Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 PSICODRAMA Dirle Portella Bezerra O PSICODRAMA É UMA LINHA teórica dentro da Psicologia que como várias outras propostas, compartilha o mesmo objeto de estudo: o ser humano e a doença mental que o aflige. O conjunto dessas propostas e a maneira com que foram sendo construídas fazem a história da Psicologia. O que Figueiredo (1991) chama de ocupação do espaço psicológico não foi feito de maneira cumulativa. As diversas orientações psicológicas foram sendo propostas de forma tal a hoje coexistirem, apesar de terem posicionamentos teóricos antagônicos e irredutíveis uns aos outros. Afirma Figueiredo (1991:195): "A pluralidade de enfoques metodológicos, de tentativas de fundamentação epistemológica e, principalmente, de doutrinas é um fato reconhecido, e freqüentemente lastimado por todo aquele que se dedica ao estudo da Psicologia. A diversidade chama a atenção em dois aspectos: em primeiro lugar, não se observou ao longo de todo este século — que viu o nascimento e a consolidação do projeto de uma Psicologia como ciência independente — um processo progressivo de diferenciação interna, ou seja, a diversidade não foi se acentuando, o que, se tivesse ocorrido, poderia favorecer a interpretação deste fenômeno como uma 'crise de crescimento', provavelmente transitória. Mas não, (...) todas as matrizes do pensamento psicológico são contemporâneas (...) O segundo aspecto que merece alguma consideração é a persistência da diversidade". O Psicodrama, nesse sentido, não é único e ao mesmo tempo o é. Em outras palavras, pode-se dizer que, enquanto proposta teórica de apreensão do significado da doença mental, divide espaço com um sem-número de outras orientações que buscam o mesmo fim. Mas é único na medida em que parte de uma concepção de mundo, e mais especificamente de uma visão de homem, absolutamente particular que, por sua vez, só pode ser compreendida se contextualizada no tempo e no espaço. O conhecimento da história de vida de Moreno é fundamental para o entendimento de suas idéias. Além do que não é possível investigar e explicar suas propostas de um ponto de vista soberano e atemporal. Como, também, ajuda todo aquele que se propõe a estudar o Psicodrama a entender que por trás de toda prática psicodramática existe um jeito de ver o homem, jeito este entendido como o verdadeiro, como o único possível por Moreno — e que confere ao psicodrama um espaço particular e distinto dentro da história da Psicologia. 2 Contexto sócio-histórico Jacob Levy Moreno, médico romeno e criador do Psicodrama, nasceu aos 6 de maio de 1889, na cidade de Bucarest. Quando tinha 5 anos de idade, sua família radicou-se em Viena e nesta cidade construiu boa parte de sua teoria. Em 1925, emigrou para os Estados Unidos e continuou seus escritos, vindo a falecer em 14 de maio de 1974, aos 85 anos de idade, em Beacon, Nova York. As condições sócio-históricas em que a Europa se encontrava por ocasião do nascimento de Moreno são bastante discutidas entre os autores interessados em compreender em que meio Moreno cresceu e que influências sofreu ao criar o Psicodrama. Gordon Childe (1946) distingue três grandes revoluções culturais na história: a Revolução Agrícola, a Revolução Urbana e a Revolução Industrial. No contexto desta última, desenvolve-se a obra de Moreno. Segundo o autor, a Revolução Industrial implantou na Europa profundas alterações na estratificação social, na organização política e na visão do mundo de todos os povos. Suas novas tecnologias não se expandiram como uma difusão de novos conhecimentos livremente adotáveis; ao contrário, situou os pioneiros da industrialização em posição superior de domínio e riqueza, conduziu todos os demais à subordinação dentro dos vastos complexos de nações dependentes e exploradas e fez surgir, no corpo das formações capitalistas mercantis, pelo acúmulo de inventos mecânicos, a possibilidade de multiplicar a produtividade do trabalho humano. A essas inovações da tecnologia industrial somaram-se aperfeiçoamentos de processos produtivos agrícolas e pastoris, que viabilizaram o aumento populacional nas áreas recém-modernizadas, intensificaram a urbanização das populações e o aumento da disponibilidade de bens de consumo e poderio militar. No desdobramento de suas potencialidades, o primeiro processo civilizatório fundado pela Revolução Industrial acabou por integrar todas as sociedades humanas em um só sistema interativo e por configurar uma nova formação sócio-cultural. Em seus primeiros passos, esse processo foi principalmente dissociativo e conflitivo, agravando internamente os efeitos deletérios da reordenação capitalista, aprofundando a diferenciação social, destruindo os remanescentes dos antigos sistemas ocupacionais de base agrário-artesanal e incrementando a pressão demográfica. E foi também incapaz de absorver nas fábricas e nos serviços os contingentes de mão-de-obra. 3 A vida na Romênia nessa época não era fácil. Segundo Marineau (1992), depois do impulso decorrente da proclamação de autonomia, o país tinha que ser reconstruído. Muito embora tenha sido aplicada grande soma de investimentos e algum progresso alcançado, no final do século XIX, o país foi assolado por violenta crise econômica que tornou a situação ainda mais complicada, sobretudo para os judeus, que, além de tudo, tinham que lutar pela igualdade de direitos. Nesse contexto difícil, os pais de Moreno, judeus e muito pobres, se casaram. Três anos mais tarde, Moreno nasceria, sendo o primogênito de uma prole de seis filhos. Durante a infância Moreno recebeu uma educação religiosa judaica que, para Marineau (1992), sem dúvida o marcou. Brincava de uma maneira que refletia suas crenças. Em seus escritos adultos, Moreno faz referência às implicações pessoais que estão ligadas à origem do Psicodrama e, das quatro experiências que destaca como berço teórico, a primeira delas é a brincadeira de ser Deus. Aos quatro anos e meio de idade, na ausência de seus pais, Moreno improvisou com crianças vizinhas, no porão de sua casa, a brincadeira de ser Deus. Durante o jogo, construíram sobre uma mesa um céu, com cadeiras atadas e sobrepostas até alcançar o teto. Moreno tornou-se Deus e seus companheiros, anjos. Conta que, ao subir até a última cadeira e chegar ao teto, um dos anjos solicitou que Moreno voasse e ele, ao tentar fazê-lo, despencou e fraturou o braço direito. Para Moreno, essa experiência pode ter sido sua primeira fonte de inspiração. Durante sua permanência em Viena, a Europa, como também outras partes do mundo, fervilhava intelectualmente. Quando Moreno tinha onze anos, 1900, a física era sacudida pela "incerteza quântica", por Max Planck; Freud (1855-1939) publicou A interpretação dos sonhos, marcando o nascimento da Psicanálise, definindo o inconsciente como objeto de estudo. No mesmo ano, Husserl (1859-1938) expôs as Investigações lógicas, inaugurando por meio do método fenomenológico uma nova maneira de fazer ciência e filosofia. Apenas dois anos mais tarde George Mead (1863-1931) transforma a Psicologia Social, pois enfatiza o psicológico sobre o social, e Charles Cooley (1869-1929) estabelece os critérios para a conceituação de grupos primários como unidades básicas de todo sistema social, e teoriza sobre os papéis sociais. Em 1903, Pavlov (1849-1936) apresenta seus estudos sobre psicofisiologia e instala a escola reflexológica. Quando Moreno contava com dezesseis anos, 1905, Einstein estabeleceu as bases da Teoria da 4 Relatividade, descaracterizando os conceitos de tempo e espaço como realidades estáticas e passando a concebê-los em função da relação dos objetos e da sucessão de acontecimentosque deles participam. O intelectualismo racionalista passou a ser fustigado. Nesse mesmo ano, Reinhardt (1873-1938) e Stanislaviski (1863-1938) revolucionam o conceito de teatro: o primeiro conduzindo-o para dentro das igrejas e dos circos, e o segundo desenvolvendo uma pedagogia teatral que valorizava o ator na criação a partir dos seus próprios sentimentos. Ainda em 1905, o norte-americano Charles Pierce (1839-1914) publicou O que é pragmatismo, valorizando a ação resultante de pensamentos e crenças. Em 1906, Martin Buber (1878-1965), profundo estudioso da tradição hassídica1, iniciou no ano seguinte a publicação de uma série de quarenta monografias sob o título geral de A sociedade, cujas concepções acerca do homem existencial e do homem em relação culminariam quatorze anos depois na publicação de sua obra mais importante: Eu e Tu. Apenas um ano depois Theodor Lipps (1851-1914) publica suas pesquisas sobre empatia, processo psicológico de interpretação anímica e espiritual com o outro, podendo ser positiva e negativa; Maria Montessori (1870-1952) criou um sistema pedagógico de valorização da liberdade de movimentos, estímulo à espontaneidade e à criatividade. O movimento anarquista, a pleno vapor, realizou nesta época importante congresso em Viena. (Gonçalves, Wolff e Almeida, 1988). 1. "Hassídico significa 'fervoroso', 'piedoso'. O hassidismo foi uma seita surgida dentro do judaísmo, em resposta à miséria e ao sofrimento das comunidades judaicas russopolonesas do século XVIII. Seus integrantes propunham a dança e a alegria durante os cultos, enfatizavam a caridade, dedicando-se aos pobres e ignorantes, opunham-se à intelectualização e abriam os tomas cabalísticos a todos os interessados. Hoje, pouco se fala dessa facção religiosa." (Almeida, 1991:22). Por aquele tempo, surgiu em oposição à vida industrial, à mercantilização e aos conhecimentos ditos técnicos-científicos um movimento que pregava a crítica radical da civilização industrial-burguesa, o retorno à religião e à preocupação com a espiritualidade. No caso particular da juventude judaica, havia outras implicações, pois sofria toda uma influência de sua identidade cultural. Os jovens judeus tentavam construir seus caminhos libertários, que naquele momento era o da retomada do misticismo cabalístico, passando pelos ensinamentos hassídicos. Moreno participou de um grupo de jovens andarilhos, fundando a chamada "religião do encontro". Esses jovens pretendiam se ajudar mutuamente e aos outros. Buscavam encontrar pessoas que lhes parecessem tristes ou 5 carentes de afeto, aproximavam-se para dar-lhes atenção, carinho e ajuda. Iam também às suas casas, levavam alegria, através de cantos e danças. Criaram a "Casa do Encontro", uma mansão sustentada por doações e destinada a abrigar desalojados, migrantes e refugiados. O grupo não parou por aí. Inspirados por Joham Kellmer (filósofo e escritor, abandonara a carreira universitária para se dedicar à agricultura), propuseram-se a construir um sistema filosófico denominado seinismo — ciência do ser (Almeida, 1991). Entre 1908 e 1911, Moreno passou por outra experiência que mais tarde ele retrataria como o segundo berço do Psicodrama. Trata-se da revolução nos jardins de Viena. Reunindo crianças e também seus pais nos jardins de Viena, ele estimulava suas fantasias por meio de contos de fadas para os quais ele solicitava a representação livre e improvisada. Permitiu assim, uma verdadeira cruzada de crianças em favor de si mesmas, em prol de uma sociedade de suas próprias idades e com seus próprios direitos. Quando Moreno tinha 24 anos, 1913, Max Scheler (1874-1928) publicou um estudo fenomenológico sobre simpatia, Karl Jaspers (1883-1969) lançou Psicopatologia Geral, em que enfatizou o desenvolvimento da capacidade empática durante a entrevista, e John Broadus Watson (1878-1958) fundou oficialmente o behaviorismo. Também por essa época ocorreu o rompimento de Jung (1875-1961) com Freud. Em 1913 e 1914, Moreno participou de uma experiência de readaptação com prostitutas, com pequenos grupos. Neste momento, na Europa, as ciências médicas ampliavam sua abordagem das doenças de modo geral, e passaram a incluir a sexualidade em suas preocupações, e em particular a prostituição. No entanto, se por um lado a medicina trazia para a "proteção científica" o que antes era da alçada policial, de outro, continuava-se falando em depravação moral, perversão psicológica e indolência social. As prostitutas eram registradas na "Saúde Pública" e, se não o fizessem, eram consideradas no exercício ilegal da profissão, passíveis de penas. Moreno associou-se a dois amigos, o médico Dr. Wilhelm Green, e o jornalista Carl Colbert, e se propôs a cuidar das prostitutas da zona boêmia vienense, de forma diferente daquela adotada no meio médico. Não fazia interferências moralistas, nem interrogatório policial. Sabia conversar, mas ainda não exercia o papel de um psicoterapeuta: era um bom ouvinte. Estimulava-as a falarem de suas vidas. Eles passaram a estimular uma integração aos movimentos sociais, formando uma associação, fazendo com que elas se solidarizassem entre si, assumindo sua condição 6 humana. Perceberam que o trabalho em grupo proporcionava um resgate à dignidade e uma maior consciência do seu papel social. No ano de 1914, ocorre a Primeira Grande Guerra, a partir da antiga rivalidade franco-alemã. Neste momento a crença na superioridade das ciências como solução para os problemas humanos desmorona diante do pessimismo e da desesperança, o homem se volta para reavivar sua fé, busca um sentido transcendental para seu destino. Sobre este acontecimento Moreno escreveu: "Quando vi reduzida a cinzas a soberba casa do homem, em que ele havia trabalhado cerca de dez mil anos para conferir- lhe a solidez e o esplendor da civilização ocidental, o único resíduo carregado de promessas, o que descobri entre as cinzas foi o espontâneo-criador"(apud Almeida, 1991:36). Como estudante de medicina, incorporou-se às entidades de ajuda aos refugiados de guerra que debandavam do norte da Itália e da província austríaca do Tirol, e pôde reconhecer nesse ambiente enormes tensões psicológicas de grupo, bem como suas múltiplas influências terapêuticas (Almeida, 1991). No ano de 1917, com 28 anos, formou-se em Medicina e foi trabalhar em Bad Voslau, comunidade operária a poucos quilômetros de Viena. Neste mesmo ano, instala-se na Rússia a revolução bolchevique, era a vitória do marxismo como doutrina humanista que busca a libertação do homem de todas as suas alienações. Moreno, mais tarde, teria a oportunidade de fazer a crítica a Marx e considerá-lo o precursor da Sociometría Industrial. De 1917 a 1925, Moreno exerceu a função de chefe do departamento de saúde de uma fábrica têxtil e a coordenação do Departamento Municipal de Saúde da localidade, trabalhava como um médico de família. Entre 1918 e 1919, passou a ser redator da revista Der Neue Dämon, que também contava com colaboradores como Franz Kafta, Martin Buber, Fraz Werfel e outros. E, em 1920, publica, anonimamente, o livro O testamento do pai (Gonçalves, Wollfi, Almeida, 1988). O terceiro berço é considerado a dramatização realizada em 1º de abril de 1921, local do nascimento oficial da primeira sessão psicodramática. Viena vivia um momento de pós-guerra e de um governo instável, sem líder. O mundo estava inquieto e fervia em revolta. Moreno, em um teatro de Viena, diante de uma numerosa platéia, sem um elenco 7 de atores e nem sequer uma peça, colocou no centro do palco um trono vermelho e uma coroa dourada. O público seria o próprio elenco, do qual surgiriam os protagonistas. A propostaera: o que faria cada um dos protagonistas no papel de rei para organizar e dirigir o país? Cada um foi convidado a subir ao palco para expor sua visão de líder, ao mesmo tempo que a platéia participava e julgava. Ao final, ninguém conseguiu ser o salvador da Áustria. Assim, o Psicodrama nasceu como ato político. Esse acontecimento criou uma situação muito delicada em Viena para Moreno, pois naquela época, havia na Áustria uma antiga lei que proibia e impunha penas a estrangeiros, menores e mulheres que participassem de atividades políticas. Moreno ainda não havia se naturalizado austríaco. O quarto berço é o caso Bárbara. No ano de 1923, Moreno funda o teatro da espontaneidade com o objetivo de produzir uma revolução no teatro da época. Ele conhecia o poder de catarse do teatro, porém não concordava com o uso de textos decorados e ensaiados. No teatro espontâneo não existiria um texto por escrito, os atores e a platéia seriam os criadores do texto, improvisado no momento da atuação, todos eram participantes. Alguns profissionais colaboravam com Moreno, e fazia parte do elenco de atrizes uma jovem que se distinguia por sua habilidade em desempenhar papéis românticos e ingênuos. Essa jovem, de nome Bárbara, casou-se com Jorge, um poeta que a admirava. Pouco tempo depois do casamento, Jorge procurou Moreno queixando-se do comportamento de Bárbara, que na intimidade do casal agia grosseiramente, com linguagem baixa, recorrendo inclusive à agressão física. Moreno, nesse mesmo dia, propôs à jovem o desempenho de papéis de características opostas aos que vinha desempenhando até então, permitindo mostrar no cenário aspectos de sua vida íntima. Modificações no comportamento agressivo de Bárbara passaram a ser observadas e, em seguida, Jorge começou a trabalhar como ator, ao lado de Bárbara, representando cenas de sua vida familiar. Mediante esse procedimento, foram obtidas mudanças notáveis e, então, Moreno passou a atendê-los a sós, longe do público, analisando para eles o desenvolvimento das sessões. Surgia então, o teatro terapêutico. Em 1925, a economia austríaca passava por momentos difíceis, pois tinha a finalidade de debelar a inflação, o que levaria às recessão e ao desemprego. O governo da capital era socialista e o interior do país era conservador. A lei contra a participação de 8 estrangeiros na vida política do país ainda permanecia, como também o mal-estar causado pela dramatização da cadeira real. O teatro da espontaneidade, que se tornará terapêutico, perdia seus clientes habituais. Moreno perdera dois pacientes, por suicídio, fato este que o abalou demais. Durante este momento, ele estava empenhado, junto com um amigo, na construção de um "disco magnético" e existia a possibilidade de que uma fábrica dos Estados Unidos comprasse a invenção. Moreno passou então a viajar para contactar com a fábrica. Esta terminou não se interessando pelo disco, porém, Moreno se encantou com a vida americana e ali permaneceu (Almeida, 1991). Carregou então para aquele país suas teorias, mas levou consigo toda a influência que recebeu ao longo de sua história. Ao chegar naquele país encontrou uma sociedade organizada de modo muito diferente a que estava acostumado. Durante sua permanência nos Estados Unidos, Heidegger (1889-1976) publica O ser e tempo, em 1927, e Gabriel Mareei estuda as relações do indivíduo com o corpo. Um ano depois, Reich funda em Viena a "Sociedade Socialista para Conselho e Pesquisa Sexual". Em 1929, os EUA enfrentam a maior depressão econômica de sua história com a quebra da bolsa de Nova York, e Moreno faz psicodramas públicos no Carnegie Hall. Em 1930, Merleau-Ponty (1908-1961) inicia a carreira de filósofo, Paul Schilder adota o método psicanalítico para grupos e Helena Antipoff introduz no Brasil (Belo Horizonte-MG) o Psicodrama, com uso de técnicas parciais. No ano seguinte, Biswanger (1881-1966) inicia, influenciado pelas idéias de Heidegger e Freud, a publicação de estudos que culminarão na "análise existencial" e Moreno expõe suas idéias sobre Psicoterapia de Grupo na "American Psychiatric Associarion". Um ano depois, lança as bases da Sociometria a partir de estudos feitos com jovens delinquentes da Comunidade Hudson; e Lacan (1901-1981) desponta para a vida cultural e quatro anos mais tarde lança sua contribuição original à psiquiatria e à psicanálise. Moreno, em 1936, constrói em Beacon, Nova York, o primeiro teatro terapêutico e Jean-Paul Sartre publica A imaginação e a transcendência de ego. Em 1937, Moreno, com 48 anos, funda a revista Sociometry e incorpora-se às universidades de Columbia e Nova York; neste mesmo ano, Karen Horney publica A personalidade neurótica do nosso tempo, dando início a uma série de publicações sobre a confluência dos elementos socioculturais no desenvolvimento da personalidade, no que seria seguida por Erich Fromm e Harry Sullivan. 9 Em 1938 surge a "eletroconvulsoterapia" de Cerletti e Bini. Inicia-se, em 1939, a Segunda Grande Guerra e morre Freud, aos 84 anos. Em 1942, Moreno funda "The American Society of Group Psychotherapy and Psychodrama" e o "Moreno Institute". Já em 1945, Kurt Lewin (1890-1947) funda um centro de pesquisas em Psicologia social e cria o termo "dinâmica de grupo". Em 1950, os psicofármacos passam a ser amplamente usados no tratamento das doenças mentais e emocionais. E em 1964, Moreno com setenta e cinco anos, lidera o I Congresso Internacional de Psicodrama e Sociodrama, realizado em Paris, reunindo pela primeira vez psicodramatístas de todo o mundo (Gonçalves, Wolff & Almeida, 1988). Historicamente, o Psicodrama significa o marco da passagem do tratamento do indivíduo isolado para o tratamento do indivíduo em grupos; do tratamento por métodos verbais para métodos de ação. Moreno desenvolveu uma teoria de personalidade e uma teoria de grupo, buscando uma combinação eficaz de catarse individual com a coletiva, da catarse de participação com a de ação. A catarse foi um conceito introduzido por Aristóteles, para expressar o efeito peculiar exercido pelo teatro grego sobre seus espectadores. O conceito de catarse sofreu uma enorme mudança no trabalho psicodramático, que se iniciou pelo distanciamento do teatro escrito (conservador), em favor do teatro espontâneo (psicodrama), transferindo-se a ênfase dos espectadores para os atores. Nas religiões do Oriente e do Oriente Próximo, o processo de catarse foi localizado no ator, tornando-se sua vida real o palco — catarse ativa. Na situação grega, o processo de catarse mental era concebido como estando localizado no espectador — uma catarse passiva. No conceito psicodramático de catarse, conservou-se o drama e o palco, dos gregos e a catarse do ator, dos hebreus. Assim, o espectador converteu-se, ele próprio, num ator. Moreno fez críticas severas a seu antecessor Sigmund Freud. No seu modo de ver, Freud errou ao ignorar as implicações psicoterápicas a que Aristóteles se referiu. Embora reconheça na técnica de livre associação freudiana a atuação espontânea do indivíduo, lamenta que este fique restrito ao verbal. Entende que na livre associação o que funciona não é apenas a associação de palavras, mas a espontaneidade que as impele à associação. O resultado de suas investigações e estudos culminou em uma integração conceituai entre o teatro — e ainda mais o teatro espontâneo e seu potencial criador —, a Psicologia 10 dinâmica e também a sociologia e sua forma de compreensão das relações sociais. Dessa integração surgiu a Ciência Socionômica, ciência das relações. A Socionomia possui três ramos: Sociodinâmica, Sociometria e a Sociatria. A Sociodinâmica: ciência da estrutura dos grupossociais, isolados ou unidos. A Sociometria (do grego metrein: medir): ciência da medida do relacionamento humano, em que o socius recebe importância maior que o metrum. A Sociatria (do grego iatreia: terapêutica): ciência do tratamento dos sistemas sociais, utilizando principalmente a psicoterapia de grupo, o psicodrama e o sociodrama (Moreno, 1974). Concepção de mundo Moreno, oriundo do povo judeu, fazia parte da escola hassídica judaica, junto com Martin Buber. Acreditava que todo homem era um Deus, significando assim que somos um microcosmo dentro do macrocosmo, ou seja, temos o macrocosmo em nós mesmos. Podemos encontrar várias influências em sua afirmação. Na Kabbala hebraica, especificamente no Sapher Ha Zohar, que é um compêndio de tradições secretas transmitidas pelo judeu egípcio Moisés, como também na tradição indiana (Vedas) e chinesa (Lao Tseu), existe a idéia que o microcosmo reproduz o macrocosmo. Em textos do Antigo e do Novo Testamento, "Deus está em nós e nós estamos em Deus" (Moreno, 1974:16). O fato de Moreno ter optado pelo teatro em vez de desenvolver um sistema teológico pode ser desvendado se olharmos o cenário onde suas idéias brotaram. Possuía uma idéia que se tornou fonte constante de sua produtividade, proclamando "que há um tipo de natureza humana primordial que é imortal e que retorna a cada geração. É o primeiro universo que contém todos os seres e onde todos os eventos são sagrados" (Moreno, 1992:26, v. 1). Para ele, a ciência e a Psicologia de sua época, influenciadas pelas religiões, idealizaram o sábio como o homem que alcançou um equilíbrio de perfeição através da superioridade intelectual. Atribuíram à Suprema Inteligência Universal várias qualidades positivas e negativas, Deus tem sido tanto afirmado como negado em todas as categorias dessas qualidades do ser, da essência, da substância, da personalidade etc. Porém, sua percepção é que seu atributo de criador foi quase negligenciado, pois atributos de bondade, 11 poder, santidade, sabedoria, justiça contribuem para um status diferente, um status depois de "Deus ter-se estabelecido a Si mesmo como um personagem definido, ter-se reconhecido e tornar-se reconhecível como possuidor de atributos definidos" (Moreno, 1975:81). No entanto foi negligenciado, mesmo como símbolo, um outro status de Deus: “é o seu status antes do Sabbath2, a partir do momento da concepção, durante o processo de criação e desenvolvimento dos mundos e de Ele mesmo. Por muito paradoxal que possa parecer, esse status de Deus está muito mais próximo da humanidade, como está a mãe de seu filho durante a gravidez do que depois de separar-se dele, porque não é a existência perfeita e inatingível que é pintada ante nossos olhos mas um ser em crescimento, em fermentação, em ativa formação, imperfeito, que se esforça por chegar à perfeição e à completação" (Moreno, 1975:81). 2. Sabbath — Sábado dos judeus. Domingo, dia de descanso. Desta forma, o que se cultuam são as obras acabadas, é o que fascina a imaginação do homem, convertem-se nos ídolos em torno dos quais todos circulam. O homem dentro deste prisma encontra-se terminado em seu processo de criação, tendo estabelecido a ele próprio. A principal categoria de uma filosofia do criador é o momento; e sua proposta é o desenvolvimento de uma técnica que oriente o criador entre a crua espontaneidade e a obra acabada (Moreno, 1975). Moreno enfatiza a influência de Sócrates em sua formação. Sócrates estava envolvido com pessoas reais, era um clarificador. Moreno destaca o Sócrates ético, transformador. Remonta a origem do sociodrama ao período de Sócrates, e até mesmo ao período pré-histórico da humanidade. Afirma que a princípio todas as técnicas sociométricas e psicodramáticas tiveram um caráter religioso e axiométrico, passando posteriormente do pensamento religioso para o científico. Crê, então, em um homem co-participante do seu próprio destino e do próprio destino do mundo (Moreno, 1992:26, v. I). Outra grande influência em sua teoria foram as idéias e trabalhos de La Salle e Marx. Engajado no movimento social de sua época, pôde perceber a influência mútua de um indivíduo sobre o outro, bem como a força que emana de um grupo. Buscou um método que trata o homem em relação, e não o indivíduo isolado em contrapartida à psicanálise. Surgindo assim a psicoterapia de grupo, e sustentando a idéia 12 que "um paciente é um agente terapêutico dos outros. Um grupo é um agente terapêutico para outros grupos" (Moreno, 1974:31). Entretanto, tudo aquilo que é criado pode cristalizar-se como conserva cultural. Este é outro termo bastante utilizado por Moreno e estabelece com a espontaneidade uma relação de polaridade, de sorte que esta última só pode ser definida contra aquilo que é comum. Em poucas palavras, Moreno (1975:156) esclarece: "a espontaneidade e a conserva cultural não existem em forma pura: uma é função, é parasita da outra". Desta maneira, as conservas culturais devem ser somente o ponto de partida para o ato criador, não obstante se tornariam seus obstáculos. A perda da espontaneidade se dá justamente no culto ao que já está pronto, àquilo que a criatividade já produziu. O homem criativo apoia seu pé na conserva cultural para ganhar a liberdade e reafirmar a sua essência, agindo de modo adequado diante de novas situações, criando uma resposta inédita ou renovadora ou, ainda, transformadora de situações preestabelecidas. Gonçalves e cols. (1988:47) acrescentam: "Quando a concepção moreniana associa o fator e à adequação (ajustamento, adaptação), parece estar reunindo termos contraditórios: se, por um lado, valoriza a iniciativa e o 'toque' pessoal, por outro propõe o ajustamento, que só parece possível em relação à manutenção do que já está pronto (exemplos: grupos sociais, instituições, como escola, emprego etc). Mas é preciso compreender o espírito dos escritos de Moreno; sua proposta primordial é a da adequação e do ajustamento do homem a si mesmo. Neste sentido, ser espontâneo significa estar presente às situações, configuradas pelas relações afetivas e sociais, procurando transformar os aspectos insatisfatórios". A conserva cultural, caracterizada por comportamentos e por valores e formas de participação automatizada na vida social, reduz a espontaneidade a comportamentos estereotipados. Concepção de homem Para Moreno é inerente a todo homem a capacidade de, ao entrar em relação com as pessoas e com o mundo, fazê-lo de forma espontânea, ou seja, adequada e sintônica com o momento, dando respostas novas e criativas a novas situações. O conceito de espontaneidade (fator e) de Moreno se contrapõe fortemente ao do determinismo psíquico freudiano. Para Moreno, a busca incessante de determinantes para toda e qualquer experiência levava Freud a uma perseguição infindável, que muitas vezes 13 terminava em interpretações forçadas, que desconsideravam o momento no qual a experiência tinha lugar. Quanto mais longa se fazia a cadeia de determinantes, menos Freud considerava a realidade como fator contribuinte (Moreno, 1975). Entretanto, se o determinismo psíquico de Freud não deixou lugar para o fator e, Bergson foi para o outro extremo, abrindo espaço só para o criativo. A ele coube a honra de introduzir na Filosofia o princípio da espontaneidade, porém, no seu universo não há lugar para o momento, a duração não é um instante substituído por outro, é um sistema que não pode começar e nem repousar, fez do seu élan vital algo tão criador, sendo um instante tão criador quanto outro. A filosofia bergsoniana tinha como forte característica a consciência da subjetividade. Suametodologia criou uma epistemologia ao estabelecer uma nova relação entre metafísica e ciência, fugindo ao conceito tradicional do teórico. Pois a "filosofia tida como metafísica é antes de tudo intuitiva, enquanto a ciência é conceitual." (Guimarães, 1989:22). Para Bergson, a análise da consciência está basicamente fundamentada numa perspectiva psicobiológica. "A consciência possui o sentido da união e comporta quantidade e qualidade, corpo e alma. Manifesta-se como élan vital cuja essência espiritual é a duração interior. Assim, ela é uma das formas de duração. Não é toda a duração, mas apenas a condição de se reencontrar a si mesma em sua simplicidade, totalidade e unidade. O seu papel na unificação é positivo, ativo e construtivo." (Guimarães, 1989:23). Apesar da grande influência do pensamento vigoroso e apaixonado de Bergson que podemos encontrar nos escritos de Moreno, ele pouco reconhece esse fator e se posiciona entre o determinismo de Freud e as idéias de Bergson: "...na minha teoria da espontaneidade existe lugar para um 'determinismo operacional, funcional'. De acordo com essa teoria, pode haver, no desenvolvimento de uma pessoa, momentos originais, começos verdadeiramente criadores e decisivos, sem qualquer horror vacui, isto é, um temor de que não exista atrás dele um confortável passado donde promana. Não é necessário e, na verdade, é indesejável conferir a todos os momentos no desenvolvimento de uma pessoa o crédito de espontaneidade. De tempos em tempos, surgem momentos que se convertem em locii nascendi, os quais lançam essa pessoa numa nova trilha de experiência ou, como digo freqüentemente, num novo papel". (Moreno, 1975:154). 14 Para Moreno, a realização da verdadeira ação espontânea equivale à criação e ao desempenho de papéis que correspondem a modelos próprios de existência. Toda ação ocorre através da interação de papéis. Para agir de modo espontâneo, é necessário nos determos em nosso próprio estado e disposição numa certa situação. É fundamental que haja um entendimento com nós mesmos e com o outro. A concepção moreniana associa a espontaneidade à adequação e ao ajustamento do homem a si mesmo. Ser espontâneo significa estar presente às situações, procurando transformar seus aspectos insatisfatórios. Sempre pensamos e agimos em função de relações afetivas, mesmo que não sejam conscientes. O homem age em função da imagem que tem de si mesmo, de seus semelhantes e de suas reações com estes. Para modificarmos uma situação ou estabelecer uma nova situação é necessária a criação. "A criatividade é indissociável da espontaneidade. A espontaneidade é um fator que permite ao potencial criativo atualizar-se e manifestar-se" (Gonçalves, Wolff & Almeida, 1988:47). O termo momento foi utilizado insistentemente por Moreno e a compreensão de seu significado se faz necessária quando o que está em discussão é o conceito de espontaneidade. Trata-se de uma espécie de curto-circuito. É vivido como se subitamente a duração fosse alterada, permitindo o destaque de um instante que transforma as pessoas envolvidas. O momento de encontro, o de criação são situações em que o ser humano se realiza, afirmando o que é essencial no seu modo de ser (Gonçalves Wolff & Almeida, 1988). Para Moreno a situação do nascimento é entendida como marco maior da espontaneidade (e). O bebê ingressa ao mundo antes de seu organismo estar preparado para satisfazer suas necessidades, encontra-se num total estado de dependência para sobreviver. Transfere-se para um conjunto totalmente estranho de relações, não dispõe de modelos, defronta-se com uma situação completamente nova, exigindo respostas imediatas. O fator espontaneidade (e) habilitaria o bebê a superar-se a si mesmo, a entrar em novas situações, estimulando e excitando todos os seus órgãos para modificar suas estruturas, para que possa enfrentar suas novas responsabilidades. Supõe que: "...no âmbito da expressão individual, existe uma área independente entre a hereditariedade e o meio ambiente, influenciada mas não determinada pela 15 hereditariedade (genes) e as forças sociais (tele). O fator e teria a sua localização topográfica nessa área" (Moreno, 1975:101). A manifestação básica de espontaneidade (e) é chamada de processo de aquecimento preparatório. O momento do nascimento é considerado o grau máximo de aquecimento preparatório de ato espontâneo e não como um trauma como referem outros teóricos. É desta maneira, o estágio final de um ato para o qual foram requeridos nove meses de preparação. A criança dispõe de forma crucial de auxiliares para se desenvolver, a mãe ou quem cuide dela. Esses auxiliares do ponto de vista da criança apresentam-se como extensões do seu próprio corpo, nomeado de "ego auxiliar". Ao nascer, a criança é um ator sem palavras e quase sem córtex cerebral. Todo esforço no sentido de um ato demanda um processo de aquecimento, que possui uma expressão somática, psicológica e social. A expressão somática é formada através de pequenas zonas, fragilmente relacionadas e que se apresentam desigualmente espalhadas por todo o corpo. Toda zona é um locus nascendi de um dispositivo físico de arranque no processo de aquecimento preparatório. O desenvolvimento infantil pode ser compreendido a partir do que vivencia a criança, em sua "Matriz de Identidade", considerada sua placenta social. Segundo Moreno, no período anterior e imediatamente posterior ao nascimento de um bebê, este vivencia um universo indiferenciado, nomeado de Matriz de Identidade. Essa Matriz não é experimentada e sim existencial. Onde se atribui o locus do surgimento, a partir de fases graduais, do eu e suas ramificações, os papéis. "Os papéis são os embriões, os precursores do eu, esforçam-se por se agrupar e unificar." (Moreno, 1975:25). Desta forma, "o desempenho de papéis é anterior ao surgimento do eu. Os papéis não emergem do eu, é o eu quem, todavia, emerge dos papéis." (Moreno, 1975:25). Neste primeiro universo a criança vivência um longo período de imensa dependência, permitindo que haja aprendizagem social — matriz de identidade total. Após esse momento a criança passa da matriz de identidade total para a matriz de identidade diferenciada, podendo separar indivíduos de objetos. No entanto, seus atributos estarão ligados a sua realidade. 16 Os primeiros papéis a aparecer são os fisiológicos ou psicossomáticos que podem ser distinguidos como os do indivíduo que come, dorme e exerce uma atividade sexual. Para Moreno (1975:26), "a hipótese de um eu latente, metapsicológico, pode ser conciliada com a hipótese de um eu emergente, operacional." Uma das principais características deste primeiro universo é a total amnésia que o indivíduo apresenta dos primeiros três anos. Isso ocorre porque a criança está vivenciando um processo de aquecimento preparatório de um ato espontâneo. Para um sujeito recordar algo posteriormente é necessário que, durante o ato, uma certa parte do seu ego afaste-se, como uma espécie de observador participante interno, e registre os acontecimentos. Acredita-se que quando nada é recordado pelo sujeito de ações e eventos que ocorrem com ele e ao seu redor, é porque esse observador interno não se desenvolveu, pois todas as partes do sujeito estavam incluídas no ato. "Devemos supor que a criança procede a um aquecimento preparatório dos atos espontâneos, com um tamanho grau de intensidade que todas as partículas do seu ser participam do processo — que nem o menor fragmento pode ser desviado para fins de registro. Onde não há registro não há recordação." (Moreno, 1975:116). Assim, a criança tem como referência apenas o momento.Moreno chamou esta fase de síndrome da fome de atos, pois compele a criança a uma ação tensa, impedindo uma ação focal, dificultando registros destas experiências. A relação do bebê com as pessoas e coisas à sua volta ocorre através de uma coexistência, co-ação e co-experiência, que caracterizam a matriz de identidade e que lançam os alicerces do primeiro processo de aprendizagem emocional da criança. Moreno observa um próximo momento em que a criança começa a distinguir atos de realidade dos atos de fantasia e denomina essa fase de "brecha entre fantasia e realidade". Vai ganhando em autonomia e passa a desenvolver a construção de imagens, diferenciando as coisas reais e imaginadas. Essa transição propicia uma transformação total na sociodinâmica do universo infantil. A partir desse acontecimento surgem dois novos papéis, os sociais e psicodramáticos, permitindo à fantasia ser utilizada como realidade própria. Através desse novo universo, a criança percebe-se como parte da realidade familiar e vivência os papéis sociais: filho, irmão, neto, primo etc, e a partir desses transcenderá a família e incluirá outras instituições sociais: escola, clubes, grupos de amigos etc. 17 Os papéis psicodramáticos ou psicológicos são as personificações de coisas imaginadas, sendo reais ou irreais: fadas, fantasmas, papéis alucinados. Entre todos esses papéis, desenvolvem-se vínculos operacionais que os conjugam e integram numa unidade. A partir do desenvolvimento gradual desses vínculos é que podemos identificar e experimentar sua unificação chamada "eu". No momento do nascimento, não há diferenciação entre o interno e o externo, entre objetos e pessoas, entre psique e meio, a existência é total. Poderíamos considerar que os papéis psicossomáticos ajudam a criança a experimentar o "corpo", os papéis psicodramáticos ajudam a experimentar a "psique" e os papéis sociais a "sociedade". Assim, corpo, psique e sociedade são partes intermediárias do eu total (Moreno, 1975). "Na verdade, todos os papéis são complementares. São unidades de ação realizadas em ambiente humano ou na expectativa de inter-relação. (...) O modo de ser, a identidade de um indivíduo decorre dos papéis que complementa ao longo de sua existência e de sua experiência, com as respostas obtidas na interação social, por papéis que complementaram os seus" (Gonçalves, Wolff & Almeida, 1988:74). De alguma forma, percebemos este fator até nos papéis psicossomáticos, que são complementados pelos papéis de nutriz e de ego-auxiliar, isto é, a mãe, o pai ou substituto, que apresentam-se, do ponto de vista da criança, como extensões do seu próprio corpo, auxiliando em suas necessidades. O termo tele (distante) foi introduzido por Moreno, para nomear o conjunto de processos perceptivos que permitem que o sujeito tenha uma valoração correta de seu mundo circundante. O primeiro reflexo social que indica o surgimento do fator tele é quando a criança, através do desenvolvimento de seu sistema nervoso e o amadurecimento dos órgãos do sentido, consegue aos poucos diferenciar o eu do não eu, podendo responder aos estímulos externos com atração ou rechaço. Este momento constitui o núcleo das posteriores condutas de atração e repulsão e das emoções. Com o desenvolvimento da criança, o fator tele torna- se cada vez mais complexo. Partindo de uma tele indiferenciada para a matriz de identidade, em que se confundem pessoas e coisas, fantasia e realidade, passa-se para um período em que a tele começa a se ramificar aumentando, na criança, a capacidade discriminativa. Emerge, então, a tele para pessoas e a tele para objetos, a tele para objetos reais e para objetos imaginários. A partir do desdobramento da vida afetiva e da 18 complexidade do meio em que o sujeito se desenvolve, o fator tele continua a se especializar. Segundo Moreno, a inteligência e a memória terminam geralmente se sobrepondo à espontaneidade (e) e a criança torna-se mais rígida, mais submissa aos estereótipos sociais. Em sua proposta de uma Psicologia do ato criador não existiria a distinção entre consciente e inconsciente. "Um criador é como um corredor, para quem, no ato de correr, a parte do caminho que ele já passou e a parte que tem diante de si são uma só coisa, qualitativamente" (Moreno, 1975:84). No entanto, sua utilização tem como objetivo proceder ao levantamento de uma ciência das características do ato improvisado. E define o inconsciente como: "um reservatório continuamente enchido e esvaziado pelos 'indivíduos criadores'. Foi criado por eles e, portanto, pode ser desfeito e substituído" (Moreno, 1975:84). O ato criador tem como primeira característica a espontaneidade; a segunda é a sensação de surpresa; a terceira é a sua irrealidade, faz parecer como se, pois tem como objetivo mudar a realidade; a quarta característica é um atuar sui generis; a quinta é a sua consubstanciação mimética. No início da representação criadora espontânea, todo o seu processo parece penetrar de maneira informe e anárquica num meio ordenado e numa consciência bem estabelecida, porém, ao longo de seu desenvolvimento, percebe-se que pertence a uma só classe, internamente, existe uma necessidade imperiosa de assumir forma definida; a sutileza do princípio criador, que se liga à astúcia da razão para constituir uma intenção imperativa. "O sentido de espontaneidade, enquanto função cerebral, mostra um desenvolvimento mais rudimentar que qualquer outra importante função fundamental do sistema nervoso central. Talvez isso se deva ao fato de que, na civilização de conservas que criamos, a espontaneidade é muito menos utilizada e treinada do que, por exemplo, a inteligência e a memória" (Moreno, 1975:97). Relação sujeito-objeto Na visão moreniana o ser humano é um agente participante desde a sua primeira entrada na cena da vida social, isto é, ele pressupunha que o nascituro participava do parto ativamente. Desta forma, o nascimento seria o primeiro ato espontâneo. Isto ocorre quando seu desenvolvimento e maturação alcançam um grau de evolução tal que as condições 19 existentes dentro da cavidade uterina tornam-se insuficientes e insuportáveis. A partir deste momento a permanência intra-uterina se tornaria impossível. Assim, a busca do feto por um ambiente adequado às suas necessidades não é passiva. O nascer é um "ato compartilhado" em que os diferentes esforços do feto integram-se com os da mãe, resultando num processo de individualização e, em seguida, se implanta a matriz de identidade. O resultado final do nascimento, é a catarse de integração. "A catarse de integração é o resultado final de uma série de processos, isolados no seu início, que confluem em determinado momento, inter-relacionando-se e produzindo um resultado final comum, diferente de cada uma das finalidades parciais. Ainda mais, os objetivos parciais, neste caso, conseguem sua máxima realização através do resultado comum." (Rojas- Bermúdez, 1970:42). No processo psicoterápico Moreno acredita que: "a Catarse de Integração é engendrada pela visão de um novo universo e pela possibilidade de um novo crescimento..." (Rojas-Bermúdez, 1970:43). Na teoria da espontaneidade a categoria do momento possui um significado, um lugar. E para que a categoria do momento possua significado é necessário fazer parte de um universo aberto, isto é, um universo em que tenham lugar a mudança e a novidade. Pois num universo fechado não há crescimento, espontaneidade ou criatividade. A conserva cultural oferece ao indivíduo um serviço análogo ao que, como categoria histórica, oferece à cultura geral — continuidade de herança —, garantindo para ele a preservaçãoe continuidade do seu ego. Segundo Moreno, é necessário para a manifestação da criatividade que as conservas culturais constituam somente o ponto de partida e a base da ação, sob pena de se transformarem em seus obstáculos — cristalização de um processo de criação ou de um ato criador. Moreno nos apresenta em sua teoria a estrutura do "Tele". É definido por ele "como uma ligação elementar que pode existir tanto entre indivíduos como, também, entre indivíduos e objetos e que no homem, progressivamente, desde o nascimento, desenvolve um sentido das relações interpessoais (sociais)" (Moreno, 1974:52). Moreno acredita que é praticamente impossível, devido a diversas circunstâncias e interferências que o sujeito sofre ao longo de sua evolução, um desenvolvimento do fator tele sem alteração. Experiências anteriores marcantes influem para que tendamos a viver 20 uma situação nova como se fosse a situação do passado. O conjunto de alterações psicopatológicas da tele compõe a transferência (Rojas-Bermúdez, 1984). Para ele, a transferência equivalia ao embotamento ou à ausência do fator tele. Desta forma, a presença de transferência, frequentemente é a causa de equívocos e até de sofrimento nas relações interpessoais. Moreno, em sua busca de um resgate da percepção télica, deteve- se em fenômenos que ocorriam na ligações entre as pessoas. Como os estados co-conscientes e co- inconscientes, em que são definidos como co-conscientes aqueles estados que os participantes têm experimentado e produzido conjuntamente e que só podem ser representados ou reproduzidos conjuntamente. O co-inconsciente refere-se a vivências, sentimentos, desejos, fantasias comuns a duas ou mais pessoas (Gonçalves, Wolff e Almeida, 1988). Para Moreno, a teoria das relações interpessoais baseia-se na idéia e experiência do encontro de dois atores. E acredita que tanto nas Psicologias centradas nos indivíduos quanto nas sociologias centradas nas multidões existe um fator limitante que é a ausência do "outro ator". Vários termos são representativos desta experiência, Moreno utiliza "encontro" e nos traduz como "mais do que vaga relação interpessoal. Significa que dois ou mais atores se encontram, não apenas para se defrontarem, porém, para viverem e experimentarem um ao outro, como atores por direito nato, não como encontro forçado "profissional": um assistente social ou médico ou participante observador e seus clientes, caracterizados pelo status "desigual" dos participantes, mas, sim, encontro de duas pessoas. Em um encontro, as duas pessoas estão lá, espacialmente, com toda a sua força e toda a sua franqueza, dois atores humanos fervendo de espontaneidade e apenas, parcialmente, conscientes de seus objetivos mútuos. Somente pessoas que se encontram podem formar grupo natural e começar verdadeira sociedade de seres humanos." (Moreno, 1992:169). Na teoria da ação, Moreno nos traz como fundamento essencial, a experiência da ação livre, espontânea, na qual proporciona ao sujeito recuperar suas melhores condições para a vida criativa. A verdadeira ação espontânea equivale à criação e ao desempenho de papéis que correspondem a modelos próprios da existência. 21 A interação por meio de papéis corresponde à ação. Assim, para agir em conjunto as pessoas precisam de um tempo de preparação. Para agir de modo espontâneo é preciso que "nos entendamos", conosco e com o outro. Segundo Moreno a dramatização é o método por excelência para o autoconhecimento, o resgate da espontaneidade e a recuperação de condições para o inter- relacionamento. É uma possibilidade de entrar em contato com conflitos inconscientes. Desta maneira, as técnicas e instrumentos utilizados na sessão de psicodrama objetivam facilitar ao protagonista (sujeito que emerge para ação dramática) encontrar os papéis que vem evitando ou mesmo desempenhando sem espontaneidade (Gonçalves, Wolff e Almeida, 1988). A proposta da revolução criadora de Moreno é a recuperação da espontaneidade e da criatividade perdidas, através da catarse mental. O princípio produtor de catarse é a espontaneidade (Moreno, 1975). Moreno entende que é particularmente no psicodrama que a espontaneidade opera para além da dimensão das palavras, atingindo todas as outras esferas expressivas. A partir daí, criou uma série de técnicas e de possibilidades de atuação que deixaram para seus seguidores um campo vasto e aberto a novas criações. É importante dizer que, muito embora o psicodrama seja socialmente difundido apenas como uma técnica, ou um conjunto de técnicas, ele de fato é bem mais do que isso. Moreno apresentou uma teoria de desenvolvimento e mostrou como, ao longo da história do indivíduo, na sua relação com o mundo e com as pessoas, a psicopatologia pode ser desenvolvida. Definiu a doença mental, a partir dos conceitos de espontaneidade e criatividade, como a incapacidade de dar respostas criativas e adequadas a uma nova situação e encontrou, aí sim, no método psicodramático, a possibilidade de resgatar essas potencialidades. O trabalho da psicoterapia, para Moreno, é restabelecer a espontaneidade e a criatividade daqueles que a perderam, daqueles que presos à expectativas socioculturais, em seus desempenhos de papéis, agem de forma estereotipada e cristalizada. O terapeuta moreniano atuará no sentido de favorecer o desenvolvimento e a maturação das potencialidades do paciente, resgatando a espontaneidade por meio da catarse e através da técnica psicodramática. E sua proposta imodesta intenta atingir não um único homem, mas 22 toda uma sociedade. Em sua palavras: "Há dois mil anos, a humanidade sofreu, como nós hoje, uma crise de primeira grandeza. Para as grandes massas, a catarse proveio do Cristianismo, devido à universalidade dos seus métodos e à praticabilidade dos seus instrumentos (...). Em nosso tempo, as ciências sociais e mentais têm em mira um propósito semelhante ao que a religião atingiu outrora. As massas humanas sofrem de inquietude social e mental. Provavelmente, a catarse virá de novo de instrumentos que combinam a universalidade de método e grande praticabilidade. Um dos métodos mais promissores desenvolvidos nos últimos vinte e cinco anos e que preencheu essas exigências é o método psicodramático" (Moreno, 1975:17). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, W. C. Moreno: Encontro existencial com as psicoterapias. São Paulo: Agora, 1991. GONÇALVES, C. S.; WOLFF, J. R. & ALMEIDA, W. C. Lições de Psicodrama: Introdução ao pensamento de ]. L. Moreno. São Paulo: Agora, 1988. FIGUEIREDO, L. C. M. Matrizes do pensamento psicológico. Rio de Janeiro: Vozes, 1991. GORDON CHILDE, V. What Happened in History. New York: 1946. GUIMARÃES, M. B. de B. A qualidade do pensamento em Bergson. Recife: Pernambuco, 1989. JONES, P. Drama as Therapy: Theatre as Living. London: Routledge, 1996. MARINE AU, R. F. Jacob Levy Moreno - 1889-1974 - Pai do Psicodrama, da Sociometria e da Psicoterapia de Grupo. São Paulo: Agora, 1992. MORENO, J. L. Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. São Paulo: Mestre Jou, 1974. . Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1975. . Fundamentos do Psicodrama. São Paulo: Summus, 1983. . O Teatro da Espontaneidade. São Paulo: Summus, 1984. . Quem sobreviverá? Fundamentos da Sociometria, Psicoterapia de Grupo e Sociodrama. I Goiânia: Dimensão, 1992. Vol. I. ROJAS-BERMÚDEZ, J. G. introdução ao Psicodrama. São Paulo: Mestre Jou, 1970. ROJ AS-BERMÜDEZ, J. G. Que es el Sicodrama? Teoria y Prática. Buenos Aires: Celsius, 1984.
Compartilhar