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Do Estado gendarme ao Estado babá

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Do Estado gendarme ao Estado babá... 
19/1/97
A ideia trivial de que não podemos nunca ter tudo aquilo que desejamos precisa ser reaprendida em certos momentos e certas sociedades (a nossa entre elas) onde o pensamento mágico atrapalha a realidade.
Entre nós, o sintoma mais típico e persistente desse atraso é a confusa expectativa de que há uma espécie de "força superior", o "Estado", capaz de distribuir a todos os bens desejáveis deste mundo: emprego, salários altos, bem-estar, em suma, a "felicidade geral da nação". Qualquer jornal que se pegue ao acaso revelará, enxertadas, notas de fundo populista, "progressista" e nacional-corporativista que não mudaram nestes trinta anos passados, exceto que, agora, a encarnação do Satã a ser exorcizada, não é mais o "neocolonialismo", e sim o "neoliberalismo".
A forma de ver salvacionista tem dado muitas voltas. Durante séculos, abrigou-se em utopias filosóficas ou concepções religiosas. Aquelas, como o nome diz, não se esperava que viessem a ocorrer em lugar algum. E estas últimas reservavam-se para uma existência sobrenatural, onde se podia prometer, sem receios de desmentido, que os méritos e sofrimentos do lado de cá seriam justamente recompensados. Somente há uns três séculos - uma nesga de tempo na história humana - alguns espíritos principiaram a pensar que seria possível construir o paraíso terrestre, aqui mesmo.
Os homens já haviam sonhado isso antes. Os gregos, habilidosos fabricantes de mitos, inventaram Prometeu, que roubou e deu aos homens o fogo - um grande símbolo de força. Na era moderna, porém, os homens começaram literalmente a botar fogo nas coisas por conta própria - na pólvora das armas, nos fornos dos metais, nas caldeiras a vapor, e viram que estavam mesmo transformando o mundo. No século 18, no auge da cultura da Razão, muitos ainda estavam meio incertos sobre as grandezas do futuro e ainda pensavam perceber a Idade de Ouro no passado. Mas, no século 19, soltaram os freios. Passaram a acreditar no progresso sem fim. Sistematizaram o método científico, inventaram o capitalismo industrial, a democracia representativa liberal - e como não podia faltar o contrapeso, o marxismo.
Daí a achar que podiam fazer sociedades sob medida e consertar qualquer coisa que parecesse errado era um passo fácil, que primeiro foi dado por Saint Simon, tio-avô intelectual de Marx e Comte. Os liberais clássicos do século passado não viam muita necessidade de mexer na ordem das coisas. O mundo estava progredindo a olhos vistos; a educação, a ciência e a técnica faziam milagres. As promessas do futuro eram radiosas.
Naturalmente havia sombras. A transformação das velhas sociedades tradicionais de base agrária para as economias industriais competitivas empurrava os menos adaptáveis para periferia. Desemprego, incerteza, períodos de miséria tornavam-se visíveis contra a teia de fundo das novas cidades. Além disso, havia a instabilidade cíclica, fenômeno comum nos sistemas complexos, mas que, então, não se entendia bem. Do próprio campo liberal, seguindo as origens culturais e religiosas ocidentais, começaram a propor-se remédios - derivados em última análise das antigas noções de solidariedade e caridade. Por sua vez, Marx, achando que era uma questão de mudar a forma de produção, acreditou que a eliminação da propriedade privada dos meios de produção acabaria com todos os conflitos entre os homens, criando a fraternidade e a abundância universal. Era tentador num mundo que estava perdendo as âncoras religiosas - e em que Niestzche declarou que Deus estava morto.
Mas com isso se fechavam os olhos à contradição entre a eficiência do sistema econômico (que era maximizada pelo mercado competitivo) e o natural desejo que tinha a maioria das pessoas de receber - de preferência de graça - bens e serviços que o mercado não poderia fornecer. Com isso, começou-se a incluir na demanda de "bens públicos" um número crescente de bens que, tecnicamente, podiam ser fornecidos pelos mecanismos normais da oferta e procura. Passamos do Estado gendarme ao Estado babá.
Por outro lado, no auge do século 19, os privilegiados, no topo da pirâmide, achavam que tudo ia bem, ignorando os desejos de um mínimo de bem-estar e segurança material que as camadas de baixo principiavam a formular. Em compensação, os críticos do sistema, a começar pelos marxistas, achavam que o problema de produção era simples, bastando coletivizar-se a economia. Desconsideravam o fato de que "expropriar", "coletivizar" e "produzir" são ações que exigem organizações, empresas e estruturas intermediárias, cuja eficiência, em cada caso, condicionaria a de todo o sistema. Nem compreenderam que as atividades públicas dependem de burocracias, cuja lógica e cujos fins próprios pouco têm a ver com a necessidade de produzir eficientemente para todo o mundo. Demorou muito tempo até que um marxista sério, E. Mandel, reconhecesse a "degenerescência burocrática" dos regimes socialistas.
A burocracia tem dois defeitos congênitos. Primeiro, não é datada, subestimando os prejuízos da espera. Segundo, a promoção pessoal tem procedência sobre a promoção social. Para a correção de excessiva desigualdade de renda não bastam o discurso de compaixão e a ladainha da lamentação. Exige-se a solução de dois problemas interligados: aumentar simultaneamente a produtividade da economia e a eficiência operacional do Estado.
O aumento de produtividade pressupõe competição, desregulamentação, e privatização, tanto mais quanto o Estado brasileiro, refletindo o sistema político atrasado, ineficiente e pouco representativo, não consegue fazer direito sequer as coisas fundamentais como administrar a justiça e garantir segurança.
Claro que a aceleração das transformações técnicas e econômicas, nesta era "global", é penosa para os que vão ficando para trás. Não adianta que os políticos votem concessões demagógicas tungando os que produzem, ou pendurando a conta. É ineficiente e antidemocrático. A democracia moderna surgiu quando os ingleses resolveram refrear o hábito do governo de tirar-lhes cada vez mais dinheiro. E a reação liberal dos anos 80 e 90, nas grandes democracias industrializadas, foi para diminuir o apetite dos políticos de darem barretadas eleitorais com o bolso alheio. Só quando o público impuser ao Estado um profundo respeito pelos contribuintes, e quando as fantasias de onipotência da burocracia forem contidas (e punidas) é que alcançaremos afinal o liberalismo.
Roberto Campos foi economista e diplomata, foi também deputado federal pelo PP do Rio de Janeiro. Foi senador pelo PDS-MT e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994). Faleceu em 2001, mas os problemas brasileiros e a burrice dos governantes só fez piorar desde sua época...

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