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A vida social das coisas - Arjun Appadurai COMPLETO

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EdUFF
A VIDA SOCIAL DAS COISAS
As MERCADORIAS SOB UMA PERSPECTIVA CULTURAL
•
Arjun Appadurai
Rei/I)" Roberto de Souza Salles
Vice·Reiror. Emmanuel Paiva de Andrade
Pr6.Rt/'or dt PtsquiSQ e P6s'<;raduQfiio: Humberto r-cmandes M.<hado
Diretor do £dUFF: Mauro Romcn) lnl P.... os
Oi",'or do Oivisilo d. £di/oTOfao e Produfel ..: Ricudo 80rses
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
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Rnisiiu: Ic~ia Freixinhoe TatianedeA.ndr.ideBraga
T"uluriio: Agatha Bacel,r
Revisba ,~cn;cQ:Letl('iilVeloso
Capo: MlIICosAntonio de Jesus
Editoruriio t!/t1lrIJnic{l: AnaCaroline Ferreira
OiogralMfllo: vfvian Macedo de Souza
Supervisao grdfica: Kalhia M. P. Macedo
COD J06
AM6 AppOOurni. Arjun.
A vida soclal das ccisas: as mercudorias sub urno perllpeclh'3 cullurall
Arjun Appodurai: Tr3du~ao de Agatha Oace,lar - Nilet61: Editorn ce Univer-
sidnde Pederal Fluminense, 2008.
399 p.: 2lcm. - (C<II,~110AntropOlogi. ,CI.nci.POUtlca:41).
Jnclui blblioyali4S.
ISBN 987·85·m4~~
I. MIropOIOSi.. 2. SimboliJ1Ol).3.M'-"LTitulo. U. Sbie.
AUTORES,7
BREVE INTRODUC;Ao A EDI<;AO BRASILEIRA, 9
PREFAcIO. t 1
PARTE 1- Por uma antropologia das colsas
INTRODUC;Ao:
MERCADORIAS E A POLiTICA DE VALOR, 15
Arjun Appadurai
JI A BJOGRAFlA CULTURAL DAS COISAS:
A MERCANTILIZAc;AO COMO PROCESSO. 89
Igor Kopytof!
PARTE 11- Troca, cODSomO e exjbi~ao
III DOIS TIPOS DE VALOR NAS ILHAS
SALOMAO ORIENTAlS, 125
William H. Davenport
1V RECEM-CHEGADOS AO MUNDO DOS BENS:
o CONSUMO ENTRE OS GONDE MURIA. 143
Alfred Gelf
PARTE III • Prestigio, comemora~iio e valor
V VARNAE0 SURGIMENTODA R1QUEZA
NA EUROPAPRE.Hl~'T6R1CA, 181
ColinRenfrew
VI MERCADORlAS SAGRADAS:
A CIRCULAc;Ao DE RELfQUIAS MEDlEVAlS, 217
Patrick Geary
PARTE IV - Regimes de prodo~o e 3 sodologia da
demanda
YU TECELOES E NEGOClANTES:
A AUTEN11CIDADEDE UMTAPETEORIENTAL, 247
Brian Spooner~..
(dUff
slIMARIo4) 1986by Combridg. University Press
Tftulo origin:al: Th~ socic11lifto/Ihings: commodities in culturalperspectlv«
(l) 2008 (~ brasileira) EdUFF - EditOta d>.Univ ers idade Fedt .... f1wnin<:nse
RuaMiguel de Frias.9 - on.. O- sobreloj' - Ieanl - Nit.r6t RJ - CEP 24220-900
Tel.: (21) 2629·5287 •Tel.fax (21) 2629-5288 - hnp:l/www.edit."..ulT.br
£.mail: eduff.vm.uff.br
Iip'OibOda • rq>l'Cldutio """' "" pa.-ci1Idesu obnS<1D•• ~lo e'l':<SSIda Ildi .....
7
IGOR KOPYTOFF. do Departamento de Anrropclogia da
Universidadc da Pensilvania, e co-editor (com Suzanne Miers) de
Slavery inAfrica: historical andanthropologicalperspectives (1977)
e auror de Varietiesof witchcraft: the social economy of secretpower
(no prelo),
PATRICKGEARYeassociateprofessorde hist6riadaUniversidadeda
F16rida.E 0 autor de Furta sacra: thefts of relics in the central middle
ages (1978) eAristocracy in Provence:theRhoneBasin ot the dawn of
tirecarolingian age (1985).
AlFRED GELLensina antropologia social na Escola de Economia e
Ciencia Polftica de Londres. E 0 autor de Metamorphosis of the
cassowaries: umeda society, language and ritual (1975).
WILLIAM H. DAVENPOKTensina antropologia na Universidade
da Pensilvinia, onde tambem e curador encarrcgado da Oceania no
University Museum. Realizou pesquisa de campo na Jamaica e nas
lIhas Salornao e pesquisas hist6ricas 500re0Haval pre-europeu. Tern
publicado diversos irabalhos sobre essas areas de estudos,
ARJUNAPPADURAleassociateprofessorde antropologia e estudos
sul-asi:iticos na Univcrsidade da Pensilvania, E 0 autor de Worship
and conflict under colonial rule (1981).
C. A. BAYLI c fellow do St. Catharine's College, na Universidade
de Cambridge, e smuts reader em Estudos do Commonwealth,
Publicou The local roots of indian polities: Allahabad. 1880·1920
(1975) e Rulers, townsmen and bazaars: North Indian society in the
age of British expansion, 1770-1870 (1983).
LEE V. CASSANELLI e professor do Departamento de Hist6ria da
Universidade da Pensilvsnia. E 0 autor de TI,e shaping of somali
society: reconstructing the history of a pastoral people (1982).
IX A ESTRUTURA DE UMA CRISE CULTURAL:
PENSANDO SOBRE TECIDOS NA FRANCA
ANTES E DEPOIS DA REVOLUC;:AO,329
WilliamM. Reddy
X AS ORIGENS DO SWADESHI
(INDUSTRIA DOMEsTICA): TECroOS
E A SOCIEDADE INDIANA DE 1700A 1930,357
C.A. Bay/y
AUTORESVIO QAT: MUDAN<;A$ NA PRODUCAO E NO CONSUMO
DE UMA MERCADORlA QUASE-LEGAL
NO NORDESTE DA AFRICA. 299
Lee V.Cassanelli
PARTE V - TraDSfonna~s bist6riC8S e cOdigos
mercantts
98
Un.,. ~ (oj 0Uvrode MarsbalI Sahlins. CtdturD(, rll4JjqpriStiar. "lj3 I·td~ bmsiIcira roi em
1979. I"'on I)!j ontrop6logos. de anunciav. I.mIl nova pt:rSpC<tiva em rcJ~ ~ teru do co'sumo,
tmbom 03Cpnca n30 f05S(i lido e diswtido somcOle ).'klf essevits.
-,
A presente publicacso em lingua ponuguesa da coletanea organizada
por Arjun Appadurai (1988) vern completar e sornar-se ao conjunto
de textos acadernicos produzidos no contexte da antropclogia anglo-
americana e francesa sobre 0 terna do Consumo e do consumismo
modernosnas tres ultimas decadasdo seculo XX, mas que comeca-
ram a ser publicados entre nos somente nos (iltirnos anos (a partir de
2000).'
Delle ser ressaltado que urna caracteristica fundamental desses textos,
euja publicac;iiono Brasil se iniciou comA etica romanticae 0espirho
do consumismomoderno deColin Campbell (2001), foi a retomada de
uma perspectiva propriamente socioantropol6gica sobre 0 fenomeoo
do consumo, que desautorizava algumas teses vigentes de cararer trans-
cendente e moral. Estaabordagem surgiu, portanto, como urna "terceira
Ilia" para aqueles que 000 se adequavam ou nao conseguiam mais en-
xergar este importante fato social do mundo contemporanec - 0
consume - pela 6tica exclusiva das polarizacoes e dos dualismos.
De algum modo, todos esses textos apresentam urn ponto em comum.
Todos eles respondem, de uma forma ou de outra, a algumas acusa-
¢es graves feitas ao consumo e ao consumismo, alem da classica
atribuicao de fetichiza~iio dos objetos. Uma dessas acusacoes seria a
incapacidade de ambos para estabelecer vfnculos socia is "autenti-
cos". Ao contrario, tal como uma especie de cincer, 0 consumismo
moderno veio para destruir os "verdadeiros" lacos socia is. Para com-
pletar este cenario de Deus e 0Diabo na 'Ierra do Sol, a literature de
negocios, salvo excecoes, tambem sempre deixou muito a desejar
porque, panindo de premissas reificadoras, ela acabou consagrando
uma concepcso pecarninosa do consume.
BRIAN SPOONER ensina no Departamento de Anrropologia da
Universidade da Pensilvania. Escreveu Ecology in development: a
rationale for three-dimensionalpolicy (1984).
Laura Groziel« Gomes
COLIN RENFREW e Disney professor de arqueologia da
Uoiversidade de Cambridge eFellowdo SI. John's College. Eo autor
de Problems in European prehistory (1979) e Approaches to social
archaeology (1984).
BREVE INTRODUGAo
A EDIGAo BRASILEIRA
WILLIAM M. REDDY e assistant professor de bistoria na
Univcrsidade de Duke e esereveu Theriseofmarket culture:tiletextile
trade and French society, 1750-1900 (1984).
lJ10
Embora antropelogos e historiadores Calem cada vez mais uns so-
brc os outros, eles raramente falam uns com os outros. Este livro t
o resultado de um di610go entre anlrop6logos e hisroriadores sobre
o [COladas mercadorias, que se estendeu por urn ano. Tres dos arti-
gos (os de Cassanelli, Geary e Spooner) forum apresentados no
workshop de Etno-his[6ria na Universidade da Pensilvsnia em 1983-
1984. Os outros (II excecao de meu proprio ensaio imrodutorio)
foram aprescntados em urn simp6sio sobre as rela~oes entre merca-
dorias e cuhura, sediado no Programa de Etno-histeria, na Filadclfia,
nos dias 23 a 25 de maio de 1984.
lee Cassanelli, meu colega no Departamento de Hisl6ria da Univer-
sidade da Pensilvania, propos primeiramente 0tema "Mercadorias e
cullura" para 0 workshop de Etno-historia de 1983-J984. A ele e a
Nanc)' Farriss (tambem do Departamento de His[oria, e mentora do
workshop desde seu principio em 1975), devo varies anos de estimu-
tames di610g05 interdisciplinares, A proposta de lee Cassanelli
coincidiu fonuitamente com uma conversa que eu havia lido com
Igor Kopytoff eWilliam Davenport (meus colegas no Departamento
de Antropologia, na Universidade da Pensilvania), no desenrolar da
qual concordamos que j6 era tempo de ser feita uma revilaJizactao da
amropologia das coisas.
o simp6sio de maio de 1984, que levou diretamente ao projcto deste
livre, foi possibilitado pelos auxflios que 0 programa de Erno-histo-
ria recebeu do National Endowment for the Humanities e da Escola
de Artes e Ciencias da Universidade da Pensilvania. 0 sucesso dessc
simp6sio deve muito ao apoio organizacional e in[electual de estu-
dao[ts e colegas participantes. Em particular, agrade~ a Grela Borie,
Peter JuS[ e Cristine Hoepfner por toda a assislencia antes e duranle 0
simp65io.
Eu [ambtm desfrutei de mui[a generosidadc durante a preparac<ao
des[e livro. Susan AUen-Mills, da Cambridge University Press, foi
uma valiosa fonte de orienta,.ao intelec[ual e editorial. lCnhO uma
dfvida especial com a equipe do Centro de Esludos Avan~ados em
Ciencias Comportamen[ais, cujos recursos da secrc[aria e ad~inis-
Ni[cr6i, 13de revcreiro de 2008.
PREFACIOAutores como Bourdieu, Mary Douglas, Marshall Sahlins, Colin
Campbell, Daniel Miller e ouiros demonstraram exatamenre 0 con-
trario, sem cairem na tentacao de destituir 0 semido c a importancia
das Iormas de sociabilidade tradicionais criadas a partir da familia,
da produ,.ao e do trabalho. Baseados em pesquisas cmpiricas, eles
mostraram que 0 consume e.~[ana base da fonna,.ao do gOS[O,da
dislin~ao, scm 0 que nao se poderia falar de individualisrno e de es-
Iralegias de reproducao de muitos grupos e identidades sociais no
mundo moderno. Assim, alern de produzir vlnculos sociais, 0 consu-
mo tambern gera formas particulares de solidariedade, confianca e
sociabilidade fundamentals para a vida social.
Como as dernais obras, a coletanea organizada por Arjun Appadurai e
uma dcmonstra~ao eloqueme dcssa perspective. Ela ainda tern a varna-
gem de trazer consigo todo 0vigor provocative que a polemica adquiriu
durante as decadasde 1980/1990.1sso se torna evidente no momcnto
em que Appadurai apresenta 0 ponto de vista que proplls 80S autores
dos capitulos: 0 que acontece se deixarmos de prestar a[en~o apcnas
nos vinculos socials que supostameme precedem ou deveriam prece-
der as coisas, e eomecarmos a observar as coisas durante os variados
percursos e trajetorias que elas fazem e tracam na sociedade por meio
das diferemes esferas de circulacao nela existentes?
o livre e importame nao apenas pelas respostas que cada autor en-
controu no seu universe de pesquisa para esra proposicao, e que 0
leiter lera con(!i90es de avaliar, mas pel a evocacao de algo importan-
te em termos metodologicos. A coleranea nos faz lernbrar que a
pesquisa sociolegicn nao pode, de forma algurna, ficar refern de ob-
[eros pre-cons[ruidos.
12
PARTE I
Por uma aotropologia das coisas
Stanford, California
Arjlln Appadurai
Ir3~ao ajudaram materialmente na rapida preparacao dos originals.
Em particular, e umprazer agradecer a Kay Holm, Virginia Heaton e
Muriel Bell.
15
Este ensaio tern dois objetivos: 0 primeiro e apresentar e estabelecer
o contexte dos artigos que comp6em este livro; 0 segundo 6 propor
uma nova perspective sobre a circulacao de mercadorias na vida so-
cial. Tal perspectiva pode ser sintetizada da seguinte forma: a troca
economica cria 0 valor; 0 valor e concretizado nas mercadorias que
S.10 trocadas; concentrar-se nas coisas trocadas, em vez de apenas
nas formas e fun~s da rroca, possibilita a argumentacao de que 0
que cria 0 vinculo entre a Iroca e 0 valor e a politico. em seu sen lido
mais amplo. Este argumemo, que sera elaborado no decorrer deste
texto, justifies a tese de que as mercadorias. como as pessoas, tern
uma vida social.'
Pode-sc definir mercadorias, ainda que de urn modo provis6rio, como
objetos de valor economico. Quanto ao significado da expressso "valor
econemico", 0 melhor guia (embora nao seja 0 padrao) ~ Georg
Simmel. No primeiro capitulo de A filosofia do dlnheiro (1907),
Sirnmel forncce uma descricao sistematica da melhor forma de se
definir 0 valor cconemico. Para ele, 0 valor jamais c urna proprieda-
de inerente aos objetos, mas urn julgamento que sujeltos fazem sobre
eles. Mas, de acordo com Sirnmel, a chave para se compreender 0
valor reside em uma regiao oode "essa subjetividade 6 apenas provi-
sOria e, com efeito, nao muito essencial" (SlMMEL., 1978, p. 63).
Ao explorar esse dominio dificil - nem totalmente subjetivo, nem
exatamente objetivo, de onde 0 valor emerge e onde ele ope-
ra -, Simmel sugere que os objetos nao sao dificeis de se adquirir
porque sao valiosos, "mas chamamos de valiosos aqueles objetos
que opoem resistencia a nosso desejo de possuf-los" (1978, p. 67). 0
que Simmel denomina, em particular. objetos econOmicos existe no
espa~ entre 0 desejo puro e a fruJ~o imediata, com alguma distfulcia
entre elcs e a pessoa que os deseja. Tal distancia pode sec ultrapassada,
o que ocorre e por meio da troca economlca, na qual so determina
Arjun Appadurai
I
rnTRODUGAO:MERCADO~
E A POLITICA DE VALOR
1716
teoha sido sempre assirn, nem rnesmo no Ocidente, como observou
Marcel Mauss, em seu celebre Ensaio sobre 0dom, a forte tendencia
eontemporanea e considerar 0mundo dascotsas inerte e mudo. s6sen-
da movido e animado, ou mcsmo reconhecivel, por interm€dio das
pessoas e de suas palavras (ver tarnbem DUMONT, 19SO,p. 229-230).
NaO obstante. em rnuitas sociedades histericas, as coisas nao estavam
tao divorciadas da capacidade das pessoas de agir e do poder das pala-
vras de oomunicar (ver Capitulo 2). Que urna tal visao a respeito das
coisas nao tenha desaparecido mesmo nas circunstancias do capitalis-
roo industrial rnoderno euma das inmicoes que sustentavam a discussao
famosa de Marx sobre 0 "fetichismo das mercadorias", JlOCapital.
Mesmo que nossa abordagem das coisas esteja necessariamcnrc con-
dicionadu pela ideia de que colsas nao tem significados afora os que
lhes conferem as transacoes, atribuiqoes e motiva~6es humanas, 0
problema, do ponto de vista antropologico, e que esta verdade formal
nlio lan~a qualquer luz sobre a circula ..ao das coisas no mundo con-
creto e hist6rico. Para isto remos de seguir as coisas em si mesmas,
pois seus significados estao inscritos em suas Iormas, seus usos. suas
trajetonas. Somente pela analise destas uajet6rias podemos interpre-
tar as transa~ e os calculos humanos que dao vida as coisas, Assim,
embora de um ponte de vista teorico atores humanos codifiquem as
coisas por meio de significacoes, de um ponto de vista metodologico
sao as eoisas em movimento que elucidam seu contexto humane c
social. Nenhuma an~lise social das eoisas (seja 0 analista um econo-
mista, urn historiador da ar1e ou urn antrop6logo) e eapaz de evitar
(lor completo 0 que pode ser denominado fetiehismo metodologico.
Este fClichismo metodol6gico, que restitui nossa atenc;.'lo as coisas
em si mesmas, C. em parte, urn antidoto Ii lendenciu de atribuir um
excessivo valor sociol6gico as transa¢es realizadas com as coisas,
tendeoeia que devemos a Mauss, conforme Firth observou recente-
mente (1983. p. 89).'
Mercadorias. e coisas em geral, desper1am, de modo indepcodcote, 0
interesse de diversos tipos de antropologia. Constituem os prineipios
basicos e os ulrimos reeursos dos arque6Jogos. Sao a substancia da
~Cultura material", que une arque6logos a antrOp6logos culturai.~ de
divel'j)as linhas. Na quaJidade de objetos de valor. oeupam uma posi-
¢o cenlral na antropoJogia economica e, com igual impor1iIOCia,oa
teoria da troca011 na antropologia social em geral, uma vez que sao 0
reciprocamente 0 valor dos objetos, Ou seja, 0 desejo de alguern por
urn objeto e sarisfeito pelo sacrificio de um outro objeto, que e °fooo
do desejo de outrem. Tal troca de sacriffcios ~ 0 que constitui a vida
econornica, e a econornia, como forma social especlfica, "consiste
nao apenas em trocar valores, mas na troca de valores" (SIMMEL.
1978, p. SO). 0 valor economico e, para Simmel, gerado por essa
especie de troca de sacriffcios.
Essa an§lise do valor economico na discussao proposta por Simmel
tern diversos desdobramentos, 0 primeiro e que 0 valor econornico
nao e simplesmente urn valor generico, mas uma quantidade definida
de valor, que resulta da comensuracao de duns intcnsidades de de-
manda. A forma que essa comensuracao assume e a troca de sacriffcio
por ganho. Assim, 0 objeto economico nao tern urn valor absoluto
como resultado da demanda que suseita, mas e a demands que, cor_no
base de uma tTOCareal ou imaginaria, confere valor ao objeto, E a
troca que estabelece os parametres de utilidade e escassez, nao 0
contrario, e e a uoca que t a fonte de valor: "A difieuldade de aquisi-
c,;ao,0 sacriffcio oferecido em troca, e 0 unico elernento consntutivo
do valor, de que a escassez e tao-somente a manifesta~ao externa,
sua objetiva¢o sob a forma de quantidade" (SIMMEL. 1978, p. 1(0).
Em suma, a troca nao e um subproduto da valora¢o mutua de obje-
tos, mas sua fonte.
Com estas obscrva~oes concisas e brilhantes, Simmel prepara 0 ter-
reno para a analise do que considerava ser 0 mais complexo
instrurnento do procedimento de troca economica - 0 dinheiro - e de
seu lugar na vida modema. Mas suas observa~6es podem ser toma-
das em urn sentido um tanto diferentc. Estc senlido alternativo, que
se exemplifiea no corpo deste ensaio, consiste em explorar as condi-
¢es sob as quais objelos economicos eireu lam em difercntes regimes
de valor no tempo e no espa~. Muitos dos artigos que compiiem este
livro examinam coisas (ou gropos de coisas) especiJicas. uma vez
que circulam em ambientes culturais e bist6ricos especificos. 0 que
estes ar1igos permitem e uma serie de olhares sobre os modos como
de.o;ejoe demanda, sacrificio reciproco e poder interagem para criar 0
valor economico em situa¢es sociais espec(ficas.
Nos dias atuais, 0 senso comum ocidental, calcado em diversas tradi-
c;Ocshisloricas da filosofia, do direito e das ciBncias naturais, tern uma
forte tendencia a opor "palavras" c "coisas". Muito emborn isso nao
19
POUC()S negariam que a mercadoria e algo cornpleramente socialize-
do. Logo, em buses de uma definicao, a questao a ser colocada e: ern
que consiste esta sociabilidade? A rcsposta purista, que se tornou
r(>linaatribuir a Marx, e que uma mercadoria e urn produto destina-
do, sobretudo, A troca e que tais produtos emergcm, por definicao,
sob as condiljoes institucionais, psicologicas e econemicas do capi-
ialismo. Definicees rnenos puristas vccm as mercadorias como bens
dcslinados 11troca, independentcmente da forma de uoca, A defini-
~30 purista da um fim premature 11questao. As definic;iies mais frouxas
correm 0 risco de tornar equivalentes mcrcadoria, dl1diva e diversos
ourros ripos de coisas. Nesta secao, por meio da critica 11 concepcao
marx ista da mercadoria, pretendo sugcrir que rnercadorias sao coisas
com um upo particular de potencial social, que se distinguem de "pro-
d I~,· "obi105" "be s"." I' I " Iu ".>, jeros, n, ar era OS e outros - mas apenas em a guns
aspectos C de um dcterminado ponte de vista. Se for convincente,
meu argumento resultara no reconhecimento de que, rom vistas a
uma defioi~[io, e de grande utilidade considerar as mercadorias como
algo que existe em uma enorme gama de sociedades (embora tenham
uma f\lr~a e proje~ao especiais nas sociedades capitalislas moder-
nas), c de que h{t uma convergcncia inesperada entre Marx e Simmel
sobre 0 16pico das mercadorias.
A discusslio mais elaborada e inSliganle aeerca da id6ia de mercado·
ri.nconsln da primeira parte do primeiro livro de 0 Capital, de Marx,
aloda que a idtia eslivcsse muito difuodida nos debates sobre ccono-
mia poli1ica do sCculo XIX. A revisao, fcita pelo proprio Marx, do
conceito de mercadoria foi uma parte fundamental de sua crilica a
economia polftica burguesa e a base para a Iransi($lio que se verifica
entre ;;eu pr6prio pensamento inicial sobre 0 capilalismo (vcr, em
especial, MARX, 1973) e a analise mais madura de 0 Capirol. Alual-
menle, a ccnlmlidade conceitual da ideia de mercadoria foi substituida
relo conceilO neoclassico e marginal iSla de "bens". A palavra "mer·
cadoria" e usada na economia neoclassica apenas COOl referencia a
o ESPiRlTO DA MERCADORIA
as den .. is, "Conhecimento e mcrcadorias", busca dernonstrar que
poJilicas de valor sao. muitas vezes, pcliticas de conhecimento. A
concJusiio retoma a discussao sobre a politica como inslaneia media-
tlora entre a troca e 0 valor.
18
instrumcnto do ato de presentear. Analisar as coisas sob II pcrspeeti-
va das mercadorias constitui urn PODlOde partida de grande urilidade
para 0 interesse na culture material, renovado pela crientacso
semi6tica, e que foi rccentemente ressaltado c exemplificado em uma
sec;ao especial da RAIN (MILLER. 1983). Mas as mercadorias nao
sao um interesse fundamental apenas dos antropologos. Tambem cons-
tituern urn 16pico privilegiado na hist6ria economica e social na
historia da ane e, antes que nos esquecamos, na economia embora
cada disciplina possa formular 0 problema de urn modo diferentc. As
mercadorias representarn, pois, urn lema sobre (l qual a antropologia
pode ter algo a oferecer as disciplinas afins, como tambem tem multo
a aprender com estas disciplinas.
Os cnsaios deste livro abrangem uma boa parte das questoes histori-
cas, etnograficas e conceituais, mas nao prcrendem fazer,
absolutarnente, uma analise exaustiva das relac;<iesda cultura com as
mercadorias, Entre os colaboradores. h:icinco antrop6logos socials,
urn arque6logo e quatro historiadores socials. Economistas e histo-
riadores da anc nao estao aqui represeniados, mas suas id~ias nao
foram de modo algum negligenciadas. Algumas das principals areas
do mundo nao foram abordadas (notadamenre a China e a America
Latina), mas a eobertura geografica e de uma exrensao bern razoavel.
Ernborn os artigos tratern de uma seric consideravel de bens, 0 lista
de rnercadorias niio discutidas aqui seria urn tanto longa, havendo
uma preferencia por bens especfficos ou de luxo, em vez de merca'
dorins "ern estado bruto" e de "primeira neccssidade". Enfim, a maioria
dos autorcs dedica·se a bellS em vez de scrvifOs, embora eSles lam-
bern scjam imporlantes objetos de mercantiliza~iio. Ainda que cada
uR,ladestas omissiies seja grave, prelendo sugcrir, ao longo deste en·
satO, que algumas lem menos relevancia do que pareeem.
As cinco se~6es que se sucedem nesle ensaio dcdicam-se aos seguin-
ItS objelivos. A primeira, "0 espirilo da mercadoria", e um exercicio
crltico de defllli<;ao, na qual se argumenta que as mercadorias, deyj·
damente compreendidas, nao sao monop6lio das economias industriais
modernas. Em seguida, URotas e desvios" discute as estral~gias (se·
jam individuais ou inslitucionais) que fal.em da cria,.ao de valor urn
proccsso mediado pela politico. A se~iio subsequcnlc, "Descjo e de-
mando", arlicula model os de loogo e curto prazo na circula,.ao de
O1ercadorias para mostrar que 0 ronsumo est;! sujeito ao controle so·
cial e a rcdefini<;ao polilica. A ultima sc~'io tao fundamental quanta
2120
comensura~ilo do dinheiro. Hoje, a liga¢o entre mercadorias e formas
p6s-industriais, sejam iais formas socials, financeiras ou de troca, e em
geral urn ponte pacffico, mesrno entre os que, noutros aspectos, nao
levam Marx a serio.
ContudO, nos textos do proprio Marx, podc-se encomrar a base para
uma abordagem das mercadorias muito mais abrangentc eproffcua deurn ponto de vista intercultural e historico, cujo espirito se vai atenuan-
do, a medida em que ele passa a estar envolvido nos detalhes de sua
analise do capitalismo industria) do seculo XIX. De acordo com esta
primeira formulacao, para produzir mercadorlas, em vez de meres pro-
dutos, urn hornern tem de produzir valores de uso para os outros, valores
de usc sociais (MARX, 1971, p. 48). A esta passagern, Engels acres-
centou uma interessante glosa, inserida entre parenteses no texto de
Marx, em que se reformula a ideia da seguinte forma: "Para se tornar
mercadoria, 0 produto tem de sec transferido para outrem, a quem ira
servir de valor de usc, por meio de troca" (MARX. 1971, p. 48). Em-
bora En~els se contentasse com esra efucidacao. Marx prosseguiu com
uma sene extremamente comptexa (e ambfgua) de distin¢es entre pro-
dutos e mercadorias, mas, para prop6sitos anrropolegicos. a principal
passagem merece ser citada na integra:
Todo prodetc 00 ",batho f, em led<><os esiados da
sociedade, valor de usa; mas 56 em uma determina-
da epoca do d ..senvotvimenro hisl6ricod. sociedade
o produto do trabalho setransfonna em mercadoria,
3 saber, aqucla em que 0 trabntbo gasco na produ~o
de objl.!{osuteis se coma tl cxpress!io de Ulnadas qua·
lidades increnles a tsses objc..fos. ou seja, explcsslio
de seu valor. Re~uhadai que a fOrn\3~vaJor clemen-
tar c tambCm a forma primitiva sob n qual 0 proouto
do trabalho surge bisloricamenlt como urn;) mera-
doria e que a Ir..mform~ogto1doal desses produtos
em mercadorias prosscguc p:asso a pa.~ cum 0 de-
sc.o,-olvimeDloda form.·valor. (MARX, t97l. p. 67)
A dificuldade em distinguir 0 aspecto 16gioo do aspedO his16,ico oessa
argu~ntat,;ao foi observada por Anne Chapman (1980), em urna dis-
cussaoque retomarei em breve. No excerto de 0 Capitalcitado acima, a
passagelll do produto amercadoria ~ tratada em termos hist6ricos, mas 0
resu_ltadoflJ1alpermanece muito esquematico e e dificil especificn-lo ou
Ie$ti·lo com alguma c1areza.
uma subclasse ~sp'ccifica de bens primllrios e j6 nao exerce urn papel
analftico central. E claro, esse nao e 0caso das abordagens marxistas
na eoooomia e na sociologia, ou das neo-ricardianas (oomo as de
Piero Sraffa), nas quais a analise da "mercadoria" ainda tem uma
fun~o te6rica fundamental (SRAFFA, 1961;SEDDON, 1978).
'Iodavia, no maioria das analises modemas da economia (fora da an-
tropologia). 0 significado do rerrno mercadoria ficou restrito a
repercutir apcnas uma parte do tegado de Marx e dos prirneiros ceo-
nomistas politicos. Ou seja, na maioria dos usos comemporsneos, as
mercadorias sao um tipo especial de bens rnanufaturados (ou servi-
<;05), que se associam somcnte aos modes de produ<;iio capitalista e,
portanto, 56 pod em ser encomradas onde penetrou 0 capitaJismo.
Assim, mcsmo nos debates atuais sobre a proto-industrializacao (ver,
por exemplo, PERLIN, 1982), a questso nao e se as mcrcadorias se
ass~iam ao capitalismo, mas se certas formas de organi.z.a<;ao e de
tecOlC3Sassociadas ao capitalisrno tern uma origem exctusivamente
europeia. Mercadorias sao, em geral, vistas como Hpicas representa-
¢es. materia is do modo de producao capitalista, mesmo quando
classificadas como triviais, e seu contexte capitalista como incipiente,
Porem, e evidente que tais analises se valem de apenas uma parte da
concepcao de Marx da natureza da mercadoria, Pode-se dizer que 0
tratamento dado 11mercadoria nas pnmeiras cento e tanras pagiaas deo Capital e uma das partes mais dificcis, contraditorias e arnbiguas da
obra de Marx. Inicia-se com uma defini~iio de mercadoria extrema-
mente vaga ("A mercadoria e, antes de tudo, 11111 objeto exterior, uma
coisa que, por suas propriedades, satisfaz neccssidades humanas de
qualquer <:specie"). Continua, entao, dialeticamellte. corn uma serie de
defini~cs mais parcimoniosas. que possibililam a elnboraltiio gradual
da abordagem marxista Msica do valor de usc e valor de troca, 0 pro-
blema da equivalcncia, a circul~o e a tmea de produtos C0 significado
do dinheiro. E a elabord<;30 desta conce~o das rela~ entre a for-
ma·mercadoria c a forma-dinheiro que permite a Marx estabeJecer a
(amosa distin~o entre as duas formas de circul3~0 de mercadorias
(Mcrcadorias-Dinheiro-Meccadorias e Dinhciro-Mercadorias-Di-
nheiro) sendo a segunda a representa~o da f6rmula geral do capitalismo.
No decurso deste movimento analitico, as mercadorias sao intricada-
mente atrcladas ao dillheiro, a um mercado impessoal e ao valor de
troca. Mesmo lIa forma mais simples de circula<;iio (Iigada ao valor de
uso). as mercadorias relacionam -se por mei(l da capacidade de
2322
lI)eTcadOrias. Cnmbinando aspectos de diversas dcfinicocs corrernes
da pemlut. (inclusive a de Chapman). sugiro que se trata de urna
troca mutua de objetns sem alusao a dinheiro e CQIII a maxima redu-
~o factivel nos custos socia is, culturais, politicos ou pcssoais da
transac;iio.O primeiro criterio disiingue a perrnuta da troca de merca-
darias num senrido estritamenre marxista, enquanro 0 segundo a
dislingue da troea de prescnresem praticamenre qualqucr dcfini~o.
Chapman tern razso ao afinnar que. na medida em que a teoria do
valor de Marx e levada a serio, 0 teatamento nela dado a permuta
apresenta problemas teoricos e conccituais que permanecem insohl-
veis(CHAPMAN. 1\180, p. 68·70), pois Marx postulava que a perm uta
3$Sumiaa forma tanto de uma rroca direta de produros (x do valor de
usoA =y do valor de uso B),quanto de uma rroca direta de mercado-
rias (x da mercadoria A = Y da mercadoria B). Mas esra concepcao da
permuta. por mais problcmatica que seja para uma teoria rnarxista
sabre a origem do valor de rroca, tern a virtude de estar em harmonia
com a reivindicacao mais persuasiva de Chapman, a saber, que a
perm uta, seja como Corma de troca dominante ou secundaria, existe
em uma grande variedade de sociedades. Chapman critica Marx por
incluir a mcrcadoria na pcrmuta e pretende mante-las bern separadas,
alegando que mcrcadorias assumern a fun,.ao de objetos monetarios
(e. portanto, de valor de trabalho congelado), nao apcnas a funcao de
unidadc de calculo ou de medida de equivatencia, Para Chapman, a
troca de mercadorias s6 ocorre quando urn objeto monetario inter-
vern na troca. Como, em seu modelo, a permut~ cxclui tal io!crven~ao,
b3 uma distinliao formal e complcla entre a troca de mercadorias e a
permut3, em bora possam coexistir em algumas socicdades
(CHAPMAN, 1980, p. 67-68).
Parece-me que Chapman, em sua critica a Marx, adota uma visao
demasiado restritiv8 do papel do dinhciro 113 circllla~iio de mcrcado-
rias. Marx, rnesmo tendo encontrado dificuldades em sua propria
analise das rela~6es entre permuta e troea de mercadorias, linha ra-
uo em ob!>ervar, como 0 fez Polanyi, que a perm uta e a troca
capitalista de mercadorias tinham urn esplrilo COIIIIIIII,ligado (em
$Cuponto de vista) a natureza centrada no objeto, relativamcnte im-
pessoaJ e associal. de amba.~ as formas de troca. Em diversas formas
simples de perm uta. percebemos um esfor~o em trOcar coisas sem as
coer~s da sociabilidade nem as complica¢CS do dinbeiro. No mun-
do contemporaneo, a permuta esta em aha: h:i uma cstimativa de que
A quesuio ~ que Murx ainda esrava preso a dois apriorisrnos da
episteme de meados do seculo XIX: urn estabclecia que s6 se podia
observar a econom ia corn refereucia ~s problematicas de producao
(BAUDRILLARD, 1975); 0 outro considcrava o movimcnto em di-
rec;iio ii producao de rnercadorias como evolutivo, unidirecional e
historico. 0 resultado: rnercadorias existern OUnao existem e sao
produtos de uma especie particular. Cada uma dessas suposicocs pre-
cisa ser modifieada.
A despeito dessas limita(iOes epistemicas, em sua celebre discussao
sobre 0 feticbismo das mereadorias, Marx de fato observa, como 0
faz em outras passagens de 0 Capital,que a mercadoria nao e uma
invencao do modo de producao burgucs. mas se manifestava "erndatas anrigas da histdria, embora nao de urn modo tao predominante
e caracterfstico como nos dias de hoje" (MARX, 1971, p. 86). Ainda
que cxplorar as dificuldades do pr6prio pensarncnto de Marx sobre
economies pre-capitalisras, sem Estudo e niio monetizadas, seja algo
que ultrapasse os limires do presente ensaio, poderlamos observar
que Marx nao afustou a possibilidade de haver mercadorias, ao me-
nos em urna forma primitiva, em muitos tipos de sociedade.
A esrraregia de dcCinic;iioque proponho aqui consistc em urn retorno
a versao da emend a Ieha por Engels ii definictio mais abrangente
formulada por Marx, que inelui a producao de valor de uso para os
outros e possui ponros convergentes com a enfase de Simrncl na tro-
ea como fome do valor econ6mico. Comccclll()s com a ideia de que
uma mercadoria e qllll/qUIt/' Clli.WItlestillada Ii Iroca, 0 que nos Iiberta
de uma prcocupa<;Ao c"clusiva com 0 "produto", a "produ~ao" e a
inten~ao original ou predominnntc do "produtor", e possibilita nos
concentrarmos nas dinamicas de troca. Para fins comparativos, en-
tao, a questiio deixa de ser"O que ~ mercadoria?" para ser "Que tipo
de troca e a teoea de mercadorias·!". Aqui, como parte de urn esCor~
em definir mercadorias da melhor forma possfvel, temos de lidaroom
dois tipos de troca que sao convcncionalmente contrastados com a
troea de mercadorias. 0 primciro c a permuta (algumas vezes chama-
da de troea dire!a); 0 segundo e a troca de presentcs. Comecemos
com a pcrmuta.
A pemluta e uma forma de troca que Chapman (1980) analisau re-
centementc. em urn cnsaio que, entre outras coisas, discorda da analise
do proprio Marx ,nbre as rcla(JOcs entre a troca dircta c a tToea de
25
tendencia de ver uma oposicao fundamental entre estas duas modali-
dades de rroca continua sen do urn traco distintivo do discurso
anlropol6gico (DUMONT, 1980; HYDE, 1979; GREGORY, 1982;
SAHLlNS, 1972; TAUSSIG, 1980).
A amplia,.io e a reifica~o do comraste entre dadiva e mercadoria na
produ~50academica antropologica tem muitas fontes, entre as quais
estiio: a rendencia de idealizar as sociedades de pequena escala de
um modo romimtico; de confundir valor de uso (no sentido de Marx)
corn gemein~c/rafr'(no sentido de 'Ioennies); de esquecer que tam-
b~m as sociedades capitalistas operam de acordo com padr6cs
cultur:lis; de marginalizar e minimizar os aspectos calculistas, im-
pessoais c auto-enaltccedores das sociedades nao-capitalistas. Estas
tendencias, por sua vez, sao 0 produto de uma visiio demasiado
simplisradaoposicao entre Mauss e Marx, que, como observou Keith
Hart (1982), deixa escapar aspectos imponantes dos pontes em co-
mum que se verificam entre eles.
Dadivas - e 0 csplrito de reciprocidade, sociabilidade e espontanei-
dade em que sao nonnalmente troeadas - sao em gerat postas em
oposi~ao ao espfrito ganancioso, egocemrico e calculista que anima
8 circulac;aode mercadorias, Ademais, enquanto presenres vinculam
eoisas a pessoas e inserem 0 fluxo de coisas no f1uxo de relacoes
socials, mercadorias supostamente represenram 0 movimento - em
grande parte livre de coercoes morais ou culturais - de bens uns pe-
losoutros, movimento mediado pelo dinheiro, nao pela sociabilidade.
Muitos dos ensaios deste livre, assim como minha propria argumen-
t8~ao aqlli, destinam-se a mostrar que esta s~rie de cootrastes e
exagerada e simplista. Porem, por enquanto, apresento apenas uma
importanle propriedade comum a troca de presentcs e ~circula«ao de
mercadorias.
omodo como compreendo 0cspirito da troca de presentes deve muito
a Bourdieu (19n), que expandiu urn aspecto atc enlao negJigenciado
da analise de Maus.~sabre a dadiva (MAUSS, 1976, p. 70-73), no
qual se enf~tizam certos paralelos eslf3tegicos entre a troca de pre-
seotes e as pr:1ticas "econ6micas" mais ostensivas. A discussao de
Bourdieu, que ressalta a dinilmica temporal do ato de presentear,
emprcende uma analise perspicaz do espirito COO1umsubjacente II
troca de prcscntcs e 11 circulac;aode rnercadorias:
24
rnovimcntc 12 bilb6cs de d61ares em bcns c services por ano apenas
nos Estsdos Unidos, Perrnutasinternacionais (por cxemplo. xarope
de Pepsi por vodca russa; Coca-cola por palitos de dente corcanos ou
por empilhadeiras bulgaras) estao-se transformando em uma com-
plexa economia alternativa. Ncstas circunsrsncias, a permuta e urna
rca~iioao namero cada vez maior de barreiras impostas ao comercso
e as finan~as internacionais e tern um papel especifico a exercer na
cconornia global. Assim, como forma de comercio, a permuta articu-
la a irocu de mercadorias nas mais divcrsas circunstancias sociais,
tecnol6gicas e institucionais. Pode-se, portanio, considerd-Ia uma-
forma especial de troca de mercadorias, na qual, por uma serie de
razlies,0 dinheiro nao desempenha qualquer papcl, au um papel muito
indireto (como uma mera unidade de calcuto). Com esta defini~o de
permuta, seria praticamente imposslvcl encontrar qualqucr socieda-
de humana em que a troea de mercadorias seja completamente
irrelevante. A permuta parece ser a forma de troca de mercadorias
em que a circulacao de coisas mais se divorcia das normas sociais,
potuicas ou culturais. Porem, onde quer que haja evidencias disponi-
veis, a determinacao do que pode ser permutado, onde. quando e pol
quem, assirn como 0 que impulsiona a demanda por bens de "ou-
trern", e urn fato social. Ha uma forte tendencia de perceber tal
regularnentadto social como urna quesuo em grande parte negative,
de modo que a perm uta em sociedades de pequena escala e em
pertodos remotes e, com frequencia, considerada uma forma de troca
restrita IIrcla~ao entre comunidades em vez de no interior das comu-
nidades. Neste modele, a perrnuta e tomada como Oligoinversarnente
proporcional A sociabilidade e, por extensao, 0 comercio exterior e
visto como algo que "precedeu" 0comercio interno (SAHLlNS, 1972).
Mas M boos motivos empiricos emetodol6gicos para questionar estc
ponto do!vista.
A ideia de que 0 comercio em economias pre-industriais nao
monetizadas e, em geml, percebido como an(i~socialsob a perspecti-
va das comunidades de contato direto e, portanto, restringia-se com
frcquencia a negocia~es com estranhos lem como contrapanida im-
plieila a visao de que 0 espfrilo da d:idiva e 0 da mercadoria sao
profundamcnte opostos. Sob tal ponto de visla, a Iroca de prcsentes e
a troca dc mcrcadorias sao, por essencia, contrastantes e excluem-$C
mulunmcnlc. Apesar das lenlativas recentes de arnenizar 0 exagera-
do conlraste entre Marx e Mauss (HART. 1982; TAMBlAH, 1984), a
2726
dianlC, E"tas oposlcoes saO caricauuas de a~~s os p61?,~e reduzem
as diversidad.s humanas de urn modo artificial. Urn sintoma deste
problema rem sido uma concepcao demasiado positivista da meres-
doria como urn dcrerrninado tipo de coisa c, portanto, resrringindo,
assim, 0 debate it qucsrao de decidir de qual tipo de coisa se trata.
Mas. quando sc tenta comprccndcr 0 que e especifico a troca dc mer-
cadorias, nao faz scntido distingui-la radicalrnente do permute nem
da uoca de prcsentes. Como sugcre Simmel (1978. p, 97-98), c im-
por1ant~ considerar a dimensiio calculista em todas esras Ires forruas
de rroca, mesmo se variam as formas e intensidades de sociabilidadc
associadas n cada uma delas. Resta-nos, agora, caracrerizar a iroca de
rnercadorills de urn modo comparative c processual.
F~mos uma abordagem das mercadorias como coisas em uma deter-
minada situa~ao. situa~ao csta que pode caracterizar diversos tipos de
coisas, em pontes diferentes de suas vidas socials. 1550significa olhar
para 0 potencial mercantil de todas as coisas, em vez de buscar em vao
a magica distin~ao entre mercadorias e outros tipos de coisas. Tambem
significa romper de urn modo caregonco com a visao marxista da mer-
cadoria, dominada pela perspectiva da producao, e concentrar-se em
toda a Iraj~t6rill. desde a producao, passando pela troca/dislTibui~o.
ale 0 consumo.
Mas comodeveriamt)s definir a silua~o mcrcantil? Proponho que a
s;lUat;iio mercalllll 1111 vida social de qualquer "co;sa" sejll dcfill;da
C()mo a SiltlUFiQ em qlle Stili trocabilidadc (passada, presellte 011fu-
lura) por ((lglIIII(( OIl/ra ClJ;.WICOII$I;llIi sell IrU~lJ social relevallle,
Ademais. a sitlla<;aomercantil, assim definida, pode ser dccomposta
em: (1) a (ase meresnlil da vida social de qllalquer coisa; (2) a caodi·
dalura de qualquer coisa at) eSlado de mercadoria; (3) 0 contexto
mercanlil em que qualquer eoisa pode ser alocada, Cada um destcs
aspectos da "mercantilidade" cxigc alguma explicu~ao,
A n~o de fase mercantil na vida social de uma COiS3t uma forma
de sintetizar a ideia central do importanle ensaio de Igor Kopyloff
que COosta deste livro. em que se observam certa.~ coisas transitando
dentro e fora do eSlado de mercadoria. Terei mais a dizer sobre esta
aOOrd"gcm biogrdfica das c(lisas oa proxima se~o. ma~ nOle-se. por
enquanto. que coisas entram e saem do eSlado de mcreadoria. que
tais movimcntos podem ser rapidos ou lentos, reversiveis ou termi-
Dais, nomJativos ou discrepantesS Embora 0 aspeClo bi<lgrafico de
Sc c vcrdade queo intervalo de tempo Imcrposto ee
que f>OS.'Sibilib BOdam OU;'U \:unlra-dt)m S~f vistu e
experimemadc lvmu urn alO inaugural de gcnclU\i.
dade, scm qualqu<r passado OU futuro, quer dizer,
sem cd/(uto. cmsc fica c18'0 que. au reduxir 0
poIilttico au monol~tiro. u ohjetivh,mo aniquila a
cspecificidade de todilS:lS pritiea~que, como a tro-
C3 de presenres, lendem a, OUprctcndem, colocar a
lei do ioreresse prOprio em suspenso. Por dissimua
lar, ~1endcodo no tempo. a lronsa(fioque 0 eontrato
racional condcnsa em um insrante, :.t rrcca de dons
e. senao 0 iiniC-Q modo de circul:u;l1o de mercadorias
a scr pratic. ...do, ;10 menos o uDiC() modo plenarnerue
rcconhccldo, em sociedades que, como coloca
Lukacs. ncgam 140 verdadeiro solo de SU3Svidas", e
que, como sc Rao quisesscm c nAo pudcsscm confe-
rir a.~realidades ccenemlcas seu sentido puramenre
econemico, ten, uma cconolni~ em /'Ii e nau para si
(BOURDIEU, 1977.p, 171)
Esse tratamento dado ii troca de presentes como uma forma particu
lar de eircula~ao de mercadorias precede da crftica que Bourdieu dirige
nao apenas a tratamcntos "objetivistas" da a~o social, mas a urn tipo
de etnocentrismo, em si mesmo urn produto do capitalismo, que lorna
per incomestavel uma defini~o demasiado restrita do interesse eco-
namico.' BOllrdieu sugere que "a pralicajamais eessa de obedecer ao
calculo econOmico. mesmo quando da uma impressiio de completo
desinlcresse por eseapar 1116gica do c,ilculo inlcrcssado (no senlido
estrilO) e estar norleada por aposlas que sao imateriais e dificilmente
quantifieadas" (BOURDlEU, 1977, p, 177),
Sllponho que Cst3 sugestao converge, ainda que de urn dngulo ligei-
ramcnte diferentc, com as propostas de Thmbiah (1984), Balldrillard
(1968, 1975, 19(1), Sahlins (1976) e Douglas & Isherwood (1981),
lbdas estas propostas sao tentativas de restituir a dimensiio cullura.1
de sociedades quase sempre descritas apenas, em tennos gerais, como
economias. e de rcslituir a dimensao calculisla de sociedades quase
sempre relnltadas apenas em temlOS r;Strilos de solidariedade. Pane
das dificuldades quese encoDlJam nas analiscs interculturais de mer-
cadorias, como tambem de oulros domInios da vida social. reside no
(ato de a antropologia seT demasiado duaJisla: "n6s C eles"; "mate·
rialista c religioso"; "objelifica~iio de pessoas" verStlS "personifica~o
de coisa~"; "truca comercial~ versus "rcciprocidadc"; e assim por
29
Nuda, como mostrou Simmel, do ponto de vista do individuo e sua
subjetividade, todus as nocas podem conter este tipo de discrepancia
entre os sacrificios do comprador e do vendedor, discrepancias nor-
malmcnte postas de lado por causa das inumeras conveneoes sobre a
ItOC3 que sao cumpridas por ambas as partes (SIMMEL, 1978, p.
sO). podemos, pois, Ialar do quadro cultural que determina a candi-
datura$Iecoisas 30estadodemercadoria, mas devemos ter emmente
que algumas silual;Oesde troca, tanto inter quanto intracultural, se
caracterizam por uma gaOlamais superficial de padr6es de valor com-
partilhados. Por conseguinte, prefiro usar 0 termo regimes de valor,
por ndo implicar que 1000 aro de Iroea de mercadorias pressupooha
urnquadro cultural em que se companilhe uma toralidade de crencas,
Aates, 0 termo sugere que 0 grau de cocrencia valorativa pode ser
altamente vari'vel conforme a situa~o, e conforme a mercadoria.
Neste sentido, um regime de valor condiz tanto com graus muito
l!itos quanta com graus rnuito baixos de cornpartilhamento de pa-
dr6cs pelas partes envolvidas em casos particulares de troca de
mercadorias. This regimes de valor sao 0 fator determinante na cons-
tante transcendencia de fronteiras culturais por meio do fluxo de
mercadorias, entendendo-se cultura como um sistema de significa-
dos localizado e delimirado,
Bnfim, 0 contexto mercantil so refere a variedade de arenas sociais,
110 interior de ou entre unidades culturais, que ajuda a estabelecer 0
vlDeuloentre a candidatura de uma coisa 30 estado de mercadoria e a
fase mercantil de sua carreira. Assim, em rnuitas soeiedades, transa-
~ ~e casamento podcm constiluir urn contexto em que rnulheres
sao Vlstascom maior intensidadc, e de modo mais apropriado, como
+aJoresde troea. Negocial;6es com eSlrangeiros podcm produzir con-
&ems para amercantJljza~ao de coisas que noutras oeasi6es estariam
prot~gtdas da mercanliliza~ao. Leiliies acentuam a dimensao mer-
C8lltil de .objetos (tais como pinturas) de um determinado modo que
pode mUltobem scr percebido como eXlremamente inapropriado em
ClUtrosconte~tos. Bazares sao cenanos propensos a encorajar 0 fluxo
cIe IIICrcadonas,eoquanto cenuios domesticos podem nao ser. A va-
~e de tais coolextns, no inlerior e atraves de soeiedades, prOOuz
~~o eOlre0 ambie~te socia~da mercadoria e seu estado simb6-
"t"" e_temporal. Como J6 sugen, 0 contexlo mercantil, como uma
~ SOCial,pode reunir atores provenientes de sistema.~culturais
diferentes, que comparlJlbem apenas urn minimo de eotendi-
28
algumas coisas (tais como objetos herdados, selos postais e antigui-
dades) possa ser mais patentc do que 0 de outras (tais como barras de
aco, sal ou a~ucar), este componcntc nunca 6 de todo irrelevante.
A candldatura de coisas ao esrado de mercadoria e um traco mais
conceituaJ do que temporal, e concerne as padroes e criterios (simb6-
liens, classificatorios e marais) que detcrminam a trocabilidade de
coisas em qualquer contexro social e hist6rico em particular. A pri-
meira vista, tal tra!;Opareceria mais bem explicado como 0 quadro
cultural em que coisas sso classificadas, e e uma das principais pre-
ocupacocs do artigo de Kopytoff neste livro. Porem, tal expliea~
oculta uma variedade de complexidades. E verdade que, na maioria
das sociedades estaveis, seria posslvel descobrir urna estrurura
raxioncrnica que definisse 0mundo das coisas, formando conjuntos
de detcrminadas coisas, estabelecendo distin~ entre outras, vin-
culando significados e valores a esses arranjos e fomecendo uma
base para regras e praticas que govemariam a circulacao desses obje-
tos. No que range 11 economia (ou seja, a troca), a descricao de Paul
Bohannan ('1955) das esferas de troca entre os Tiv e urn exemplo
claro desse tipo de quadro cultural de troea. Mas M dois tipos de
situac;ao em que os padr6es e criterios que governam as trocas sao
tao tenues, que parecern praticamente ausenres.0 primeiro tipo Ii0
C<lSO de transacroesque transpoem fronteiras culturais, em que tudo 0
que se combina e 0 preco (monetario ou nao) e um conjunto minimo
de convencocs concernentes a transa~ao em si." 0 outro Ii 0 caso
daquelas trocas intraculturais em que, a despeito de urn amplo uni-
verso de conhecimenlos compartilhados, lima tTOeaespecifica se
baseia em perccNcies profllndamcntc difercntes do valor dos objctosque esliio sendo trocados. Os mclhores exemplos de tal divergencia
de valor entre culturas podcm ser encontrados em situaf$6esde extre-
ma privac;ao (como epocas de fome ou de guerra), quando a 16giea
das trncas realizadas lem muito poueo a ver com a comensuraf$ao de
sacriffcios. Assirn, urn homem bengali que entrega sua esposa a pros-
titui~o em troca de uma refei~o, ou uma mulher IUrkanaque vende
algumas de suas melhores j6ias pela comida de uma scmana estlio
participando de transa~6es que pOOemser consideradas legitimas em
circunstancias extremas, mas que jamais seriam vistas operando em
urn complexo quadro de valom~lio compartilhado entre 0 vendedor e
o comprador. Outra fonna de caracterizar tais situa~ Ii dizer que,
nestes contextos, valor e pre~ foram quase tOlalmente desatrelados.
31
As ~e~dorias sao (reqiientemente representadas como 0 resultado
mecan.co de regimes de produ!;ao govc:rruldos pelas leis dc oferla e
proeura. Recorrendo a certos exemplos etnognificos. pretendo mos-::ar' ne~ta sc"ao, que 0 fluxo de mercadorias, em qualqucr situac;ao
~enmJla~a, e urn aco.rdo oscilante entre rotaS soeialmenle regula-
e desv.os competrl.vamenle motivados.
doCo~o ressaltou Igor Kopytoff, pode ser util considerar quc as merea-naste h'·" d . .fase m m l~tonas. e ~Ida. D~acordo com csta vislio processual, a
creamll na hlst6na de VIda de urn objeto nao exaure sua bio-
gratia e cullu!'"Imenle regulada e sua intcrpreta~o admite ate certo
P9DtO,a mantpula~o individual. A1cm disso, ainda de ac:,rdo com
I<opytoff. a pergunta "Ouais lipos de objeto devem tcr quais tipos de
ROTAS E DESVIOS
Jacques Maquet, em 1971, a respeiro de producocs esteticas,? divide
mercadorias nos quarro tipos que se seguem: (1) rnercadorias por
QeslilUll(iio, ou seja, objetos destinados principalmcnte a troca pelos
prOpriOSprodutores; (2) mercadorias por metamorfose, coisas desti-
padas a o.utros uses ~ue se coloeam .no csrado de mcrcadoria; (3)
mercadonas por desvio urn caso especial, mais accntuado, de merca-
dorias por merarnorfose isro e, objetos que sao postos 110 csrado de
meread:>rias embora estivcssem, em sua origem, especificamcnte
protegidos de tal estado; (4) ex-mercadorias, coisas retiradas, quer
temponiria ou perrnancntemcnte, do estado de mercadoria e posras
num outro estado. 'Iarnbem e valido distinguir mercadorias "singula-
res" de "homogeneas", no intuito de di(erenciar aquelas cuja
candidatura 30 estado de mercadoria e precisamente uma qucsrao de
earacterfsticas de sua classe (uma barra de aco perfeitarnente padro-
nizada) daqueJas cuja candidatura reside precisamente em seu carater
Wlicono interior de uma classe (uma tela de Maner em vez de urna de
Picasso; uma determinada tela de Manet em vez de uutra do mesmo
piator). Inrimamenre relacionada com esta ultima, mas niio identj-
ca, e a distin~ao entre mercadorias primarias e secundarias:
pecessidades e futilidades; e 0 que chamo de mercadorias moveis
ver~u~ mercadorias .ellcai.iCaclas.8 Contudo, todos os esforcos em
defJDIr as mercadonas esUio condenados 11esterilidadc a nau ser
.~ue elucidem mercadorias em movimento. Este 6 0 prin~ipal obje-
tlVOda pr6xima se~o
30
mentes (em uma perspective conceitual) sobre ()Sobjetos em questao
e estejarn de acordo apenas accrca dos termos da ncgoctacao. 0 fe-
nomeno conhecido por comercio silcncioso ~ 0 exemplo mais 6bvio
do minimo ajuste entre as dimensoes culturais c socials da rroca de
mercadorias (PRICE. 11)80).
Portanto, a rnercanrilizacao res!dc na cornplexa inrersccao de fatores
temporals, culturais e sociais. A medida que, numa deterrninada $0-
cicdade, algumas coisas, com Irequencia, se encontram na fase
mercantil, preencher os requisites da candidatura ao estado de mer-
cadoria e aparecer em conrcxtos mercaniis. tais coisas silo suas
mercadorias rnais ifpicas. A medida que, numa dcterminada socieda-
de, um mirnero consideravcl de coisas, OU mesmo a maioria del as,
algumas vezes precncbe estes crirerios, pode-se dizer que a socieda-
de em questao e altamente mcrcantilizada. Nas sociedades capitalistas
modcmas, pode-se afirrnar que hAuma tendencia de que urn numero
maior de coisas experimcnte uma fase mercantil cm suas carrciras,
que urn numero maier de conlCXIOSse torne mercantil c que O~pa-
droes da candidature ao esrado de mcrcadoria abranjam uma parte'
maior do universe de ccisas do que em sociedades nao-capiialistas.
Embora Marx tivesse razao em ver 0 capitalismo industrial moderno
como 0 sistema economico que acarreia 0 tipo de sociedatle mais
inlensamente mercantilizada, a compara~o de sociedades em rela-
~o ao grau de "mercantiliza~50~ seria uma que.<;taoextremameote
cornplcxa, tendo em visla a defini~ao de mercadorias que se abordou
aqui. Segundo esta defini~ao. 0 termo "mercadoria" passa a ser em-
pregado no restante deste ensaio com referencia a coisas que. numa
determinada Jase de suas carreiras e em urn contexto particular. pre-
enchern os requisitos da candidalura ao cstado de mercadoria. A
analise que Keith Hart (1982) fez reccntemente sobre a importancia
da crcscente hegemonia das mereadorias no mundO eslaria de acordo
com a abordagem que sugerimos, exceto pelo fOlIOdc, aqui, a
mereanliliza~o ser considerada urn proccsso diferenciado (que en-
volve, de urn modo diferenciado, questiies de Case, contexto e
categoriza~ao) e 0 modo capitalisl3 de mercantiliza~ao ser visto em
illtera~a(l com uma miriade de outras formas socia is nativ3s de
mcrcantiliza~o.
Tr~ ~ries de distin~iies entre mercadorias merecem ser adic.ionadas
aqui (outras seraO apresentadas ma;" adiante). A primeira, um3 apJi-
cat;~t) modificada de lima distinG50 estabelecida originalmente por
33
eles 30 ensalo de Nancy Muon (1983), publicado ern urna cole-eDtre , ,- d dc f _ ..tinea influentc sobre urn renomeno e gran C importancta para 0
assuntOdo presente Iivro, 0 celebre sistema kula do Pacifico Oeiden-
tal (LEACH; LEACH, 1983).
okula ~ 0 exemplo mais bern documentado de urn sistema de troca
translocal nlio ocidental, pre-industrial e nao moneuzado. e. com a
publ.ica<;iOdessa recente coletanea, pode-se afirmar que se tornou 0
excmplo mais complete e proficuamentc analisado. Agora, revelou-
se que a classica descricao de Malinowski desre sistema
(MAUNOWSKl, 1922) era parcial e problenuitica, muito embora
lIIetenha lancado os alicerces para as analises mais recemcs, inclusi-
ve as mais sofisticadas. As implicacoes desta recenie rcconsideracao
do fe06meno kula para os interesscs gerais do prescnte livro sao inu-
IIICtaS. Bmbora os ensaios desta coletfinca que irei char repercutarn
dilerentes pontes de vista, quer emograficos, qucr teoricos, eles, de
t.Io, permitem algumas observacoes gerais.
o bUa e um sistema regional extremamente complexo para a circu-
laliio de tipos particulares de objetos de valor. norrnalmente entre
bomens de posses, no arquipelago Massim, ao loogo da costa na ex-
tremidade teste da Nova Guine, Os principais objetos trocados uns
~ outros sao de dois tipos: colares e braceletes oroamentados (cada
urn circulando em dire~s contrarias). Estes objetos de valor adqui-
tern biografias muito especificas, conforme sc movem de 11mlugar a
outro, e de uma mao a outra, it medida que os homens que os trocam
'pnham c perdcm reputa~o ao adquirir, possuir e se desfazer destes
'objelos de v<llor. 0 termo keda (estrada, via, rOla 011 trilha) e IIsado
'em. algumas comunidades Massim para descrevcr 0percurso desses
bbjetos de valor de uma ilha a outra. Mas keda tamMm possui um
'COIIjuntomais difuso de significados, que se referem aos vioculos
~ais, polfticos e de reciprocidade mais ou menos estaveis entre os
'bexnens que fazem parte destas rolas. Em sua ace~o mais abstrata,
.1aI4 re{ere-se 11 rOla (criada pela troca desles objet(lS de valor) que
~a l riqucza, ao poder e a reputa~o dos bomens que negociam tais
.~os (CAMPBELL, 1983, p. 203-204).
:~ c, pois, urn conceilo polissemico, no quala circula~o de obje-
1Ol,.a conslruCiao de mem6rias e reputa<;6es, e a busca de distin~iio
,~pot mcio de cstralegias de parceria sao evocadas todas de uma
~yez. Os vinculos dclicados e complexos entre hom ens c coisas,
32
biografia?" t uma questao mais de comesracao social e de go.sto indi-
vidual nas sociedades modernas do que nas sociedades
proto-industriais, nlio monetizadas e de pequena ~Ia. Ha. DOmo-
delo de Kopytoff, urn cabo de guerra Clemo C universal entre a
rendencia de todas as economias em expandir a jurisdi~ao da
mcrcantiliza~o e a tcndencia de todas as culturas em limita-la. Indi-
vlduos, nesta concepcao, podem acompanbar qualquer uma destas
tendencias, conforme se ajustem a seus interesses ou condigam com
StU senso de adequa~o moral, embora nas sociedades pre-modernas
o espaco para mudancas de rumo nao seja, em geral, muito g~ande.
Das diversas virtudes do modele de Kopytoff, a meu ver, a mats im-
porrante e a proposta de um modele generico e processual da
mercantihzacao, no qual os objetos podern transitar dentro e fora do
estado de mcrcadoria. Estou menos seguro quanto ~ oposicao entre
singulariza<;ao emercantilizacao, urna vez que alguns d~ casos mais
interessantes (que, como 0 proprio Kopyloff concorda, suuam-se na
zona intermediaria de seu contraste ideal e lipificado) envolvem a
mercanulizacao mais ou menos permanente de objetos singulares,
E possfvel levantar duas questoes sobre esse aspecio da argumenta-
~o de Kopyloff. Uma seria que a propria defini~o do que constitui
objetos singulares em oposicao a classes de objetos ~ uma questao
cultural, na medida em que podem existir exemplos unicos de classes
hornogeneas (a barra de aco perfeita) e classes de objctos singulares
culturalmente esrimados (tais como obras de arte ou pecas de ves-
tuarlo com a eliquela do estilista). Por outro lado, uma critica marxista
desse contra sIc sugeriria que e a mercantiliza,iio, comO um processo
hisl6rico global, que delerrnina, de maneira imporlame. as rela~es
oscilanles entre coisas siogulares e homogeneas em qualquer mo-
mento da vida de uma sociedade. Porem, a principal questaO aqui f;,
que a mercadoria nao e urn tipo de coisa, em vez de um outro tipo,
mas uma fase oa ,>idade algumas coisas. Neste POOIO,Kopytoff e eu.
estamos de pie no acordo.
ThI conccPlt-'1oda mercadoria e da me.rcantitiza~o traz diversas im-
plicac;6es importantes, algumas das quais slio m~nci~nadas n? d~rso
da argumenta~o de Kopytoff. Outras serao dlsculldas mats adlante
neSle eosaio. Meu inleresse imedialo, porem, se volta para um aspec-
to significalivo dessa perspecliva temporal sobre a mercantiliza<;3o.
das coisas, que conceme ao que denominei rOlas e desvios. Devo
estes dois termos, e ccrta parte de minha compreensao das rela~es
35
1983, p. 203·204) que ~ermile ~ negociacao co~pe~iciva de estimati-
vas pessoais de valor a luz de mtercssesindividuals tanto de longo
quanlO de eurto prazo (FfRTH, 1983, p. 10I). 0 que Firth chama aqui
de ~engenharia da divida" e uma variedade da cspecie de IrOClcalcu-
Iada que, segundo minha definiciio, toma turva a linha que separa a
ttoca de mercadorias de varianrcs mais sentimentais. A difcrcnca mais
iJDpOrtanteentre a troea destas mercadorias e a rroca de mercadorias
em economias modernas e indusuializadas Cque 0 diferencial que SI!
busca nos sistemas como °kula "stll na reputacao, nome ou fama, de
modo que pessoas ~iio a forma crucial de capital para a prodll~ii()
desSC lucro, em vez de outros fatores de producao (STRATHERN,
1983, p. 80; DAMON, 1983, p. 339-340).0 nao ter preqo e urn luxo
para poucas mercadorias,
ialvez ainda mais importance que 0 aspecro calculista das trocas no
~ seja 0 fato de esses estudos recentes tornarcm multo dificil ob-
servar a troca de objctos de valor no kula como algo que ocorre apenas
_ fronreiras entre comunidades, sendo as que se realizam no interi-
er delas mais proximas da Iroea de presentes (DAMON, 1983, p.
·339). 0 conceito de kitoum fornece 0 vinculo recnioo C conceitual
entre as longas rotas percorridas pelos objetos de valor e as trocas no
·interior da ilha, mais Intimas, regulares e problernaticas (WEINER.
1983; DAMON, 1983: CAMPBELL, 1983; MUNN, 1983). Ainda
IlK 0 lermo kilQlIIn seja complexo e em cerlos aspeclos ambiguo,
-,uece claro que designa a articula~o enlre 0 kula e outras modali-
·cIades de Iroea nas quais homens c mulheres Iransacionam em suas
')ir6prias comunidad~s. KiloumS silo objelos de valor que podem ser
1NJISIOS ou legilimamenle retirados do sislema kula para se efclUarem
"convers6es" (no sentido de Paul Bohannan) eolre niveis discrepan-
.!f.s.de "C;'3"sferencia" (BOHANNAN, 1955). No uso de kilOlllll, vemos
ps cruclalS vf.oculos conceiluais e inslTumenlais enlre as rolas mais
.~ e mais longas que formam a 10lalidade do mundo das Irocas
~ ~im. Como moSlIOUAnnetle Weiner, e urn equivoco isolar 0
~de Sistema de Iroeas entre ilhas das Iransferencias <.Ieobjelos que
c9.f0n'cm por causa de dfvidas, morte e afinidadc - Irocas mais fnti-
{!'t·por~m (para os homens) mais sufocanles (WEINER 1983 P~YOO-16S). ' ,.
1:.':'.;:ma kula confere urn caniler dinamico c processual irs ideias de
.oIo;;.._~-- no que lange 11mistura ou IrOCade qualidadcs enlre homens e
-. como nOIOUMunn em relac;ao as trocas A?lla em Cawa: "Em-
34
centrals para as politicas do keda, sao captados 110 seguinte excerto.j,
partir da perspective da ilha de Vak'Ula:
o krda bern-... ""did...e furm.do pot homens qua
530capaxes de manter parcenas keda rClativameote
estdveis por meio de admir4vci~habilidades oraI6.:
ria~e menipuladuras, c que agem como uma cquipe,
ceda urn in1erprtla::Jdo os mcvimentcs do ouuo. 'R>-
davia, muiln$. keda desmoronam, to,nando
necessarto queos homensse realinhem rcgularmeo-·
te. Alguns forman' iipos de kedu eompletamente
diferentes, cnqu;snlo os remanescentes de um keda
rompido podem quem- form., cerro keda, alicitndo
novos partic:ip..ntes. Ainda outrMpodem jamais par-
ticipar dUkel/" novameme, por sua faltade habllidade
emforrnarourrokedu em f!17.:inde uma"md" r(p~
l~O na atividade *u.to.No. realidade. 0 universe> de
objctos de valor fcilos em concha em quaJque.r«dIJ
~ migraiorio•• a composi~ sociat de urn t.d4 ,
U4ln~it6tia.A hi~16riaaeumulada de urna conc.ha6
retardada pelo movimen(o cun((nuo entre os ke.dtl.
cnquaot(.1a reivindjca~aodos homcas por imunal'"
dade de"vanecc no momenrc em que as cuncbas
perdcrn sua aSMK.-13<1ao com estes bomens ap6s to-
rem sido atrilida~coin txilo para urn cerro ktdtl,
~umindo. portanlO, a idenlidalk: social i..Ie, r.eUSBO-
vo' donos. (CAMPBELl. W1I3,p. 211l·219)
Assirn, a rOla tomada por esses objelos de valor sirnultaneamente
reflele e conslr6i parcerias e confJilos sociais por proerninencia. Mas
ha urn born numcro de OUlros fatores que sao dignos de nOla no que
lange ii circula~o destes objetos. 0 primeiro c quc sua Iroea nao 6
facilmcnle calcgorizada como uma Iroea recfproca simples, dislante
do espfrilo da negocia~ao e do comcrcio. Aind" que as valorac;;6es
I11llnetarias eSlejam ausenlcs, lanto a nalureza dos objCIOSquanlo uma
variedade de fonles de f1exibilidade no sislema possibililam que exisll
ai 0 lipo de troca calculada que suSlenlO ser 0 ceme da Iroea de mer·
cadorias. ESles complex os mod os de val()rac;;ilo permicem que
parceiros ncgociem () que Firth (seguindo CASSADY JR., 1974) cha-
mou de "lf0C3 por lratado particular", urna silua"ao ~m que sc chega
a uma especie de pre~o por meio da negoeiac;ao de alguns processos
que difercm das for~s impeSS<lais de of crt a e procura (FIRTIi, 1983,
p. \II). A~sirn. apesar da presen~a de laxas de Iroea gcneralizadas 0
oonvencionais, ex isle um complexo calcul0 qualil31ivo (CAMPBE[J.,
37
Ai) contranode .r~ comerciais,quein!4itv·
em urn::. rclll~io de rivalidadt economicI entre
indi.id..,. em condi~Oes de iguoldade (Offilal.com
c-lda um guiando seu proprio alcu10 de l-tpropria-
~iio individual, 0 leiJao,como a fesfaOU0 jV80,
in."llitui urna YCldadeira comunidu\lc de ll'OC3 entre
pares. rndepcndcnlcnlcnledequem arrematruos lan~
us. a fun~k)c.~"eocia!do Jeill0 6 a instilui~i'lode
umn cOlnunidade dos privilegi3do~ que se
aUlodefincm como lai.~por mcio da e!Opc:x:ula~;io
,agoni~tic¥sobrcurnrestriloC()TpIIsdc si~ Aconl"
pe'i~o de tiPJ arlstocritico legitima sua JM,idQdc
(que aio tem noda • vcr com • igualdade formal da
compcti~o economical c. assim, ~ua privilegiad3
ca.-<uacolc'iV:l djaAte de codas os QUIros..de quem Ji
nio se scparam mcramente pelu poder de compra,
mas pclo :llo sunluariu c colerivo de produzir e Iro.
C3r valorcs d<>ssigno •. (1981. p. 117)
ltD faur uma analise comparativa de tais torneios de valor, pode ser
~e~vel oao seguir a tendenda de Baudrillard de isoIl1-los, para
T~IJCOS, da Iroca economica mais mundana, em bora seja mui-
vel que a articula~o dcsl.3Sarenas de valor com OUlrasarenas
para as mais mundanas realidades de poder e valor na vida comum.
eomo no kula, do mesrno modo que em tais torneios de valor em
geraI, habilidades esrraregicas sao medidas culturalmcme pelo su-
c:esso com que os atores arriscam desvios ou subversoes das rotas
cullUratmenlc convencionadas para 0 fluxo das coisas.
A idtlia de torneios de valor e uma tentativa de eriar uma categoria
geral, seguindo uma obscrvacao recente de Edmund leach (1983,
p. 535), que compara 0sistema kula com 0mundo da arte no Ociden-
te IJlO(Ierno.A analise de Baudrillard dos leiloes de arte no Ocidenre
ooDlemporanoo permite que se amplie e aprofunde eSIS anaJogia.
Baudrillard observa que 0 lei lao de arte, com seus aspectos hidicos,
rituais e reciprocos, se localiza fora do ethos da troca economica con-
veocional, e que "vai rnuito alem do calculo economico e diz respeito
• todos os processos de transmuta~ao de valores, de uma 16gica de
valor a outra, que pode ser observada em determinados lugares e
iostitui~6es" (BAUDRlllARD, 1981, p. 121). A anallse que
Baudrillard faz do ethos do leilao de arte merece ser citada na Inte-
gra, j~que poderia ser facilmenre uma caracterizacao apropriada a
outros exemplos de torneios de valor:
36
bora os homens parecam ser os agentes na defini~o do valor cia
conchas. na verdade, sem conchas. eles nao podem definir seu p~
prio valor; quanto a isso, conchas e homens sao agenres recfprocq
na defini~iio do valor de urn e de outro" (1983, p. 283). Mas, collli
observou Munn, naconstrucso recfproca de valor, as rotas naosao ~
unicas a exercerem urn papel importante: os desvios tambem 0 ftj
zem. As relacoes entre rotas e desvios sao cruciais para as polfti~
de valor no sistema kula, e a orquestracao apropriada destas rela~
e a principal estrategia do sistema:
Na verdade, 0 sistema de m1as inlplica 0 de!i:~.,
que este e um dos meios de I~r nuylS Iotas.. Pc4
suit mais de um3 rot .. tamblm indk.. a probabUi~
de:Ouimet desvios a partir de:uma roc.:.eSlabelecida'
outra, itmedida que homcns se tornam sujcitos a ij
t(rcsse.~ e persuasivas de Qulro~ grupos de parceird
[ ... J De fato, no kula, os bomens de posses ,em J
desenvolver alguma cap.acidndc de cquilibrar op/,
ra~oes: dcsvios de uma rota devcm SCT repostos mal
lank para acalmar parceiros frustrados e evitar q{
a rota desapareca, ou evitar que eles mesmos seja'
."primidns d. rota. (MUNN. 1983, p. 301)
Estas trocas de grande escata representam esforcos psicologicos ~
transccnder OUJ(os rna is humildes de coisas, mas, nas polfticas ~
reputacao, ganhos na arena mais ampla lem implica~6es para as aI1
oas menores, e a ideia de kiloum assegura que lanlo as transferilnc~
quanto as conversoes lem de ser conduzidas com cuidado com viSIl!
nos melhores gaohos no lotal (DAMON, 19&3,p. 317-323). 0 kuJ,
pode ser vislO como 0 paradigma do que propunho chamar de lor11i!J
os de valor.'
Thmeios de valor sao complexos eveotos pen6dicos que, de algum
forma culturalmente bern definida, se afaslam das rOlinas da vid
economica, A participa~ao oestes eventos rende a ser simulran~
men Ie um privih'gio daqueles que esrao no poder e um instrument
de dispula de SIll/US enlre ties. A moeda corrente destes tomeios tad
bern tcode a ser dislinguida por meio de diacrflicos culturais mui'
bern compreendidos. Finalmentc, 0 que esta em paula nestes tomei~
nao e apenas 0 slanlS, a posi~ao, a fdma ou a repul.3~O dos atores, JDI
a disposi~o dos principais emblemas de valor da soc.iedade em qud.
laO.,0 Enfim, embora IMS lome ins de valor ocorram em cpocas c lugad
especiais, suas formas c resultados sempre trazem oonseqiienciJ
3938
dcm ser rnercantilizados por ninguern. 0 corpo da arte e do ritual em
sociedades de pequena escala e uma destas zonas encaixadas,onde 0
espirito d.amercadoria s6.adcntra sob condi~(ics de mudancas cuhu-
rais mass-vas. Para uma d.scuS$ao mais longa deste fenomeno, rcmos
o cnsaio de ~illiam Davenport sobre a producao de objetos destina-
dos ao uso ritual nas ilhas Salomao Orientals.
Os fcn6me~os disclllidoS. no artigo de Davenport elucidam os aspec-
105mercanns da VIdaSOCIalprecisamente por ilustrarern uma especic
de quadro moral e cosmologico no qual a mercantilizacao e resrrita e
resguardada. Durante as observiincias funebres desta regiao, particu-
larmente na celcbracao de larga cscala charnadamurina, investem-se
muita energia e despesa oa confec"iio de objctos que desempenharn
um papel centr~1 D~ritual, ~~s sao rigorcsarnente pOSIOSna catego-
na de m~rcadonas terrmnais (KOPYfOFF, Cap. 2), ou seja, objctos
q~c, devido ao conrexto, ~o proposito e ao significado de sua produ-
,,~o,fazern apenas urn trajeto da produ<;iio ao consume, Em seguida,
aJOda.que al~umas vezes tenharn eventuais usos domesticos, jamais
lhes e per~I~ldo rel~rnar. ao estado de mercadoria. 0 que os lorna
desmercamilizados .e: pois, ~ma cornplexa concepcao de valor (na
qual s,e.unem 0 estenco, 0 ritual e ° social). C lima biografia rilual
cspecifica. Podemos parafrasear as observacoes de Davenport e ob-
servar que 0 que se passa aqui - no centro de um conjunlO
extrell_lamenl~ complexo e ~alculado de inveslimenlOS, pagamenlos
e crcd.tos - e um llpo espec.al de Iransvalordliao, 110qual objetos sao
POSI<)~alem da zona de mercanljliza~a(l culturalmcnle demarcilda.
E:-~IeIIPOde transvalora<;iio pode assllmir forrnas diferentes em so-
c,eda~es diferenles, mas, em muilas sociedadcs, caracteristicamente
os objetos que ~epres~n~m elaooral<Oes cslelicas e aqueles que ser-
:e~ de sacr~.saoprolbldos d.e ocupar 0 eSlado de mereadoria (quer
SOCIal,de~mllva o.ulemporanamenle) por muilO lempo. No rigoroso
co~proml.sso dos ItheliS de Salomao de colocar seus produlOS rilllais
n.lals eSletlzados fora do alcanee da mercantiliza~ao, vemos uma va-
nante de uma Icndencia muilo difundida.
Um exemplo um lamo diferenlC da lensao enlre a troca de sacrae de
?,crca_dorias pode St~vislo na an~Jise de Patrick Geary acerca do
Inter.camblo de relfqul3s nos primlirdios da Europa medieval. As rc-
~,fqulas descritas sao, obviarncnlc, "encontradas" em vez de
fabncadas". e sua circula<;iio repereule um aspecto muito imponan-
Ie da constru<;iio da identidade comunilaria. do prcstfgio local e do
cconomicas apresemc grandes variacoes. Terei mais a dizer sobre tor-
ncios de valor na discussao acerca das rela<;i\cs entre conhecimento c
mercadorias, mais adiante nesre ensaio,
o ~711(l,de qualquer modo. representa um sistema muito complexo
panl a inrcrcalibragem das bingrafias de pessoas e coisas. Mostra-
nos as dificuldades de separar a troca de mercadorias da de prcsentes,
rnesmo nos sistemas pre-industriais e nao monetizados, alem de nos
lembrar dos riscos envolvidos em correlacionur, de modo demasiado
rigido, zonas de intimidade social com formas distintas de troca. Po-
rem. e talvcz 0mais impcrtante, trata-se do excmplo mais intricado
da polltica dos torneios de valor, em que os atorcs manipulam as
rotas culturalrnente definidas e 0 potencial estrategico dos desvios,
de modo que0 rnovimento das coisas lorna mais alias suas pr6prias
posicoes.
No entanro, dcsvios nao silo encontrados apenas como partes de es-
traiegias individuais em SilU3\;OeS compcritivas, mas podem ser
institucicnalizados de varias formas que removem ou protegcm ob-
jetos dos contextos rnercantis socialmentc relevantcs. Monop6lios
de realezas sao, talvez, os cxemptos mais conhecidos de tais "mcrca-
dorias encaixodus", como aponta Kopytoff no Capitulo 2. Uma das
discussocs mais amplas e interessantes sobre csie tipo de rcstrir,;30
monopolisla 30 fluxo de mereadorias e a de Max Gluckman (1983),
no contexlO da~ propriedades reais enlre os lozi da Rode.~iado None.
Em sua di~cussao acerea das categorias de "d<idiva". "tribum" C "coi-
sas regias", Gluckman mostra como. mesmo em urn reino agrfcola
com baixos excedentes. () nuxo das mcrCadtlfias possui implica¢es
muito diversas c signjficativas. Em sua anMise das "coisas regias",
lorna-so: claro que a principal fun<;iio deslO:~monopOlios reais era
manter a exclusividade suntuaria (como no monop6lio real de &span-
ta-moscas fcito com pele de elande), a primazia comercial (como
com as prcsas de ctefantc) c a cxibi<;iio da hierarquia. Tal reslri<;ao de
coisas retiradas das e~feras de troca mais indiscriminadas e parte
do modo pelo qual. em lideram;as e imperios pre-modernos, 3 rea-
leza podia assegurar a base male rial da exclusividade suntuaria. Esle
tipo de proce~so pode ser chamado de desmercantiliza~ao "de cima
para baixo".
Mas 0 caso mais complexo concerne a areas inleiras de atividadc e
produ~iio que ,ao dcstinadas a fabricar objetos de valor que Ilao po-
41
cIanO. Tais OIercadorias encaixadas guardam uma semethanca famili-
com outra c1asse de coisas, frequentementc discutida na literarura
~16gica como "objetos de valor primiuvos", cuja especificidade
10vincula direlamcnle 11 troca de mercadorias,
Embora as mercadorias, em virtude de seus destines de troca e de sua
COIDensurabilidade mutua, tendam a dissolver os vinculos entre pes-
seas e eoisas, tal tendencia e sempre equilibrada por uma
conttateDdeocia, em todas as sociedades, de resiringir, controlar c
canalizar a rroca. Em muitas economias primitivas, objctos de valor
exibem estas quaJidades socialmente restritas. Dcvemos a Mary
j)ouglas (1967) a ideia de que varies destes objetos de valor se asse-
melbarn a cupons e llcencas das economias industriais modernas. Ou
lilja, apesar de serem parccidos com dinheiro. nao sao urn meio ge-
IItralizado de troca, mas possuem as seguintes caracterfsticas: (I) os
podeles aquisitivos que representam sao alta mente especfficcs; (2)
.. distrlbui~o e controlada de formas diversas; (3) as coDdi~Oes
.. govemam sua emissiio criam uma serie de rela,,6es do tipo
Jll'fooo-cliente; (4) sua principal fun"iiu c fornecer a condicao ne-
Qess8ria 30 ingresso em posicoes de alto slams; e (5) os sistemas
lIIICiaisem que tais cupons e licencas funcionarn sao engrenados para
Wiminar ou reduzit 3 cempeucao em favor de urn padrao estave! de
IMtIa (DOUGlAS, 1967, p. 69). Tecidos de rMia na Africa Central,
--..pumJl entre os indios do leste dos Estados Unidos, dinheiro-con-
11M entre os Yurok e a moeda·concha da lIha Rossell e OUlras partes
cia Oceania sao excmplos de tais "eupons de mercadoria" (nas pala-
~ de Douglas), cujo Ouxo reslrilO eSla ~ disposi~iio da reprodu~iio
" alslemas politicos e sociais. Coisas, nestes conlexl05, conlinuam
• mecanismos de reprodu<t3o das rela~6es enlre pessoas (vcr tam-
~~ DUMONT, 1980, p. 231). Tais cupons de mercadorias
~ese?tam urn ponto inlemlediirio enlre dadivas "puras" e um
~Erclo "puro". Com a dadiva, eles compartilbam uma certa in-
.rencta pela oferla e procura, urn aho grau de codi fica~5o em
~os do: etiqueta e apropriabilidade, e uma lcndencia de 5egIJir
~ so~laJmentc eSlabelecidas. Com a pura permula, sua Iroca
~P~rtllba 0 espirilo do calculo, uma receptividade ao inleresse
~no e uma preferencia por transa~6cs com pessoas relariva-
~te estranbas.
h.~sistemas reSlrilOSde Ouxo de merc.adorias, nos quais objel05'Ji re:terrem 0 papel de cupons ou Iicen~as de$linados a proteger
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controle eclesiastico e centralizado na Europa latina do perfodo me
dieval inicial.
Estas reliquias penencem a uma economia particular d~troca e de-
manda na qual a historia de vida da rellquia em questao e essencia~
em vez de incidente, a seu valor. A auteniicacao desta hist6ria ~ igu~i
mente central para seu valor. Tendo em vista a abordagem geraJ OIl
diterenca entre dddiva e mercadoria que fiz neste ensaio, eu sugeriru
que Geary talvez dclineie urn contrasre por demais rigido entre ambasj
na verdade, seu proprio material mostra que 0 presente, 0 roubo e d
comercio erarn, iodos, modos de movimentar os sacra no contexte
rnais ample do coni role eclesiastico, da competicao local e da rivalk
dade entre comunidades. Sob esta perspecuva, as reHquias medieval!
parecem estar menos cautelosameme protegidas dos riseos elf
rnercanrilizacso que os objetos rituais de Davenport. No entanto, peri
manece a inferSneia de que modos comerciais de aquisicao da!
reliquias eram menos desejaveis que a dadiva au 0 roubo, nao exata
mente por uma antipatia direta 11negocia«iio de reliquias, mas, antes
por serem os outros dois modos mais emblematicos do valor e dI
eficacia do objeto,
Assim, tarnbem essas reliquias caem na categoria de objetos cuj!
rase mercantil e ideal mente curia, cujo movimento 6 resrrito e qul
aparentemente nao "recebem um preco" da mesma maneira que oJ
tras coisas. No entanto, a forca da demanda e lamanha que as fill
circular com um3 velocidade consideravel e de modo muito parecidc
com 0 tie suas cOlllrapartes mundanas. Portanto, mesmo no easo <II
objelos "Iransvalorados", que assumem as caraetcr!slicas de mer~
dorias encaixat/as,em vez de m6veis, Mvaria~oes consider~veis nOt
mOlivos para, e na nalureza de, lal enctave. As "coisas rc$gias" ~
Gluckman, as reHquias de Geary e os objetos rituais de DavenllOll
sao tipos diferenles de mercadorias encoixadas, objelos cujo polen:
cial mereanlil e cautelosamenle resguardado. Pode, ainda, s~
apropriado nOlar que uma forma institucional bem significaliva ~
restringir a zona dn lroca de mercadorias em si mesma e 0 "porto-del
comercio" as.c;ociadoa muitos reinos prc-modemos (GEERTZ,'I 980)
embora lais reslri«6es ao comercio na polilica pre-modema possad
nao ser tao radicais quanlo se imaginou (CURrIN, 1984, p. 58). ()(
motivos para lal resguardo sao bern variaveis, mas, em cada caso, at
bases morais da restri<t3o tern impJica¢es claras para enquadrar ~
facilitar trocas plllilicas, sociais e comerciais de urn tipo mais mud
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crises podern assumir uma varicdac.le de form as: adversidades econo-
micas, em qualqucr cspecie de sociedade. podem Jevar familias a se
desfazercm de objetos transmitidos por diversas gera<;iies. de anti-
guidade~e dememorabiliapara mercumitiza-los. tsso e tao verdadeiro
para objetos de valor mais modernos quanto no kula. A outra forma
de crise em que mercadorias sao dcsviadas de suas rotas apropriadas,
obviamente, e a guerra c a pilhagem que a acompanhou ao longo da
hist6ria. Em tal pilhagem, e DOesp6lio que deja deriva, vernos 0
inverso do comerclo. A transferencia de mercadorias em tempos de
guerra sempre tern uma intensidade simhOlics especial, exemplificada
na tendencia de enquadrar uma pilhagem mais mundana no transpor-
te de armas cspcciais, insignias ou partes de corpos que pertenciam
30 inimigo. Na pilhagem pretensamente legftima que instaura 0 qua.
dro propicio a saques mais mundanos, vemos 0 analogo hostil do
duplo processo de sobrcposicao de camadas dos circuitos de troea
mundanos c mais personalizados em outros CODleXlOS(tais como 0
kula eo gimwali na Melanesia). 0 roubo, condenado na maioria das
sociedades hurnanas, ISa forma mais simples de desvio de mercado-
rias de suas roras predeterminadas.
Mas h3 exemplos mais suus de desvios de mercadorias de

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