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DA MULTITERRITORIALIDADE AOS NOVOS MUROS: paradoxos da des-territorialização contemporânea

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DA MULTITERRITORIALIDADE AOS NOVOS MUROS: 
paradoxos da des-territorialização contemporânea 
 
Rogério Haesbaert 
Universidade Federal Fluminense 
Niterói – Rio de Janeiro 
 
 
 O espaço está na ordem do dia. Muitos, a partir dos anos 1990, falam até mesmo 
num “giro” ou “virada” espacial. A mais célebre referência a esta guinada foi Michel 
Foucault, sempre citado quando se comenta a mudança da “era do tempo”, ou da história, 
referida à passagem do século XIX para o XX, e a gradativa assunção da “era do espaço”, 
que ele já identificava no final dos anos 1960 (FOUCAULT, 2001, original escrito em 
1967). Entramos nesta “era espacial” tanto no sentido da exploração dos micro-espaços 
(dos gens às micro-partículas) quanto dos macro-espaços (da exploração da Lua ao big-
bang). Mas o que nos interessa mais de perto, aqui, enquanto geógrafos, é justamente a 
ênfase dada hoje à espacialidade numa escala mais especificamente “humana”, aquela de 
nossa reprodução e de nossa circulação enquanto seres viventes, móveis, que necessitam de 
abrigo, alimento e que, a todo momento, recriam o mundo pela própria ressignificação e 
simbolização de seu espaço-tempo. 
 Espaço-tempo: esta é a expressão que realmente nos interessa. Muito mais do que 
uma “virada espacial”, ingressamos, desde Einstein, na era do “espaço-tempo”, da 
indissociabilidade entre essas dimensões do social. Não podemos mais nos referir a essas 
“categorias” diante de genéricas dicotomias como aquelas que separam presente de 
passado, sincrônico de diacrônico, fluidez de fixação, transformação de permanência. O 
presente “geográfico” passa a ser visto, sempre, como a condensação de múltiplas durações 
de um passado que se contrai e, ao mesmo tempo, como a abertura para um futuro de 
múltiplos caminhos e, assim, de múltiplas possibilidades. Por mais que o espaço pareça ser 
a esfera da fixação e da estabilidade, na verdade ele é a condição para que o tempo futuro 
seja aberto e possa realizar diferentes alternativas, colocadas a partir dessa múltipla 
combinação de trajetórias que incorporamos no nosso presente, na coetaneidade de nossa 
geografia (MASSEY, 2008). 
 Multiplicidade é uma palavra da moda, marca, para muitos, de nossos tempos “pós-
modernos” ou “pós-estruturalistas”. Mas temos que ter muito cuidado com ela. 
Sobrevalorizá-la pode nos levar a ocultar, muitas vezes, a difícil empreitada de encontrar 
novos caminhos dentro de um espaço moldado por sujeitos poderosos que ditam a maior 
parte das regras através de uma sociedade regida, sobretudo, pela lógica contábil da 
economia de mercado, onde quase tudo, hoje, é passível de compra e venda. Mas não 
podemos também, por outro lado, ignorar as múltiplas trajetórias que o espaço nos coloca 
para alimentarmos a criação, o novo ou, nas palavras de Deleuze e Guattari (1995), os 
momentos de efetiva “desterritorialização” em que “linhas de fuga” nos levam à construção 
de novos agenciamentos, tanto no campo das práticas quanto das representações espaciais. 
 “Desterritorialização” também acabou sendo um termo da moda a partir dos anos 
1990, embora Deleuze e Guattari já o propusessem desde, pelo menos, os anos 1970
1
. Tudo 
parecia se desenraizar, perder qualquer base sólida ou, pelo menos, hibridizar-se. As bases 
territoriais de controle mais conhecidas, aquelas relativas ao Estado, pareciam cada vez 
mais debilitadas. O próprio capitalismo tendia a “flexibilizar-se”, perdendo a rigidez de sua 
era fordista, e a famosa expressão de Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”, 
popularizada por Marshall Berman (1986), parecia fazer realmente sentido. Mas esse 
desmanche e essa descartabilidade sócio-espacial, em sua maior parte, tinham endereço 
certo: realimentar a espiral de crescimento e de especulação que, depois, resultaria em 
crises regionais ou mundiais que, em maior ou menor grau, acabariam afetando a todos nós. 
E não se tratava somente de crises econômicas, elas também abrangiam o campo dos 
valores, crises de representação na nossa forma de ler o mundo e seu espaço – vide, por 
exemplo, o que se passou após a queda das torres gêmeas de Nova York em 2001 e a 
ambiguidade simbólica adquirida pelo 11 de Setembro. 
 Hoje, a instabilidade e a incerteza, definitivamente, recheiam nossas geografias, do 
espaço local, mais cotidiano, ao global. Nem mesmo a dimensão material de nossos 
espaços, a começar pelas rápidas transformações geradas pelas mudanças climáticas, 
permitem imaginarmos o espaço como a dimensão da permanência e da “longa duração” – 
como defendeu um dia o historiador Fernand Braudel
2
. Ao contrário, porém, de uma 
desterritorialização enquanto destruição inexorável de nossos territórios, vistos como 
 
1
. Sobre essa temática, ver nossa abordagem em Haesbaert, 2004, sobretudo o capítulo 3 
2
. Apenas na primeira fase de sua obra, ressalte-se, notadamente na introdução de “O Mediterrâneo e o Mundo 
Mediterrânico na época de Felipe II” (Braudel, 1983), quando ele, polemicamente, caracteriza o tempo 
histórico de longa duração como “tempo geográfico” (sobreenfatizando, certamente, uma geografia física em 
que a natureza ainda seria caracterizada, sobretudo, por seus ritmos lentos). 
espaços efetivamente dominados e/ou apropriados, o que encontramos é uma mudança 
muito mais rápida de territórios, moldando aquilo que propusemos denominar 
“multiterritorialidade”: a vivência, concomitante ou sucessiva, de múltiplos territórios na 
composição de nossa territorialidade. 
 Se os territórios são espaços de exercício de poder, de relações de poder feitas 
(no/pelo) espaço, este poder, contudo, tem múltiplas faces. Devemos considerar desde 
aquelas do poder político “tradicional”, restrito à figura do Estado e/ou das “classes 
hegemônicas”, quanto aquelas mais amplas, que enfatizam também sua dimensão simbólica 
(ver, por exemplo, o “poder simbólico” tal como definido por Bourdieu, 1989). 
Para o nosso tratamento do poder e, em parte, do próprio território, tomaremos 
como referência central, aqui, Michel Foucault. Para ele, numa visão mais ampla de poder, 
toda relação social é também uma relação de poder, poder não apenas repressivo, mas 
também “produtivo”. A questão fundamental que se coloca não é aquela que responde a “o 
que é” o poder, mas a “como ele se exerce”. Por isso, também, a relevância das formas 
espaciais/territoriais através das quais ele é produzido. 
Para Foucault (2008), ao longo do mundo moderno se sobrepuseram três formas 
básicas de manifestação do poder: o (macro-)poder soberano, forjado fundamentalmente 
pelo Estado, no exercício da soberania, ou seja, no controle sobre seu território de 
jurisdição; o poder disciplinar, com toda uma “microfísica” que produz a disciplina a partir 
da normatização do tempo e do espaço a nível individual; e o biopoder ou poder sobre a 
vida, que se efetua através do homem visto enquanto “população”, em seu “meio” de 
circulação e reprodução como ser vivente, biológico. 
Foucault, infelizmente, aliou à sua visão ampla de poder uma abordagem muito 
restrita de território, pois restringiu o uso do termo à espacialidade do poder estatal, 
soberano. Na Geografia, há muito tempo (desde pelo menos Jean Gottman, nos anos 1950), 
superou-se a abordagem que associava o território apenas à figura do Estado, como, de 
alguma forma, propusera o geógrafo alemão Friedrich Ratzel, no final do século XIX. Hoje, 
o território pode ser visto nas mais diversas escalas (Souza, 1995) e através de uma 
concepção muito mais ampla de poder (Haesbaert, 2004), que inclui até mesmo a 
apropriação simbólica de espaços que, desta forma, para os grupos que se identificam com 
eles, leva a uma espécie deempoderamento. Nesse sentido, podemos dizer, pelo menos 
desde Antonio Gramsci já se fazia a ligação entre poder político como coersão, em seu 
sentido estatal (e/ou representativo de uma classe), e poder simbólico ou do consentimento, 
no sentido gramsciano de construção da hegemonia. 
Assim, podemos afirmar que as territorialidades dominantes no mundo moderno de 
matriz europeia impuseram inicialmente uma padronização territorial, de caráter 
pretensamente universal e exclusivista, cuja matriz foi o Estado e seus domínios em área, 
construindo “territórios-zona” que não admitiam sobreposição e cuja multiterritorialidade 
tinha um caráter meramente funcional, dentro de uma mesma lógica piramidal de controle: 
ao território “mínimo” da propriedade privada se sobrepunha o território municipal que, por 
sua vez, estaria dentro de territórios “departamentais”, “provinciais” ou “estaduais”, a 
seguir incorporados ao território estatal como um todo e, mais recentemente, pelo menos no 
caso da União Europeia, a uma entidade supranacional ou de bloco internacional de poder. 
Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que, em geral sob o beneplácito do 
Estado, sobrepunha-se de modo cada vez mais intrincado uma outra forma de organização 
territorial, a dos “territórios-rede” das grandes corporações empresariais, em processo 
gradativo de multi ou transnacionalização. Ao contrário do poder estatal, todavia, 
especialmente com o fim do domínio colonial, às empresas interessava muito mais o 
controle de fluxos e redes do que de áreas ou zonas – estas, ainda assim, representando 
parcela indissociável na “amarração” de seus territórios-rede. A lógica territorial das 
grandes corporações é sempre, em certo sentido, multi (ou mesmo “trans”) territorial, na 
medida em que só estruturam seu poder pela organização de uma imensa articulação de 
territórios, desde os territórios-zona em que constroem a infra-estrutura de suas bases 
produtivas e/ou de circulação até a conexão em rede ao redor do mundo, realizando assim 
imensos circuitos de fluxos sobre os quais efetivamente exercem seu controle. 
Trata-se, contudo, também, de uma multiterritorialidade dentro de uma mesma 
lógica funcional, globalmente padronizada. A diferença em relação á multiterritorialidade 
funcional do Estado é que, enquanto esta se faz pelo encaixe simultâneo de territórios-zona 
autocontidos, a das grandes empresas se realiza pela sucessão de territórios-zona 
articulados, formando grandes territórios-rede onde o controle mais importante não é o que 
se dá sobre áreas/zonas/superfícies, mas sobre dutos e/ou fluxos e pontos ou polos de 
conexão que, conjugados, compõem as redes transnacionais. 
Hoje, ao lado do “sujeito” grande empresa capitalista, temos também os próprios 
grupos culturais, em suas migrações diaspóricas de caráter global, construindo e 
vivenciando uma complexa multiterritorialidade ao redor do mundo. Esta, ao contrário da 
multiterritorialidade também em rede, mas meramente funcional, das empresas globais, 
refere-se a uma maior multiplicidade de dimensões do poder. O migrante em diáspora, 
através das múltiplas territorialidades a que pertence, possui trunfos (“trunfos espaciais”, 
diria o geógrafo Ma Mung, 1999) para sacar quando necessita, na medida em que, em geral, 
pode acionar conexões situadas em diferentes contextos territoriais (locais, nacionais) ao 
redor do mundo. 
Esse migrante globalizado pode estar ligado a territorialidades locais (um bairro 
numa grande metrópole), regionais (a região e a língua ou dialeto no país de origem ou de 
destino), nacionais (o Estado-nação em que se situa e o de onde partiu) e globais (o próprio 
território-rede da diáspora a que pertence). A multiterritorialidade que ele constrói pelo 
acionamento – simultâneo e/ou sucessivo – dessas múltiplas territorialidades é composta 
não só pela “funcionalidade” que o leva, por exemplo, a estabelecer toda uma rede de 
auxílio financeiro transnacional, mas também pela identificação que ele cria com uma 
grande multiplicidade de territórios, permitindo, inclusive, se for um grupo mais aberto, a 
construção de territorialidades híbridas com outras etnias e/ou nacionalidades. Bem ao 
contrário da multiterritorialidade meramente funcional dos grandes executivos de empresas 
multinacionais que, por mais que frequentem diferentes territórios ao redor do mundo, 
acabam recriando sempre suas “bolhas” de segurança, no convívio entre iguais, que os 
impede de dialogar com territorialidades efetivamente distintas. 
Esses migrantes em diáspora podem, ao mesmo tempo, ser o núcleo de 
territorialidades múltiplas, abertas, em constante reconstrução pelo trânsito por diversos 
territórios “alheios”, e ser objeto, também, de formas de reclusão ou confinamento, como 
ocorre quando da formação de guetos – seja “guetos voluntários”, quando se encontram 
apenas entre seus semelhantes (reproduzindo traços de alguns grupos hegemônicos), seja 
“guetos efetivos”, quando, enquanto grupos subalternos, são forçados a se fechar em 
espaços mais precarizados no interior das cidades. 
É justamente frente a essa precarização social ou, em outras palavras, à 
desterritorialização em sentido mais estrito, isto é, à perda relativa de controle de seus 
territórios, que esses grupos subalternizados são objeto de medidas, ora de reclusão – como 
no poder disciplinar que propõe retirar por um tempo os “anormais” do convívio social com 
o pressuposto de “resgatá-los” mais tarde (numa “reclusão de sequestro”, como aludia 
Foucault, 2001), ora de contenção – como denominamos os atuais processos biopolíticos de 
controle da circulação, especialmente em relação aos fluxos migratórios globais. 
 
 
Foto do Autor, 2010 
 
Entendemos que a atual proliferação de novos muros ao longo das fronteiras 
internacionais (v. mapa 1) reflete, sobretudo, as bio-políticas de contenção da circulação – 
especialmente a circulação dos chamados circuitos ilegais, seja de pessoas (migrantes), 
contrabando de mercadorias, tráfico de drogas, etc. Foucault, nesse sentido, também nos 
ajuda a compreender esse fenômeno, especialmente ao propor que a principal marca 
espacial das sociedades biopolíticas – ou de controle, como prefere Deleuze (ou ainda, 
como preferimos, de “in-segurança”) – é o “meio”, enquanto espaço em que se dá a 
circulação, seja de fluxos naturais (como as águas e os ventos), seja de fluxos sociais (como 
a mobilidade de pessoas). Como já afirmamos, a biopolítica tem como preocupação 
primeira o governo da “população” em sua circulação e/ou reprodução biológica, ligando-
se assim à instituição de saberes como o da estatística – “ciência do Estado” – capaz de 
Foto 1. “Muro-barragem” de 
contenção de expansão da 
favela Santa Marta, no Rio de 
Janeiro, conhecido 
retoricamente como “ecolimite” 
proporcionar os dados indispensáveis à gestão econômica e ao controle do comportamento 
geral do homem visto enquanto espécie, isto é, enquanto “população”. 
Num mundo como o nosso, por um lado marcado pela fluidez do espaço, as 
questões ligadas à circulação se tornam ainda mais relevantes e, com elas, a situação de um 
dos componentes mais emblemáticos dos territórios: suas fronteiras – ou, numa leitura mais 
simples, seus limites. E é aí que surge um dos grandes paradoxos da geografia 
contemporânea: ao lado da fluidez globalizada das redes e da “desterritorialização” (e/ou da 
multiterritorialidade) aparecem também os fechamentos, as tentativas de controle dos 
fluxos, da circulação, sobretudo da circulação de pessoas, da força de trabalho, dos 
migrantes. 
Esse controle da circulação pode se dar sob uma espécie de confinamento de redes, 
pela produção de circuitos isolados, sob a forma de barragemou, como preferimos, de 
contenção territorial, com a construção de “diques” e, finalmente, pode ocorrer por meio de 
dutos, num efeito de canalização desses fluxos. Nesse sentido, uma das estratégias 
aparentemente mais anacrônicas, hoje em dia, é a construção de novos muros – desde o 
nível da propriedade privada, dos condomínios fechados (gated communities, na realidade 
norte-americana) e dos bairros (como em bairros ciganos ou de imigrantes na Europa) até 
os muros transfronteiriços, como o famoso muro da fronteira entre Israel e Palestina ou 
aquele entre o México e os Estados Unidos. No caso brasileiro temos os muros-“barragens” 
construídos para estancar a expansão de favelas, no Rio de Janeiro e São Paulo (fotos 1 e 
2), e os muros-“dutos” ao longo de vias de grande circulação, para evitar contato (mesmo 
visual) com populações mais pobres (caso da Linha Vermelha, no Rio de Janeiro, foto 3). 
É claro que, a nível mais amplo, como limite de uma jurisdição política, os muros 
não surgem, como poderíamos imaginar, a partir da emergência do Estado moderno e da 
propriedade privada. Da muralha da China aos muros das cidades medievais, do muro de 
Adriano, no Império Romano, ao muro de Berlim, durante a Guerra Fria, muitos foram os 
contextos em que fronteiras políticas adquiriram essa forma de materialização. Suas 
funções, é claro, mudaram muito ao longo do tempo. O muro de Adriano (foto 4), por 
exemplo, servia não só para delimitar os domínios do Império Romano e assegurar-lhe um 
maior controle em termos de defesa militar mas também para controlar fluxos de pessoas e 
comércio em relação aos povos que habitavam mais ao norte. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Alguns muros e cercas contemporâneos ainda são um resquício do período da 
Guerra Fria, como aquele entre as Coreias e o de Guantánamo, enclave norte-americano 
dentro do território cubano. Eles, contudo, alteraram sua função, e hoje se colocam 
claramente dentro de um contexto marcado pelo biopoder. O muro entre a Coreia do Norte 
e a do Sul, resquício de uma era de confronto entre dois grandes blocos geopolíticos, tem 
hoje a função de controlar o fluxo de refugiados – e não somente de refugiados políticos, 
como durante a Guerra Fria, mas também econômicos, dado o empobrecimento crescente 
dos norte-coreanos. Guantánamo, por sua vez, pode ser interpretado como o protótipo dos 
“campos”, dentro da abordagem teórica do cientista político italiano Giorgio Agamben. 
Para Agamben (2002), os campos seriam territórios que manifestam a situação biopolítica 
do “homo sacer”, condição humana da “vida nua”, situada num limbo jurídico em que o 
homem se torna “matável e não-sacrificável”, ou seja, quem o mata não é passível de ser 
julgado, nem pelas leis humanas, nem pelas divinas. 
Foto 2. Parte 
remanescente 
de uma favela 
“intra-muros” 
junto à Daslu, 
uma das lojas 
mais elitizadas 
de São Paulo (ao 
fundo), e a 
“E-Tower”, um 
centro de 
negócios (à 
esquerda) 
 
Foto do autor, 2009 
 
 
Foto do Autor, 2010 
 
 O campo, na conceituação do autor, seria o território por excelência do Estado de 
exceção, Estado em que a exceção, por ser desejada, torna-se regra. Ele encontra-se numa 
situação ambivalente, ao mesmo tempo dentro e fora da lei “normal”. O refugiado poderia 
ser visto como o indivíduo que melhor representa essa ambivalência jurídica. Para 
Agamben, no entanto, o próprio Estado como um todo pode adquirir a conotação de 
“campo”, na medida em que decrete medidas de exceção em todo o território nacional. 
Num “capitalismo de catástrofe”, como indica Naomi Klein (2008), vivemos uma era de 
administração de tragédias, ou seja, de sucessões de regimes de urgência ou de exceção. 
Grande parte dessas situações jurídicas ambivalentes e marcadas por medidas autoritárias é 
decretada em nome da “segurança da população” – esta, por isso mesmo, aceitando abrir 
mão de muitos direitos em nome de sua propalada segurança. Para Agamben, um Estado 
que legisla praticamente em nome da segurança é um organismo frágil. Ele pode defender, 
por exemplo, uma legislação de exceção para combater o terrorismo e, assim, em nome 
desse combate, tornar-se, ele próprio, “terrorista”. 
 
Foto 3. “Muro-duto” entre a Linha 
Vermelha e o complexo de favelas da 
Maré, no Rio de Janeiro 
 
 
 Foto do Autor, 2010 
 
A difusão de fronteiras muradas surge em grande parte, também, em nome do 
mesmo discurso global da “segurança”, através de um Estado que claramente busca 
reconfigurar seu papel num mundo que já há algumas décadas busca decretar o seu 
debilitamento. Autores como Brown (2009) defendem a tese de que os muros 
transfronteiriços são uma das formas mais visíveis de demonstração de força de um Estado 
cujo poder está em cheque e que, por isso mesmo, necessita ostentar de modo o mais 
explícito possível uma potência que estaria perdendo – especialmente no que se refere à 
capacidade de controlar fluxos através de suas fronteiras. 
 O muro contemporâneo, então, podemos afirmar, tem uma dupla e inglória função: 
primeiro, representar a força de um poder – o estatal – que em parte está em crise; e, 
segundo, como decorrência da anterior, controlar os fluxos em fronteiras de um mundo 
cada vez mais global, onde muros físicos, materiais, há muito deixaram de ter eficácia em 
Foto 4. Muro de 
Adriano, “limes” 
norte do Império 
Romano (atual 
Inglaterra) 
construído por 
volta de II d.C. 
relação ao controle da circulação mais relevante a nível internacional. Qual seria o papel, 
então, desses novos muros? 
 Além de seu papel simbólico, tentando evidenciar uma potência (estatal) em 
declínio, o máximo que o muro consegue fazer é “conter” alguns fluxos, de um modo 
espaço-temporalmente bastante limitado, em especial o fluxo material de pessoas, já que 
fluxos imateriais, como o do próprio capital, há muito desconhecem a concretude das 
fronteiras e suas linhas demarcatórias. Defendemos a ideia, assim, de que os novos muros 
fronteiriços, numa sociedade biopolítica ou de in-segurança como a nossa, têm uma função 
meramente de postergar o agravamento de uma situação, de “evitar o pior”, especialmente 
naquelas áreas do mundo marcadas por níveis crescentes de desterritorialização – no 
sentido do aumento das desigualdades, da precarização e, muitas vezes, da própria 
instabilidade social. Pela distribuição desses muros, revelada pela cartografia do mapa 1, 
podemos perceber que a grande maioria se desdobra em áreas particularmente vulneráveis, 
com graves problemas e/ou desigualdades sociais, tanto entre países tipicamente periféricos 
(Botswana-Zimbábue, Irã-Afeganistão, Índia-Bangladesh), quanto entre paises ou regiões 
periféricas e semi-periféricas ou centrais (Estados Unidos-México, Espanha-Marrocos, 
Coreia do Sul-Coreia do Norte). 
 O muro, em muitos desses casos, participa como uma espécie de técnica de evitação 
e, como tal, exerce um efeito que propomos chamar de efeito-barragem, dentro de 
processos mais amplos de contenção territorial. Como numa represa, busca-se conter o 
fluxo (da água) mas nunca em um sentido temporalmente definitivo ou espacialmente 
completo, como nos processos clássicos de confinamento ou reclusão e seu “cercamento” 
por todos os lados. Faz-se a contenção de um lado ou até um certo nível mas, com o tempo, 
o fluxo pode aumentar, a pressão sobre a barragem pode ser maior e é-se obrigado a “abrir 
as comportas” – um vertedouro sempre está previsto e, muitas vezes, é ele que garante a 
manutenção de um determinado fluxo, ainda que sob constante controle. 
É mais ou menos o que se passa com as fronteiras muradas enquanto 
constrangedoras do fluxo demigrantes – ou mesmo de outros processos, como o 
contrabando ou o narcotráfico. Sabe-se que o muro pode simplesmente estar redirecionando 
o fluxo, pois nunca irá ocorrer um controle total, em todas as fronteiras de um pais. Assim, 
à barreira eletrificada entre os enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, no Marrocos, com um 
maior controle das migrações rumo à Espanha ou, mais amplamente, à União Europeia, 
segue-se um aumento da mobilidade humana da África à Europa via ilhas Canárias, por 
exemplo. 
A esses processos de contenção territorial por parte de grupos hegemônicos segue-
se o seu contraponto, aquilo que, inspirados em outros autores (como Vera Telles), 
propomos denominar de dinâmicas de contornamento, a “arte de contornar”, de encontrar 
saídas, de inventar contornos, diversas formas de evitar o controle imposto “pelo alto”, 
geralmente desencadeadas como formas de resistência por parte de grupos subalternos. 
Contornamento, termo que tem forte conotação espacial, está intimamente ligado à ideia de 
muro de contenção, que não realiza um cercamento total, deixando sempre a possibilidade 
de um desvio. 
Contornar significa também, ao mesmo tempo, num sentido mais amplo, menos 
literal, “viver no limite”, nas próprias fronteiras, como se, na impossibilidade de superá-las, 
fosse inventada uma condição de liminaridade, de ambivalência, como se pudéssemos 
“estar dos dois lados” da fronteira ao mesmo tempo – ou, em outras palavras, “encima da 
linha” limítrofe. Como no campo de Agamben, porém aqui num processo com 
características potenciais de contra-hegemonia, essa situação ambígua não define 
claramente o dentro e o fora, o legal e o ilegal, permanecendo numa espécie de limbo. Ao 
contrário do campo, entretanto, estabelecido dentro da política dominante, trata-se de 
políticas alternativas, ainda que algumas possam ser tão ou até mais autoritárias do que as 
primeiras – como no caso dos narcotraficantes e de algumas milícias nas favelas brasileiras. 
Em muitas favelas cariocas (foto 1) os muros desempenham também, a exemplo dos 
muros fronteiriços, o papel de contenção: nesse caso buscando delimitar rigidamente as 
áreas faveladas a fim de que não se expandam em direção a áreas de preservação ambiental 
(daí a retórica denominação “ecolimites” para esses muros). Uma das formas de 
“contornamento” desses processos de contenção territorial pode ser estabelecida, por 
exemplo, pelo crescimento não mais horizontal, mas vertical, com a densificação da 
ocupação humana no interior da mesma área da favela. Ou então, o que parece ser mais 
comum, pela “fuga” para outras favelas, mais distantes, ainda não rigidamente controladas 
– estratégia que é também praticada por facções do narcotráfico em relação às medidas de 
contenção adotadas pelo aparelho policial do Estado, com o domínio permanente de favelas 
sob antigo controle desses grupos. Medidas, no seu conjunto, de caráter paliativo, pois 
acabam simplesmente deslocando o problema em termos de sua expansão e intensidade 
espaço-temporal na teia da cidade. 
 O que se passa é que, na impossibilidade de contarem com uma multiplicidade de 
territórios pelos quais optar, os mais precariamente territorializados, longe de comporem 
uma multiterritorialidade constantemente aberta para novas conexões, novas 
territorialidades, vivem na frágil e mutável condição de “aglomerados”, uma situação 
confusa e muitas vezes “ilógica”, de organização territorial. Sujeitos o tempo todo a 
medidas de contenção, destinadas prioritariamente ao controle de seus “meios”/espaços de 
circulação, como diria Foucault, vivem buscando “contornar” riscos, seja o da extrema 
precarização e da fome, seja o da morte violenta – esta, uma marca maior para aqueles que 
optam pelo “contorno” via circuitos ilegais da economia, em especial o narcotráfico, e 
também via migração ilegal, como tem ocorrido com migrantes latino-americanos rumo aos 
Estados Unidos, assassinados por policiais, por grandes proprietários ou, simplesmente, por 
gangues do tráfico que, em verdadeiros “Estados de exceção paralelos”, dominam extensas 
áreas do território mexicano. 
 O paradoxo entre um mundo cada vez mais fluido e multiterritorial e um mundo 
onde nunca se construíram tantos muros, e em tão diversas escalas, revela-se então nem tão 
paradoxal assim. Geometrias do poder (como diria Doreen Massey) profundamente 
desiguais marcam a mobilidade diferencial entre os diversos sujeitos contemporâneos, 
sejam eles ricos ou pobres, homens ou mulheres, negros ou brancos, jovens ou velhos, 
participantes desta ou daquela identidade nacional ou étnica. Ao mesmo tempo em que, 
para alguns, o espaço é composto de arenas e dutos seguros, integrando múltiplos territórios 
em redes de alcance planetário, para outros o espaço é uma sucessão de constrangimentos – 
entre os quais os novos muros – a serem constantemente, se não derrubados, pelo menos 
contornados, em estratégias que nem sempre representam o caminho rumo a um espaço 
mais humano. 
Quando a sociedade de in-segurança e o Estado biopolítico em que vivemos acaba 
tomando a massa crescente de despossuídos não como seu produto, mas como sua causa, 
mais uma vez criminalizando de forma ultra-simplificada a pobreza, o combate à 
insegurança (em seu sentido mais amplo), na impossibilidade de erradicar a miséria, pode 
se resumir a duas medidas interligadas: a banalização da morte daqueles que, 
profundamente depreciados socialmente, perdem seus direitos mais elementares, e/ou sua 
contenção em espécies de “campos” onde prolifera a “vida nua”, essa condição ambivalente 
do limbo jurídico em que se está, ao mesmo tempo, dentro e fora da jurisdição política do 
Estado. 
 Mas, como afirmamos inicialmente, o espaço, por mais constringente e “uni-
territorial” que pareça, é também a esfera do múltiplo, oferecendo sempre alguma abertura 
para a realização de novas conexões e novas articulações sócio-espaciais. O próprio Estado 
contemporâneo não é marcado apenas pelas medidas de exceção, a serviço da “segurança” 
de grupos cada vez mais (para)militarizados. Algumas iniciativas recentes, sobretudo no 
espaço latino-americano, permitem divisar novos horizontes, ainda tímidos, provavelmente, 
mas estimuladores da resistência e da luta por uma outra multiterritorialidade – 
multiterritorialidade que não seja uma simples composição multifuncional a serviço dos 
interesses hegemônicos, mas que represente, efetivamente, o convívio plural de múltiplas 
identidades e a destruição dos muros que, concreta ou simbolicamente, demarcam a 
extrema desigualdade do nosso tempo. 
 
 
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Mapa 1. Os principais muros e cercas fronteiriças no mundo contemporâneo 
(Rogério Haesbaert, 2010) 
 
 
 
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