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Olavo de Carvalho Pensamento e atualidade de Aristoteles pdf

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Pensamento e 
Atualidade de 
Aristóteles 
 
 
 
 
Olavo da Carvalho 
 
 
 
 
 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 2 
Pensamento e atualidade de Aristóteles 
PRIMEIRA AULA 
Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 15 de março de 1994. 
 
Transcrição de: 
Heloísa Madeira 
João Augusto Madeira 
e Kátia Torres Ribeiro 
 
1a parte 
 
Nesta primeira aula, serão colocadas as premissas e métodos que vamos desenvolver 
em seguida. Tudo o que vamos expor aqui é baseado não só nos textos de Aristóteles 
como nos dos autores de estudos aristotélicos já relacionados no Documento Auxiliar 
II. 
O esquema-padrão 
das introduções 
a Aristóteles. 
Existem muitas maneiras de fazer uma exposição introdutória da obra de um filósofo. 
Mas, com relação a Aristóteles, existe uma certa fórmula que é adotada em quase 
todos os livros: colocar uma introdução biográfica, uma segunda introdução de ordem 
filológica que dá a composição da bibliografia do autor, e depois a exposição de sua 
filosofia de acordo com uma ordem que está consagrada há mais de dois mil anos: 
1) Obras e doutrinas lógicas. 
2) Obras de Física — de um lado a filosofia da natureza de um modo geral, na qual o 
que hoje chamamos de Física seria apenas uma parte, abrangendo também Geografia, 
Geologia, Astronomia, Meteorologia etc.; de outro a Biologia, com a Psicologia como 
uma sua parte ou extensão. 
3) Tratado de Metafísica — por ele chamada de Teologia, e também de Ontologia e 
Filosofia Primeira. 
 Olavo de Carvalho 
 3 
4) Ética e Política. 
5) Poética e Retórica. 
Muitos livros sobre Aristóteles seguem na sua exposição rigorosamente esta ordem. É 
a que foi adotada no século I a.C. para a ordenação dos escritos aristotélicos por 
Andrônico de Rodes. 
Desde o momento em que essa ordem se consagrou, foi adotada não só para todas as 
reedições dos escritos mas também para a maioria das exposições da filosofia 
aristotélica. 
Sempre que um esquema desses se consolida, vira uma espécie de cacoete e nos induz 
a ver as coisas sempre pelos mesmos lados. Aristóteles estaria completando, se vivo, 
2400 anos de idade, tempo mais que suficiente para se consagrarem a seu respeito 
erros e confusões de toda espécie que, sacramentados pela antiguidade, podem se 
tornar verdades inabaláveis. 
A filosofia, 
atividade da consciência 
individual. 
À medida que passa o tempo e que as várias tradições vão cristalizando a nossa 
maneira de ver o filósofo, se torna mais difícil sair de dentro delas para encarar esse 
filósofo com uma visão pessoal. Ora, em filosofia tudo o que não é visão pessoal não 
tem valor nenhum. Se há alguma coisa que distingue a filosofia das demais formas de 
saber, é o caráter radicalmente pessoal, individual das suas especulações. Nisto, ela 
difere totalmente de todas as demais formas de conhecimento, nas quais o consenso 
coletivo tem uma importância decisiva. Não concebemos uma ciência, no sentido em 
que hoje se emprega esta palavra, exceto como um sistema que vai sendo construído 
aos poucos, com contribuições de várias proveniências, e que vai se fechando numa 
espécie de edifício, num sistema das verdades científicas admitidas ou consagradas. De 
modo que, se num determinado momento um indivíduo enuncia uma tese, uma teoria 
que contrarie flagrantemente o sistema admitido, ele terá de argumentar muito bem, 
pois estará desafiando o consenso, compartilhado por toda a comunidade científica. É 
claro que nem todas as teorias científicas admitidas gozam de um consenso assim 
unânime, mas em geral é assim que as coisa se dão nesse setor. 
Se formos para outro setor do conhecimento — a religião —, esta também é uma 
elaboração coletiva, e toda e qualquer prática religiosa subentende que um certo 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 4 
corpo de crenças é aceito como verdade uniformemente por toda a comunidade dos 
crentes. Subentende-se que o dogma — católico, judeu, mussulmano etc. — é 
entendido e admitido de maneira mais ou menos uniforme. O dogma é uma 
interpretação consensual do sentido das Escrituras. 
Sócrates e o protesto 
da consciência individual 
ante o consenso social 
Comparada ao que hoje chamamos de ciência, ou de religião, a filosofia se destaca por 
não haver nela a necessidade desse tipo de consenso e por requerer uma participação 
individual muito mais profunda. Desde o início, vemos que a filosofia nasce como o 
protesto de um indivíduo contra um consenso estabelecido. Este indivíduo chama-se 
Sócrates. Ele defronta-se com um conjunto de crenças e hábitos mentais e intelectuais, 
admitidos como válidos no seu meio e cultivados pelos indivíduos que eram a máxima 
expressão da cultura do tempo — aqueles que hoje chamamos sofistas. Eram 
professores de Retórica que iam de cidade em cidade procurando os jovens membros 
da classe dominante para lhes ensinar a arte da Retórica, com a qual poderiam 
ingressar na carreira política. 
A educação grega consistia fundamentalmente de três coisas: ginástica, música e 
retórica. O ensino da retórica, prosseguindo durante séculos, tinha consagrado na 
classe dominante grega uma série de convicções e hábitos mentais. Um indivíduo 
isolado, que não dispõe de qualquer projeção pública peculiar, não exerce cargo 
público, não participa da política, que era apenas um soldado aposentado e se 
dedicava à arte da construção civil, um pequeno empreiteiro — este é Sócrates. Na 
juventude tinha sido mais ou menos famoso como soldado, algo como um herói de 
guerra. Mas, na maturidade, era um mero cidadão privado, que não era professor de 
nada, que não era político e estava rigorosamente fora da vida intelectual da época. É 
este indivíduo que, falando exclusivamente em seu próprio nome e sem poder alegar 
nenhuma autoridade, começa a questionar certas convicções estabelecidas, e não só 
questiona, mas desenvolve um método para interrogar as crenças estabelecidas e 
mostrar, ou que são contraditórias, ou que não têm base suficiente. O sentido da frase 
famosa "Só sei que nada sei" é irônico — significa que, se ele nada sabe, os outros 
sabem menos ainda. 
Duas maneiras 
de dar coerência 
às nossas crenças. 
 Olavo de Carvalho 
 5 
A filosofia surge desse esforço de um indivíduo em particular para dar coerência às 
suas crenças. Podemos estabelecer a coerência de um corpo de crenças por duas 
maneiras contrárias. Uma delas é quando, pela prática repetida e pelo hábito, vamos 
harmonizando estas crenças com os nossos atos, com nossos hábitos e expectativas, 
também com as expectativas e hábitos dos outros e sobretudo com a nossa auto-
imagem. De modo que, estando habituados a viver dentro dessas crenças, elas se 
tornam coerentes com o tom geral da nossa vida e por isto nos parecem coerentes em 
si mesmas e coerentes umas com as outras. Isto é, da unidade da nossa auto-imagem 
costumeira deduzimos erroneamente a unidade das nossas crenças. 
A outra maneira de coerenciar as crenças é a filosófica. Significa confrontá-las 
teoricamente umas com as outras. Quando começamos a fazer isto, vamos ver que a 
nossa prática se assenta numa série de pressupostos contraditórios, que se 
desmentem uns aos outros. Isto, evidentemente, pode nos causar um certo espanto e 
nos deixar inseguros, derrubando uma auto-imagem tão laboriosamente construída.. 
De fato, Sócrates deixava as pessoas tão inseguras, que o compararam a uma enguia, 
um peixe-elétrico. Quem encostava nele levava um choque, pois ele demonstrava que 
as crenças mais comuns, tidas como coerentes e admitidas por todos, eram 
contraditórias umas com as outras e frequentemente autocontraditórias, quer dizer, 
intrinsecamenteabsurdas. Ele mostrava, por trás de uma ordem prática, uma 
desordem teorética. 
Como a contradição se introduz nas crenças que sustentam a nossa prática? Através da 
nossa própria vontade. Quando queremos acreditar em determinadas coisas, porque 
nos interessam ou nos fazem bem psicologicamente, tratamos de forçar as idéias para 
que convivam umas com as outras, ainda que, pelos seus conteúdos respectivos, sejam 
de fato incoerentes entre si. Fazemos isto constantemente. Quem já se submeteu a 
algum tipo de psicanálise tem um idéia de até que ponto podemos mentir a nós 
mesmos, para sustentar um falso sentimento de coerência e integridade da nossa 
auto-imagem, justamente nos momentos em que nossa personalidade está mais 
dividida. Quanto mais incoerentes são nossas crenças, maior é o esforço de nossa 
vontade no sentido de dar um simulacro de coerência àquilo que não tem. Ora, se um 
indivíduo consegue fazer isto, quanto não conseguirá a coletividade? Nesta, você 
recebe o reforço de seus semelhantes e é protegido pela idéia de que, se erra, não erra 
sozinho, e de que tantos juntos não poderiam errar de maneira alguma. O auto-
engano coletivo é mais eficiente do que o individual. 
Quando vemos, no decurso do tempo, as mudanças de orientação da mentalidade 
coletiva, surpreendemo-nos com a sua volubilidade, com a sua leviandade. Como as 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 6 
pessoas mudam rapidamente de crenças sem sequer examinar as anteriores! Quantos 
ex-comunistas não gerou a queda do muro de Berlim, que, sem se sentirem abalados, 
giraram o botão da sua máquina de opinar e saíram com um novo discurso, falado com 
o mesmo tom de certeza do anterior discurso comunista? O sujeito abandona uma 
crença por outra sem um exame pessoal, mas apoiando-se em um novo consenso 
público. O consenso também tem suas mudanças, oscila entre a força do hábito e a 
força da moda, e quando simplesmente nos acomodamos às novas modas temos a 
impressão de estar nos renovando ou tornando mais autênticos, mas na verdade 
consenso é consenso, é sempre coletivo e fundado na imitação. Sempre que nos 
apoiamos no consenso público, velho ou novo, recorremos a uma espécie de reforço 
psicológico que ajuda a dar uma impressão de coerência àquilo que não tem nenhuma. 
É justamente face a esse consenso coletivo — que pode ser político, religioso, 
ideológico, moral etc. — que se levanta a exigência filosófica. Ela parte de uma 
necessidade interior, de um impulso de honestidade fundamental no sentido de dar às 
idéias uma coerência efetiva e uma fundamentação mais sólida. É essa exigência de 
uma fidelidade mais profunda à nossa consciência de veracidade que é representada 
por Sócrates. 
Este movimento inicial do qual nasce a filosofia é repetido de tempos em tempos, 
onde quer que surja uma nova filosofia vigorosa e digna de atenção. Cada novo 
filósofo que seja digno do nome se defronta inicialmente com uma perplexidade que 
nasce da constatação da incoerência do consenso. Ele vivencia esta insegurança de 
perceber que talvez todos estejam enganados, e ele também junto com todos. 
Novamente faz a experiência desaber que não sabe, face a um consenso social que 
finge que sabe. Entende-se aqui que este consenso não abrange literalmente todos os 
membros da coletividade, mas apenas a intelectualidade, isto é, aqueles que 
representam publicamente o papel de porta-vozes do consenso. Isto quer dizer que 
nem sempre há um acordo explícito entre o consenso —- a ideologia reinante —- e a 
vida social, as leis e instituições, as formas de organização da economia, etc. As épocas 
em que existe esse acordo são épocas de conservadorismo, de tradicionalismo; 
inversamente, as épocas de conflito entre o consenso ideológico e a esfera da vida 
prática são épocas de renovação, ou de revolução. A renovação do consenso , e a luta 
para mudar a sociedade em nome do novo consenso, fazem parte da história 
ideológica da sociedade, e, não devem ser confundidos com o movimento da 
consciência individual que reage ao consenso para buscar a verdade. O consenso, de 
fato, é menos limitante e escravizador para a consciência individual nas épocas de 
tradicionalismo do que nas de renovação, porque o consenso tradicional se apresenta 
declaradamente como uma força conservadora, fácil de identificar e criticar, ao passo 
 Olavo de Carvalho 
 7 
que o consenso renovador ou revolucionário funciona como um Ersatz, um sucedâneo 
do autêntico pensamento filosófico, oferecendo aos homens, em lugar da vida 
intelectual, as modas intelectuais que os desviam de todo esforço pessoal. Nossa 
época é tão canalha que não apenas confunde maliciosamente a busca da verdade 
com o esforço de renovação social, fazendo da adesão a certas modas políticas 
a conditio sine qua non da vida intelectual, mas houve até mesmo um sujeito tido 
como filósofo, Antonio Gramsci, que chegou a propor formalmente a redução de toda 
vida intelectual à moda intelectual, à produção coletiva da ideologia revolucionária. 
Cada época da história tem um corpo de crenças que é admitido pela classe letrada, tal 
como ela aparece na ocasião. Na Idade Média, essa classe é constituída 
fundamentalmente de clérigos. Hoje em dia, é a chamada comunidade acadêmica, o 
pessoal das ciências, somado à turma das comunicações: imprensa, TV, movimento 
editorial. A comunidade tem sempre um corpo de crenças que não é discutido e que 
serve como padrão de julgamento das novas idéias que surjam. A filosofia aparece no 
instante em que algum indivíduo percebe, nesse corpo de crenças, uma incoerência 
profunda e se sente inseguro e na necessidade de reconstruir aquilo em novas bases. 
Esta é uma atividade perene do espírito humano, não pára nunca. A filosofia só parará 
quando chegarmos a um corpo de crenças absolutamente certo a respeito de tudo o 
que existe. Como isto é evidentemente utópico, só Deus podendo realizar algo assim, 
continuaremos sempre formando novos corpos de crenças, que terão novos pontos de 
incoerência que necessitarão de um exame filosófico. Isto quer dizer que o movimento 
filosófico é inicialmente um movimento crítico, o movimento de uma crítica que 
deverá servir de base a uma reconstrução de novas crenças. Quando um filósofo faz 
isto com sucesso, os novos parâmetros que ele estabelece duram algum tempo, mas 
perdendo o seu teor crítico e tendendo a cristalizar-se em pensamento rotineiro, em 
mera ideologia. Até que, com o crescimento da humanidade, a ampliação do círculo de 
informações, as crenças começam a entrar novamente em contradição, e surge a 
necessidade de uma nova filosofia. Isto quer dizer que, embora a filosofia seja uma 
atividade interminável, ela não é ininterrupta, mas intermitente. A filosofia aparece e 
desaparece de tempos em tempos. 
Raridade 
das filosofias 
autênticas 
Se procurarmos na História, veremos que o número de filosofias verdadeiramente 
criadoras é relativamente pequeno. Colocaremos, evidentemente, o aristotelismo 
entre elas. Podemos considerar que este movimento que vai de Sócrates até 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 8 
Aristóteles, passando por Platão, é como se fosse uma curva única, o desenvolvimento 
de uma filosofia única, que se fecha, por assim dizer em Aristóteles e consegue durar 
um certo tempo. Eu colocaria como outros marcos na história do pensamento, depois 
de Aristóteles, Sto. Tomás de Aquino, Leibniz, Schelling e Edmund Husserl, fundador da 
fenomenologia. Se fosse necessário resumir toda a história da filosofia em poucos 
nomes, eu destacaria estes, onde todos os problemas discutidos por todos os demais 
estão embutidos. Cada um desses teve uma sombra, ou complementar oposto, cujo 
contrasteajuda a compreendê-los: o trio Sócrates-Platão-Aristóteles tem Agostinho; 
Tomás tem Duns Scott; Leibniz tem Kant; Schelling tem Hegel e Husserl tem Heidegger. 
Nos intervalos entre eles entram os estóicos, Descartes, Locke, Wronski, e isto é 
rigorosamente tudo: o repertório essencial das idéias. O resto é comentário ( 
descontando, é claro, as idéias que vêm desde fora da filosofia, por exemplo da 
tradição religiosa, do pensamento político, da ciência, etc. ). 
Isto quer dizer, também, que a filosofia não surge a qualquer momento. Nas horas em 
que as crenças coletivas estão funcionando perfeitamente bem e onde as contradições 
internas que possam existir nelas estão ainda latentes e não chegam a causar 
perplexidade, — nestas horas a filosofia decai, torna-se, por assim dizer, 
desnecessária. É o que acontece, por exemplo, nos primeiros séculos da era cristã, 
quando o surgimento de um novo tipo de crença, o Cristianismo, bastou para atender 
às necessidades intelectuais das pessoas durante alguns séculos. Com o tempo, o 
próprio Cristianismo começa a perceber suas deficiências internas —- sobretudo 
lacunas e contradições na interpretação das Escrituras —- e começa a tentar completá-
las. Daí surge um movimento filosófico dentro do Cristianismo. 
A filosofia 
e o pensamento 
coletivo. 
Sendo então a filosofia um movimento essencialmente crítico, que nasce da 
perplexidade, e sendo um movimento que parte de uma consciência individual, 
poderíamos perguntar: Seria possível uma filosofia coletiva? A resposta é 
decididamente não. Porque a filosofia parte da tentativa de unificar a totalidade da 
experiência humana, e isto só pode ser feito dentro do indivíduo que tem em si, juntas 
e coesas, todas as dimensões da vida humana e que é capaz de imediatamente 
confrontar, por exemplo, suas idéias com sua conduta — sua conduta com suas 
crenças estabelecidas — estas com seus sentimentos — estes com suas sensações 
corporais etc. etc. Ou seja, o movimento de que parte a filosofia supõe que exista, 
dentro de você, a possibilidade de unificar perante uma consciência o conjunto das 
 Olavo de Carvalho 
 9 
informações acessíveis naquele momento a um ser humano. Não haveria tempo de 
fazer isto coletivamente. Embora o diálogo, a troca de idéias, possam ser importantes 
na filosofia, a título de estímulo, de critério de verificação e de correção, o movimento 
decisivo se dá sempre no âmbito de um só indivíduo. Um dos motivos disto é que a 
filosofia é coerenciação, é unificação, e só o indivíduo tem em si uma unidade real, a 
unidade de um organismo vivente, ao passo que toda coletividade é um aglomerado 
de parcelas bastante separáveis, e algumas delas incomunicáveis. "Consciência 
coletiva" é uma força de expressão, e não o nome de um ente real. A tendência a 
hipostasiar a sociedade, a nação, a classe, etc., fazendo delas entes quase que 
fisicamente reais, nos torna cegos para a importância decisiva da consciência 
individual, e acabamos esperando passivamente que a "consciência coletiva" faça o 
serviço em nosso lugar. 
A filosofia 
como instituição 
e meio social. 
Aí temos um outro problema. A filosofia não é só o nome de uma prática intelectual 
como esta que estou descrevendo, mas é também o nome de uma disciplina escolar, 
acadêmica, que se registra em textos que vão sendo acumulados, formando uma vasta 
bibliografia, que por sua vez vai necessitando de uma tradição de interpretação e de 
um conjuntto de esquemas de transmissão daquilo às novas gerações. Isto faz com que 
a filosofia também se torne, com o tempo, uma atividade coletiva. As formas 
socialmente consolidadas dessa atividade influem, então, sobre o próprio conteúdo do 
pensamento filosófico. Por exemplo, numa faculdade de filosofia hoje, você vai ver a 
elaboração de uma espécie de pensamento coletivo. Penetrar no universo desta 
filosofia universitária é mais ou menos como penetrar em qualquer outro meio social: 
partido político, igreja, grupo de psicoterapia. Logo se vê que as pessoas que estão ali 
dentro têm certos hábitos mentais, certas reações reflexas, modos de falar, cacoetes 
que marcam aquela comunidade, distinguindo os de dentro e os de fora. Assim 
também o meio filosófico universitário. O leigo que vem de fora vai gastar bons anos 
de sua vida somente para adquirir este conjunto de reações que fará com que ele se 
sinta um membro da comunidade, e ao fazer isto estará crente de estar aprendendo 
filosofia, quando está apenas assimilando a casca sociológica necessária a que a 
filosofia como prática social continue existindo. E o que isto tudo tem a ver com 
filosofia? Rigorosamente nada, porque embora a filosofia sempre necessite de algum 
veículo social para existir, a história prova que ela não depende de nenhum deles, que 
tanto se faz boa e má filosofia numa hierarquia de clérigos como num grupo informal 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 10 
de amigos, numa organização acadêmica como numa sociedade esotérica, e que, 
enfim, o dinamismo da filosofia independe da sua forma social de organizar-se. 
É por influência dessa base social de atuação que se formarão estilos coletivos de 
pensamento, que aprisionarão as mentes individuais dentro de certos esquemas de 
que não poderão livrar-se nunca, porque o que deveria livrá-los disto é exatamente a 
filosofia, ou seja, a reflexão pessoal, a que o império dos meios sobre os fins os impede 
de chegar. Se a reflexão pessoal é desde o início canalizada por um conjunto de 
reações mentais quase inconscientes, que equalizam o indivíduo com os demais 
membros da comunidade, então a reflexão pessoal fica impossibilitada. Por exemplo: 
saiu recentemente um livro cujo autor é Paulo Arantes, sobre o Departamento de 
Filosofia da USP. O livro chama-se Um Departamento Francês de Ultramar — título de 
assombrosa exatidão. Ele mostra que cinco décadas de reflexão filosófica na USP na 
verdade foram um eco de um conjunto de cacoetes mentais aprendidos com os 
primeiros professores que por ali passaram, todos de origem francesa. Alguns, aliás, 
excelentes filósofos, como Etienne Souriau, homem de primeira grandeza. Mas não 
interessa que o mestre seja grande. Interessa é que na hora em que o ensino se 
organiza coletivamente, se institucionaliza através de institutos, faculdades etc., corre-
se o grande risco de fazer com que o ingresso nesse meio requeira um investimento 
psicológico demasiado grande, tão grande ou maior do que o necessário para chegar à 
filosofia mesma. Não é fácil você se integrar num novo meio. Quando este meio é, por 
sua vez, mais ou menos internacional e a convivência não é direta, é feita mais através 
de papéis que se trocam —- de artigos de um que são lidos por outro, que escreveu 
um livro que é lido pelo primeiro —-, a absorção dos cacoetes é mais difícil, porque se 
trata de cacoetes, por assim dizer, abstratos, e a aquisição disto é muito mais 
trabalhosa para a psique humana do que a cópia direta do que é visto. Mas 
evidentemente tudo isto não tem rigorosamente nada a ver com filosofia, assim como 
a embalagem de pizza não tem nada a ver com pizza. 
E Sócrates, quando filosofava, a quem podia copiar? Em que meio ele estava 
procurando integrar-se? Que hábitos mentais ou cacoetes verbais ele estava 
procurando aprender para parecer filósofo? Ele simplesmente fazia o melhor que 
podia, usando a sua cabeça para refletir sobre certos assuntos. Isto não o tornava um 
indivíduo mais aceitável em determinado meio, e é por isto mesmo que ele podia 
filosofar livremente. 
A partir do momento em que se forma um ensino mais ou menos regular de filosofia 
— o que acontece nessa época, na Academia Platônica e depois no chamado Liceu de 
Aristóteles(que na realidade veremos que não existiu efetivamente como entidade 
 Olavo de Carvalho 
 11 
autônoma, sendo apenas um novo setor da Academia, dirigido por Aristóteles após a 
morte de Platão) —-, a filosofia começa a constituir um meio social, e surgem as 
invejas, as fofocas, a competição mesquinha, etc. Toda uma gordura mental que cerca 
a carne e o sangue da filosofia, e que passa por filosofia. Estes aspectos geralmente 
são desdenhados, mas eles nos dão o tom do pensamento do nosso tempo, onde a 
organização acadêmica da atividade filosófica chegou a um máximo de abrangência, 
eficácia e poder. Essa organização constitui uma máquina, estreitamente ligada ao 
meio editorial, que às vezes promove a filosofia, às vezes a sufoca. Em todo caso, a 
competição no meio profissional não é propícia ao desenvolvimento da filosofia, pois o 
decisivo nela não são as qualidades que fazem um filósofo, e sim as que fazem um 
hábil manejador social. Dois jornalistas que fizeram um estudo a respeito do meio 
acadêmico e editorial parisiense disseram que a organização moderna da vida 
intelectual criou um novo tipo de intelectual, o intelocrata. É o sujeito que tem poder 
ou influência sobre o meio acadêmico, a imprensa cultural, a indústria editorial, e que 
funciona como um guarda de trânsito, abrindo ou fechando o caminho às novas 
ambições. O intelocrata pode ser também um intelectual de valor, mas isto não é 
necessário para o exercício da função, que é de natureza política sobretudo. Nesse 
meio, os melhores saem quase sempre perdendo, pois dedicam suas energias à 
filosofia em detrimento da carreira. Raymond Aron diz, por exemplo, que no seu 
tempo só havia dois legítimos espíritos superiores entre os universitários franceses: 
Alexandre Kojève e Éric Weil. Mas o prestígio deles não se compara ao de um Sartre, 
de um Merleau-Ponty, ou mesmo ao de cabeças-de-toucinho como Althusser ou 
Bernard-Henry Lévy. Se isto se passa assim num país de tradição filosófica como a 
França, imagine então no Brasil. 
A Retórica 
de Aristóteles no 
ambiente mental grego. 
A influência do meio social imediato no destino das filosofias é importante para 
compreendermos o lugar de Aristóteles no ambiente grego. Veremos que no destino 
do aristotelismo pesaram muito esses fatores que mencionei. 
Quando Aristóteles entrou para a Academia Platônica, com dezoito anos de idade, logo 
se destacou como um dos melhores alunos e foi incumbido de dar uma parte das 
aulas, o curso de Retórica. Este sucesso inicial foi recebido como um insulto pessoal 
por muitos dos seus colegas. Mais ainda; sendo a Retórica — curso que ele dava — a 
ciência teorética que investiga a arte da persuasão, ele logo dominou esta ciência, 
muito disseminada na época, e foi um dos primeiros a fazer dela uma especulação 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 12 
teórica. Porque a Retórica até então era apenas transmitida como técnica, como 
prática, e alguns levavam a vida inteira para dominar esta arte, que era a chave das 
ambições políticas. Aristóteles domina-a prontamente e começa a especular 
teoricamente. Isto consiste em perguntar: "Por que o argumento persuasivo é 
persuasivo?" e mesmo: "Por que um argumento logicamente fraco ou absurdo 
convence as pessoas, e outro que é razoável não as convence?" Aristóteles começa sua 
carreira examinando a Retórica, exatamente como Sócrates havia feito. Sócrates via 
que os oradores, políticos, conseguiam persuadir as pessoas às vezes de coisas 
perfeitamente absurdas. Sócrates limitou-se a demonstrar que essas idéias eram 
absurdas, por mais persuasivas que parecessem. Aristóteles já dá, na juventude, um 
primeiro passo além. Começa a investigar as causas dessa persuasividade, e formula a 
ciência da Retórica como uma verdadeira Psicologia da Comunicação. O livro 
de Retórica de Aristóteles é um dos grandes livros livros de Psicologia que a 
humanidade conheceu. Ora, conhecendo por um lado a técnica, e já tendo, por outro, 
algumas idéias científicas sobre o fenômeno da persuasividade, Aristóteles não apenas 
sabia produzir argumentos persuasivos, mas também conhecia os princípios teóricos 
em que se baseava a persuasividade dos adversários. Isto significa que, com vinte e 
poucos anos, ele tinha-se tornado uma espécie de terror dos retóricos, que 
desmontava todos os argumentos deles com a maior facilidade. Aristóteles sintetizou 
na sua pessoa, muito jovem, os dois papéis que mais tarde seriam 
denominados retore retórico: o praticante da arte, o homem que escreve ou fala bem, 
e o cientista que estuda e formula a teoria da Retórica. Seus escritos de juventude, 
literários e retóricos na maior parte segundo parece, não chegaram até nós, mas o 
maior retor e retórico do mundo romano, Marco T. Cícero, os cita como exemplos de 
elegância e persuasividade. Tudo isso, aliado à mordacidade de certas réplicas de 
Aristóteles, ajuda a explicar o ambiente de hostilidade que se formou em torno dele 
desde muito cedo, e não consigo conceber que esta hostilidade não tenha pesado em 
alguma coisa entre as causas da dissolução do aristotelismo logo após a morte de 
Aristóteles. 
Personalidades 
de Platão e Aristóteles. 
O Deus de Aristóteles. 
Por outro lado, Aristóteles não tinha ambições políticas, ao contrário de Platão. Este 
sempre tentou interferir na política, tentou reformar o mundo, inspirou revoluções e 
golpes de Estado, e na sua famosa Carta Sétima declara que a obra de sua vida seria 
uma reforma política da Grécia. Mas Aristóteles era um temperamento 
completamente diferente. Aliás, esta confrontação de temperamentos é uma das 
 Olavo de Carvalho 
 13 
coisas mais esclarecedoras quanto a todo o rumo posterior do pensamento ocidental. 
Porque, como disse um grande historiador da Filosofia, Arthur Lovejoy, "toda a história 
do pensamento ocidental não é nada mais que um conjunto de notas de rodapé a 
Platão e Aristóteles". Sendo assim, desde que o nosso pensamento é sustentado por 
estas duas grandes colunas, confrontá-los é uma das principais ocupações da mente 
ocidental há dois mil anos. Nesta confrontação, os traços de personalidade são 
muitíssimo importantes. Duas personalidades de imensa envergadura que marcarão 
não apenas dois estilos de pensar, mas dois estilos de ser. Nesta confrontação, vemos 
que Aristóteles difere de Platão e se aproxima muito de Sócrates, pela sua total falta 
de ambição de interferir na ordem das coisas deste mundo, e pela sua total dedicação 
ao saber enquanto tal. Para Aristóteles, não havia ocupação mais digna do homem do 
que buscar conhecer, buscar compreender. Ele colocava esta atividade teorética —- a 
palavra "teorético" vem do verbotheorein, que quer dizer olhar, ver, contemplar — tão 
acima das outras que, no entender dele, era a única atividade do próprio Deus. O Deus 
aristotélico é um Deus cuja atividade é inteiramente de ordem teorética. Deus olha, 
vê, contempla, compreende, e nós vivemos dentro desta atmosfera intelectual divina, 
somos pensamentos divinos, de algum modo. Deus age, mas na forma da pura 
contemplação, e portanto, a ação de Deus tem aquela rapidez, aquela instantaneidade 
própria da inteligência — o ato de intelecção é instantâneo, e assim também os atos 
divinos, pois não supõem a mediação de um instrumento. 
Posição social de 
Aristóteles. Hostilidade 
do meio ateniense. 
Prosseguindo na confrontação, vamos ver que Platão era um filho da nobreza grega, 
um homem que desde a juventude foi cercado de admiração, não só por sua origem — 
família riquíssima — mas também pela beleza pessoal. Era um homem grande, 
atlético, rico, bonito, cheio de ambições. Aristóteles, ao contrário, era de origem 
estrangeira. A cidadede Estagira, onde nasceu, era uma colônia macedônica. Ele chega 
a Atenas, por volta dos dezoito anos, depois da morte dos pais. Herdou certa 
quantidade de dinheiro que lhe permitiu ser independente, sem chegar a ser um 
milionário. Tinha dinheiro para se sustentar sem precisar trabalhar, podendo se 
dedicar totalmente ao estudo. Entra na Academia ainda aos dezoito anos e por volta 
dos 23, 24 já é um sucesso lá dentro. Mas em primeiro lugar, num meio aristocrático o 
dinheiro, por si, não dá ingresso nas classes superiores. Para piorar, Aristóteles era um 
estrangeiro. Fica difícil imaginar, num país como o Brasil onde o estrangeiro é tratado 
como príncipe e o compatriota como um cachorro, a intensidade, a força do 
preconceito grego contra o estrangeiro. Este, em Atenas não tinha direito a nada. 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 14 
Estava pior do que um turco em Berlim. O simples fato de poder estar ali já era 
considerado um grandissíssimo favor; mas o estrangeiro não votava, não participava 
da política, não tinha direito a nada. Além disso, Aristóteles não era membro da 
nobreza, mas apenas descendente de uma família de médicos. Seu pai tinha sido 
médico do rei Felipe da Macedônia e se dizia que sua família descendia do próprio 
deus Esculápio, ou Asclépio — o deus grego fundador da medicina — pelo fato de 
terem tido muitos médicos no correr de gerações; mas todas as famílias de médicos 
alegavam a mesma coisa. Os médicos tinham posição de certo prestígio, mas não se 
comparavam à classe dominante. Eram apenas servidores de luxo. Aristóteles, então, 
do ponto de vista do meio ateniense, era um homem de origem plebéia, estrangeira, e 
que tinha entre suas características pessoais um senso de humor particularmente 
ácido, sarcástico. Também não tinha a beleza física —- era de baixa estatura, magro, e 
embora andasse muito elegantemente vestido jamais seria confundido com um 
membro da jeunesse dorée ateniense. Este estrangeiro incômodo, muito jovem se 
torna o dominador da ciência da retórica e é nomeado para dar os cursos na 
Academia. 
As Artes Liberais 
na Academia platônica. 
Lugar da Retórica. 
Nesse tempo o ensino já tinha começado grosso modo a se organizar segundo uma 
fórmula que duraria mais de mil anos, onde as matérias introdutórias consistiam 
no Trivium e noQuadrivium (conjunto de três disciplinas que lidam com a linguagem —
- gramática, lógica ou dialética e retórica —-; e de quatro que lidam com números —- 
aritmética, geometria, música e astrologia ou astronomia). As matérias elementares 
eram estas. Quando Aristóteles é nomeado professor de retórica, a importância deste 
fato não deve ser hipertrofiada, já que a retórica é apenas uma das ciências 
elementares. O domínio destas sete disciplinas foi considerado desde a fundação da 
Academia de Platão até quase o ano de 1500, isto é, por quase dois mil anos, como 
condição básica para o ingresso nos estudos filosóficos. Na Idade Média européia, o 
sistema adquirirá uma grande estabilidade. Os estudos começavam na adolescência, 
pelo Trivium e Quadrivium, que duravam mais ou menos dez anos de aprendizado, 
depois o sujeito entrava numa das três faculdades — Direito, Medicina ou Filosofia. 
Nesta, o tempo de aprendizado até o aluno chegar a um estado comparável ao que 
hoje se chama professor pleno era de aproximadamente vinte e cinco anos —- o 
tempo que um professor universitário brasileiro leva para chegar à aposentadoria. Esse 
sistema começa a se formalizar no tempo de Platão, e não vejo a menor chance de um 
sujeito entender a filosofia antiga e medieval se não partir de um estudo das Artes 
 Olavo de Carvalho 
 15 
Liberais —- Trivium e Quadrivium —-, que, constituindo a base do ensino, expressavam 
o fundo comum da cosmovisão mais claramente do que as formas superiores de 
atividade intelectual. Também não se pode esquecer que, nesse panorama, as sete 
disciplinas não tinham individualmente os significados que têm hoje, mas eram 
carregadas de nexos simbólicos e mitológicos que dão o seu verdadeiro sentido na 
cultura antiga. Por isto é que simplesmente não posso levar a sério um historiador de 
filosofia antiga ou medieval que, por exemplo, não conheça a fundo o simbolismo 
astrológico, que constituía então como que uma chave da cosmovisão. E não se trata 
só de conhecê-lo desde fora, porque o autêntico simbolismo, como a autêntica poesia, 
não se rende a um estudo meramente exterior, mas requer uma compreensão 
personalizada. Os melhores historiadores da filosofia antiga e medieval costumam ser, 
por isto, aqueles que também têm interesses religiosos e estéticos, que facilitam a 
penetração naquele universo. 
Dentro da Academia, a retórica não estava entre as disciplinas mais nobres, pois cedia 
lugar às disciplinas filosóficas propriamente ditas. Aliás, considerando-se que a filosofia 
nasce de um movimento de oposição aos sofistas —- professores de retórica —-, esta 
tendia a ser, dentro da Academia, um pouco desprezada. Ela é a arte de persuadir, não 
a de encontrar a verdade; o que torna o argumento persuasivo não é ele ser verídico, 
mas é ele encontrar uma ressonância no público. A ressonância ou persuasividade do 
argumento depende exclusivamente de fatores psicológicos e sociológicos que 
predispõem o público a aceitá-lo, e depende também de que o retórico conheça 
minuciosamente esta predisposição e saiba usá-la. A persuasão retórica nada tem a ver 
com a veracidade. Mas Aristóteles não se limita a dominar a retórica, e faz as primeiras 
especulações científicas a respeito. A especulação científica sobre uma técnica é ao 
mesmo tempo uma defesa contra esta técnica. Uma coisa é dominar uma técnica. 
Outra é ter a noção teorética de como ela funciona, de por que funciona. Com isto 
você fica sabendo também quais são os limites da técnica. Esta especulação que 
Aristóteles começa muito cedo e que o leva depois a constituir o primeiro tratado 
científico de retórica, o torna também um grande retor, um escritor elegante e 
persuasivo. Isto estabelece uma distinção que será mais tarde consagrada. Retor é 
aquele que domina a técnica da retórica, que sabe fazer um discurso e ser 
persuasivo. Retórico é aquele que estuda cientificamente a técnica do retor, podendo 
ele próprio ser um retor ou não. Mas é evidente que o estudo teorético desta técnica e 
a sua aplicação têm resultados completamente diferentes. Seria mais ou menos como 
dominar, hoje em dia, a arte da propaganda e fazer um estudo científico de por quê a 
propaganda penetra e é aceita nas consciências. Evidentemente o estudo teorético 
levaria a ver esta técnica "pelas costas" e a compreendê-la melhor do que o mero 
praticante, e a saber também, portanto, neutralizá-la. Suponho que, na linha de uma 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 16 
investigação iniciada por Sócrates, o próprio Platão tenha determinado a Aristóteles o 
estudo científico dos procedimentos retóricos, de modo a completar a superação da 
retórica na dialética, dando uma forma acabada ao que Sócrates tinha feito 
informalmente. De modo que há, na Academia, um esforço de dar mais rigor à 
demonstração, a ir da persuasão à certeza apodíctica, e, neste movimento, Aristóteles 
representará o ponto culminante. 
Platão e Aristóteles 
ante a opinião pública 
ateniense. 
Como resultado, então, em parte por seu sucesso, em parte por esta orientação que 
está imprimindo a seus estudos, em parte por ser um estrangeiro metido onde não 
devia, e ainda por motivo de intrigas e invejas entre os discípulos de Platão, Aristóteles 
viverá maus bocados em Atenas. Platão também enfrentou dificuldades, mas no 
Exterior, onde se meteu em conspirações, sendo preso, vendidocomo escravo e 
resgatado por seus discípulos. Mas em Atenas ele sempre gozou de grande prestígio e, 
ao morrer, era como que um herói nacional, uma celebridade cercada de honras, e que 
praticamente não tinha inimigos. Aristóteles, ao contrário, enfrenta inimizades, 
oposição, desde o início de sua vida, jamais chega a formar um círculo de discípulos 
capaz de prosseguir sua obra num sentido fiel ao seu intuito e digno do seu nível, 
exceto um único, que é Teofrasto. Nunca encontra em Atenas senão um ambiente de 
relativa hostilidade, morre no exílio e nunca encontra uma repercussão pública muito 
grande. Claro que ele não dava importância, a isto pelo seu próprio temperamento, 
alheio à atividade política. O ideal dele seria viver relativamente isolado, podendo 
prosseguir seus estudos sem ter que se defrontar com a política do dia. No entanto, os 
conflitos políticos o perseguem ao longo de toda a sua vida. Principalmente porquê, 
originário de uma colônia macedônica, sendo filho do médico do rei da Macedônia e 
tendo-se tornado preceptor de Alexandre, filho de Felipe, imperador macedônico, 
quando se instala mais tarde uma guerra entre Atenas e a Macedônia, Aristóteles, 
embora já não tivesse nenhuma ligação com a Macedônia há algum tempo, fica 
evidentemente numa posição suspeita; é perseguido e tem de fugir para o exílio. De 
modo que não foi uma vida fácil, e um elemento constante desta vida é o contraste 
entre o interesse puramente intelectual deste homem e a hostilidade política e social 
que o cerca durante mais ou menos toda a vida, e contra a qual ele não deixa uma 
única palavra de lamentação ou de recriminação. Não porque fosse insensível às 
injustiças, já que muitas vezes protestou contra perseguições sofridas por amigos seus. 
as talvez ele fosse muito discreto para lamentar em público suas desventuras pessoais. 
 Olavo de Carvalho 
 17 
A intuição básica 
de Aristóteles: 
totalidade e organicidade. 
O espírito mais reflexivo e científico de Aristóteles faz com que ele imprima ao seu 
ensinamento, desde o início, um sentido de pesquisa que torna o seu Liceu um 
depósito de conhecimentos sobre todas as disciplinas possíveis e imagináveis e o torna 
o primeiro centro organizado de pesquisa que conhecemos na história do ocidente. 
Após ter sido preceptor de Alexandre, Aristóteles recebe dele um dinheiro 
considerável, que lhe permite contratar um exército de pessoas para que viajem e 
tragam para ele as informações de que necessita: sobre geografia, geologia, vida dos 
animais, política e leis dos demais países, etc. etc.. Nesse sentido, Aristóteles pôde 
materializar o intuito que é central em toda a sua obra — o de organizar o 
conhecimento e fazer com que o conjunto das ciências se torne um sistema das 
ciências. Busca, assim, desde o princípio, um padrão de coerência na organização dos 
conhecimentos, infinitamente mais rigoroso do que o que tinha sido exigido por 
Platão. Quando estudamos a obra de Platão, vemos que tudo que ele escreveu vem de 
inspirações que teve na juventude e que lhe foram, por assim dizer, inoculadas por 
Sócrates bem pela herança pitagórica. A intuição básica de Platão, como a de Sócrates 
e dos pitagóricos, é a do contraste entre dois tipos de objeto do conhecimento: 1) os 
objetos dos sentidos que estão em permanente mutação e se fazem e desfazem diante 
de nós, dia a dia, como de resto, nós mesmos mudamos, nos fazemos e desfazemos, 
nosso corpo cresce, muda, envelhece e morre; 2) os objetos da geometria, das 
matemáticas, que tinham a característica da perenidade, estabilidade, constância, 
obediência à regularidade de leis que determinam implacavelmente, e imutavelmente, 
as duas relações. Uma vez estabelecida uma relação matemática, constataram esses 
filósofos, ela se reproduzia infinitamente sem que nada pudesse alterá-la ou abalá-la. 
Este contraste, uma da primeiras noções transmitidas por Sócrates, desperta em 
Platão a noção de que o mundo físico estaria envolvido numa rede de leis e 
proporções matemáticas que constituiriam o verdadeiro segredo da realidade, a 
estrutura invisível, mas rígida, do inconstante mundo visível. Esta é a intuição básica 
em Platão. As relações matemáticas constituem a parte superior do que ele chama 
demundo das idéias. Esta idéia platônica penetrará tão fundo na consciência humana 
que dois mil anos depois, quando surgia a física moderna — Newton, Galileu, 
Descartes, Kepler — é novamente a mesma idéia de encontrar o fundo matemático no 
qual se apóia a realidade sensível que inspirará os cientistas. Por mais rico que seja o 
universo platônico, vemos que todo ele não passa de uma vasta especulação em torno 
desta idéia que é, no fundo, de origem pitagórica: de que os números e relações 
matemáticas são a verdadeira essência da realidade. De que o mundo, tal como se 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 18 
apresenta a nós, é de certo modo ilusório ou falso — não totalmente, mas apenas uma 
expressão parcial de um segredo que, na sua essência, é matemático. Toda a obra de 
Platão é uma construção feita em torno desta idéia básica. 
A obra de Aristóteles obedece desde o início a outro intuito. Ele percebe que não é 
possível existirem apenas dois mundos — um mais ou menos ilusório, e outro um 
pouco mais real — mas que existem muitas faixas de realidade, formando um tecido 
enormemente complexo mas dotado, sempre, de unidade e coesão. E será esta 
complexidade do real, ao mesmo tempo múltiplo nos seus nos seus planos, aspectos, 
níveis etc. e constituindo um todo coeso, será esta idéia da unidade na variedade que 
orientará todos os esforços de Aristóteles desde o início. Daí sua idéia de 
um sistema do conhecimento. O conhecimento tem de ser um sistema, ou até, mais 
propriamente um organismo. Um organismo é um conjunto de órgãos diferentes entre 
si mas que são todos coordenados para uma certa função. Separados desta função do 
organismo total, não fazem sentido algum. Também Aristóteles concebe a idéia de que 
esta totalidade orgânica, que é o mundo, deveria por outro lado ser refletida no 
sistema das ciências, de modo que o conhecimento formasse uma unidade que, como 
um organismo vivente, pode crescer e transformar-se sem perder sua unidade. E com 
isto, inventa outra idéia que penetrará muito fundo na mente humana — talvez mais 
que a idéia dos padrões matemáticos de Platão — que é o que podemos chamar 
deevolução orgânica, complementar à de totalidade orgânica. Tão fundo como a idéia 
platônica penetrou no setor da astronomia e da física, a idéia de Aristóteles penetrará 
fundo nas ciências da natureza terrestre, na biologia, na História, na Estética e mais 
tarde no que hoje chamamos de ciências humanas ou ciências sociais. Praticamente 
todos os esforços das ciências humanas, desde que existem, é no sentido de 
conseguirem se organizar como totalidade orgânica, mais ou menos no sentido em que 
Aristóteles organizou o conjunto das ciências no seu tempo. A idéia platônica dos 
padrões matemáticos rende o seu máximo, alcança o seu pleno rendimento na física 
clássica e na nova astronomia de Kepler. Kepler, Galileu, Newton representam o auge 
da matematização da realidade. Mas a idéia aristotélica da totalidade orgânica, se bem 
que exerça grande influência, até hoje ainda não rendeu todos os seus frutos. Hoje em 
dia, o holismo é uma nova tentativa de organizar o sistema das ciências segundo a 
idéia da totalidade orgânica. Esta idéia não está realizada ainda. Por isto este curso se 
chama "Pensamento e Atualidade de Aristóteles". Quando vemos hoje um esforço 
gigantesco no sentido de emendar as ciências humanas com as naturais, como se vê, 
por exemplo, na obra deste grande antropólogo Edgar Morin,todo o esforço dele e de 
toda a corrente que representa não é nada mais que a tentativa de devolver ao 
sistema das ciências aquela organicidade sistêmica que Aristóteles tinha lhes 
imprimido no começo, e que para nós se perdeu de crise em crise. Sendo assim, vemos 
 Olavo de Carvalho 
 19 
que a obra de Aristóteles ainda está rendendo frutos e este é o motivo principal por 
que temos de estudá-la. Praticamente tudo o que está acontecendo no mundo das 
ciências hoje só pode ser compreendido como eco distante desta inspiração 
aristotélica do sistema das ciências, de dar às ciências uma 
organicidade enciclopédica ( kyklos = círculo, que representa totalidade, e paidos = 
educação, cultura, formação da mente humana ), todas concorrendo para um mesmo 
fim, como ocorre com os órgãos do nosso corpo. 
Mas tudo isso não quer dizer que o legado aristotélico seja por toda parte bem 
recebido com afetuosa gratidão. Esse legado parece que não pode ser adquirido senão 
através do conflito —- dialeticamente, no sentido hegeliano do termo. Do mesmo 
modo que Aristóteles foi muito combatido em vida, vamos ver que uma discussão com 
Aristóteles, muitas vezes amarga e cheia de recriminações tem acompanhado a 
história do pensamento ocidental há dois mil anos. Mas nem todas as discussões 
foram construtivas. As tentativas de destruir Aristóteles, de suprimir o seu legado da 
memória humana também foram muitas, ao longo da história. Aí já não se trata da 
legítima contestação científica, que Aristóteles apreciava tanto que fez dela uma 
técnica ( a dialética ), e sim de manifestações de ódio irracional à inteligência mesma. 
Mas quando crêem tê-lo matado de um lado, ele ressurge de outro. De certo modo, 
Aristóteles tem constituído para a civilização ocidental um fantasma, como o de 
Merlin, "um sonho para alguns e um pesadelo para outros" , do qual ninguém se livra 
completamente e que, mais dia menos dia, cruzará o caminho de quem busca a 
verdade, para ajudá-lo mas também para testá-lo. Daí o sentimento ambíguo, de 
amor-ódio, que ele inspira a muitos. Na verdade, isso não acontece só no Ocidente, 
mas também no Oriente. No mundo islâmico há escolas de espiritualidade que vêem 
Aristóteles como um profeta, um enviado de Deus, e outras que o consideram um 
tentador diabólico. A Igreja ortodoxa russa chegou a proibir a sua leitura, enquanto 
Sto. Tomás o considerava o príncipe dos filósofos. Após dois mil anos, é melhor tentar 
achar com ele ummodus vivendi. Para mim, a questão está resolvida: considero-o o 
melhor dos mestres, o mais honesto, o mais sincero, o mais sensato, o mais humano, 
inclusive em seus defeitos mais óbvios. 
 
2a parte 
 
Na primeira parte da aula, dei uma idéia geral sobre Aristóteles e sobre nossos motivos 
para estudá-lo. Agora vou expor o método a ser usado neste curso. Mas antes devo 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 20 
responder à pergunta que um aluno me fez no intervalo, a respeito da natureza 
matemática dos arquétipos platônicos, questão que é importante para o que 
estudaremos mais tarde, porque veremos que uma das principais modificações 
introduzidas por Aristóteles foi justamente a de desgeometrizar, ou desmatematizar, a 
teoria do conceito, fazendo do pensamento lógico menos uma estrutura formalmente 
pura do que um método para o conhecimento da realidade efetiva. A explicação da 
natureza matemática do "mundo das Idéias" encontra-se sobretudo no Timeu, um dos 
livros mais difíceis e mais interessantes de Platão. O ensinamento de Platão se dividia 
em duas partes, escrita e oral. O escrito era usado como instrumento de divulgação, 
sendo o melhor de sua filosofiia reservado para o ensinamento oral. Durante quase 
dois mil anos, este ensino oral constituiu um dos maiores enigmas da história da 
filosofia e só muito recentemente, com os progressos da documentação, é que foi 
possível esboçar uma reconstituição do que teria sido o ensinamento oral de Platão. 
Reconstituição feita a partir dos testemunhos e depoimentos deixados, e mediante 
comparação desses materiais com os textos de Platão. Como tudo isto ficou disperso 
ao longo da história, não havia muitos meios de reunir esse material. No século XX, 
quando o sistema internacional de documentação chegou a uma perfeição quase 
luxuosa, foi possível fazer esta reconstituição, empreendida sobretudo por um grande 
historiador da filosofia italiano chamado Giovanni Reale. Por uma coincidência, um 
filósofo brasileiro chamado Mário Ferreira dos Santos havia tentado a mesma 
reconstituição, não por meios histórico-filológicos como Reale, mas sim por meios 
puramente filosóficos e especulativos, e seus resultados foram singularmente 
idênticos aos de Reale, só que apresentados quinze anos antes! Mário Ferreira é o 
único grande filósofo que este país produziu, para o meu gosto o maior dos brasileiros, 
mas infelizmente o nosso meio universitário continua a ignorá-lo, por um misto de 
ignorância presunçosa e despeito. Tanto os resultados de Mário Ferreira como os de 
Reale permitem colocar Platão, com bastante segurança, como herdeiro da escola 
pitagórica. Em suma, a famosa doutrina das idéias somente se esclarece se 
entendermos que, para além do mundo das idéias, Platão admitia uma terceira 
instância, que seria o mundo dos princípios ou leis — o mundo dos modelos 
matemáticos que estruturam a realidade. Neste caso teríamos não dois, mas três 
planos: primeiro, o da realidade sensível; segundo, o mundo das idéias, e, terceiro, o 
mundo das leis ou princípios ( relações matemáticas, basicamente, mas no sentido 
não-quantitativo das matemáticas, isto é, como lógica pura ). Esta interpretação de 
Platão é bastante recente na historiografia. Existe em português uma resenha do livro 
de Giovanni Reale feita pelo Pe. Henrique Lima Vaz na revista Síntese, de Belo 
Horizonte. Os estudos filológicos a respeito de Platão e Aristóteles evoluíram muito no 
século XX. Os estudiosos recentes que deram contribuições substantivas são em 
grande número. Mas isto nos leva de volta à questão do método. 
 Olavo de Carvalho 
 21 
Progressos da compreensão 
e progressos da incompreensão: 
história e filologia. 
À medida que nos afastamos, no tempo, de um autor antigo, existe um duplo processo 
de transformação das idéias que temos acerca dele. Por um lado, nos afastamos das 
preocupações reais que constituíram o ponto de partida para ele. Na medida em que 
vivemos uma outra situação social, cultural e psicológica distinta e cada vez mais 
diferente, temos muitas vezes dificuldade em nos situarmos na motivação de onde o 
filósofo partiu. Temos outros problemas e outras perguntas — não aquelas de onde 
partiram Platão e Aristóteles. Neste sentido, tendemos a ver as obras deles como um 
conjunto de respostas sem as respectivas perguntas. É claro que todo e qualquer texto 
que se estude subentende uma situação humana, real, de onde emergiu, por 
necessidade e não por capricho, a sua indagação filosófica, e de onde o autor partiu e 
para a qual ele apresenta uma reação pessoal, ou uma resposta pessoal. De modo que 
cada livro antigo é a metade dele mesmo — a outra metade está subentendida na 
situação, que não vem reeditada junto com o texto. E esta, à medida que o tempo 
passa, vai-se tornando cada vez mais difícil de imaginarmos com verossimilhança, com 
uma imaginação vívida. Ou seja, a situação do autor antigo vai-nos parecendo cada vez 
mais algo mitológico, e nossa compreensão do texto se torna deficiente, na medida em 
que os atos humanos destituídos de sua motivação nos parecem postiços, esquisitos, 
sem sentido. Por outro lado, à medida que o tempo passa, os meios de pesquisa, de 
reconstituição dos textos edos fatos históricos progridem assustadoramente. Hoje 
temos uma idéia muito mais correta do que é o conjunto dos textos de Platão ou 
Aristóteles do que tínhamos quinhentos anos atrás. Hoje em dia existe uma precisão 
muito maior com relação à cronologia dos escritos. E até certo ponto, saber a ordem 
cronológica da produção dos escritos é importante para a compreensão da obra. 
Principalmente no caso de obras que chegaram até nós em estado mais ou menos 
fragmentário, como é o caso das obras de Aristóteles. No caso de alguns de seus 
textos, não sabemos bem como eles foram montados. O livro conhecido 
como Metafísicaresulta de vários enxertos de textos feitos em épocas distintas. Ora, se 
temos um texto escrito pelo autor aos 28 anos e outro aos 60, tratando mais ou menos 
do mesmo assunto, podemos subentender uma continuidade de argumentação que na 
realidade não existe, que foi projetada ali pelo leitor. Do mesmo modo, textos que 
estão desconectados no seu conteúdo podem ser contemporâneos e corresponder 
mais ou menos a um idêntico fundo de preocupações. A ciência da filologia, que 
procura a reconstituição, a ordenação e a compreensão profunda dos textos, referidos 
à cronologia, à situação histórica etc., é a ciência que vem em nosso socorro neste 
sentido. 
À mesma medida que o decurso do tempo nos torna um filósofo mais ou menos 
incompreensível, também os progressos da filologia nos fornecem os meios de 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 22 
restaurar artificialmente esta compreensão que vai nos faltando. É uma espécie de 
compensação artificial da perda natural. Como vitaminas que retardem o 
envelhecimento. À medida que os textos envelhecem, a filologia trata de rejuvenescê-
los. 
A incompreensão histórica: 
historicismo 
e desistoricismo. 
Mas ao mesmo tempo existe outro desgaste mais profundo que nos dificulta a 
compreensão. A nossa civilização é a primeira que tem acesso a documentos da 
história de todas as outras civilizações e todos os outros tempos. Desde que começa a 
se constituir a ciência histórica, a partir do século XVIII, e a moderna filologia que já 
vinha desde o Renascimento, vamos conseguindo reunir uma documentação cada vez 
melhor, cada vez mais extensa, cada vez mais depurada a respeito de todas as épocas, 
lugares e civilizações. A partir do começo deste progresso da ciência histórica é grande 
a tentação de forjar imaginativamente uma espécie de esquema da unidade do 
desenvolvimento da história humana, com base nesta documentação reunida. À 
medida que começa a progredir a ciência histórica, também começa a progredir 
a filosofia da história ( séculos XVIII e XIX ), que propõe uma visão global do 
desenvolvimento humano, no sentido, por exemplo, de um progresso em uma 
determinada direção. É aí que o progresso da ciência histórica é compensado também 
por um progresso do erro. Porque as primeiras grandes generalizações que a história 
da filosofia faz são evidentemente erradas, já que sua documentação é insuficiente e 
não há métodos ou critérios maduros. E à medida que a documentação nos séculos 
seguintes ( XIX e XX ) progride, tendemos a receber esses documentos já com uma 
perspectiva viciada pelas primeiras filosofias da história que surgiram. De modo que, 
por exemplo, a idéia de um progresso linear do conhecimento está tão arraigada na 
nossa mente hoje, que dificilmente conseguimos ver uma filosofia antiga, exceto como 
algo que está "situado no seu tempo" e que já não nos diz nada exceto como 
documento histórico. Como se Aristóteles ou Platão tivessem falado apenas para os 
gregos, na situação grega, e não para nós. Esta perspectiva é denominadahistoricista. 
Situa cada idéia no seu contexto histórico, cultural, social, e fazendo isto, ao mesmo 
tempo ela nos ajuda a compreender essas idéias em função dos seus motivos, mas por 
outro lado, ela distancia de nós estes textos, na medida em que os refere às 
preocupações imediatas das quais brotaram, e distingue radicalmente estas 
preocupações das nossas: os antigos ficam presos no "seu tempo" e nós no "nosso 
tempo", como se os seccionamentos do tempo, na verdade invenções artificiais dos 
historiadores, fossem distinções reais e como se não houvesse, por trás da 
irreversibilidade do calendário, sutis intercâmbios de afinidade entre tempos distantes 
entre si. 
 Olavo de Carvalho 
 23 
A perspectiva historicista, que surge no século XVIII e vai-se afirmando ao longo de 
todo o século XIX e que está profundamente embutida na nossa mente —- como uma 
espécie de dogma no qual acreditamos sem exame —- acredita que situar as coisas na 
sua devida perspectiva temporal é a melhor ou única maneira de compreendê-las. Ora, 
na medida em que você situa os fatos e as idéias num tempo histórico, você também 
os relativiza, os torna relativos a esse tempo, e atenua ou diminui a importância, a 
significação, o valor e a eficácia que possam ter para nós hoje. A compreensão 
historicista torna-se, por isto, uma verdadeira descompreensão, um afastamento 
artificial do sentido das mensagens. Ao invés de reviver os valores do passado, ela os 
enterra no "seu tempo", deixando-nos fechados na atualidade do presente como 
numa redoma de sombras. 
Este é um problema de método da maior importância para o que vamos ver depois. 
Faça um modelo em miniatura e imagine que todas as idéias e sentimentos que você 
teve ao longo de sua vida você referisse exclusivamente e absolutamente à etapa da 
sua vida onde essas idéias e sentimentos surgiram, negando-lhes qualquer eficácia ou 
importância na sua vida presente. Por exemplo, se certas crenças ou sentimentos que 
surgem na infância, você os referisse inteiramente à situação de infância, e os 
explicasse exclusivamente em função daquele momento, como se a criança que você 
foi estivesse morta e enterrada. Isto quer dizer que cada idéia que você tem só seria 
válida para aquele momento, não conservaria nenhuma importância para os 
momentos seguintes. Por exemplo, na infância ou na adolescência, todos temos certas 
idéias e valores. A infância cultiva mitos, lendas, heróis, amores. Na adolescência 
temos grandes ambições e planos. Se depois, aos cinqüenta anos, digamos, fazendo 
nossa autobiografia, estudando-a "cientificamente", referimos estas idéias 
exclusivamente às etapas em que surgiram, tiramos a validade atual que elas possam 
ter, julgamos a nossa infância com olhos do homem maduro, considerando-o um juiz 
absoluto de uma infância que já não não pode falar, e que será condenada sem ter 
sido ouvida, assim como mais tarde olharemos a idéia do homem maduro com a 
perspectiva do velho que seremos, e esse homem maduro, já não tendo nada o que 
dizer ao velho, será condenado por este num tribunal onde o réu está sempre ausente. 
Se, das épocas que vão passando, nada conserva a validade sempre atual de uma 
primavera que não passa, nossa vida não passa de uma coleção de cadáveres —- ou, 
pior ainda, de uma sucessão de traições e abandonos. Isto significa que situar as idéias 
na sua perspectiva histórica, por um lado, é compreendê-las em função do momento, 
mas por outro lado é chutá-las para aquele momento, e tirar delas a vitalidade que 
possam ter nestemomento. O historicismo, por um lado, nos dá a compreensão da 
história, mas se ele eleva a história, isto é, o desenvolvimento temporal, a supremo ou 
único critério do entendimento, ele situa cada idéia no seu tempo e cada idéia só é 
válida no seu tempo. Ora, se as idéias só fossem válidas no seu tempo, na realidade 
não seriam válidas para tempo nenhum, porque representariam apenas imagens que 
passaram pela mente humana e que somente expressam aquele momento, cuja 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles24 
duração pode ser de um século como pode ser de um dia. Ora, se fosse assim, se as 
idéias expressassem exclusivamente aquele momento, sem nenhuma validade para os 
momentos seguintes, não poderíamos nem sequer compreendê-las. De modo que o 
historicismo que cria este afunilamento e refere as idéias aos momentos e situações 
históricas tem de ser compensado por uma operação inversa, uma espécie de 
"desistoricismo", que julgue estas idéias não pelo momento onde surgiram, mas pelo 
que elas exigem e cobram de nós hoje. Isto é válido para a história do mundo como 
para a nossa história pessoal. Lembro-me de uma sentença de Alfred de Vigny, grande 
poeta do Romantismo francês, segundo a qual "uma grande vida é um sonho de 
infância realizado na idade madura". Sim, se o homem maduro já não recorda os seus 
sonhos de infância, ou se, recordando-os, já não sente o apelo da sua mensagem, 
então como ele irá julgar e compreender a trajetória da sua vida, exceto como uma 
sucessão de imagens que, não tendo sentido umas para as outras, não formam, juntas, 
sentido nenhum? Um outro grande escritor, Georges Bernanos, quando lhe 
perguntaram para quem escrevia, respondeu: "Para o menino que fui." O menino é o 
juiz do homem, porque aquilo que vem depois é a realização, ou o fracasso, das 
expectativas e sonhos de antes. 
Ora, se julgarmos a nossa personalidade de hoje à luz das nossas aspirações de infância 
ou de juventude, freqüentemente o resultado deste julgamento será negativo. Neste 
sentido, o historicismo é uma espécie de analgésico da consciência, porque ele nos 
dispensa de prestar satisfações às nossas idéias e projetos antigos, ele secciona a vida 
de tal modo que ela perde a unidade. Ora, o sentido dos meus atos e da minha vida 
agora só existe se eu os confrontar com os meus sonhos e projetos do passado. Porque 
você só pode entender aonde chegou se comparar com aonde queria ir. 
Na sua maneira de compreender o pensamento antigo, a maior parte das pessoas 
ainda está hoje sob o domínio do historicismo. Ou seja, hoje compreendemos 
muitíssimo bem as idéias de Aristóteles ou de Platão, em função de seu momento e 
lugar de origem. Mas ainda não realizamos a operação desistoricista, que nos levaria a 
compreendê-los em função daquilo que eles têm a dizer, não para os gregos, mas para 
todos os homens, inclusive nós. Conseguimos julgar as suas idéias em função do ponto 
onde viemos parar, mas ainda não fizemos a operação contrária que é a de julgar a nós 
mesmos em função de Platão e Aristóteles, ou da antiguidade em geral. Fazemos do 
nosso tempo o juiz da Antiguidade e jamais convocamos a Antiguidade a depor sobre o 
nosso tempo. Julgamos, como dizia Karl Kraus, para não sermos julgados. Para corrigir 
isso, devemos desligar-nos da perspectiva unilateramente temporal e evolutiva, e, 
invertendo o historicismo, julgar o presente com os critérios do passado. 
Esta operação de vai-e-volta foi realizada, por exemplo, em outro sentido —- não 
temporal, mas espacial —-, na ciência da antropologia. A antropologia começa a surgir 
no século passado com os viajantes, sobretudo ingleses. Inglês tem esta mania de 
 Olavo de Carvalho 
 25 
viajar e se instalar em tudo que é lugar exótico do mundo. Os ingleses vão 
desenvolvendo a antropologia na medida em que mandam para a Sociedade Científica 
de Londres informações sobre os hábitos, costumes, valores de todas as sociedades do 
mundo. Graças a este imenso acúmulo de informações sobre as outras sociedades foi 
possível de surgir no campo da antropologia o relativismo antropológico. Isto significa 
que não devemos olhar as outras culturas somente com os olhos da nossa, mas tentar 
fazer o contrário: olhar-nos também com os olhos da outra cultura. Se o antropólogo 
inglês está entre os pigmeus da Nova Guiné, não interessa só o que o inglês pensa 
sobre eles, mas o que eles pensam do inglês. Isto se chamou relativismo 
antropológico. Também não deve ser absolutizado, transformado num dogma da 
equivalência de todos os valores, mas é um método útil, porque ajuda a compreender 
os outros povos nos seus próprios termos. 
O nosso historicismo precisa ser compensado por uma espécie de relativismo, não no 
sentido geográfico, como fizeram os antropólogos, mas no sentido temporal, de olhar 
o nosso tempo com os olhos de outros tempos. Se existe um relativismo cultural, tem 
de existir um relativismo histórico também. O próprio historicismo realiza uma 
relativização, mas no sentido de encaixar cada idéia no "seu tempo" e fazer uma 
coleção de "idéias-tempo", cada qual no seu vidrinho cronológico, bem fechadinha e 
sem contaminação de outros tempos, isto é, todas igualmente neutralizadas e 
"relativizadas". Mas, como este tipo de relativismo neutralizante é próprio do nosso 
tempo e resulta de uma ideologia cientificista que é bem da modernidade, praticá-lo é 
impor uma perspectiva moderna aos outros tempos, fingindo respeitá-los nas suas 
respectivas especificidades estanques. Não é isto o que proponho. Proponho julgar o 
nosso tempo com os olhos de outras épocas, não a título de diletantismo relativista, 
mas como um meio de autoconhecimento e uma exigência prévia do método científico 
em história. Neste sentido, a antropologia, que muitas vezes, com base em valores de 
outras culturas, fez críticas profundas à nossa cultura presente, tem sido mais sensata 
do que a História, ou pelo menos do que a História do pensamento, onde os valores do 
presente continuam a medida de todas as coisas. 
Se achamos que para ter uma descrição objetiva de uma outra cultura precisamos 
olhar com uma espécie de dupla via, do nosso ponto de vista e do ponto de vista dela, 
é evidente que o julgamento de uma outra época implica também esta dupla via. Não 
olhar apenas o lugar que Platão e Aristóteles ocupam dentro de uma evolução cultural 
que chegou até nós, mas inverter esta evolução e perguntar o que Platão e Aristóteles 
diriam vendo o ponto a que chegamos. Esta é uma exigênciasine qua non do método 
científico. A esta fase, os estudos sobre a antiguidade ainda não chegaram. Anuncio 
isto como ideal futuro. Por enquanto, a quase totalidade dos livros conseguiu apenas 
reconstituir o mundo grego, situando-o na perspectiva do seu tempo. Mas na mesma 
medida em que se aperfeiçoa esta visão histórica, esse mundo grego vai-se tornando 
distante e diferente do nosso, e com isto ele perde gravidade, presença, realidade. É o 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 26 
mesmo que dizer: "Que importância tem a opinião sobre você de um sujeito que mora 
longe, que você nunca encontrou, e ademais já morreu há muito tempo?" Agora, se o 
fantasma deste sujeito ressurgir e começar a julgar os seus atos neste momento, ele 
ganha atualidade, adquire gravidade. As outras culturas — culturas indígenas, por 
exemplo — ganharam da antropologia este privilégio de poderem julgar a nossa 
cultura. As consequências práticas disto foram imensas, como se vê pelo crescimento 
do movimento indigenista e pela incorporação de valores indígenas na cultura atual. 
Por que este privilégio deveria ser concedido apenas no sentido geográfico, e não no 
sentido histórico? É simples: por que então certas idéias e valores que decretamos 
"ultrapassados" mostrariam todo o seu vigor, todo o esplendor da sua juventude 
imperecível, e cobrariam de nós um dever de perfeição a que o historicismo nos ajuda 
a fugir. 
O método filológico da compreensão dos textos só se tornará completo e perfeito 
quando à perspectiva historicista acrescentarmos este giro desistoricista. Ou seja, 
quando o afunilamento que remete o passado para longe for invertido e colocarmos 
diante de nós esses antigos, como nossos juízes. 
Esta será nossapreocupação permanente neste curso. Não entender somente 
Aristóteles como um fenômeno que aconteceu há 2.400 anos, mas olhar a nós mesmos 
como um fenômeno que aconteceu 2.400 anos depois de Aristóteles.Como poderíamos 
reviver a perspectiva dos antigos e torná-los nossos juízes? É muito simples. Pela 
mesma maneira pela qual você julga sua vida de adulto em função dos seus projetos 
de criança e adolescente. Você revivifica estes projetos, estes sonhos e pergunta: o 
que a criança que fui diria de mim hoje? E é somente a partir daí que você pode saber 
se sua vida foi um fracasso ou um sucesso. Temos de verificar esta perspectiva dos 
antigos e perguntar: Naquele tempo, o que eles esperavam que acontecesse, ou o que 
desejavam que acontecesse no futuro? Quais eram os sonhos, projetos, ambições e 
valores que eles projetavam nas gerações futuras? Que é que eles esperavam da sua 
posteridade que somos nós? Se sabemos, graças à filologia, à interpretação dos textos 
e ao historicismo, julgar nossos antepassados, podemos, graças a um esforço de 
imaginação fundado no mesmo historicismo, tornar atuais novamente as expectativas 
que os antigos fariam sobre seus descendentes, que somos nós. 
Como Aristóteles 
julgaria a nossa visão 
do aristotelismo? 
Às vezes penso que se Aristóteles visse que, 2.400 anos depois dele, ainda estamos 
lutando para ver se conseguimos organizar as ciências num sistema orgânico, que 
ainda estamos discutindo "holismo", ele acharia que somos muito lerdos e atrasados. 
Ele diria: "Por que se afastaram tanto desta idéia para ter de voltar a discuti-la 2400 
anos depois?" Aristóteles provavelmente apreciaria muito as obras de Edgar Morin, 
 Olavo de Carvalho 
 27 
mas estranharia que tivessem sido escritas só no século XX, e não no II ou III. 
Aristóteles provavelmente julgaria que o progresso na história das idéias é muito 
tortuoso, muito lento e muito problemático. 
Também creio que ele ficaria muito surpreso com a maior parte dos debates que 
surgiram em torno dele ao longo da História. Ele diria talvez: "Nenhum desses que 
vocês estão discutindo sou eu. Todos estes Aristóteles que vocês discutiram são sua 
própria invenção, uma sucessão de Aristóteles imaginários, uns diferentes dos outros, 
nos quais uns projetam o seu herói e outros o seu antagonista. Uns o divinizam e 
outros o diabolizam. E ficam lutando com estas sombras. Mas eu não tenho 
rigorosamente nada a ver com isto. Não sou nem cristão nem anticristão, nem 
racionalista nem empirista, nem materialista nem idealista, não sou nem um pré-Hegel 
nem um neo-Platão, nem um anti-isto nem um pró-aquilo, e nada tenho contra nem a 
favor dos partidos que surgiram depois de mim. Sou apenas um homem de ciência 
buscando compreender o real e esperando que meus sucessores façam o mesmo com 
igual empenho." 
Por isto mesmo, concebi este curso e achei que, para chegarmos ao Aristóteles real, de 
carne e osso, para presentificá-lo de alguma maneira, temos de partir do exame dos 
Aristóteles imaginários. Algumas das próximas aulas analisarão as "imagens de 
Aristóteles". Imagens não são Aristóteles, mas o que cada época pensou que 
Aristóteles fosse, e as discussões que estabeleceu com este estereótipo, o qual 
coincide em parte com o Aristóteles real, mas em parte se afasta dele. Hoje podemos 
ter toda esta perspectiva graças à imensa documentação acumulada, graças aos 
prodígios da ciência histórica e filológica que nos coloca à disposição um imenso 
material (ver Documentos Auxiliares II ). Nosso estudo vai começar como uma 
investigação dos equívocos humanos. No mundo da filosofia e da ciência também 
impera, muitas vezes a fantasia, a ignorância, a imaginação projetiva, e isto nos obriga 
a começar o nosso estudo aristotélico com uma espécie de psicanálise das imagens de 
Aristóteles. Só isto nos dará uma idéia aproximada das relações que temos e das que 
podemos ter com ele hoje. 
Na medida em que Platão e Aristóteles formam uma espécie de paternidade da 
civilização ocidental, é natural ainda que esta civilização faça sobre eles todas as 
projeções edípicas a que a neurose tem direito. Muitas vezes, na luta pela auto-
afirmação, o homem acredita dever exorcizar a imagem paterna que no seu entender 
limita, restringe etc. etc. Lutas contra a imagem paterna são algo em que todo mundo 
se envolve numa certa etapa da vida. Mas um dia essa etapa chega ao fim, e você tem 
de entrar num acordo com a imagem paterna, absorvendo os seus valores positivos e 
perdoando, com bondade, os negativos. No entanto, nossa civilização ocidental 
prosseguiu neste conflito edípico com Platão e Aristóteles, e principalmente com 
 Pensamento e Atualidade de Aristóteles 
 28 
Aristóteles, até pelo menos o século XIX. Não sei se ainda estamos nele, mas me 
parece que hoje em dia a tendência é para uma atitude mais compreensiva. 
Alguns exemplos de imagens mutiladas, frutos do do desconforto permanente —- ou 
cíclico —- que Aristóteles causa há dois milênios: 
1. Na Igreja Ortodoxa Russa, Platão e Aristóteles foram tidos —- e em certas 
circunstâncias ainda são —- como dois verdadeiros demônios. Sua leitura é 
considerada prejudicial para a salvação das almas — hoje. A Igreja Russa surge 
no século VIII; são doze séculos de preconceitos. 
2. No mundo islâmico, existem algumas correntes esotéricas que consideram 
Platão e Aristóteles como profetas e até mesmo como anjos do Senhor — algo 
assim como uma dupla de Hermes Trimegistos, descidos ao mundo para trazer 
uma revelação. Uma outra corrente os olha mais ou menos como a Igreja 
Russa. 
3. No Ocidente cristão, as primeiras reações contra Platão e Aristóteles foram do 
mais incompreensivo desprezo. Alguns, como Tertuliano, logo identificaram a 
filosofia grega como a "sabedoria mundana" de que fala a Bíblia. Os mais 
moderados, como Clemente de Alexandria, aceitaram a filosofia como uma 
introdução ao cristianismo, mas nada além disto. 
4. Enquanto isso, no lado pagão, a escola epicúrea, mesmo depois da edição dos 
textos de Aristóteles por Andrônico de Rodes, continuava a difundir, com 
mecânico servilismo, as opiniões de seu fundador a respeito de Aristóteles, 
baseadas apenas nos escritos publicados em vida do autor e de natureza 
puramente literária. 
5. Após a edição de Andrônico, os escritos de Aristóteles desapareceram do 
Ocidente pela segunda vez, só retornando dez séculos depois, por intermédio 
de traduções latinas feitas de versões árabes ( vocês podem imaginar com 
quantos erros, saltos e interpolações ). 
6. Divulgados em tradução latina, os escritos de Aristóteles causaram escândalo, 
porque pareciam contrariar de frente os dogmas cristãos. Muitas teses de 
Aristóteles foram formalmente condenadas pelos concílios, antes mesmo que 
alguém se desse o trabalho de procurar assegurar-se do sentido dos textos. 
7. Foi só com Sto. Alberto e Sto. Tomás, já no século XII, que a Igreja, muito 
cautelosamente, se reconciliou com Aristóteles. É um casamento que vem 
durando quase oito séculos, com alguns percalços. Esta reconciliação, longe de 
ser aceita unanimemente logo após formalizada, continuou sendo combatida e 
discutida dentro da própria Igreja até o século XIX. Hoje em dia todos sabem 
 Olavo de Carvalho 
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que Sto. Tomás de Aquino é um discípulo e um seguidor cristão de Aristóteles. 
Todos vêem o império que Santo Tomás de Aquino exerce sobre o pensamento 
cristão e imaginam ingenuamente que as coisas sempre foram assim. Mas a 
posição de que Santo Tomás de Aquino desfruta hoje dentro da Igreja só foi 
estabelecida no século XIX, meia dúzia de séculos depois de sua morte. Mesmo 
assim, muitos somente o aceitaram porque o Papa mandou. O famoso

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