O "mau espirito" do Senhor 	 ........................154 
§ 4.0 O 	 Deus 	 que 	 fuimina 	 ............................... 157 
§ 5.° Conclusão 	 ......................................... 161 
ÍNDICE 	 7 
Págs. 
CAP. X - SANGUE E VIDA 	 . 165 
1.0 "Sem efusão de sangue não há remissão de pecado." 
(Hebr 	 9,22.) 	 ................................... 166 
29 "Quem come a minha carne e bebe o meu sangue 
possui a vida eterna." (Jo 6,54.) ................ 171 
CAP. XI - DOENÇAS E SONHOS 	 ................................... 175 
§ 	 1.0 	 As 	 doenças 	 ........................................ 175 
Entre 	 as 	 nações 	 pagãs 	 ............................ 175 
No 	 povo 	 de 	 Israel 	 .................................. 178 
§ 	 29 	 Os 	 sonhos 	 .......................................... 183 
CAP. XII - A SORTE PÓSTUMA NA EXPECTATIVA DO POVO DE 
DEUS ............................................... 189 
§ 	 1.° 	 No inexorável fôsso dos mortos 	 ..................... 189 
§ 2.0 	 A 	 grande 	 surprêsa 	 póstuma 	 ....................... 196 
CAP. XXII - 'PRODIGIOS" E PRODÍGIOS DO ANTIGO TESTA- 
MENTO ........................................... 201 
§ 1» 	 A mulher de Lote transformada em estátua de sal 
(Gên 	 19,15-26) 	 .................................. 202 
§ 2.° 	 As dez pragas do Egito 	 (Êx 7,14-12,36) 	 ............. 205 
§ 3.0 	 A passagem do Mar Vermelho e do Rio Jordão 210 
A travessia do Mar Vermelho (Êx 14,5-31) 	 ......... 210 
A passagem do Rio Jordão (Jos 3,7-17) 	 ............. 212 
§ 4.° 	 A queda dos muros de Jericó (Jos 6,1-20) 	 ........... 214 
§ 5.0 	 O maná (Êx 16,2-36; Núm 11,4-9; Sab 16,20-29) 	 .. . 219 
§ 6.0 	 Balaã e o asno que falou (Núna 22,22-35) 	 ........... 223 
§ 	 7.0 	 A história de Sansão 	 (Jz 	 13-16) 	 .................... 226 
CAP. XIV - COMO LEREI A BÍBLIA" 	 ............................. 233 
§ 	 1 0 	 Os pressupostos de frutuosa leitura 	 ................ 233 
1. 	 Pré-requisitos 	 naturais 	 ............................ 233 
A - Boa edição do texto sagrado 	 ................ 233 
B - Noções 	 introdutórias 	 ........................ 235 
2. 	 Pé-requisitos 	 sobrenaturais 	 ....................... 236 
§ 	 2 0 	 Itinerário 	 através 	 da 	 Biblia 	 ....................... 240 
§ 	 3.0 	 Pequena antologia 	 bíblica 	 .......................... 245 
MAPA ILUSTRATIVO DO ËXODO E, EM PARTICULAR, DA TRA- 
VESSIA DO MAR VERMELHO (Êx 12,31-14,31) 	 .............. 253 
TABELA 	 CRONOLÓGICA 	 ........................................... 257 
LISTA DOS TEXTOS BÍBLICOS MAIS PARTICULARMENTE CONSI- 
DERADOS ................................................... 261 
ÍNDICE DE NOMES E TEMAS 
	
....................................... 262 
ÍNDICE DE AUTORES CITADOS 	 .................................... 265 
ABREVIATURAS E EXPLICAÇÕES 
1. ABREVIATURAS 
Os livros da Sagrada Escritura são brevemente citados como se 
segue 
ANTIGO TESTAMENTO 
Gên Gênesis Sab Sabedoria Éx Êxodo Edo Eclesiástico 
Lev Levitico Is Isaias 
Nún Números Jer Jeremias 
Dt Deuteronômio Lam Lamentações 
Jos Josué Bar Baruque 
Jz Juizes Ez Ezequiel 
Rut Rute Dan Daniel 
5am Samuel Os Osélas 
Es Reis 31 Joel 
Par Paralipômenos Am Amós 
(Crôn) (ou Crônicas) Aix! Abdias 
Esdr Esdras Jon Jonas 
Ne Neemias Miq Miquéias 
Tob Toblas Na Naum 
Jdt Judite Hab Habacuque 
Est Ester Sof Sol onias 
JÓ Jó Ag Ageu 
Si Saimos Zac Zacarlas 
Prov Provérbios Mal Malaquias 
Eci Eclesiastes Mac Macabeus 
Cânt Cântico dos Cânticos 
NOVO TESTAMENTO 
ivIt Mateus Tes Tessalonicenses 
Mc Marcos Tim Timóteo 
Le Lucas Ti rito 
Jo João FIm Filêmon 
At Atos dos Apóstolos Hebr Hebreus 
Rom Romanos Tg Tiago 
Cor Coríntios Pdr Pedro 
Gâl Gálatas 1.2.3. Jo João (epístolas) 
El Eféslos Jud Judas 
Fip Filipenses Apc Apocalipse 
Co! Colossenses 
A vírgula separa capitulos de versiculos. 
O ponto-e-virguia separa capítulos. 
O ponto separa versiculos. 
O hífen separa tanto versiculos como capítulos, incluindo na cita-
ção os versículos e capítulos intermédios. 
10 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
Um s após um número indica a unidade imediatamente seguinte. 
a, b, e, junto ao número de um versículo, designam respectivamente 
a primeira, a segunda, a terceira parte do versículo. 
Além disto, note-se 
LXX = tradução grega do Antigo Testamento efetuada aos poucos 
no Egito, do século III ao século 1 ai]. Antiga tradição, hoje destituída 
de autoridade, narrava que o Pentateuco (Gên, Êx, Lev, Núm, Dt) havia 
sido traduzido por setenta e dois judeus no espaço de setenta e dois dias. 
Daí o título: tradução "dos Setenta Intérpretes" (LXX). 
Vg = edição latina dos textos bíblicos devida a São Jerônimo (t 420). 
Lste traduziu diretamente do hebraico os livros do Antigo Testamento que 
êle julgava canõnicos ou inspirados; quanto aos do Novo Testamento, 
retocou a tradução latina já existente no século IV. O novo texto assim 
apresentado aos cristãos em breve se tornou de uso comum; donde o nome 
de "Vulgata" (forma) (Vg). 
ca. = cêrca 
2. EXPLICAÇÕES 
Apocalipse (em grego, apokálypsis = revelação): gênero literário 
em que o autor, às vêzes revestindo a autoridade de antigo personagem, 
descrevia acontecimentos presentes e futuros (de preferência, a vinda 
do Messias e a instauração cIo seu reino glorioso), a fim de consolar os'lei-
tores atribulados. Apresentando as provações de sua época como coisas já 
previstas por Deus, avivava naturalmente a confiança dos leitores no au-
xilio da Providência. 
Apócrifo (em grego, apókryplwn = oculto, secreto): nome que de-
signa livros redigidos por judeus ou por antigos cristãos segundo o estilo 
das Escrituras Sagradas, mas carecentes da prerrogativa da inspiração 
bíblica. Êsses escritos podiam edificar os fiéis e gozar de certa autoridade; 
contudo não eram lidos nas assembléias de culto público; donde a designa-
ção de 'ocultos" ou "secretos". Entre os apócrifos figuram os numerosos 
"Apocalipses" da literatura rabinica. 
Em oposição aos apócrifos, distinguem-se os livros canónicos, isto 
é, enumerados no cãnc,n (em grego, leanón = regra, catálogo) das Escri-
turas inspiradas ou da Biblia. 
Escatologia (do grego éschaton = último, e lógos = palavra, dis-
curso): nome do tratado teológico concernente às coisas últimas ou à con-
sumação, seja do individuo, seja do universo. 
Hagiçigrafo (em grego, hagiógraphos = escritor sagrado): nome 
geralmente atribuido aos autores de livros da Sagrada Escritura. 
Javé: nome com que o Criador se deu a conhecer a Moisés, quando 
lhe revelou o seu desígnio de tirar do Egito a nação israelita e dela fãzer 
o pova de Deus por excelência (cf. Êx 3,13-15). A luz da filologia hebrai-
ca, o termo significa "Êle é" ou "Aquêle que é"; designa Aquêle que sem 
restrição possui o ser ou Aquêle cuja existência é soberana e cuja ativi-
dade é sumamente eficaz. Nas circunstâncias em que foi revelado, tal 
nome inculcava a imutabilidade de Deus, a fidelidade absoluta do Senhor 
às suas promessas, em particular à Aliança que estava para pactuar com 
Israel ao pé do monte Sinai; cf. Is 42,8. 
Depois que a antiga Aliança cedeu à nova e definitiva Aliança, 
selada pelo sangue de Cristo, o nome "Javé" caiu naturalmente em de-
suso no povo de Deus, ou seja, entre os cristãos. 
PREFÁCIO 
Quem sinceramente procura a Deus, é não raro detido por 
dificuldades que lhe provêm do contato com a própria Palavra de 
Deus, em particular com os livros sagrados ditos do "Antigo Tes-
tamento" 
Os problemas surgem, mais avultados talvez, para aquêles 
que não possuem a fé, mas em sua lealdade estão dispostos a se 
render a tudo que seja bom e belo. Tais pessoas lêem o Evange-
lho, que lhes apresenta a figura do Cristo, com sua doutrina, e 
julgam-na muito nobre; sem dificuldade reconhecem-na como 
digna e autêntica mensagem de Deus. Mas, desde que se lhes 
anuncie o nexo indissolúvel existenteentre os Santos Evangelhos 
e o Antigo Testamento, arrefecem em seu entusiasmo: o fundo 
ao qual se sobrepõe a Revelação cristã, lhes parece muito diverso 
desta e, por isto, inaceitável. Em conseqüência, deixam-se ficar 
hesitantes diante da porta da Igreja do Cristo ou vão perder-se 
por novos "caminhos" de procura da Verdade, longe do Cristo, 
que é justamente o Caminho, a Verdade e a Vida (cf. Jo 14,6)! 
Dúvidas existem também na mente de não poucos fiéis cató-
licos, os quais por vézes se vêem um tanto surpresos diante de 
passa gens do Antigo Testamento; preferem, por isto, deixar fe-
chada a parte inicial, a metade ou mais da metade da Biblia Sa-
grada. Esta - embora a reconheçam como Palavra de Deus - 
lhes parece ter quase esgotado em séculos anteriores a sua men-
sagem; nos tempos atuais, pouco teria que dizer. 
Sugeridas pelo desejo de auxiliar a uns e outros, originaram-
-se estas páginas. Têm por finalidade ir ao encontro daqueles que 
revolvem problemas de ordem religiosa ou filosófica, problemas 
capitais entre todos os demais, e não raro cruciantes, pois tocam 
as questões de origem, fim, significado do homem e de sua exis-
tência na terra. 
Visando, pois, despertar a alegria que jorra dlo conhecimento 
da Verdade, os capítulos dêste livro tendem a mostrar que as 
Escrituras antigas não contêm apenas episódios complicados, 
desconcertantes,... e que, mesmo quando apresentam coisas 
dêste gênero, são sempre portadoras, em seu âmago, de mensa-
gem valiosa, perene como a própria Palavra de Deus (cf. Is 40,8). 
Inspirado pelo Espírito Santo antes do Cri-sto e em vista do Cristo, 
o Antigo Testamento não perdeu seu significado após a vinda do 
Messias; antes, como diz a tradição cristã, adquiriu novo poder 
12 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
de expressão, tornou-se o "cântico novo" (cf. Is 42,10), que glori-
fica o Redentor outrora aguardado, hoje presente entre nós. 1 Com 
efeito, os escritores sagrados de Israel se referiam ao Messias por 
meio de símbolos e sentenças misteriosas; a vinda do Cristo só fêz 
tornar patente o significado profundo de tais acenos. Éstes agora, 
num só côro com os escritos do Novo Testamento, concorrem para 
ilustrar a figura do Senhor Jesus, figura que está esculpidia sõbre 
a face da história inteira do gênero humano. 
Para melhor dar a entender o valor cristão do Antigo Testa-
mento, têm-se proposto na literatura moderna comparações assaz 
significativas. 
Poderia ser assemelhado a um clichê... Êste representa um 
objeto preciso, gravado sôbre a sua superfície, indiscernível, 
porém, enquanto o clichê não é revelado, ou submetido a unt "re-
velado?' que o torne claro, luminoso. Ora o "revelador" que deu 
clareza, luminosidade plena ás páginas do Antigo Testamento, 
tornando-as, por assim dizer, coloridas e vivas, foi o Senhor Jesus 
com o seu Evangelho. Pode-Àe, outrossim, lembrar o caso de um 
homem que considerasse uma tela de pintura rematada e depois 
lançasse os olhos sôbre o esquema ou croqui cIo mesmo quadro; 
tal observador saberia descobrir no esbôço muito mais acenos ou 
riquezas do que aquêle que não conhecesse a obra terminada. 
Assim fala o Antigo Testamento ao leitor que, depois de conhecer 
o Cristo, se aplica aos escritos sagrados de Israel. 
"A Antiga Aliança é tão cristã quanto a Nova; há di)' e-
rença apenas no modo como Deus ensina: modo ora claro, ora 
ftgurado." (C. Splcq, L'Epitre aux Hébreux, 1., Paris, 1952, 331.) 
Na base destas considerações, vê-se bem que não pode haver 
compreensão do Evangelho nem renovação da catequese cristá 
(renovação que muitas e belas iniciativas hoje em dia procuram 
realizar) senão mediante a devida utilização dos escritos do An-
tigo Testamento. A vida cristã, para ser cada vez mais vigorosa, 
há de saber sempre melhor nutrir-se da Palavra de Deus, tal como 
o Senhor a comunicou aos homens. 
É o que, com sua linguagem, parecem incutir os aconteci-
mentos mesmos dos últimos decênios. As excavações arqueoló-
gicas no Oriente trouxeram ao conhecimento do público impor-
tantes dados, que permitiram aos estudiosos como que reviver 
episódios do Antigo Testamento; as páginas dêste parecem aos 
eruditos ter sido também recém-descobertas (atesta-o bem o tí-
tulo da obra de H. H. Rowley: The Rediscovery of the Olá Testa-
ment, Londres, 1945). Ora a impressão de que a antiga Lei se 
tornou nova no setor das investigações científicas deve suscitar 
1 "O Antigo Testamento é como que o cântico novo a significar por Imagens 
e figuras múltiplas a mesma realidade que o Novo Testamento." (Ruperto de Deutz, 
séc. XII, ixi Apoc 1.9). 
PREFÁCIO 	 13 
efeito semelhante no espírito daqueles que consideram os escritos 
de Israel não apenas como livro de erudição humana, mas princi-
palmente como código de Sabedoria sobrenatural: mais clara-
mente apreciado na qualidade de LETRA ou doctmentó literário, 
o Antigo Testamento não poderá deixar de ser também mais valor 
rizado como ESPÍRITO e ViDA ou mensagem de Deus aos homens 
(cf. 2 Cor 3,3.6; Jo 6,63). 
Não seria suficiente, porém, dizer que a situação dos cristãos 
peregrinos neste mundo só se entende como prolongamento de 
uma história pré-cristã: a própria consumação final é anunciada 
pela Palavra de Deus mediante alusões contínuas a tipos e episó-
dios do Antigo Testamento. Assim o tema da "Cidade Santa, Je-
rusalém nova, trajada como a noiva que vai ao encontro de seu 
noivo" (Apc 21,2), faz ecoar acordes disseminados por todo o An-
tigo Testamento; o quadro do paraíso, lugar de felicidade dos pri-
meiros pais (cf. Gên 2), é reproduzido no Apocalipse ou na cena 
final dos séculos (cf. 22,2-5); a terra "onde correm leite e mel" 
(cf. Êx 3,8), prometida ao povo de Deus nos inícios da história 
sagrada, é anunciada também por Jesus aos mansos de coração 
(cf. Mt 5,5) e só será plenamente concedida quando céu novo e 
terra nova forem instaurados na criação (cf. Apc 21,1). 
Assim as figuras esquemáticas do Antigo Testamento rece-
bem nas últimas páginas da Bíblia os matizes mais vivos possi-
veis e são, já plenamente desabrochadas, ainda uma vez apresen-
tadas ã consideração do leitor. As Escrituras israelitas aparecem 
então qual maqueta (de argila, cêra ou madeira) de edificio fiz-
turo, maqueta cujas linhas, longe de ser abandonadas pelo Arqui-
teto do mundo e dos séculos, vão sendo reproduzidas lenta e fiel: 
mente, em proporções mais amplas e com material definitivo, ate 
se completar a construção (cf. Hebr 11,8-10). No fin dos tempos, 
e sàmente então, o Antigo Testamento desvendara todo o seu 
sentido. 
* * * 
Uma vez proposta a finalidade destas páginas, resta indicar 
o roteiro que percorrem. 
Depois de estabelecido um princípio que é chave para a 
solução de qualquer dificuldade bíblica (cap. 1), são focalizadas 
questões de redação e forma literária dos escritos sagrados: o sen-
tido da inspiração bíblica (cap. 11), algumas notas características 
da linguagem semítica ou israelita (caps. 1H e IV). 
A seguir, aborda-se o conteúdo mesmo do Antigo Testa-
mento: 
Primeiramente, o que há de positivo, a mensagem perene das 
Escrituras judaicas, é pôsto em relêvo (caps. V e VI). 
14 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
Já, porém, que, ao lado das grandes e luminosas linhas, ficam 
não poucos pontos obscuros, os caps. VII, viir e IX procuram mos-
trar o que podem significar as narrativas de pecados "escanda-
losos" nos livros que Deus inspirou. 
Os caps. X, XI e XII tratam de expressões e manifestações da 
religiosidade do Antigo Testamento que ao leitor moderno pare-
cem estranhas ou desprezíveis, por se basearem em pressupostos 
de medicina e antropologia hoje carecentes de valor: é, pois, consi-
derada a doutrina religiosa, sempre válida, que se prendia à uti-
lização do sangue, à conceituação das doenças, dos sonhos, e às 
noções de vida póstuma, entre os israelitas.Mais uma fonte de perplexidade é o caráter maravilhoso que 
tomam certos episódios narrados pela história sagrada. O cap. 
Xlii expõe a interpretação que a tais seções dá a exegese católica 
contemporânea, sem recear o "maravilhoso", mas coadjuvada por 
melhores instrumentos de trabalho do que os de outrora. 
iii. O conjunto se encerra com a apresentação de pequeno 
guia prático para a leitura da Bíblia (cap. XIV). 
Outros tentas do Antigo Testamento que talvez ainda susci-
tem ao leitor dificuldades (de menor vulto, porém) foram deixa-
dos de parte, por pertencerem antes à alçada de um comentário 
do texto sagrado. 
Abram-se agora os capítulos acima assinalados sob o eco de 
famosas palavras de Santo Agostinho dirigidas ao Senhor Deus: 
"Sejam as minhas castas delicias as tuas Escrituras, nem 
seja eu por elas enganado, nem por elas engane... Dá lugar 
ás nossas meditações sôbre os mistérios da tua Lei, e não a le-
ches áqueles que batem; pois não 101 em vão que quiseste fõs-
sem escritos os densos segredos de tantas páginas. .. Eis que 
a tua VOZ é a minha alegria, a tua voz está acima da abundán-
cia das volúpias. Dá o que amo; pois amo, e Jôste Tu que o 
deste. Não abandones os teus dons, nem desprezes a tua erva 
que tem séde. Louve-Te eu por tudo que encontrar nos teus 
livros, e ouça a voz de louvor, e beba a Ti, e considere as ma-
ravilhas da tua Lei, desde o principio, no qual lizeste o céu e a 
terra, até o reino perpétuo da tua Cidade Santa." (Confissões, 
11,7.) 
Rio de Janeiro, maio de 1956. 
0 AUTOR. 
CAPÍTULO 1 
O PROBLEMA BIBLICO E SEU PRINCIPIO DE SOLUÇÃO 
§ 1.0 O PROBLEMA 
É fato inegável que bom número dos católicos de hoje, mes-
mo dentre os mais fiéis à vida cristã, não estão familiarizados 
com a Sagrada Escritura. Esta é, para êles, um livro mais ou me-
nos cerrado, onde não têm o costume de procurar o nutrimento da 
vida espiritual; para revigorar sua piedade, servem-se, com prazer, 
e quase que exclusivamente, de obras e opúsculos religiosos poste-
riores à Bíblia. 
Tal verificação não pode deixar de impressionar a quem sôbre 
ela reflita... Todo católico professa que a Bíblia é livro inspirado 
por Deus para a santificação dos leitores; conseqüentemente, espe-
rar-se-ia que fôsse a obra mais lida e explorada pelos cristãos, o 
primeiro manancial de espiritualidade dos fiéis, pois, dir-se-ia em 
linguagem popular, "Deus não se terá abalado por pouca coisa. . 
As páginas inspiradas por Deus certamente não excluem o que os 
santos e justos escreveram de verídico e belo, mas, quase que por 
definição, exigem para si a primazia na biblioteca ou na cabeceira 
do cristão. O fato de que a Bíblia não é devidamente conhecida 
causa pesar semelhante ao que suscita o esquecimento de alguns 
cristãos em relação à S. Eucaristia. Em um e outro caso observa-se 
que os maiores dons de Deus não são suficientemente procurados; 
são subestimados em favor de objetos e práticas menõs ricos e efi-
cases para a santificação. 
Conscientes de tal anomaiia, alguns núcleos de fiéis têm ten-
tado explorar os tesouros da Sagrada Escritura, empreendendo a 
leitura sistemática da mesma. Contudo, ainda que animados pelas 
mais sinceras disposições, não se podem furtar, perante certas pági-
nas do texto sagrado, à impressão de mal-estar ou mesmo de escân-
dalo ou à conclusão de que a Escritura é livro obscuro, difícil de-
mais para ser alimento da vida espiritual; ela lhes parece arcaica, 
alheia às idéias e à terminologia que os cristãos costuitam ter na 
mente e nos lábios. E, quando se lembra ao leitor, desapontado ou 
escandalizado, que, para entender as páginas bíblicas, se requerem 
certas noções introdutórias, o mesmo se sente como que atemo- 
16 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
rizado pelas exigências que a técnica exegética moderna lhe pa-
rece impor. A solução, em vez de o satisfazer, faz-lhe perder o 
ânimo, porque a Sagrada Escritura se lhe afigura então objeto 
de estudo científico antes do que livro de edificação sobrenatural; 
e, como se sabe, para o estudo erudito, nem todos têm tempo ou 
aptidão! 
Um inquérito recém-realizado na França nos dá a conhecer 
com exatidão as opiniões de fiéis que têm procurado ler a Escri-
tura. Vão aqui transcritos alguns dêstes testemimhos, a fim de se 
perceber mais ao vivo o doloroso realismo do problema: 
"A Bíblia é objeto de museu, não coisa viva, atual. É livro ante-diluviano, onde os homens do séc. XX nada encontram 
que possam aproveitar. A história dêsse obscuro povo hebreu parece tão 
longínqua que se torna meio-irreal. 
O Antigo Testamento procede de um espírito totalmente diverso do 
do Evangelho. Ora é o espírito do Evangelho só que devemos procurar. 
Devo dizer que não li Daniel-Rops, que meu pároco dá cursos de Sa-
grada Escritura, que jamais freqüentei. É esta uma forma de resistência... 
Alguma coisa dentro de mim se recusa a crer que minha vida possa ser 
ajudada, iluminada, por essas narrativas pré-históricas." 
"Noto, escreve uma dirigente da Ação Católica, que em minha 
infância e juventude só me falaram do Antigo Testamento em têrmos nega-
tivos: encerra histórias demasiado realistas para poder ser colocado nas 
mãos de qualquer leitor." 
"Há na Biblia uma série de histórias horrendas, escreve outra 
pessoa. Não quero defender a hipocrisia da nossa sociedade contemporânea, 
que à Biblia prefere a literatura "de água de rosas", ou que só admite a 
literatura escandalosa quando esta se apresenta com aparato e fama; não 
obstante, é muito difícil perceber como julgar tódas essas histórias." 
Eis o depoimento de um grupo de casais: 
"Salvo algumas passagens esparsas cá e lá, não se compreende quase 
nada na Sagrada Escritura... A leitura frutuosa da Bíblia exige árduo 
trabalho literário, ao menos para se recolocar o texto no seu contexto e 
no seu clima de origem (exegese, estudo dos gêneros literários, de história, 
de nomes e datas, etc.). Não temos tempo para fazer isto tudo: cada famí-
lia se acha sobrecarregada com obrigações profissionais, materiais e educa-
tivas. E, mesmo se tivéssemos tempo, não sentiríamos atrativo por êsse 
estudo árido. Depois da labuta de cada dia, desejamos repouso, paz, calma, 
oração, e não livros de erudição. Julgamos poder encontrar esta paz, esta 
respiração profunda em Deus, ou por meio de reflexão pessoal sôbre alguns 
textos prediletos ou pela meditação de alguns pensamentos familiares ou 
pela leitura de excertos, densos e curtos, em que as verdades religiosas não 
se encontram ocultas sob uma multidão de imagens e de fatos, mas se 
acham luminosamente expressas." 1 
Tais depoimentos encontram eco espontâneo fora mesmo da 
França; são a expressão fiel do que muitas vêzes se pensa também 
no Brasil. 
A situação assim esboçada pede ser revolvida, transformada. 
Contribuir para a renovação, é o que se propõem os capítulos se- 
1 Como se compreende, os depoimentos são anônimos; foram colhidos no 
artigo de Henry, "Les catholiques lisent-ils la Bible?" em La Vis Epiritucue - 
Stipplément 12 (1950) • 84-98. 
O PROBLEMA BÍBLICO E SEU PRINCÍPIO DE SOLUÇÃO 	 17 
guintes. Antes, porém, de estudarmos algumas vias de solução do 
problema, interessa-nos considerar mais atentamente as causas 
do distanciamento dos fiéis em relação à Escritura. A tal fim, 
recordaremos alguns fatos da história religiosa moderna. 
Uma das raízes remotas da desconfiança dos católicos frente 
à Sagrada Escritura é, sem dúvida, a Ps. Reforma Protestante. 
No séc. XVI, irrompeu o movimento luterano, que abusivamente 
fêz da Biblia a principal fonte de seus erros religiosos; a Escri-
tura, assiduamente manejada pelos protestantes, passou a ser o 
arsenal de argumentos dos herejes. Ora, para impedir fôssem 
seduzidos os fiéis, as autoridades eclesiásticas viram-se obrigadas 
a lhes restringir de certo modo o uso da Sagrada Escritura: no 
Conciliode Trento (1545-1563), o texto latino da Vulgata foi de-
clarado autêntico e aos fiéis se proibiu a leitura de traduções ver-
náculas da Bíblia não acompanhadas de notas explicativas con-
formes à doutrina católica. Tais normas (em si muito sábias e 
oportunas), assim como o continuado abuso dos protestantes, fo-
ram suficientes para criar entre os católicos uma atmosfera de 
pouca "simpatia" para com a Bíblia; esta passou a ser julgada 
livro perigoso, escola de heresias, manual de protestantismo, obra 
colocada no Índice dos livros proibidos pela Igreja! ... Tais opi-
niões se foram disseminando através dos tempos sem grandes 
dificuldades, de mais a mais que na Bíblia há realmente expres-
sões e narrativas cujo sentido não é evidente à primeira leitura, 
e que, por isto mesmo, se prestam a mal-entendidos ou escânda-
los. 
A história do séc. XIX veio corroborar a desconfiança. Com 
efeito, aconteceu que, por todo o século passado, a Bíblia, tendo 
deixado de ser o manual daqueles que visavam a piedade, se tor-
nou o objeto de exploração dos homens de ciência, eruditos muitas 
vézes sem fé. Descobrindo no Oriente manuscritos e monumentos 
pré-cristãos, os sábios puseram-se a compará-los com a antiga lite-
ratura religiosa de Israel. As suas pesquisas não raro tiveram por 
resultado ilustrar maravilhosamente o sentido de passagens bíbli-
cas obscuras. Muitas vêzes, porém, os estudiosos não se consegui-
ram emancipar de preconceitos filosóficos ou racionalistas; quise-
ram mesmo confirmá-los por seus trabalhos científicos, e isto os 
fêz chegar a conclusões estranhas à Biblia, errôneas e ímpias. 
Em tôrno da Escritura formaram-se escolas diversas, correntes 
eruditas de pensamento, em boa parte norteadas por protestantes 
liberais. 2 
 Ora isto contribuiu naturalmente para que se acen- 
2 Principalmente a Escola alemã de Tuebingen, tendo à frente Bruno Bauer 
(t1882), se distinguiu por suas teses hipercriticas. Fomentou uma onda de cepti-
cismo que se propalou pela Holanda (Pierson, Naber), a inglaterra (Johnson, Ro-
bertson), a França (Couchoud), a Suiça (Steck), a Itália (Bossi), os Estados Uni-
dos da América (Smlth). As figuras de Jesus e S. Paulo foram reduzidas a ficções 
literárias; aos Evangelhos e aos escritos paulinos se denegou tôda autenticidade; o 
18 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
tuasse mais ainda nos católicos a impressão de que a Escritura é 
livro reservado: reservado aos protestantes ou, se não a êstes, 
àqueles que têm muita ciência .....livro perigoso a novo título, já 
qUe, ao estudá-lo no séc. XIX, tantos se perderam nos mais varia-
dos erros do liberalismo e da impiedade. Assim a recente história 
da exegese parecia confirmar o preconceito de que a leitura do 
texto sagrado constitui um risco para a verdadeira religiosidade; 
seria necessária muita fé, para não se cair na infidelidade ao ler 
a Bíblia! 
A situação se complicou mais ainda em virtude de um terceiro 
fator. O cientificismo bíblico, inovador, provocou uma reação 
imediata. Perante a confusão suscitada pelos eruditos, alguns cír-
culos católicos se fecharam por completo à utilização dos recentes 
dados da ciência na exegese bíblica; caíram assim numa atitude 
simplória, infantil, lendo e expondo as passagens da Sagrada Es-. 
critura sem muito discernimento das regras de estilo, vocabulário, 
sem consideração do respectivo panorama histórico, que as pes-
quisas modernas desvendaram. Desta atitude resultou em não 
poucos dos contemporâneos a idéia de que a Bíblia é livro retró-
grado em relação à ciência, átimo repertório de histórias para 
crianças, de modo nenhum, porém, sustento de um espírito escla-
recido. Entendida de maneira demasiado humana, fantasista, a 
Bíblia veio a seróbjeto de desprêzo daqueles mesmos que procu-
ravam uma religiosidade elevada, digna do verdadeiro Deus! 
Pois bem; é no mundo herdeiro de tais preconceitos que se 
procura despertar hoje um movimento católico de volta à Escritura. 
Poderá esta iniciativa contar com alguma probabilidade de 
sucesso? 
A resposta afirmativa se impõe. 
O movimento bíblico é portador de um título, ao menos, capaz 
de lhe assegurar pleno êxito. O homem dos nossos tempos tem 
acentuada sêde de tudo que é genuíno, autêntico; procura tomar 
consciência da razão de ser de tôdas as coisas, e rejeita o que lhe 
pareça destituído de fundamento objetivo, tudo que sej a fruto de 
mera convenção. Isto se dá também no setor religioso, e entre os 
próprios católicos. Os nossos fiéis têm procurado praticar a sua 
religião imediatamente à luz dos grandes dogmas; manifestam o 
desejo de viver as conseqüências práticas dos mistérios da SS. Trin-
dade, da Encarnação e do Corpo Místico, reavivando em si uma 
mentalidade mais tipicamente cristã, menos superficial ou desvir- 
cristianismo passou por produto da filosofia religiosa de Alexandria e da sabedoria 
popular dos romanos! 
Alguns autores de Tuebingen, mais moderados, admitiam que no séc. 1 a 
cristandade estava dividida em facção petrina e facção paulina; o livro dos Atos 
dos Apóstolos, no séc. II, teria tentado conciliá-las; o Evangelho de S. João, depois 
de 160, seria a expressão da conciliação jã obtida. Assim, por exemplo, Cristiano 
Baur (t1860). 
O PROBLEMA BÍBLICO E SEU PRINCÍPIO DE SOLUÇÃO 
	 19 
tuada pelas influências não-católicas que sofreu a partir do séc. 
XVI. 3 Em outros termos: nota-se uma sêde de voltar às fontes 
da verdade e da vida cristãs, a fim de que o sal da terra seja sal 
ainda mais autêntico, numa fase da história em que diversas fac-
ções humanas se chocam, mobilizando tudo que elas possuem de 
vital. Ora entre as fontes de revigoramento da vida cristã está cer-
tamente a Escritura Sagrada; é por esta e pela tradição oral que a 
Igreja se orienta. 
De modo particular se sentem os católicos contemporâneos 
impelidos a tomar conhecimento da genuína mensagem da Bíblia, 
por verificarem que se vai multiplicando o número de confissões 
religiosas (seitas protestantes, espíritas, teosofistas, etc.) que, cada 
qual do seu modo, falam em nome da Sagrada Escritura, procu-
rando deduzir da mesma as idéias mais desconexas possíveis. 
É, pois, a sêde do autêntico, bem característica da nossa época, 
que, humanamente falando, permite prever todo o êxito ao movi-
mento bíblico contemporâneo. 
§ 2.0 O PRINCIPIO DE SOLIJÇAO 
Os capítulos que se seguem, visam introduzir os fiéis na leitura 
do livro sagrado, fornecendo noções que lhes tornem possível des-
frutar o rico conteúdo das páginas inspiradas. 
Impõe-se, porém, uma observação prévia, que será também um 
princípio geral de solução para as dificuldades acima apontadas. 
Quem quer que se apreste a ler a Escritura, recorde-se de que 
uma atitude de fé sobrenatural é condição absoluta para penetrar 
o âmago da mesma. E isto, por dois motivos: 
a) o tema da Sagrada Escritura. 
Através dos seus setenta e quatro variados livros, a Bíblia, em 
última análise, trata de um só objeto, a saber, as disposições da 
Providência em vista da salvação do homem. Apresenta-nos em 
suas fases sucessivas, desde os primórdios até o fim dos tempos, o 
mistério de um Deus que desce até o homem para elevar o homem 
3 O Santo Padre Pio XII, por seus escritos, tem estimulado tão louvável 
tendência: a encíclica de S. Santidade sôbre a S. Liturgia (Mediator Dei, de 20 de 
novembro de 1947) apela freqüentemente para os dogmas da Encarnação e da Reden-
ção, dos quais deduz conclusões atinentes à vida de oração; é do âmago do dogma 
que Pio XII deseja se nutra a espiritualidade crista. Os comentadores conside-
ram a Mediator Dei como o segundo capitulo de uma única obra que começou com 
a encíclica sõbre o Corpo Mistico de Cristo (Mystiet Ccrporis, de 29 de junho de 
1943). 
4 Cc nwuveme,zt irrésistible qui, dans ia mêlée actueile, force la conscicift 
de chacun d présenter les piêces authentiquesde ia croyancc, amênera les catholi-
ques à tire de pias cii pias la Bibie. C'cst da moins cc que nous pouvons espérer 
lopalement. (Henry, art. cit., 98.) 
20 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
ao consórcio de Deus. E - note-se bem - tal descida não é sim-
plesmente uma vinda; ela tem o caráter quase paradoxal de uma 
condescendência 5 de Deus para com o homem, de uma adaptação 
da Majestade do Criador aos moldes pequeninos do pensamento e 
da vida da criatura. Essa descida de Deus ao homem é também o 
mistério de um Amor que, embora soberano e independente, se quer 
dar derramaildo o bem sôbre os indigentes, mas que é, de diversos 
rnodos, mal entendido, rejeitado; não obstante, mostra-se invencí-
vel na arte de procurar o indigente ingrato. Por tratar de tal 
tema, a Bíblia tem necessàriamente passagens quase desconcer-
tantes para o leitor que a queira julgar inicamente à luz da sabe-
doria humana: a sua linguagem é simples e pobre, semelhante à de 
um judeu antigo; e a figura de Deus 4ue ela apresenta, embora 
seja inconfundível, está por vêzes adaptada à mentalidade oriental 
e aos costumes, às tradições dos semitas antigos. Não há dúvida, 
os planos de Deus as vias pelas quais Éle procura o homem trans-
cendem 'infinitam
,
ente o bom-senso da criatura. Disto se segue 
que a chave para se penetrar na Bíblia há de ser uma fé coerente 
no mistério da Encarnação do Verbo, Encarnação que se deu na 
plenitude dos tempos, mas que tem seus prenúncios nos séculos 
anteriores (entre os quais, os livros sagrados do Antigo Testamen-
to) e que continua a se manifestar em tôda a história do cristia-
nismo. 
A atitude de fé já por si desfaz muitos dos problemas que o con-
teúdo e a forma literária da Sagrada Escritura apresentam; tais 
'problemas" na realidade não são maiores enigmas do que a pro-
posição de um Deus pregado à cruz; quem na fé aceita o aniquila-
mento do Filho de Deus até a morte de servo (cf. Flp 2,8), já não 
se admira diante dasmúltiplas formas da condescendência divina 
sugeridas pela Bíblia. Assim como não podemos indicar a última 
razão por que Deus se fêz homem na plenitude dos tempos, assim 
também não sabemos dizer porque se quis adaptar à linguagem do 
homem no livro sagrado nem porque quis incluir no seu plano pro-
videncial tantos instrumentos rudes e imperfeitos. O 
Deve-se mesmo observar que, quanto mais a fé é viva e forte no 
leitor, quanto mais a vida sobrenatural nêle está arraigada, tanto 
üiais também êle experimenta afinidade com os dizeres da Escri-
tura; longe de se deixar desnortear por textos difíceis, tal cristão 
discerne cada vez melhor o que é contingente e o que é mensagem 
perene, em cada urna das passagens da Bíblia; é que lhe fala mais 
claramente o Mestre interior, o próprio Autor das Escrituras. 
6 A expressão é de S. João Crisóstomo, que a usa freqüentemente (ei. in 
.Gen h. 3,3; 15,2; 11,1; in lo 15,1). 
• 	 O O significado geral do Antigo Testamento e da História Sagrada será 
objeto de ulterlores considerações no cap. V. 
O PROBLEMA BÍBLICO E SEU PRINCÍPIO DE SOLUÇÃO 	 21 
S. Gregório Magno (f 604) exprimia esta verdade numa frase inci-
siva: "Os dizeres de Deus crescem com aquêle que os lê." 
Destas considerações decorre que, ao abordar a Escritura, nin-
guém se prometerá chegar um dia a compreendê-la como com-
preende um livro ditado imicamente pela sabedoria humana; ao 
contrário, tenha consciência de que encontrará passagens diante 
das quais, até o fim da vida, deverá simplesmente adorar, os juízos 
de Deus, renunciando a exercer o espírito de crítica, a proferir al-
gum juízo. 
b) a Escritura, patrimônio da Igreja. 
A penetração da Sagrada Escritura, sendo função da fé na En-
carnação, não pode deixar de estar também 'rntimamente associa-
da à fé na Igreja. Com efeito, para os católicos, é na Igreja que o 
Verbo Encarnado prolonga a sua vida e a sua obra de iluminar e 
salvar os homens. Quem admite isto, há de reconhecer que à Igreja 
compete, em última análise, dar a genuína interpretação da Escri-
tura; já que pela Igreja Cristo ensina aos homens, é pela Igreja 
que lhes dá a saber o sentido da Palavra escrita de Deus, que é 
a Bíblia. Por conseguinte, seria incoerente o católico que procu-
rasse estudar a Sagrada Escritura independentemente do magis-
tério da Igreja, seguindo apenas as insinuações da ciência ou ào 
seu bom-senso pessoal. Verdade é que o magistério eclesiástico não 
dita normas positivas para o entendimento de todo e qualquer 
texto bíblico, mas ao menos indica verdades de fé às quais nenhum 
exegeta pode derrogar sem cair no êrro. - É esta fé na Igreja que, dos demais leitores da Bíblia (protes-
tantes, espíritas, racionalistas, etc.), distancia radicalmente o ca-
tólico. Pode acontecer mesmo que a autoridade da Igreja seja o 
único argumento decisivo para que o católico tome tal posição exe-
gética em vez de outra. ° Sendo assim, tenham os fiéis consciência 
de que não poderão sempre por argumentos filológicos, arqueoló-
gicos, literários provar a protestantes e racionalistas que a inter- 
7 Divina eloquia cum Iegente crescunt (in Ez 1, 7, 85). 
8 Como, de resto, o mistério da Encarnação do Verbo sempre exigirá a ado-
ração reverente dos fiéis. 
9 Exemplo notório é o do cânon ou catálogo das Escrituras sagradas. Todos 
sabem que Lutero não reconheceu como inspirados ou canônicos certos 
livros que os católicos admitem como tais (assim Tob, Jdt, 1 e 2 Mac, Sab, Rolo, 
Bar; Hebr, T, 2 Pdr, 2 e 3 Jo, Jud, Apc). Os protestantes apresentam razoes, 
deduzidas da histôria, para os rejeitar. Os católicos também desenvolvem argu-
mentos para os admitir. As razões de uma parte e de outra não bastam para 
dirimir a questão. Se os católicos mantêm o seu ponto Qe vista, isto se dá, em 
Última análise, porque crêem na autoridade infalível cio magistério da Igreja. 
Donde se vê bem que tal crença é básica para o católico que se proponha ler 
a sagrada Escritura; ela se exerce já na questão de saber em que consiste a Biblia. 
22 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
pretação dada pelos católicos a tal passagem bíblica é a autêntica; 
deverão, pois, não raro, professar que é a voz da Igreja que os leva 
a optar entre duas explicações que, à luz dos critérios literários, 
seriam igualmente plausíveis. '° 
Pergunta-se, porém: não será constrangedora, pouco digna da 
inteligência humana, esta atitude dos católicos? 
Não; pode-se dizer que ela é não apenas imposta pela Igreja, 
mas exigida pela índole mesma da Escritura Sagrada, de sorte que 
subtrair-se a essa posição vem a ser infidelidade para com o texto 
mesmo que se quer elucidar. 
Como isto? 
É preciso não esquecer que os livros da Escritura tiveram ori-
gem ocasional ou esporádica. 
No tocante ao Novo Testamento, sabe-se que Jesus Cristo 
comunicou todo o seu ensinamento aos Apóstolos por via mera-
mente oral. Por sua vez, os Apóstolos não se preocuparam grande-
mente com a redação da doutrina recebida de Cristo; foram-na 
transmitindo de viva voz pela pregação. " Acontecia, porém, que 
esporàdicamente os fiéis desta ou daquela região propunham ques-
tões particulares (de índole dogmática ou moral) aos Apóstolos 
ou pediam que lhes enviassem uma súmula escrita do que haviam 
pregado; atendendo a essas necessidades contingentes é que os 
Apóstolos e Evangelistas redigiram suas cartas e suas biografias de 
Jesus (Evangelhos); ao abordar pontos de doutrina em tais escri-
tos, de modo nenhum intencionavam expô-los de maneira siste-
mática ou exaustiva; apenas elucidavam os aspectos que davam 
lugar a mal-entendidos entre os fiéis, pressupondo de resto os ensi-
namentos que de viva voz haviam transmitido. 12 Daqui se segue 
10 Já que os não-catúlicos não reconhecem tal magistério, torna-se por 
vêzes vão querer argumentar com êles. 
11 Isto bem se entende pelo fato de que escrever era arte difícil naantigui-
dade; o material respectivo (papiro ou pergaminho) era raro, exigia muito tempo 
e grande habilidade por parte do autor. Em conseqüência, o magistério se exercia 
quase ünicamente pela palavra viva. - 
12 Haja vista, por exemplo, a maneira como se originaram as duas epísto-
las de S. Paulo aos tessalonlcenses. 
Por volta de 51, o Apóstolo estêve em Tessalonica (Macedônia), onde fundou o 
primeiro núcleo de cristãos da cidade. Não se pôde, porém, demorar aí tanto quanto 
necessário para rematar a catequese dos recém-convertidos: um tumulto provocado 
pelos judeus obrigou-o a procurar refúgio em Atenas e corinto (cf. At 17,1-15). Ora, 
pouco depois de chegar a Corinto, Paulo teve noticia de que os tessalonicenses 1' / 
nutriam dúvidas a respeito cIo dia do juízo final e da sorte que então tocaria aos 
irmãos defuntos; tais dúvidas provocavam agitação entre os fiéis e solicitavam a 
intervenção do Apóstolo. Foi o que ocasionou a primeira epístola aos tessaloni-
censes, em que S. Paulo aborda aspectos da doutrina da segunda vinda de Cristo, 
em térmos breves, porém, porque apenas intencionava completar a pregação de 
viva voz. Já que esta primeira carta não bastou para acalmar os ânimos, Paulo, 
ciente disto, poucos meses mais tarde, escreveu a segunda epístola aos tessaloai-
censes, em que de novo só se propunlia desfazer os mal-entendidos dos fiéis, ape- 
O PROBLEMA BÍBLICO E SEU PRINCIPIO DE SOLUÇÃO 	 23 
que muitos temas da autêntica pregação de Jesus ou do depósito 
revelado não passaram para o papiro, mas ficaram na tradição 
meramente oral da cristandade; é preciso mesmo dizer que só pe-
quena parte das verdades de fé foi explicitamente consignada por 
escrito. E, como se vê, esta pequena parte não constitui um bloco 
fechado e completo em si, mas é inseparável da tradição oral; de-
pende desta, pois se originou dentro da tradição oral, como moda-
lidade nova da mesma. 
Semelhantemente, tiveram origem ocasional, esporádica, os 
escritos do Antigo Testamento. 13 
É o que faz que, na exegese da Sagrada Escritura, o primeiro 
elemento a ser consultado seja o conjunto de ensinamentos que 
sempre se transmitiram ao lado da Escritura no povo de Deus ou 
na Igreja; é, em outros têrmos, a tradiçâo oral, que ainda hoje 
vive entre os cristãos e tem seu autêntico órgão de expressão no 
niagistério da Igreja. 
De tudo isto resulta claramente que o recurso à tradição, 
longe de ser imposição arbitrária da autoridade eclesiástica, é exi-
gência decorrente da índole mesma da Sagrada Escritura. 
Por fim, não se pode deixar de salientar que, embora a atitude 
de fé seja a atitude primária para uma profícua leitura do texto 
sagrado, ela de modo nenhum dispensa certo estudo ou esfôrço 
que vise penetrar e entender o aspecto literário, humano, da Bíblia. 
Esta é, sem dúvida, um livro divino, portador de mensagem sobre-
natural, e, enquanto tal, é o espírito sobrenatural do leitor que a 
deve perscrutar. Ao mesmo tempo, porém, é obra de autores hu-
manos, que, para a redação das páginas sagradas, contribuíram 
com seu cabedal de cultura, e cultura oriental antiga; ora não 
resta dúvida de que êste outro aspecto da Escritura só pode ser 
entendido mediante o recurso às noções de cultura pressupostas 
pelos autores bíblicos. Tendo em vista as disposições habituais da 
Providência, ninguém pretenderá apreender a mensagem divina 
da Escritura, sem prêviamente tomar conhecimento exato do veí-
culo humano a que se quis ligar a Palavra de Deus. Errôneo, pois, 
seria desprezar, em nome da fé ou da piedade, o recurso aos resul-
tados da ciência moderna empreendido pelos bons exegetas con- 
laudo, de resto, para o seu ensinamento oral (cf. 2,5s). É o que explica que estas 
duas epistolas, certamente inteligíveis para os seus primeiros leitores, apresentem 
hoje dificuldades exegéticas insolúveis; faltam-nos os elementos da pregação oral 
que deviam esclarecer o que Paulo diz a respeito da aparição do Anticristo e do 
Obstáculo que o detém (cf. 2 Tes 2,5s: "Não vos lembrais de que eu vos dizia 
essas coisas quando ainda estava convosco? Agora sabeis o. que o detém, para que 
se manifeste em seu tempo.") 
15 Isto se compreende já pelo fato de que escrever era relativamente pouco 
usual entre os antigos. Apenas fragmentos cio historiograf ia ou dos cráculos dos 
profetas ou das máximas dos sábios de Israel nos foram consignados, como se 
deduz da critica literária dos livros do Antigo Testamento. 
24 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
temporâneos. É claro, porém, que nem todos os leitores da Escri-
tura estão obrigados a fazer os mesmos estudos para desfrutar o 
conteúdo do texto sagtado; as noções introdutórias na Escritura 
encontram-se redigidas sob forma breve e simples em opúsculos das 
diversas línguas modernas; tais opúsculos possibilitam o acesso ao 
livro sagrado mesmo às pessoas que, por suas circunstâncias de 
vida, menos se possam dedicar ao estudo. Deus houve por bem 
fazer da sua Palavra a mensagem para todos os homens, não sõ-
mente para aquêles a quem é dado o lazer do estudo. 
Em conclusão: espírito sobrenatural muito vivo, que, de um 
lado, está pronto a exercer a fé renunciando a julgar as autênticas 
obras de Deus, mas, de outro lado, nada despreza daquilo que de 
verídico ensina a ciência, eis o pressuposto de uma leitura frutuosa 
do livro sagrado; eis o princípio geral para a solução dos proble-
mas da Bíblia. 
CAi'ínJLo II 
LIVRO INSPIRADO POR DEUS 
Quem toma em mãos a Sagrada Escritura para dela fazer o seu 
livro de doutrina e espiritualidade, é geralmente movido por uma 
crença de importância capital: a Bíblia é a Palavra de Deus, Livro 
inspirado pelo Altíssimo; goza, pois, de autoridade única. 
O conceito, porém, de inspiração bíblica não é claro a todos os 
cristãos. Não poucos se admiram ao verificar que a Escritura se 
assemelha muito a obras profanas, a documentos da literatura an-
tiga; também não vêem como se possa conciliar o conceito de ins-
piração divina com o estudo das fontes humanas de um trecho bí-
blico, com a crítica literária e paleográfica do texto, com as hipó-
teses de acréscimos ou interpolações feitas a determinada passa-
gem etc. "Livro inspirado por Deus" parece-lhes ser obra absoluta-
mente emancipada das fases de preparação por que costuma passar 
todo produto literário humano. 
Ao estudo dêste problema, que é capital em tôda iniciação bí-
blica, se dedicará o presente capítulo, abordando primeiramente o 
conceito de inspiração em si Q 1. 0), depois as relações da Escritura 
com as conclusões das ciências naturais (§ 2. 0) e da história pro-
fana Q 3.0). 
§ 1.0 QUE SE ENTENDE POR INSPIRAÇÃO BIBLICA? 
Na procura da resposta autêntica à pergunta, faz-se mister 
remover logo duas opiniões errôneas: 
a) inspiração bíblica de modo nenhum é revelação, comu-
nicação sobrenatural de verdades desconhecidas ao escritor. A ias-
piração pode, sim, estar associada a êste outro dom divino, ou seja, 
ao ensinamento de verdades até o presente ignoradas pelo hagió-
grafo. Isto, porém, não ocorre necessàriamente; verificou-se, por 
exemplo, quando os profetas de Israel, séculos antes de Cristo, 
consignaram por escrito pormenores da vida do Messias, tais como 
o seu nascimento em Belém de Judá (Miq 5,1), sua paixão expia-
tória (Is 50,4-10; 52,13-53,12), sua transfixão na cruz (Zac 12,10). 
Tais episódios foram redigidos sob a influência de dois dons sobre-
naturais: o da inspiração bíblica, visto que deviam fazer parte da 
26 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
Escritura, e o da revelação, pois certamente os autores sagrados 
não adquiriram essas notícias por estudo ou por via meramente hu-
mana. Quando, porém, os evangelistas, a seu turno, consignaram 
os mesmos episódios (cf. Mt 2,6; 8,17; J0 19,37; At 8,32s), já o fize-
ram apenas sob o influxo da inspiração bíblica, não por revelação 
divina,pois haviam presenciado os fatos ou tinham sido informa-
dos por testemunhas abalizadas. 
De resto, os autores bíblicos apelam freqüentemente para a 
sua experiência; atestam ter visto ou ouvido o que referem (cf. Jo 
19,35; 21, 24; 1 J0 1, 1-3), ter investigado documentos, consultado 
testemunhas (cf. Lc 1,1-4; 2 Mac 2, 24-32; 11,16-38); citam também 
as fontes compulsadas (os anais dos reis de Israel, por exemplo, em 
1 Crôn 27,24; 29,29; 2 Crôn 9,29; 3 lis 14,19.29; 15,7.23.31. ..). Isto 
tudo quer dizer que, na Bíblia redigida sob a inspiração divina, va-
mos encontrar noções que diríamos "humanas" (não falsas, po-
rém), ou seja, proposições verídicas, formuladas segundo os moldes 
usuais entre os homens da antiguidade; 
b) se a inspiração bíblica não é necessàriamente revelação, 
também não consiste em ditado meramente mecânico, tal como se 
dá entre o autor de uma carta e seu dactilógrafo. Êsse ditado dis-
pensaria tôda a ciência pessoal do hagiógraf o, bem como o seu 
esfôrço de composição literária; o livro estaria, por assim dizer, 
emancipado de vestígios da personalidade do autor humano. 
Em têrmos positivos, que é, pois, a inspiração bíblica? 
Supondo no homem um cabedal de cultura, Deus, pela inspi-
ração, ilumina a inteligência do hagiógraf o, de sorte que êste, com 
a lucidez do próprio Deus, perceba tais e tais verdades, prêviamente 
adquiridas, serem a expressão autêntica da mensagem que o Se-
nhor quer transmitir aos leitores. Essa iluminação faz que noções 
ineptas a comunicar as verdades intencionadas por Deus apareçam 
à mente do hagiógrafo como inadequadas, enquanto as proposições 
aptas a êste fim lhe são apresentadas como tais. Em outros têrmos: 
a inspiração faz que, com a clarividência de Deus, o hagiógraf o 
examine a veracidade das noções que êle tem na mente, as escolha 
e formule de modo a se tornarem a expressão fiel dos pensamentos 
do Altíssimo. Como se vê, êste processo não implica comunicação 
de novos conhecimentos, mas de maior certeza (da certeza do pró-
prio Deus) na posse das verdades já adquiridas. Além de ilumina-
ção da.inteligência, a inspiração importa moção da vontade e das 
potências executivas do hagiógrafo, a fim de que êste resolva escre-
ver & de fato, sem o mínimo êrro, escreva aquilo que percebeu em 
sua mente ilustrada. - 
O qué acaba de ser dito, ainda se pode explicitar do seguinte 
modo: a inspiração bíblica, longe de extinguir a atividade do ha-
giógrafo (ou o trabalho de um escritor), ao contrário a suscita; 
LIVRO INSPIRADO POR DEUS 	 27 
suscitando-a, porém, eleva-a a plano superior, a fim de que produza 
efeito não simplesmente humano, mas humano e divino. Sim; pelo 
influxo do carisma, 1 Deus penetra tôdas as faculdades do escritor 
(inteligência, vontade, potências executivas) e percorre simultâ-
neamente com êste as etapas necessárias para a redação de um 
livro, de modo que a obra daí resultante não apenas contém a Pala-
vra de Deus, mas é a Palavra de Deus, que tomou a face, a veste, 
de palavra do homem. Em conseqüência, a inspiração tem sua se-
melhança com o mistério da Encarnação, mistério pelo qual o Fi-
lho de Deus apareceu na terra revestido da natureza humana, sem 
mutilar a esta, antes servindo-se de tudo que lhe pertence e equi-
parando-se integralmente (exceto no pecado; cf. Hebr 4,15) aos 
demais homens. 
O conceito de inspiração é bem ilustrado pela analogia do 
homem que, com um pedaço de giz, escreve sôbre o quadro-negro. 
O efeito produzido na pedra se deve atribuir tanto ao escritor como 
ao seu instrumento; um sem o outro não o produziria. E nesse 
efeito encontram-se inevitàvelmente os vestígios de um e outro 
agente: ao homem se devem atribuir os pensamentos expressos, ao 
passo que ao giz se deve reduzir a forma visível dos mesmos na 
pedra (côr, grossura, certa graciosidade, etc.); um só pensamento 
pode mesmo tomar configurações bem diversas conforme os diver -
sos tipos de giz usados. Anàlogamente se relacionam Deus e o 
hagiógrafo na composição dos livros sagrados: as idéias ensinadas 
pela obra provêm primàriamente de Deus, Autor principal; todavia 
a forma literária, a veste, que serve para exprimir tais idéias, é con-
dicionada pelo hagiógrafo; o que quer dizer: fica subordinada à 
educação e às categorias culturais de um escritor humano; mais 
precisamente: de um judeu que viveu no Oriente há mais de três ou 
há quase dois milênios atrás, ignorando muita coisa das ciências e 
das artes que hoje se conhecem, possuindo, não obstante, cultura 
própria, não desprezível. E note-se que cada hagiógraf o deu os seus 
pressupostos pessoais, um cabedal, rico ou pobre, de valores huma-
nos, para exprimir a verdade divina. 2 
Do fato de que a Escritura é inspirada por Deus (nos têrmos 
acima expostos) segue-se a sua inerrância ou isenção de êrro dou- 
1 "Carisma", dom (de Deus) outorgado em favor da comunidade dos fiéis, 
designa aqui a inspiração. 
2 Com efeito, na Escritura depreendem-se os vestígios característicos de 
um homem de cultura esmerada e trato nobre, como Isai as, um dos ilustres cida-
dãos de Jerusalém no séc. VIU a.C.; as impressões de um homem dos campos, 
simples pastor, como Aniós; as de um temperamento muito sensível e vibrante, 
como o de Jeremias; os cálculos harmoniosos e simétricos de um cobrador de im-
postos, afeito aos números, como S. Mateus; a vivacidade de um Jovem fogoso, 
pouco preocupado com o estilo, como S. Marcos; a terminologia e a finura de 
espírito de um médico de formação helenista, como S. Lucas. 
28 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
trinário; êste, caso nela existisse, deveria ser imputado ao próprio 
Deus! 
Jamais, porém, se poderia esquecer neste assunto uma cláu-
sula de grande alcance: já que a inerrante Palavra de Deus toma 
na Bíblia uma veste humana, não é senão mediante a interpreta-
ção desta que aquela pode ser atingida. O que quer dizer, em têr-
mos mais claros: as afirmações da Sagrada Escritura só gozam da 
absoluta veracidade da Palavra de Deus quando entendidas no 
sentido mesmo que o hagiógrafo, seu porta-voz humano, lhes que-
ria atribuir; não, pois, quando interpretadas no sentido que um 
leitor moderno, em leitura superficial, lhes possa dar. Esta cláu-
sula, de resto, se prende a uma regra geral de hermenêutica, a 
saber: o autêntico significado de uma obra literária só se patenteia 
a quem procure reconstituir a mentalidade do respectivo autor e 
as circunstâncias em que escrevia. Embora não raro as palavras 
de determinado texto sejam suscetíveis de mais de uma interpre-
tação, ninguém ousará atribuir indiferentemente ao autor qual-
quer das teses conciliáveis com o conteúdo "bruto" de seus vo-
cábulos. 
Daqui se deduz a imperiosa necessidade de discernir o que se 
chama o "gênero literário" de cada livro da Sagrada Escritura. 
E que será prõpriamente o "gênero literário"? Esta expressão 
•designa o conjunto das regras de estilo e o vocabulário que os ho-
mens de determinada época ou região costumavam observar quan-
do queriam escrever sôbre certo tema; não há dúvida, outras são 
as normas de redação de um texto de leis, outras as de uma seção 
de crônicas, outras as da poesia, outras as da história "edificante" 
ou "moralizante", outras as da profecia, etc., de tal modo que ne-
nhun-i leitor interpretaria uma peça jurídica, a qual prima pela 
precisão de suas palavras e a concisão de suas sentenças, como 
interpreta uma seção poética, em que os artifícios e as metáforas 
são de praxe. 1 
 Ora na Bíblia há livros de leis (o Levítico), poesia 
(o Cântico dos Cânticos, os Salmos), história estritamente dita (os 
livros dos Reis, o primeiro dos Macabeus), história edificante ou 
ornamentada com fim catequético (Tobias, Judite e Ester), profe-
cias (Isaías, Jeremias, Ezequiel), diálogos (Jó) ... Sem saber qual 
o gênero literário com que se defronta, nenhum leitor se pode jul-
garautorizado intérprete de tal ou tal seção bíblica. 
3 verificando isto, Platão dizia: "Mentiroso como um poeta." (Citação 
transcrita de Gourbillon, Comment tire la Bible, Paris, 23.) 
4 Esta verificação dá claramente a entender que o cultivo de certas disci-
plinas profanas, como a filologia, a arqueologia, a história do antigo Oriente, a 
arte crítica dos textos, etc., não constitui, para a exegese católica, modalidade con-
tingente, mas vem a ser tarefa a que as nossas escolas não se podem furtar, como 
o recomendavam ainda recentemente os Sumos Pontífices. 
Após Leão XXII (Enc. Providenti.ssimus) • escrevia S. Santidade Pio XII 
em 1943: 
"Bem preparado com o conhecimento das línguas antigas e com os recursos 
LIVRO INSPIRADO POR DEUS 	 29 
O fato de que a inerrante Palavra de Deus está associada aos 
gêneros literários dos antigos semitas ainda é fecundo para expli-
car um fenômeno aparentemente estranho: hoje os autores cató-
licos já não atribuem à Escritura proposições que antigos e medie-
vais afirmavam em nome da mesma. 5 Isto poderia fazer crer que 
a Igreja mudou os seus dogmas e pràticamente nega a inerrância 
da Palavra de Deus. Tal conclusão seria precipitada. Deus e as 
Escrituras não alteram a sua doutrina; todavia, já que esta só pode 
ser percebida mediante a consideração da sua face humana ou dos 
gêneros literários, está claro que, na proporção em que melhor se 
vão conhecendo os processos de redação dos povos antigos, se vai 
manifestando deficiente a interpretação que a certos trechos se 
dava, quando não se possuíam tão esmerados instrumentos de tra-
balho. Distinga-se, por conseguinte, entre doutrina divina iner-
rante, contida na Escritura, e interpretação falível que os homens 
podem dar a êste texto. As recentes excavações no Oriente, tendo 
projetado luz valiosa sôbre as páginas bíblicas levam-nos a dizer 
que a genuína mensagem das Escrituras, em pontos de importân-
cia secundária, não era sempre plenamente percebida pelos intér-
pretes antigos. Em nossos dias, pois, o que se dá na Igreja não é 
mudança de dogma, mudança da Palavra de Deus (o Magistério 
eclesiástico nunca declarou verdades de fé as proposições dos exe ; 
getas hoje revogadas); o que se verifica é, antes, o aperfeiçoamento 
dos métodos exegéticos e conseqüentemente a reforma da interpre-
tação de um texto cuja mensagem em si mesma é una e constante. 
O labor do homem é indispensável para se entender a Bíblia, e êste 
labor pode, sim, necessitar de remodelação à medida que se desco-
brem novos instrumentos de pesquisa. 6 
da crítica, aplique-se o exegeta católico àquele que é o principal de todos os seus 
deveres: indagar e expor o sentido genuíno dos Livros sagrados. Neste trabalho 
tenham os intérpretes bem presente que o seu maior cuidado deve ser distinguir 
claramente e precisar qual seja o sentido literal das palavras bíblicas. Procu-
rem-no, pois, com tõda a diligência, valendo-se da ciência das linguas, do exame 
do contexto, da comparação com passos semelhantes; coisas tôdas de que se costu-
ma tirar partido na interpretação dos escritores profanos, para tirar a limpo o 
pensamento do autor... 
o intérprete deve.., com o auxilio da história, arqueologia, etnologia e de 
outras ciências, examinar e distinguir claramente que géneros literários quiseram 
empregar... os escritores daquelas épocas remotas." (Enc. Divino ali jante Spiritu, 
Acta Apostolicae Sedis 35 [1943] 310. 315.) 
5 É o que se verifica principalmente na história das origens do mundo 
e do homem. 
o sua Santidade o Papa Pio XII manifestava em nossos dias a esperança 
deque os tempos futuros nos forneçam ainda novos meios de estudo e, por conse-
guinte, o conhecimento mais exato de passagens da Escritura que nos ficam 
obscuras: 
"Não é para admirar se não se venceram nem resolveram ainda tõdas as 
dificuldades, mas há ainda hoje graves questões que não pouco agitam os espíritos 
dos católicos. Não é caso para desanimar; basta refletir que nos estudos huma-
nos sucede como nas coisas naturais; crescem pouco a pouco e não se colhe fruto 
senao depois de muito trabalho. Assim precisamente sucedeu que a muitas questões 
30 	 PARA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO - 
e 
Em suma, dir-se-á: tôdas as vêzes que uma antiga sentença 
exegética seja comprovada falsa à luz das ciências modernas, reco-
nheça-se que o êrro estava contido não na Sagrada Escritura, mas 
na interpretação que os homens davam a esta. 
Haja vista o caso de Galileo Gaifiei, cientista que por volta de 1615 
começou a ensinar a tese do movimento da terra em tôrno do sol. Muitos 
de seus contemporâneos julgavam que contradizia à inerrante palavra da 
Sagrada Escritura; esta, com efeito, lhes parecia Inculcar o geocentrismo, 
tanto por caúsa do propalado milagre de Josué (Jos 10,7-15) como pe10 fato 
de que a Encarnação teve lugar na terra, a qual deveria ser, por conse-
guinte, o centro do universo. Na realidade, a Sagrada Escritura não ensina 
tais conclusões de ordem meramente científica; era, porém, errôneamente 
Interpretada em tal sentido. Por isto é que, depois de momentâneamente 
condenado pelo Santo Oficio (tribunal eclesiástico que não goza da infali-
bilidade própria do magistério universal da Igreja), Galileo foi reabilitado 
e suas Idéias aceitas por exegetas e teólogos; comprovara-se que errônea 
era 4etermino4a interpretação dada à Sagrada Escritura, não a Escritura 
mesma, 
§ 2.0 A SAGRADA ESCRITURA E AS CIÊNCIAS NATURAIS 
Importa agora abordar mais detidamente o problema parti-
cular que acaba de ser insinuado, a saber: embora a Bíblia seja a 
inerrante Palavra de Deus, entra por vêzes em aparente conflito 
com as ciências da natureza. 
Como será isto possível? 
Antes do mais, observe-se que a finalidade em vista da qual 
Deus moveu os hagiógrafos a escrever, era estritamente religiosa: 
o Espírito Santo, pelos autores bíblicos, quis ensinar aos homens 
£nicamente verdades que importem à salvação eterna, de modo 
nenhum temas que diríamos profanos ou científicos. Contudo, já 
que o homem procura a salvação dentro do cenário da natureza, 
a Sagrada Escritura também alude a conceitos de índole cientí-
fica (física, astronômica, biológica, etc.). Estas noções profanas 
na Bíblia servem de mero veículo; não são visadas em si, mas em 
função de proposições religiosas. Desta afirmação decorrem im-
portantes conseqüências: 
às proposições religiosas da Sagrada Escritura cabe veracidade 
absoluta; 
quanto às referências de outra ordem, podem exprimir vera-
cidade relativa, popular, pré-científica, a qual se distingue da vera- 
controversas, não resolvidas e indecisas nos tempos passados, só nos nossos 
dias com o progresso dos estudos se encontrou felizmente solução. Pode-se, pois, 
esperar que tarnbëm as que hoje nos parecem sumamente complicadas e dificíli-
mas, com uma constante aplicação virão a ser um dia plenamente dilucidadas." (Ibid., 318.) 
LIVRO INSPIRADO POR DEUS 
	 31 
cidade científica, refletida 4 
 técnica. Ainda hoje na linguagem coti-
diana se diz que "o sol nasce e se põe"; fala-se da baleia como 
"peixe", do morcêgo como "ave", etc. Estas expressões não deixam 
de ter fundamento objetivo, pois se baseiam na aparência que os 
fenômenos realmente apresentam. Mesmo quando o hamem de 
ciências se refere ao "nascer" e ao "pôr" do sol, todos sabem que 
não quer ensinar astronomia, mas se adapta ao modo de falar dos 
contemporâneos, sem os induzir em êrro científico. Ora o Espírito 
de Deus, ao inspirar os hagiógrafos, não julgou necessário revelar-
-lhes a estrutura do universo e dos sêres vivos; permitiu, pois, que 
formulassem verdades religiosas mediante os conceitos de ciência 
que estavam em voga no seu povo. Tais noções, embora imper-
feitas aos olhos do homem moderno, eram suficientes para designar 
o mundo visível e suas relações com Deus, como se propunha o ha-gíógrafo; servir-se de outra linguagem seria mesmo tornar a men-
sagem religiosa da Bíblia ininteligível aos seus destinatários du-
rante muitos séculos. 
O leitor contemporâneo, portanto, não tomará as alusões da 
Escritura como insinuação de teses físicas, cosmológica.s, bioló-
gicas... .Já que o Livro de Deus nada quer ensinar neste setor, 
não há choque entre o mesmo e a ciência humana quando se ref e-
rem às criaturas materiais. Procedem, sim, de pontos de vista 
diversos: o cientista considera os elementos em si mesmos, refe-
re-os às suas causas próximas e dá-se por satisfeito depois de ter 
tomado conhecimento da estrutura de cada ente corpóreo; não o 
interessa ir além disto (a menos que passe para os domínios da 
Filosofia e da Teologia). A Bíblia, ao contrário, tudo contempla 
de um plano superior; só a interessa, por assim dizer, a tangente 
que passa por cada ser visível e o liga com Deus. Por isto é que a 
linguagem do cientista é precisa, enquanto a da Bíblia, versando 
sôbre os mesmos temas, pode ser assaz livre, impregnada única-
mente de Veracidade popular. 
Aplicação muito clara desta distinção tem-se na narrativa da cria-
ção em Oãn 1,1-2,4a. A cosmologia pressuposta pelo autor sagrado é, aos 
olhos da ciência moderna, insustentável (a luz seria anterior às estrêlas; 
haveria uma abóboda cristalina, o firmamento. sôbre a terra) todavia 
corresponde ao que se ensinava entre os judeus antigos. Ora bastava ao 
hagiógraf o esta veracidade relativa, pois êle não queria descrever as fases 
pelas quais o mundo se originou, mas, sim, inculcar que todos os sêres 
designados mediante "tais" e "tais" noções se relacionam com Deus como 
criaturas dependentes do Criador, destinadas a refletir, com o homem, a 
perf&ção do Altíssimo (no caso, como se vã, pouco importavam as fórmulas 
cosmológicas ou biológicas, desde que indicassem as diversas criaturas que 
cercam o homem). 
7 ótimas são as observações de J. Steinman,n, Les plus ancienfles traditions 
dit Pentateu que (Paris, 1954), 92: 
"Os dogmas (na narrativa biblica da criação) são revestidos à moda do 
Oriente e realçados por poesia maravilhosa. Como se poderiam, aliás, conceber 
32 	 PAiA ENTENDER O ANTIGO TESTAMENTO 
* 
Outro texto significativo é o de Lev 11,6, onde o hagiógrafo apresenta 
a lebre como animal ruminante. A classificação é, sem dúvida, deficiente; 
não carece, porém, de veracidade popular (a lebre está continuamente a 
mover os rnaxiliares e os lábios) ; e tal veracidade era suficiente para que 
o Espirito Santo, mencionando-a na Lei, despertasse no israelita uma ati-
tude religiosa, ou seja, fidelidade e amor a Deus. 
À luz dêstes princípios e exemplos, mostra-se inconsistente a 
supeita de desacôrdo entre a Sagrada Escritura genu'mamente 
entendida e os genuínos dados da ciência. 
§ 3•0 COMO O ISRAELITA ESCREVIA A HISTÓRIA 
Os antigos povos do Oriente, por muito elevado que fôsse o 
seu grau de cultura, pouco prezavam a história... Era assaz gene-
ralizada a tese de que os séculos constituem ciclos fechados, os 
quais se repetem regulamente; acontecimentos já verificados no 
pretérito se reproduzirão em época futura; a sucessão dos tempos 
jamais conhecerá remate ou consumação final. Representavam 
esta concepção recorrendo à figura de uma serpente enrolada, cuja 
cabeça vem a morder a própria cauda (princípio e fim coincidem 
no mesmo ponto; todo o movimento que se registra entre os dois 
têrmos nada de novo acarreta!). Ëste circular contínuo e monó-
tono da história era dito "o ritmo do yin e do yang", "a aspiração 
e a expiração de Brama", "a dança de Siva que produz e destrói 
sucessivamente os mundos", "a incessante alternância da Discórdia 
e da Amizade". ° 
Em conseqüência, a tendência de muitos indivíduos era eman-
cipar-se dos.ciclos do mundo presente mediante a ascese, o esque-
cimento e o repúdio do corpo e do corpóreo, a fim de passarem a vi-
ver num mundo transcendente. 
as coisas de outra forma? Dizer que Deus concebeu em sua mente as nebulosas 
e criou a alma humana no fim de uma série de sêres em evolução não esclarece 
mais o mistério do que dizer que Deus plasmou o corpo do homem servindo-se 
de barro e plantou num oásis árvores frutíferas. Terão sido ingênuos (raïfs) os 
escritores javistas? Se o quisermos, sim! Como, de resto, o foram Péguy e Clau-
deI! Não falavam os antigos, com sentimentos de compaixão, da barbârie dos 
escultores do estilo românico ?" 
8 "2 certo que nunca haverá desacôrdo real entre o teólogo e o cientista, 
enquanto um e outro se mantiverem dentro de seus limites e se esforçarem, como 
diz S. Agostinho, 'por nada afirmar irrefletidamente e não fazer passar por ver-
dade bm conhecida aquilo de que não tenham conhecimento claro'." (Leão XIfl, 
Enc. Provi denttssimus; cf. S. Agostinho, De Genesi ad Iitt. intperf. 9,30; ep. 82,1.) 
O Testemunhos ou vestlgios desta ideologia oriental encontram-se em: Em-
pédocles, Fragm. 30 e 115; Aristóteles, Meteor. 1, 1, c. 3; Da geração e da corrução 
1. 2, cap. li; Séneca, Quaestiones naturales 1. 3, caps. 28s; Censorino, De die na-
tali 18; Stobeu, Eclogae physicae 1, 1, c. 8; Cicero, Sonho de Cipião 7; sérvio, Co-
mentãrjo da Quarta Ecloga de Vergltio, V. 4. 
LIVRO INSPIRADO POR DEUS 	 33 
Isto explica que os antigos orientais pouco se tenham preocu-
pado com historiografia, ou seja, com o relato contínuo e fiel das 
fases sucessivas da evolução humana. Quando o faziam, visavam 
apenas episódios restritos ou envolviam as narrativas dentro de 
concepções lendárias, mitológicas, de sorte que os relatos já não 
transmitiam a notícia de fatos ocorridos, mas eram, em grau maior 
ou menor, a expressão da fantasia popular ou de uma religiosidade 
politeísta, exuberante (nos diversos acervos de ruínas excavados 
no Oriente até hoje, não se encontrou uma síntese histórica dos 
tempos antigos; apenas se descobriram elementos -, inscrições, 
documentos parciais - para se reconstituir a história da Assíria, 
do Egito, etc.). 
Ora nesse ambiente o povo de Israel se distingue por ter culti-
vado a história, e o ter feito com esmêro tal que só foi superado 
pelos gregos, mestres da historiograf ia ocidental. É o que reconhe-
cem, não sem admiração, os críticos modernos racionalistas: 
"Dentre todos os povos asiático-europeus, sômente Israel 
e a Grécia possuem autêntica historiograf ia. Em Israel, que 
ocupa lugar priviIegado entre todos os povos civilizados do 
Oriente, a historiografia se originou em época tão remota que 
causa surprêsa, e produziu logo de início obras de importân-
cia... Na Grécia surgiu mais tarde." 10 
Com efeito, na literatura dos hebreus, que coincide com os es-
critos bíblicos, é delineada a história do povo em traços contínuos e 
de modo que pressupõe a pesquisa de fontes, a transcrição de docu-
mentos dos arquivos orientais ... Quando é possível controlar as 
afirmações dos cronistas de Israel à luz de textos profanos, aquêles 
se comprovam fiéis à verdade, condizentes com o que referem ou-
tras fontes. 11 
 A história de Israel assim descrita se desdobra uni-
formemente, sob a influência de uma ideologia monoteísta assaz 
forte para superar crises, aberrações, suscitadas entre os hebreus 
pela idolatria dos povos vizinhos. 
E como se explica que os rudes judeus, ultrapassando as cate-
gorias culturais do seu ambiente, tenham com tanto esmêro culti-
vado a historiografia? 
10 E. Meyer, Geschichte der Altertums 14 1. 1921, 227. 
Pio XII chamava a atenção para tal fenômeno em sua Encíclica Divino 
ai/Jante Spiritu: 
"As pesquisas comprovaram claramente que o povo israelita, entre as de-
mais nações antigas do Oriente, se distinguia singularmente na arte de escrever 
a história, e isto tanto pela fidelidade como pela antiguidade das narrativas." 
(Ibid., 315.) 
11 Dentre as várias obras que nos últimos tempos têm proposto o confronto 
e a concórdia

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