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LtçÕss prelÍmixenresde»treÍto 27" ediçáo 2402 154 tirageur 2015 n2 ÊlSaraiva CapÍrur-o VI CONCEITO DE DIREITO - SUA ESTRUTURA TRIDIMENSIONAL suuÁnro: A intuição de Dante. Acepções da palavra "Direito',. Estrutura tridimensional do Direito. o estudo das diferenças e correlações entre a Moral e o Direi-h já nos permite dar uma noção do Direito, sem que nos mova a IÍEocupação de definir. Resumindo o já exposto podemos dizer que o Direito é aordenação bilateral atributiva das ielações sociais, w medida do bem comum. Todas as regras sociais ordenam a conduta, tanto as morais Gomo as jurídicas e as convencionais ou de trato social. A maneira, 1nrém, dessa ordenação difere de uma para outra. É próprio do Direito ordenar a conduta de maneira bilateral e atributiva, ôu seja, cstabelecendo relações de exigibilidade segundo wa proporção újetiva. o Direito, porém, nãã visa a ordeãar as reraçóes dos in- divíduos entre si para satisfação apenas dos indivíduôs, *as, ao contrário, pararealizar uma convivência ordenada, o que se traduz na expressão: "bem comum". O bem comum não é a soma dos bens individuais, nem a média do bem de todos; o bem comum, a rigor, é a ordenação daquilo que cada homem pode realizar sem prejuízo do bem alheio, uma composição harmônica do bem de cada um com o bem de todos. Modernamente, o bem comum tem sido visto, - e este é, no fundo, o ensinamento do jusfilósofo italiano T,uigi Bagolini, - como uma estrutura social na qual se-jam possíveis formas de participação e de comuni cação dê todos os indivíduos e grupos. 59 A INTUIÇAO DE DANTE Essa conceituação ética do Direito, que coloca a coação como elemento externo e não como elemento intrínseco da própria vida jurídica, teve uma formulação bastante feliz, por obra não de um jurista, mas de um poeta. Conhecem os senhores evidentemente a personalidade extraordi- nária do poeta Dante Alighieri. O "divino poeta", além de ter-nos legado a Divina Comédia - o poema maravilhoso da Cristandade - deixou obras de Política e Filosofia e, numa delas, referindo-se ao Direito, escreveu estas palavras que devem ficar esculpidas no espírito dos juristas, pela apreensão genial daquilo que no Direito existe de substancial: Jus est realis ac personalis hominis ad hominem p rop o rtio, quae s e rv ata s e rv at s o c i et at e m; c o rrup t a, c o r rumpit. Esta definição de Dante merece nossa análise demorada pois, de manei- ra límpida, é apresentada a ordem jurídica como fundamento inarredável da sociedade. Vamos traduzir, se é necessátio fazê-lo, uma vez que as palavras são transparentes: "O Direito é uma pro- porção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a" . Dante esclarece que a relaçáo é uma proporção. A proporção é, sempre, uma expressão de medida. O Direito não é uma relação qualquer entre os homens, mas sim aquela relação que implica uma proporcionalidade, cuja medida é o homem mesmo. Notem como o poeta viu coisas que, antes dele, os juristas não tinham visto, oferecendo-nos uma compreensão do Direito, conjugando os con- ceitos de proporção e socialidade. Proporção entre quem? De ho- mem para homem. Quando a proporção ó respeitada, reaLrza-se a harmonia " ...quae servata, servat societatem..." e, quando corrom- pida, corrompe a mesma sociedade. Mas, Dante não dtz que há apenas uma proporção de homem para homem. Ele delimita me- thor o sentido da palavra proportio esclarecendo, quase com o ri- gor da técnica moderna: realis ac personalis. É aqui que se nota a atualidade da conceituação jurídica ofe- recida por Dante, pois, dentre as múltiplas distinções do Direito, nenhuma é tão fundamental como a que distingue os direitos em reais e pessoais. 60 "O Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem..." parece, à primeira vista, uma expressão redundante: pessoal, de homem para homem. Se é pessoal, por que dizer de homem para homem? É que, para Dante, o Direito tutela as coisas somente emrazáo dos homens: a relação jurídica conclui-se entre pessoas, não entre homens e coisas, mas é "feal" quando tem uma coisa (res) como seu objeto. A sua definição inspirava-se na obra e nos ensinamentos aristotélico-tomistas e, também, nas grandes lições dos jurisconsultos romanos, especialmente nas lições de Cícero, que dizia que deve- mos conhecer perfeitamente o homem, a natureza humana para, depois, conhecer o Direito. Segundo o grande orador e político romano devemos procu- rar o segredo do Direito na própria natureza do homemt natura juris ab homine repetenda est natura. Vamos buscar o elemento fundamental do Direito no exame mesmo danafirrezahumana, pois é ele uma expressão ou dimensão da vida humana, como in- tersubjetividade e convivência ordenada. Quer dizer que essas idéias, que hoje nos parecem tão moder- nas, como a da humanizaçáo e da socializaçáo do Direito, já en- contram os seus antecedentes através de uma tradição histórica mais que milenar. O Direito, indiscutivelmente, inova, apresenta ele- mentos de renovação permanente, mas conserva, sempre, um ful- cro de tradição. ACEPÇÕES DA PALAVRA "DIREITO" Com a palavra "Direito" acontece o que sempre se dá quando um vocábulo, que se liga intimamente às vicissitudes da experiên- cia humana, passa a ser usado séculos a fio, adquirindo muitas acepções, que devem ser cuidadosamentê discriminadas. Em primeiro lugar, lembremos que esta é uma Faculdade de Direito, o que quer dizer de Ciência Jurídica. Estudar o Direito ó estudar um ramo do conhecimento humano, que ocupa um lugar distinto nos domínios das ciências sociais, ao lado da História, da Sociologia, da Economia, da Antropologia etc. 61 A Ciência do Direito, durante muito tempo teve o nome de Jurisprudência, que era a designação dada pelos jurisconsultos ro- manos. Atualmente , apalavrapossui uma acepção estrita, para indicar a doutrina que se vai firmando através de uma sucessão conver- gente e coincidente de decisões judiciais ou de resoluções admi- nistrativas fiurisprudências judicial e administrativa). pensamos que tudo deve ser feito para manter-se a acepção clássica dessa palavra, tão densa de significado, que põe em realce uma das vir- tudes primordiais que deve ter o jurista: a prudência, o cauteloso senso de medida das coisas humanas. Pois bem, esse primeiro sentido da palavra "Direito" está em correlação essencial com o que denominamos "experiência jurídi- ca", cujo conceito implica a efetividade de comportamentos sociais em função de um sistema de regras que também designamos com o vocábulo Direito. Não há nada de estranhável nesse fato, pois é comum vermos uma palavra designar tanto a ciência como o objeto dessa mesma ciência, isto é, a realidade ou tipo de experiência que constitui a razáo de ser de suas indagações e esquemas teóricos. "Direito" significa, por conseguinte, tanto o ordenamento ju- rídico, ou seja, o sistema de normas ou regras jurídicas que traça aos homens determinadas formas de comportamento, conferindo- thes possibilidades de agir, como o tipo de ciência que o estuda, a Ciência do Direito ou Jurisprudência. Muitas confusões surgem do fato de não se fazer uma distin- çáo clara entre um sentido e outro. Quando dizemos, por exemplo, que o Direito do Brasil contemporâneo é diferente do que existia no Império e na época colonial, embora mantendo uma linha de continuidade, de acordo com a índole da nossa gente e nossas con- tingências sócio-econômicas, estamos nos referindo, de preferên- cta, a um momento da vida da sociedade, a um fato social.É o Direito como fenômeno histórico-cultural. Não pensem, entretanto, que se deva fazer uma identificação entre o Direito como experiência social e o Direito como ciência. A prova de que essa identificaçã,o não se justifica está neste fato, 62 de conseqüências relevantes:não é apenas a Ciência do Direito que estudà a experiência social que chamamos Direito. O fenôme- no jurídico pode ser estudado, como já vimos, também pelo sociólo- go, dando lugar a um campo de pesquisas que se chama Sociologia Íurídica. A experiência jurídica pode ser igualmente estudada em seu desenvolvimento no tempo, surgindo assim a História do Direito. História do Direito, Sociologia Jurídica e Ciência do Direito são três campos de conhecimento distintos, que se constituem so- bre a base de uma única experiência humana, que é o Direito como fato de convivência ordenada. Não param aí, todavia, as acepções da palavta. Às vezes dize- mos que Éulano ou Beltrano se bateram ardorosamente "pe1o Di- reito'! ou que a "Organização das Nações Unidas propugna pelo Direito". Nesses casos, a palavra indica algo que está acima das duas acepções já examinadas, traduzindo um ideal de Justiça. Di- reito, emtãis casos, significa "Justo". Quando nos referimos à luta, aos embates em favor do Direito, estamos empregando a palavra Direito em sentido axiológico, como sinônimo de "Justiça". Resta ainda focahzar uma outra conotação da palavra Direito, que se identifica facilmente quando dizemos que o proprietário tLm o direito de dispor do que é seu: é o sentido subietivo do Di- reito, inseparável do obietivo, ao qual já nos referimos' E, por assim dizer, u r"gru de direito vista por dentro, como ação regulada' Dissemos, numa das aulas anteriores, que as regras represen- tam sempre o traçado dos âmbitos de atividade dos homens e dos grupos. Éxaminando qualquer norma de direito que discipline o õo*po.tu*ento humano, percebemos que nela coexistem dois as- pectãs bem distintos: se, por um lado, ela ordena a conduta, de outro, assegura uma possibilidade ou poder de agir' Temos' assim' um móduló d" "or.rportamento, com dois efeitos concomitantes: ao mesmo tempo que delimitaaaçáo, garante-adentro do espaço social delimitado. Quando o Estado edita uma norma de direito, fixando limites ao compoÍtamento dos homens, não visa ao valor negativo da limitação em si, mas sim ao valor positivo da possibi- lidãde de se pretender algo na esfera previamente circunscrita. 63 Não pensem que há na ordem jurídica a preocupação de le- vantar paredes em torno da atividade individual. O ideal é que cada homem possa realizar os seus fins da maneira mais ampla, mas ó intuitivo que não poderia coexistir o arbítrio de cada um como o dos demais sem uma delimitação harmônica das liberda- des, consoante clássico ensinamento de Kant. Desse modo, o Di- reito delimitapara libertar: quando limita, liberta. Pois bem, esse é o problema do Direito Subjetivo, que será melhor analisado numa de nossas próximas aulas, após mais pre- cisa determinação do Direito Objetivo, do qual é inseparável. Como vêem, a palavra Direito tem diferentes acepções, o que pode parecer estranho, mas já advertimos que é impossível nas ciôncias humanas ter-se sempre uma só palavra para indicar deter- minada idéia e apenas ela. O químico tem a vantagem de empregar símbolos distintos: o símbolo CO2, por exemplo, se refere a um único e determinado ser. Isso dá segurança no campo da pesquisa e põe o problema da comunicaçáo sobre bases mais sólidas, o que tem induzido alguns juristas a tentar axiomatízar o Direito, mas tais formalizações de tipo matemático sacrificam o conteúdo axiológico, essencial à compreensão da experiôncia jurídica. No campo das ciências sociais, não podemos alimentar ilusões no sen- tido de extremado rigor terminológico, mas nem por isso nos fal- tam estruturas conceituais ajustáveis à complexa e matizada con- duta humana. ESTRUTURA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO O simples fato de existirem várias acepções da palavra Direi- to já devia ter suscitado uma pergunta, que, todavia, só recente- mente veio a ser formulada, isto é: esses significados fundamen- tais que, através do tempo, têm sido atribuídos a uma mesma pa- lavra, jánáo revelam que há aspectos ou elementos complementa- res na experiência jwídica? uma análise em profundidade dos di- versos sentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três aspectos básicos, discerníveis em todo e qual- quer momento da vida jurídica: um aspecto normativo (o Direito como ordenamenlo e sua respectiva ciência); um aspecto fótico (o 64 Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça)' Nas últimas décadas o problema da tridimensionalidade do Direito tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à qual penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela de- monstração de que: a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, wfalo subjacente (fato econômico, geo- gr âfrco, demográfico, de ordem técnica etc' ) ; um v alo r, qlue óonfere determinada significaçáo a esse fato, inclinando ou determinando a açáo dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra orl norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor; b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não exis- tem separados um dos outros, mas coexistem numa unida- de concreta; c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo (á vimos que o Direito é uma realidade histórico-cultural) de tal modo que a vida do Direito resulta da interação dinâmi- ca e dialética dos três elementos que a integraml' Isto posto, analisemos o esquema ou estrutura de uma norma ou regra jurídica de conduta: a) Se F é, deve ser P; b) Se não for P, deveró ser 57. - 1. Sobr" esses e outros aspectos da minha teoria tridimensional, vide nossas Filo s ofi a do Direito, 1 9.' ed., São Paulo, 1990; Teoria Tridimensional do Direito,5.u ed., São Paulo, 1994, e O Direito como Experiência, sáo paulo, 1968,2.. ed., 1992. Cf., também, Recaséns siches, Tratado General de Filosofía del Derecho, México, 1959, págs. 158 a t64, e Intoducción al Estudio del Derecho, México, 1970, págs.40 e segs' 2. F =fato; P - prestação; S = sanção' Vide págs' 72 e segs' deste livro. 65 Há, por exemplo, norma legal que prevê o pagamento de uma letra de câmbio na data de seu vencimento, sob pena oo protesto do título e de sua cobrança, gozando o credor, desàe logo, do privilé-gio de promover a execução do crédito. Logo, diríamos: a) sehá um débito cambiário (F), deve ser pago (p); á) se não for quitada a dívida (não p), deverá haveruma san- ção (S). Mais tarde, estudaremos melhor essa questão. o que por ora desejamos demonstrar é que, nesse exemplo, u nor*i de direito cambial representa uma disposição legal que se baseia numfato de ordem econômica (o fato de, na época moderna, as necessidades do comércio terem exigido formas adequadas de relação) e que visa a assegurar w valor, o valor d,o crédito, a vantagem de um pronto pagamento com base no que ó formalmente declarado na letra de câmbio. como se vê, ümfato econômico liga-se aamvalorde garan- tia para se expressar através de uma norma legal que atende às relações que devem existir entre aqueles dois elemôntos. Pois bem, se estudarmos a história da letra de câmbio, que, numa explicação elementar e sumária, surgiu como um documento mediante o qual Fulano ordenava a Beltrano que pagasse a sicrano determinada importância, à vista da apresentação do título; se es- tudarmos a evolução dessa notável criaçáo do Direito mercantil, verificamos que ela veio sofrendo alterações através dos tempos, quer em virtude de mudanças operadas no plano d.os fatos (altera- ções nos meios de comunicaçã,o e informação, do sistema de crédi- to ou organizaçáobancária), quer devido à alteração nos valores ou fins econômico-utilitários do crédito e da circulação garantida da riqueza, até se converter num título de créditode naturãza autô- noma, literal, abstrata e exeqüível. Desse modo,fatos, valores e normas se implicam e se exigem reciprocamente, o que, como veremos, se reflete também no mo_ mento em que o jurisperito (advogado, juiz ou administrador) in- terpreta uma norma ou regra de direito (são expressões sinônimas) para dar-lhe aplicação. 66 Desde a sua origem, isto é, desde o aparecimento da norma jurídica, - que é síntese integrante de fatos ordenados segundo distintos valores, - até ao momento final de sua aplicação, o Di- reito se caracterizapor sua estrutura tridimensional, na qual fatos e valores se dialetizam, isto é, obedecem a um processo dinâmico que aos poucos iremos desvendando. Nós dizemos que esse pro- cesso do Direito obedece a uma forma especial de dialética que denominamos "dialética de implicação-polaridade", que não se confunde com a dialética hegeliana ou marxista dos opostos. Esta é, porém, uma questão que só poderá ser melhor esclarecida no âmbito da Filosofia do Direito. Segundo a dralética de implicação- polaridade, aplicada à experiência jurídica, o fato e o valor nesta se correlacionam de tal modo que cada um deles se mantém irredutível ao outro (polaridade) mas se exigindo mutuamente (implicação) o que dá origem à estrutura normativa como momento de realização do Direito. Por isso é denominada também "dialética de comple- mentaridade". Isto posto, podemos completar a nossa noção inicial de Direi- to, conjugando a estrutura tridimensional com a nota específica da bilateralidade atributiva, neste enunciado: Direito é a realização ordenada e garantida do bem comumnuma estrutura tridimensional bilateral atributiva, ou, de uma forma analítrca: Direito é a orde- nação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores. Ultimamente, pondo em realce aidéiade justiça, temos apre- sentado, em complemento às duas noções supra danatureza lógi- co-descritiva, esta outra de caráter mais ético: Direito é a concretização da idéia de justiça na pluridiversidade de seu dever ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores' Se analisarmos essas três noções do Direito veremos que cada uma delas obedece, respectivamente, a uma perspectiva do fato ("realizaçáo ordenada do bem comum"), da norma ("ordenação bilateral-atributiva de fatos segundo valores") ou do valor ("con- cretrzaçáo da idéia de justiça"). 67 Donde devemos concluir que a compreensão integral do Di- reito somente pode ser atingida graças à correlação unitária e di- nâmica das três apontadas dimensões da experiência jurídica, que se confunde com a história mesma do homem na sua perene faina de harmonizar o qlue é com o qlue deve ser. Se, como bem adverte Jackson de Figueiredo, a vida vale so- bretudo como oportunidade de aperfeiçoar-nos, o Direito, em ra- záo de sua própria estrutura e destinação, representa uma das di- mensões essenciais da vida humana. 68
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