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1 ___________________________________________ O ESTADO DE EXCEÇÃO, A CONCEPÇÃO FRANCISCANA DE USO E A COMUNIDADE QUE VEM – CONCEITOS À LUZ DO PENSAMENTO DE GIORGIO AGAMBEN. Por: Bruno Carvalho Garcia de Oliveira Prof.: Douglas A. dos Santos O presente trabalho visa, além de tentar elucidar as questões propostas pela avaliação, percorrer um caminho do direito romano arcaico, na figura do Homo sacer, a entender a noção de estado de exceção junto à concepção franciscana de uso. Ao final, pretendo tecer algumas compreensões acerca da comunidade que vem. Almejo, ainda, propor as questões em forma de ensaio abrangendo conceitos como dispositivo, vida nua, oikonomia, biopolítica, conceitos estes que envolvem uma trama entre direito, poder e vida – consideradas palavras-chaves ao pensamento de Agamben. É inegável ao estudo do direito romano arcaico seu conjunto cultural. Situado num contexto multicultural devido à formação de primitivos povos1 indo-europeus e, por isso, transitava numa variedade de direitos vinculados a tais povos. A cada povo, podemos dizer, haveria um direito indissociável de uma religião estritamente doméstica. Falamos de uma religião domesticada porque, naquele contexto, os deuses eram ligados às famílias. A religião dentro dos muros de cada lar é conformada aos limites familiares sem haver quaisquer indícios de regras uniformes ou de rituais comuns. Pelo fato dos deuses serem ligados a cada família, a religião torna-se algo muito próprio sendo ‘chefiada’ por seu sacerdote, o pater, onde não lhe havia nenhuma estrutura superior hierarquizada. A propagação de sua religião dava-se através das gerações. A família antiga (ou primitiva) desenvolve-se e funda-se nas crenças religiosas. Na verdade, confundem-se. A cima da figura do pater só há a sua própria religião e os deuses- lares. À esta figura do sacerdote, do chefe de família, exercendo seu papel de pontífice, é que se designava o poder de fazer e aplicar o direito. Sua esposa aparece, apenas, como plano de fundo, noutras palavras, seu papel é considerado secundário. Seus filhos são-lhes subordinados exercendo alguns papeis ‘litúrgicos’ durante o culto. 1 Cf. http://www.ribeirodasilva.pro.br/direitoromanoarcaico-parte1-02.html acessado a 07/11/16 às 21h56min. 2 Por esse contexto, fica claro chegarmos à conclusão de que o direito privado dos primeiros tempos romanos não poderia ter sido um sistema de direito escrito. Já que falamos de variedades de direitos particulares a cada família. Trata-se de um direito privado e “ius non scriptum”. A cidade romana recebe o direito privado das famílias (gestadas por uma lógica de oikonomia – que nos debruçaremos mais à frente); adapta, faz algumas ‘alterações’, e o devolve às famílias novamente. Ainda sobre o direito, Agamben lembra-nos de que “(...) conservou-nos a memória de uma figura do direito romano arcaico na qual o caráter da sacralidade liga-se pela primeira vez a uma vida humana como tal”2. Falamos do homo sacer onde há um misto de vida humana e sacralidade. Diz-se de uma figura arcaica do direito romano, uma figura jurídico- política onde uma pessoa, quando proclamada sacer era legalmente excluída – a ideia de uma exclusão inclusiva – do direito e, consequentemente, da vida política da cidade. Legalmente não poderia ser morta, porém, se alguém o fizesse jamais a lei a acusaria de assassinato. Falamos de uma vida entregue ao léu pelo direito, abandonada. O que Walter Benjamin chamou de pura vida nua. É como se a sacralidade da vida impedisse que o homo sacer fosse levado à morte nas formas sancionadas pelo rito, ou antes, que seu caráter sacro diz mais de um portador marcado pela culpa; uma mera vida. A vida, no grego, pode ser dita de duas formas: zoé e bíos. A primeira ressalva a vida natural, aquele simples fato de viver comum a todos os seres vivos (aos deuses, aos homens, aos animais e vegetais). Do segundo, dizemos a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou grupo, é vida qualificada. Ao termo zoé, vemos nele um bem em si, aplicado no oíkos3 grego onde o fim a ser alcançado é a eumería. Totalmente diferente de eudaimonia que é o bem-estar tido como finalidade da vida na pólis (como propunha Aristóteles). A política não é o lugar da vida zoé. Os termos oikonómos e despótes, respectivamente dizem de, um chefe de empreendimento e de um chefe de família, ambos são diferentes no campo político; já que não são assuntos de discussão na assembleia. O homo sacer era alguém prontamente evitado e não despertava nenhuma preocupação da lei – a ponto de que quem o matasse não seria condenado por homicídio. Não se tratava de um transgressor originário, mas de uma pessoa que tinha cometido um delito apenas. Era excluído da jurisdição humana sem passar para a esfera do divino. E sua ligação 2 2010, p. 11. 3 Centro produtivo grego – unidade básica da sociedade – similar aos feudos medievais, o que hoje chamaríamos de casa. 3 com o poder soberano é estabelecida, tão somente, por uma relação de abandono. A vida nua, da qual se tornou portador, jamais fora um dado natural. Jamais. É, antes, um produto de um ato jurídico-político. Com a suspensão dos direitos pelo decreto, o homo sacer tem sua vida humana (bíos – vida qualificada) tida como mera vida nua (zoé – vida natural, vida desprotegida). Noutras palavras, a vida torna-se suspensa e a mercê do governante. Talvez, mais do que considerar a vida nua como zoé podemos, mais certamente, situá-la numa zona indiferente entre zoé e bíos. É esta figura do direito romano arcaico o portador desta vida desqualificada. Há, notoriamente, uma sujeição crescente ao poder soberano. Há, nesta vida puramente biológica, uma permanente exposição à violência soberana. A vida nua, como criatura humana, antes pertencida a Deus no mundo clássico, claramente distinta da vida da pólis, agora está totalmente entregue aos cuidados do Estado. Fala-se de uma exclusão inclusiva onde aquele que detém o poder de abandonar relaciona-se, soberanamente, com o abandonado pela violência da decisão soberana. Ou melhor, a vida desprotegida e abandonada pelo direito encontra-se constantemente ameaçada por um poder de morte. Fica-nos claro que o homo sacer revela-nos a existência de alguém que o possa declará-lo como tal, pressupõe-se uma figura essencial do direito, a este chamamos de soberano. Somente ele poderá decretar a exceção do direito, ou seja, suspender o direito para decretar a existência da vida nua. Só um poder soberano poderá decretar o estado de exceção. A preocupação de Giorgio Agamben é, justamente, quando o estado de exceção passa de sua função etimológica (de um desvio da regra) à realidade, quando torna-se regra opondo-se ao estado de direito. Ao que se trata da definição do estado de exceção há grandes paradoxos. No direito público, por exemplo, não há uma teoria clara do que seja o estado de exceção. Baseado em “necessitas legem non habet”, Agamben afirma que alguns autores negam a legitimidade da teoria do estado de exceção. A problemática concentra-se na própria definição situado no limite entre a política e o direito. A situação é o que o estado de exceção tenta apresentar-se como forma legal daquilo que é desprovido desta qualidade: “(...) uma teoria do estado de exceção é, 4 então, condição preliminar para se definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona o vivente ao direito”4. Aqui podemos traçar um paralelo entre Maquiavel e Agamben quanto à questão da necessidade não ter lei, noutras palavras, dizemos do estado de exceção em uma comparação ao estado de necessidade que não tem forma jurídica. Para Nicolau Maquiavel, necessità é força causal de submissãoà autoridade comum. Não se trata de um imperativo moral (proveniente da filosofia moral-cristã), porém político. O agir ou não agir, em determinado momento e assunto, demonstra que a ação política está condicionada pelo resultado. O imperativo da necessidade – “dever-ser” –, é o caráter de obrigatoriedade do qual revestem as escolhas essenciais do agente político, que se vê forçado a optar por um dos termos do dilema que se apresenta à sua deliberação. Para Maquiavel, por fim, é a coação da necessidade que faz com que o indivíduo decida-se a viver coletivamente. Já para Giorgio Agamben, a necessidade não tem lei, primeiro por ela não reconhecer nenhuma lei e, depois, porque ela mesma cria sua própria lei. Aqui, parece ter a necessidade o poder de tornar lícito o ilícito, ou melhor, age como justificativa para uma transgressão em um caso específico por meio de uma exceção. Daqui nasce a sua questão sobre a exceção, isto é, um caso particular que escapa ao todo da lei. Para ele, o conceito de necessidade é totalmente subjetivo relativo ao objetivo que se quer atingir. Não só a necessidade se reduz a uma decisão, como também o que se decide é, na verdade, algo indecidível de fato e de direito. Tal como o estado de necessidade não tem um eidos jurídico, o estado de exceção, terra de ninguém, não pode ter forma legal. Neste ponto, o estado de exceção está relacionado com a guerra civil, a insurreição e a resistência. O centro de seu pensamento concentra-se em que, numa sociedade contemporânea vivendo incansavelmente numa ‘guerra civil mundial’, o estado de exceção tem se tornado, cada vez mais, paradigma de governo dominante na atual conjuntura política. Nisto, parece estar o estado de emergência num ponto de intersecção entre democracia e absolutismo. O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político5. 4 AGAMBEN, 2004, p. 12. 5 Ibidem, p. 13. 5 Percebe-se, então, a condição de um estado de exceção aliado à ideia dos governos totalitários. Colocando em xeque a noção de Estado como garantidor dos direitos de seus cidadãos. Agamben usa, esporadicamente, como exemplo biopolítico6 do estado de exceção os Estados Unidos. A suspensão dos direitos dos emigrantes àqueles não cidadãos suspeito de envolvimento em atividades terroristas. Desse modo, a ordem promulgada anula – nas palavras do filósofo italiano – radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável. Homo sacer. Dizemos do excepcional como forma, do excludente como inclusão. Cabe agora perguntarmo-nos o que é feito quando a vida nua atinge sua máxima indeterminação. O que acontece, noutras palavras, quando uma vida separada e indeterminada de si mesma alcança seu expoente? A própria incerteza terminológica (de exceção) exibe uma zona de indeterminação. Com o decreto de exceção vemos como o executivo exerce plenos poderes com a promulgação de decretos com força-de-lei. É o mesmo caso do estado de exceção, uma não lei com força-de- lei e maior que a lei, porque a suspende – o que constitui um problema quando se fala do “estado de direito” onde ninguém, seja quem for, está acima da lei. Pensa-se que o estado de exceção corresponde a um retorno ao estado pleromatico – pleno – onde não há distinção clássica dos poderes, no entanto, o estado de exceção é mais kenomatico – um espaço vazio de direito – do que uma “plenitude originária do poder”; é considerado um mitologema. Agamben esboça como a exceção tornou-se regra. Aposta que o estado de exceção como “defesa” leva à ruína da constituição – não há segurança de que tais poderes emergências sejam, efetivamente, para salvaguardar a constituição –, pois se utiliza de mecanismos ditatoriais (não seria o estado de exceção uma lei marcial7 com uma nova roupagem?). Seria paradigma de governo, ou seja, padrão, exemplo, modelo, uma ditadura constitucional? Nas palavras de Rossiter apud Agamben, “os instrumentos de governo descritos aqui como dispositivo temporários de crise tornaram-se, em alguns países, e podem tornar-se em todos, instituições duradouras mesmo em tempo de paz”8. Temos um paradoxo se pensarmos como se pode regular no direito algo que o foge, o suspende e exclui a vida humana, do cidadão, sendo por definição irregulável. “O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade, uma zona de 6 Relação estabelecida entre o corpo e a politica. 7 Sistema de lei que tem efeito quando uma autoridade militar toma o controle da administração ordinária da justiça. 8 Ibid. p. 21. 6 indiferença capturada pela norma, de modo que não é a exceção que se subtrai à norma, mas ela que, suspendendo-se dá lugar à exceção”9, ou seja, a norma se aplica à exceção retirando-se da questão. O estado de exceção configura-se como estrutura política fundamental presente em nosso tempo que emerge sempre mais ao primeiro plano e tende, por fim, tornar-se regra. Também vimos, nas estruturas originárias do poder político e jurídico ocidentais, dois personagens que estão fora e acima da ordem, o homo sacer e o soberano. No estado de exceção vemos a vida capturada como vida nua, a vida desprotegida do direito e vulnerável à violência. Noutras palavras, a vida humana (a do cidadão da pólis, vida zoé) existente dentro do direito encontra-se constantemente ameaçada de se tornar vida nua. O soberano, que tem o poder de decretar a exceção, coloca todas as vidas humanas, potencialmente, sob essa ameaça. Por qualquer circunstância, uma pessoa, um grupo ou uma etnia que representasse ameaça real ou suposta (notemos os termos ‘representasse’ e ‘suposta’) para a ordem do Estado poderá sofrer a suspenção seja parcial ou total de seus direitos. A política utiliza o direito como dispositivo para controlar grupos que ameacem a ordem. O perigo que isso incorre é que quem, tal como no estado de exceção, poderá designar o sujeito perigoso e o porquê de seu perigo é, somente, a vontade soberana. De modo brusco, é introjetado ao direito a noção de suspeito, novamente falamos de “qualquer um”, falamos de homo sacer. É utilizado, pelo Estado, dispositivos que capturam a vida humana e possam banir as vidas indesejáveis, como apresentado. É o recurso da biopolítica e do biopoder que tomam o dispositivo da tecnologia, devido ao seu maior alcance, por exemplo, como controle, de populações inteiras, por parte do governo; controle da vida nua. A perversidade do meio dá-se por colocar como suspeitos vários grupos por motivos étnicos-raciais. Agamben utiliza o termo dispositivo, central no pensamento de Foucault no contexto da questão sobre o governo das coisas e dos homens, como resposta a uma urgência (necessidade). Hegel, ao tratar da positividade e destino, distingue a religião natural da religião positiva (tal como o direito natural e o direito positivo). A primeira preza pela relação homem- Deus onde há natureza, razão e liberdade; trata-se de seres vivente. O segundo é um conjunto determinado de crenças, ritos e dogmas intensificados pela positividade, coesão e história. Diz 9 PONTEL, 2012, p. 99. 7 mais dos dispositivos, dos elementos históricos. Para Agamben, o dispositivo é uma definição jurídica. Ao contrário da noção de estado de exceção que busca regulamentação no direito, o franciscanismo, ainda mais na sua concepção acerca do uso, recusa odireito e estabelece uma relação intrínseca entre vida e regra. Não se importa com regras, normas e ritos, sua regra é viver. Visão originária da comunidade que vem, uma forma-de-vida subtraída do direito. A visão franciscana do pecado o propõe como causa o orgulho. O homem não pode fazer algo que seja contra sua natureza, como no caso foi comer do fruto proibido. O pecado de Adão está mais relacionado à apropriação de algo que não era dele. Em uma linguagem mais jurídica, dizemos “roubo” por causa de sua desobediência. Talvez, aqui, siga a célebre frase de Jean-Jacques Rousseau: "Maldito seja o primeiro homem que cercou um pedaço de terra e disse 'isto é meu'". O franciscanismo acredita na possibilidade de o homem reinventar-se mesmo tendo se afastado de Deus pelo pecado. Essa reaproximação só é possível porque Deus outorgou ao ser humano uma dignidade de co-autor da criação. Quando Deus pede para o homem dar nome às coisas10, pede-o que continue sua criação. Estabelece, ao mesmo tendo, uma noção de senhorio e não de dominação. A relação que os franciscanos estabelecem com a criação instaura um uso pobre, sem vínculo proprietário com as coisas, escapando ao direito, como a condição primeira do homem antes do pecado. A ideia paradisíaca seria uma espécie de “comunismo original”. A motivação franciscana é o seguimento radical, imitação, de Jesus, sobretudo na conformação a ele. A pobreza de Cristo dá-se na renúncia de sua condição, a espiritualidade de São Francisco propõe que o homem siga essa mesma atitude, portanto, deverá renunciar, o ser humano, a sua condição de co-partícipe da criação, ou seja, sua condição de senhor. A pobreza deverá ser manifesta na vontade, no corpo, nos bens. Prega-se uma absoluta fraternidade entre a criação, os homens e Deus. Entre os homens, a fraternidade franciscana não reconhece superior devido a obediência mútua a todos que anula a própria ideia de obediência. Quem a todos obedece não obedece a ninguém, a não ser a regra, sua vida. O uso pobre das coisas sofre adaptações jurídicas. A questão em torno da pobreza gira em torno da obediência. Isto é, o papa João XXII proíbe o voto de pobreza, contudo, os 10 Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todo o animal do campo, e toda a ave dos céus, os trouxe a Adão, para este ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome (Gênesis 2, 19). 8 espirituais decidem não obedecer ao decreto papal. Os franciscanos pedem menos lei para garantir sua autonomia, querem a pobreza tal como na regra quisera Francisco e decidem por uma vida em plena liberdade pelo templo do Espírito, seguindo o milenarismo11. Desejam a regra, pois a adequam à própria vida. Nas palavras de Agamben: “(...) uma vida que se vincule tão estritamente a sua forma a ponto de ser inseparável dela”12. A experiência central daqueles que vivem em comunidade chama-se vida. A propriedade e o domínio político são consequências do pecado (ideia proveniente desde Agostinho). Expressam o mau uso da natureza humana. Em sua condição primeira, no paraíso, há somente o bem comum e não privado. Tudo é de Deus e com as “coisas” Dele estabelece-se uma relação de uso sem necessidade de posse. Apesar da perda da condição de inocência pelo uso da propriedade, os franciscanos reivindicam (e o que rege a vida política é a reivindicação) o estado de inocência vigente pelo direito natural. O direito natural não propõe distinção de povos e preza por tudo aquilo que lhes são iguais. É visto na vida paradisíaca, vida na pura liberdade onde o direito natural não impunha nenhuma condição. Assim os frades da comunidade, em uma trama entre vida e norma, fato e direito, estabelecem um forma-de-vida, pelo uso pobre das coisas e pela nova concepção de obediência que foge ao direito. Os frades habitam o convento (cenóbio) e o termo habitar implica manter, ter e usar; lembra o modo de vida que levam. Essa relação é ampliada por Francisco ao dizer que o convento do frade é o mundo, ou seja, ao mundo que habita, do mesmo modo em que o utiliza, deverá mantê-lo. Regra e vida, em Francisco, se confundem. A regra franciscana é pautada mais por um exemplo do que por um legislador. E sua observância dá-se na liberdade. Podemos notar, seguramente, uma considerável relação entre o franciscanismo e a comunidade que vem. Na comunidade de vida (em téi tés zoé koinoniai), por sua vez, o dom de cada um torna-se comum àqueles que vivem com ele (sympoliteuomenón), e a atividade (energia) do Espírito Santo em cada um comunica-se a todos os outros. Ao contrário, quem vive sozinho, mesmo que possa eventualmente ter um carisma, torna-o inútil pela inoperosidade e é como se o sepultasse dentro de si13. 11 Crença de que a segunda vinda de Cristo à Terra se daria no ano 1000 e então se iniciaria o milênio (o reino de Deus na Terra), que duraria mil anos 12 2014, p. 9. 13 Ibidem. Grifo do autor, p. 21. 9 Para o filósofo italiano, a comunidade que vem é um valor supremo e seus componentes são imbuídos por uma tarefa e ou missão a cumprir, a lutar pela realização di destino histórico deste valor que se encontra acima dos próprios dos próprios indivíduos que a formam. A luta aqui seria para que a comunidade não perdesse a sua constituição mais própria, constituição esta que, por diferentes motivos, pode se perder historicamente. E o seu valor mais próprio é a vida. Tal como pretendida Nietzsche com seu Übermensch, reinventar o ocidente onde a vida dionisíaca prevalecesse sobre a vida apolínea. A busca por uma vida estética, sendo o viver fruição. Uma nova sociedade para além do bem e do mal, da moral judaico-cristã e do racionalismo grego. Tomando os rumos finais do presente trabalho, quero fazer uma alusão ao pensamento de Martin Buber14, em seus termos, sobre a nova comunidade que alude tanto à proposta de Nietzsche quanto a de Agamben (divergindo em alguns pontos somente). Para Buber, a nova comunidade é uma revolução e seu fim está nela mesma e na vida. É pautada por uma interação (fraternidade tal como nos franciscanos) viva de homens íntegros. Regida, também, por uma liberdade maior onde haja fluxo de doação e entrega criativa. A vida na nova comunidade não é aquela dominada, pelo contrário, é livre de conceitos e de limites. Para Buber, ela festejará sorridente sua libertação da rigidez escravizante do pensamento. Diferentemente das duas formas da antiga comunidade que prezam pelo utilitário. A forma econômica, no sentido de corporação, busca vantagens; e a religiosa ao buscar seu Deus deseja obter vantagens sobrenaturais. Assim, na comunidade que vem, na nova comunidade, o mundo é isento de valores e preza-se pela vida tal como ela é, numa possibilidade de gestar novos mundos. Transcendendo a toda finalidade. Com isso, percebemos, não só pelas questões aqui suscitadas, mas também pelas nossas aulas, que a emergência de tal paradigma de governo, à luz da concepção agambeniana, se dá a custa de uma gama de direitos humanos violados. Um desprezo pela vida que sucumbe a própria sociedade e a noção de Estado. A curto e médio prazo temos vistos seus efeitos no mundo hodierno. Não há mais um valor pelo viver, a vida é capturada pelos dispositivos e posta à mercê do poder soberano. Agamben propõe um novo modo de fugir a este esquema pautado pela experiência franciscana e na busca da comunidade que vem, onde a vida tem primazia e o viver constitui seu soberano. Percebemos, também, que a promoção e a proteção destes direitos 14 Martin Mordechai Buber (Viena, 8 de fevereiro de 1878 - Jerusalém, 13 de junho de 1965) foi um filósofo, escritor e pedagogo, austríacoe naturalizado israelita, tendo nascido no seio de uma família judaica ortodoxa de tendência sionista . Buber era poliglota, em casa aprendeu ídiche e alemão; na escola judaica, estudou hebraico, francês e olonês. (polaco) Sua formação universitária deu-se em Viena. 10 humanos não podem ficar a cargo do Estado, segundo seus interesses e vontades. É preciso, superando entraves, posições dogmáticas e fechadas, fomentar uma conscientização coletiva via instituições sociais competentes no tocante a este tema emergente e fundamental na sociedade atual. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. Ed. – São Paulo: Boitempo, 2004. _________. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. 2. Ed. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 11 _________. Altíssima Pobreza. Trad. Selvino J. Assmann. – São Paulo: Boitempo, 2014. BUBER, Martin. Sobre comunidade. Trad. Newton Aquiles von Zuben. – São Paulo: Perspectiva, 2012. PONTEL, Evandro. Estado de exceção em Giorgio Agamben. Revista Opinião filosófica, Porto Alegre, v. 03; nº. 02, 2012.
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