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Capitalismo e esquizofrenia -- Vladimir Safatle

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Capitalismo e esquizofrenia
Aula 1
Esta colaboração não é o resultado de um simples encontro entre dois indivíduos. Para além do concurso das circunstâncias, há também todo um contexto político que nos conduziu a ela. Na origem, tratou-se menos da apresentação em comum de um saber que de um certo desnorteamento diante da guinada que tomaram os acontecimentos após maio de 68. Fazemos parte de uma geração cuja consciência política nasceu do entusiasmo e da ingenuidade da Liberação, com sua mitologia conjuratória do fascismo. E as questões deixadas em suspenso por esta outra revolução abortada que foi maio de 68 se desenvolveram para nós segundo um contraponto tão preocupante que nós nos inquietamos, como várias outras pessoas, das alvoradas que nos preparam e que poderiam cantar hinos de um fascismo nova roupagem que nos levaria a ter saudades do fascismo dos velhos tempos. Nosso ponto de partida consistiu em considerar que, em um momento crucial, algo da ordem do desejo manifestou-se à escala de toda a sociedade para em seguida ser reprimido, liquidado, tanto por forças do poder quanto por partidos e sindicatos ditos operários e, até certo ponto, pelas próprias organizações esquerdistas�.
É assim que Félix Guattari apresentou O anti-Édipo em um debate organizado pela Quinzaine littéraire, em 1972. Dificilmente poderíamos ser mais claros a respeito do que produziu não apenas este livro decisivo para a filosofia contemporânea, mas todo o projeto intitulado “Capitalismo e esquizofrenia” com seus dois volumes. Segundo Guattari, trata-se de pensar porque, diante das possibilidades de transformação postas pelas revoltas de maio de 68, algo pareceu se quebrar. Da revolta, aparece um desnorteamento provocado pelos acontecimentos que se seguiram a maio de 68, um conjunto de promessas que parecem não se realizar. Como se maio de 68 fosse uma latência na vida social que deveria ser fechada o mais rápido possível, tanto pelas forças do poder quanto por partidos e sindicatos ditos operários e pelas próprias organizações esquerdistas. 
De certa forma, a primeira questão que mobiliza o projeto de Deleuze e Guattari é um questão de prática política: como se aborta uma revolução? Seria o caso de fazer análises sociológicas sobre os conflitos no interior dos grupos que mobilizaram maio de 68, suas fragmentações e equívocos estratégicos? Ou seja, há de se compreender tal aborto como o resultado de escolhas políticas equivocadas, cálculos de circunstância errados? Ou seria o caso de ir em direção a outro nível de análise, um nível mais elementar que procura compreender a dificuldade na constituição de sujeitos políticos capazes de sustentar processos de transformação? Nível este que deve começar com uma crítica dos modelos hegemônicos de subjetividade com seus aparelhos sociais de reprodução internalizados como um sistema de repressões e limitações que parece nos paralisar diante de acontecimentos com forte potencial emancipador? 
 Questões desta natureza parecem naturalmente procurar articular os campos da psicologia e da política. A sua maneira, elas parecem inicialmente ser uma revivescência de estratégias críticas que já teriam sido colocadas em circulação no século XX, em especial à ocasião de pesquisas feitas nos anos trinta a respeito da psicologia do fascismo. Lembremos, por exemplo, do clássico A psicologia de massas do fascismo, de Wilheim Reich ou dos estudos da primeira geração da Escola de Frankfurt sobre a estrutura psicológica dos operários que aderiram ao nazismo (como, por exemplo, “Operários e empregados na aurora do Terceiro Reich”, de Erich Fromm), sobre a economia psíquica do fascismo (como “Psicologia das massas e o padrão da propaganda fascista”, de Adorno) ou sobre a dinâmica libidinal do processo civilizatório que desembocará na modernidade capitalista (como Eros e civilização, de Marcuse, ou ainda o seu O homem unidimensional). Todos estes trabalhos procuravam compreender, a partir da análise da economia libidinal dos sujeitos, a forma com que a paralisia diante das possibilidades de uma revolução operária estava enraizada nos regimes de constituição da vida psíquica. Todos eles, à sua maneira, viam o fascismo não apenas como um regime político, mas como a consequência necessária de um modo de constituição da vida psíquica. O fascismo seria, inicialmente, um modo de funcionamento da vida psíquica. Por isto, tais trabalhos procuravam compreender como a própria constituição da vida psíquica, com suas dinâmicas de identificação, com suas modalidades de organização de conflitos, com seus sistemas de repressão pulsional era, na verdade, o fundamento de formas de sujeição social. Daí a ideia de que não haveria transformação política possível que não começasse por partir da crítica à sujeição que dá forma à vida psíquica. 
Mas havia algo mais no projeto de Deleuze e Guattari e que faz de “Capitalismo e esquizofrenia” uma experiência intelectual única. Lembremos desta afirmação de Guattari: “em um momento crucial, algo da ordem do desejo se manifestou”. Ele deixa claro um dos pressupostos maiores do projeto Capitalismo e esquizofrenia, a saber, a ideia de que uma teoria do desejo é, necessariamente, uma teoria dos modos sociais de produção e que, por consequência, uma teoria da transformação dos modos sociais de produção só pode ser uma teoria da transformação do desejo. Um marxista clássico torceria o nariz a tal colocação, lembrando que a teoria dos modos de produção deve ser compreendida como expressão dos regimes sociais de trabalho. De fato, de certa forma, Deleuze e Guattari operam uma substituição da centralidade da categoria de trabalho ao proporem a centralidade da categoria de desejo. Como dirá Guattari em conceitualização marxista, o desejo não deve ser considerado como uma superestrutura subjetiva, mas como elemento fundador da infraestrutura. Isto a ponto de Deleuze e Guattari afirmarem, por exemplo:
Na verdade, a produção social é unicamente a própria produção desejante em condições determinadas (...) Só há desejo e social, nada mais. Mesmo as formas as mais repressivas e mais mortíferas de reprodução social são produzidas pelo desejo, a partir da organização que deriva de tal ou tal condição que devemos analisar (...) Não, as massas não foram enganadas, em certo momento elas desejaram o fascismo e é isto que se trata de explicar, esta perversão do desejo gregário�. 
De fato, não é possível explicar a racionalidade de um sistema econômico e político se não formos capazes de explicar como se constrói a adesão psicológica a suas injunções e premissas. Esta ideia está presente desde o momento em que Max Weber lembrava ser impossível compreender o capitalismo sem partir do ethos que ele exige com seus regimes específicos de vontade e de auto-controle, sem partir da ética protestante na qual ele se sustenta e que ele perpetua, ao menos durante sua primeira fase. Podemos dizer que é uma intuição semelhante que levam Deleuze e Guattari a defender a necessidade de afirmar que todo modo de produção social é, basicamente, um modo de inscrição social do desejo, isto a ponto de afirmarem que só há desejo e social, nada mais. 
No entanto, Deleuze e Guattari dizem ainda algo a mais. Pois não há regime de sujeição que seja baseado na pura e simples coerção, não há dominação que seja apenas uma questão de submissão pela força. A sua maneira, toda sujeição é também uma captura do desejo. Daí a necessidade de afirmar: não, as massas não foram enganadas. Em certo momento elas desejaram o fascismo e este é o verdadeiro desafio: compreender como se deseja o fascismo, quais são os afetos que nos mobilizam a tal desejo, como eles são produzidos para que eles possam ser desativados. Trata-se então de fazer a crítica de modalidades de inscrição social do desejo que bloqueiam algo que poderíamos chamar, se quisermos, de potencial emancipatório. 
Neste sentido, o projeto “Capitalismo e esquizofrenia” é uma peculiar crítica da antropologia filosófica baseada na categoria de desejo,crítica construída com o objetivo de fornecer a genealogia dos múltiplos processos de alienação social. Uma genealogia que não teme apelar, entre outros, a procedimento clássicos da filosofia social, como uma filosofia da história constituída, neste caso, a partir dos desdobramentos da forma-Estado e que visa construir, ao menos segundo as palavras de Pierre Clastres: “uma teoria geral da sociedade e das sociedades”. Por isto, podemos dizer que o eixo fundamental do projeto de Deleuze e Guattari pode ser descrito da seguinte forma: articular a crítica da economia política a uma crítica da antropologia filosófica do desejo. Como dirá Deleuze: “É pois a economia política enquanto tal, a economia dos fluxos, que é inconscientemente libidinal: não há duas economias; o desejo ou a libido são apenas a subjetividade da economia política”�. Maneira de mostrar como a economia política própria ao capitalismo, com seus processos de racionalização, é indissociável da procura em dar realidade social a um conceito de agente cuja compreensão exige a análise de seus modos de desejar, fundamento maior de seus modos de ser.
Neste ponto, encontra-se uma de suas operações filosoficamente mais surpreendentes do projeto. Deleuze e Guattari mobilizam uma forte crítica a uma certa compreensão filosófica do desejo que aproximaria nomes como Platão, Hegel e, principalmente, a psicanálise (cuja metapsicologia seria fortemente dependente de certa tradição filosófica), isto a fim de afirmar que tal compreensão filosófica forneceria o horizonte normativo dos modos de socialização no interior do capitalismo avançado. Como se o capitalismo fosse dependente de uma certa metafísica, como se ele fosse, à sua maneira, a realização social de uma certa metafísica. Por fim, como se sua crítica só pudesse ser, ao mesmo tempo, a crítica de uma metafísica pretensamente hegemônica no pensamento ocidental. Maneira de submeter a economia política do capitalismo a uma crítica da metafísica ocidental, de afirmar que, de certa forma, o capitalismo é uma metafísica materializada em processos de racionalização social. 
Contra tal compreensão metafísica do desejo, faz-se necessário contrapô-la a uma outra, construída principalmente através do acoplamento dos conceitos de conatus, em Spinoza e de potência (Macht), em Nietzsche. Dois filósofos aparentemente marginais à constituição hegemônica do pensamento ocidental. Faz-se necessário ainda acoplar tal reflexão filosófica aos conceitos produzidos pelas práticas de tratamento da psicose colocadas em circulação na Clínica de La Borde, da qual Guattari fazia parte. A seu ver, este embate ao mesmo tempo filosófico e clínico é, no fundo, estratégia necessária para fazer a crítica não apenas de um ontologia do desejo, mas de toda uma política que, por pensar processos de organização apenas a partir das figuras do partido e do Estado, não sabe o que fazer quando o desejo aparece, em acontecimentos com forte potencial de ruptura, para além das figuras de sua alienação. Por isto, “Capitalismo e esquizofrenia” não é apenas um projeto crítico, mas é uma proposição de refundação dos campos da clínica e da política, uma tentativa de fornecer a teoria que, de certa forma, teria faltado a maio de 68, a teoria que o acontecimento seria capaz de produzir. Pois:
Se é verdade que a revolução social é inseparável de uma revolução do desejo, então a questão se desloca: sob quais condições a vanguarda revolucionária poderá se liberar de sua cumplicidade inconsciente com as estruturas repressivas e desativar as manipulações do desejo das massas pelo poder, manipulações que as fazem: ‘combater pela sua servidão com se estivessem a combater pela sua salvação’?� 
Três recusas
Deleuze e Guattari encontraram-se pela primeira vez em 1969. O primeiro era reconhecido como um filósofo universitário exemplar, responsável por monografias originais a respeito de filósofos tratados à margem do cânone da filosofia universitária francesa: Hume, Bergson, Nietzsche, Spinoza, além de livros sobre escritores como Proust e Sacher-Masoch. No momento do encontro, Deleuze acabara de defender sua tese de doutorado, intitulada Diferença e repetição, sob a orientação de Maurice de Gandillac. Pela primeira vez, ele publicara dois livros que não eram expressão do clássico figurino da dissertação francesa, a saber, sua tese e Lógica do Sentido. Neles, havia a tentativa de fazer a crítica à imagem do pensamento que se colocara de forma hegemônica na filosofia ocidental. Imagem ligada ao primado da identidade, da representação da compreensão da diferença como oposição, entre outros. Mas nada indicava até então que se preparava uma inflexão profunda em direção à teoria política e à crítica do capitalismo. 
	Já Guattari não era um universitário mas, ao mesmo tempo, um militante político com larga passagem por movimentos de esquerda (ele chegou mesmo a participar de Brigadas de trabalho voluntário na antiga Iugoslávia), e um psicanalista profundamente vinculado à Escola Freudiana de Psicanálise, analisando de Jacques Lacan durante uma década, envolto em um prática clínica com psicose ligada a experiências de análise institucional. Embora operando com conceitos originais, como transversalidade e inconsciente maquínico, Guattari não escrevera praticamente nada até então. 
	O que permitiu a conjunção de duas personalidades aparentemente tão distantes foi, ao menos segundo suas perspectivas, a limitação intelectual para pensar as potencialidades abertas por maio de 68. Naquele momento histórico, três experiências intelectuais constituíam o horizonte do pensamento francês: o estruturalismo, o marxismo e a psicanálise. A sua maneira, “Capitalismo e esquizofrenia” é um acerto de contas com as três e por isto começaremos nosso curso analisando o estado destas três experiências na França do final dos anos sessenta. 
	Em plena ebulição de maio de 68 aparece uma pixação nas ruas de Paris: “As estruturas não descem as ruas”. Esta era uma maneira de dizer que e estruturalismo seria incapaz de pensar acontecimentos. Deleuze compreende o estruturalismo de outra forma, mas é fato que o projeto “Capitalismo e esquizofrenia” procurará abrir um caminho no interior de uma antropologia distante daquela defendida por Lévi-Strauss com sua reflexão sobre sistemas de trocas e de uma linguística que não será compatível com aquela derivada de Saussure e de sua compreensão da línguagem como um sistema diferencial-opositivo de fonemas. Há um risco funcionalista e sistémico no estruturalismo do qual Deleuze e Guattari querem se afastar. 
	Por outro lado, haverá uma relação turbulenta entre o projeto de Deleuze e Guattari e o marxismo. Como veremos, várias temáticas e estratégias marxistas serão incorporadas no modelo crítico de Deleuze e Guattari, desde o conceito de modo de produção ao conceito de proletariado, mas isto não impedirá que teóricos ligados ao marxismo denunciem o modelo de análise de Deleuze e Guattari como um tematização involuntária da força de desterritorialização do neo-liberalismo que cortaria a possibilidade de organizar uma verdadeira perspectiva crítica�. De fato, se Deleuze e Guattari ainda guardam várias estratégias de reflexão ligadas à perspectiva de Marx, eles partem da incapacidade da política marxista, com sua estrutura de partidos, sindicatos, Estado ser realmente revolucionária. 
	No entanto, de todos os acertos de contas, o mais espetacular e dramático é com a psicanálise. Basta lembrar como tal acerto está enunciado já no próprio título do primeiro volume do projeto ‘Capitalismo e esquizofrenia”, a saber: O anti-Édipo. O título já diz muito: trata-se partir da crítica deste dispositivo de socialização do desejo que a psicanálise chama de complexo de Édipo, mostrar como um socialização do desejo através do complexo de Édipo aprisiona o desejo no território de um teatro familiar sem fim, limita-o a formas de conflito por oposição, a uma inscrição por representação. Mas trata-se, principalmente, de partir de tal matriz desocialização a fim de lembrar como o modo de socialização no primeiro núcleo de interação social, ou seja, na família, determinará os modos de interação em esferas mais amplas da vida social (as instituições, o Estado, o Capital). A importância dada à psicanálise vem do fato de, ao menos até os anos sessenta, era possível afirmar que as sociedades ocidentais viviam no interior de uma espécie de “cultura psicanalítica”. 
	A psicanálise não é apenas uma prática clínica, mas uma verdadeira cultura que constituiu nossos modos de compreensão de afetos e conflitos. Uma nova gramática dos afetos nasceu com ela, que moldou, de maneira decisiva, a autopercepção do sujeito contemporâneo. Não apenas nossa visão de família, sexualidade, moralidade e corpo são incompreensíveis sem a referência à psicanálise, mas muito de nossa imaginação empresarial, pedagógica, literária e cinematográfica foi marcada pela psicanálise. Assim, se o capitalismo é não apenas um sistema econômico, mas uma forma de vida, há de se perguntar se a psicanálise com sua cultura terapêutica não seria peça importante para a consolidação dos modos de gestão social presentes no capitalismo. 
Por outro lado, ao colocar a reflexão sobre o desejo e seu destino no cerne de uma reflexão sobre o social, Deleuze e Guattari não faziam outra coisa que realizar aquilo que Deleuze havia afirmado em seu primeiro livro, sobre David Hume: “só uma psicologia dos afetos pode constituir a verdadeira ciência do homem”�. O que mostraria a coerência profunda entre o passional e o social. A riqueza de O anti-Édipo está exatamente aqui, no fato de ter realizado o projeto de pensar a natureza dos vínculos entre o pathos e o socius a partir de uma perspectiva de tentativa de renovação da crítica ao capitalismo animada pelos movimentos de maio de 68. 
	Mas voltemos à psicanálise. Durante anos, Deleuze fora um leitor atento da Freud, Melanie Klein, Lacan, Winnicott, entre outros. Durante anos, Guattari foi um membro de primeira hora dos Seminários de Lacan, a ponto de ser chamado por seus colegas mais próximos exatamente de “Lacan”. Sobre Deleuze, basta ver a precisão de um trabalho sobre o masoquismo como Apresentação de Sacher-Masoch, assim como páginas brilhantes dedicadas à reflexão sobre a pulsão de morte em Diferença e repetição e sobre os objetos parciais em Lógica do sentido. No entanto, a partir de O anti-Édipo esta posição de acolhimento da psicanálise se inverte radicalmente. Um trajeto extremamente semelhante acontecerá com Michel Foucault a partir de História da sexualidade e sua recusa do lugar privilegiado da psicanálise em uma episteme por vir, tal como outrora anunciado na última parte de As palavras e as coisas. 
Nos dois casos uma relação inicial de aproximação dará lugar a uma compreensão da psicanálise como fundamento dos processos de reprodução social e de miséria afetiva no capitalismo. No caso de Deleuze, a crítica era clara: a maneira com que a psicanálise procura socializar o desejo produz um desejo marcado pela negatividade, pela perda, pelo conflito, desejo como falta que nos remete, afinal de contas, a Hegel. Toda a moral hegeliana da negatividade estaria presente na clínica psicanalítica graças, principalmente, a Jacques Lacan. Contra isto, uma verdadeira crítica social deveria começar como clínica capaz de produzir um curto-circuito nesta forma de socialização.. Esta seria a função de conceitos como: corpo sem órgão, máquina desejante, inconsciente como fluxo, e tantos outros. Uma clínica que Deleuze e Guatarri chamarão de esquizo-análise. 
A conjunção “Capitalismo e esquizofrenia”
Utilizemos esta primeira aula para tentar compreender o título geral do projeto. O que significa esta conjunção singular entre capitalismo e esquizofrenia? A título operacional, aceitemos que o capitalismo é fundamentalmente um sistema de trocas econômicas e de produção social do valor baseado na entificação da livre concorrência de agentes individuais no mercado. Sistema que, por privilegiar o mercado como espaço social fundamental de interação, tende a organizar todas as esferas sociais de valores a partir da forma-mercadoria. Uma forma que, por sua vez, está fundamentada em noções como: intercambialidade, abstração e quantificação a partir de um padrão geral de cálculo e unidade (o dinheiro ou qualquer outro padrão monetário). Enquanto mercadoria, todo e qualquer objeto ou processo é intercambiável, quantificável (ou seja, submetido a um padrão de contagem) e abstrato (já que seu valor é determinado a partir da idealidade do valor de troca). Sendo assim, enquanto modo extensivo de racionalização social, o capitalismo pediria a construção de uma espécie de sistema geral de relações baseado na submissão da diferença à identidade abstrata do equivalente geral. Foi pensando em processos como este que Theodor Adorno podia afirmar: “A identidade é a forma originária da ideologia”.
	No entanto, dirá Deleuze e Guattari, esta racionalidade não é apenas econômica, mas tende a servir de padrão geral de ordenamento das formas de relação a si. Quando eles afirmam: “Codificar o desejo – e o medo, a angústia dos fluxos descodificados – é a função do socius. O capitalismo é a única máquina social que se construiu como tal sobre fluxos descodificados, substituindo os códigos intrínsecos por uma axiomática de quantidades abstratas em forma de moeda”�, trata-se de insistir que o capitalismo impõe um modo de ser do desejo, que não se deseja da mesma forma dentro e fora do capitalismo, e que este modos de ser do desejo no capitalismo estaria ligado a uma forma de inscrição, de codificação, de submissão do desejo a um código de inteligibilidade vinculado à elevação da identidade abstrata à condição de axiomática�. Com isto, Deleuze e Guattari tendem a compreender a inteligibilidade de processos sociais exclusivamente a partir de problemas vinculados à socialização do desejo e questões de saúde mentais exclusivamente através do impacto das estruturas sociais na vida subjetiva, até porque: “Só há desejo e social, e nada mais”.
	Lembremos que, para quem insistira que a questão filosófica maior consistia em levar às últimas conseqüências a crítica das ilusões da identidade, nada mais natural do que abordar a crítica social a partir da maneira com que a sociedade capitalista produz identidades sociais, submetendo o desejo ao regime de procura pelo idêntico, não apenas identidade em relação a uma experiência originária de satisfação (como no caso de Freud) mas em relação a uma organização identitária de constituição dos objetos do desejo. Não só: o desejo deseja o mesmo; mas também: o desejo deseja identidades e se afasta de tudo o que é des-idêntico.
	Se aceitarmos este diagnóstico social, podemos entender melhor a conjunção capitalismo e esquizofrenia. Tal conjunção deve ser compreendida, ao mesmo tempo, como um limite externo e um processo interno ao capitalismo. Como dirá Guattari: 
Nos pareceu que este dois pólos em sua tangente comum de não sentido tinham uma relação (...) Para dar conta da repressão, da alienação a qual os indivíduos estão submetidos no sistema capitalista, mas também para entender o verdadeiro significado da política de apropriação da mais-valia, devemos articular conceitos que são os mesmos que aqueles aos quais recorremos para interpretar a esquizofrenia�. 
Ou seja, o mesmo tipo de repressão social que o sistema capitalista impõe ao indivíduo pode ser mobilizado para a compreensão do que está em jogo na esquizofrenia.
	Este vocabulário da alienação e da repressão era sintomático. Quem diz alienação diz ter sua essência fora de si, ter seu modo de desejar e de pensar moldado por um outro. Quem diz repressão, diz bloqueio de manifestação de algo anterior à relação com instâncias repressoras. Mas desde Freud sabemos que “toda cultura deve necessariamente se edificar sobre a repressão e a renúncia pulsional”, que toda socialização é alienação, já que a socialização seria um processo é fundamentalmente repressivo por exigira conformação a padrões gerais de conduta. Para Freud, há algo anterior aos processos de socialização, algo que não é ainda um Eu, mas é um corpo libidinal polimorfo e inconsistente. Isto nos explica porque os processos de socialização tendem a se impor através da repressão do corpo libidinal, da culpabilização de toda exigência de satisfação irrestrita.
	Deleuze e Guattari aceitam este esquema, mas para afirmar que o corpo libidinal freudiano é aquilo que só pode ser pensado de maneira adequada através do conceito de “corpo sem órgãos”, sem dúvida o conceito mais importante da primeira parte do projeto “Capitalismo e esquizofrenia”. E se haveria uma posição existencial que nos permitiria pensar o que é anterior aos processos de alienação e repressão, esta posição seria a esquizofrenia.
	Lembremos aqui de alguns traços gerais da esquizofrenia. Enquanto estrutura nosográfica, ela advém da antiga demência precoce, compreendida, entre outros, como “imobilização súbita de todas as faculdades”. Foucault chegava a afirmar: “A demência é de todas as doenças do espírito, aquela que permanece a mais próxima da essência da loucura. Mas da loucura em geral – da loucura experimentada em tudo o que ela pode ter de negativo, de desordem, decomposição do pensamento, erro, ilusão, não razão e não verdade”�. Bleuler cunha o termo “esquizofrenia” para insistir no caráter de esquize, de divisão (Spaltung) das faculdades mentais que não podem mais se submeter ao poder regulador da síntese consciente, da instância superior e diretiva da personalidade. A esquizofrenia aparecia para Bleuler como desaparecimento de uma representação-meta capaz de dirigir a estrutura associativa do pensamento lógico: “Nessas condições, o conjunto das operações psicológicas ficava abandonado à ação dos complexos e o sujeito parecia viver quase que permanentemente um estado análogo à associação livre, ao devaneio ou ao sonho, ao desaparecimento voluntário ou fisiológico da ação diretiva do eu e da consciência sobre o funcionamento da psiquê”�. Desta forma, na esquizofrenia o desejo não consegue mais constituir objetos coerentes ou mesmo ser enunciado em uma linguagem articulada, sustentar condutas próprias a uma personalidade, usar a linguagem própria a um psiquismo que saberia se orientar no espaço e no tempo. Ainda hoje, a esquizofrenia está ligada a “disfunções cognitivas e emocionais” que acometem a percepção, o raciocínio, a linguagem, a comunicação, o afeto, a atenção, ou seja, funções e faculdades mentais que não se submetem mais à estrutura diretiva das condutas e da personalidade própria a um Eu. Seus principais sintomas são: delírios, alucinações, desorganização da fala, além da possibilidade de comportamento desorganizado ou catatônico e sintomas negativos (avolição, alogia, anhedonia etc.).
	Deleuze e Guattari lembram como a esquizofrenia mobiliza três conceitos: a dissociação (Kraepelin), o autismo (Bleuler) e as modificações espaço-temporais (Binswanger). Estes três conceitos reportam o problema da esquizofrenia à distúrbios de síntese do eu: “Dir-se-á que o esquizo não tem mais Eu e que é necessário lhe devolver esta função sagrada de enunciação”�. Mas, no fundo, Deleuze e Guattari querem mostrar que esta dissociação, esta ausência de princípio de unidade na esquizofrenia estaria ligada à manifestação de um corpo libidinal anterior aos processos de alienação e repressão. Ao se deixar pautar pela lógica de organização deste corpo libidinal, o desejo só poderia encontrar inscrição como aquilo que não se inscreve mais no modo de determinação social hegemônico em nossas sociedades capitalistas. Daí porque Deleuze e Guattari podem dizer: 
O que reduz o esquizofrênico à sua figura autista, hospitalizada, cortada da realidade? É o processo [próprio ao regime do desejo na esquizofrenia] ou , ao contrário, a interrupção do processo, sua exasperação, sua continuação no vazio? O que força o esquizofrênico a se redobrar sobre seu corpo sem órgãos agora surdo, cego e mudo?�.
	Neste sentido, a articulação “Capitalismo e esquizofrenia” significaria uma contraposição através da qual o capitalismo encontraria seu limite na exigência de retorno ao fluxo não-identitário do desejo que pulsa na esquizofrenia. No entanto, a articulação significa também uma certa sobreposição. Pois o capitalismo não se contenta em codificar o desejo, ele também o desterritorializa com suas exigências cada vez mais forte de flexibilização das identidades: 
O capitalismo tende em direção a um limiar de descodificação que desfaz o socius em prol de um corpo sem órgãos e que, sobre este corpo, libera o fluxo do desejo em um fluxo desterritorializado (...) A descodificação dos fluxos, a desterritorialização do socius formam assim a tendência mais essencial do capitalismo. Ele não cessa de apropriar-se de seu limite, que é um limite propriamente esquizofrênico. Ele tende com todas as suas forças a produzir o esquizo como o sujeito dos fluxos descodificados sobre o corpo sem órgãos (...) O capitalismo, no seu processo de produção, produz uma formidável carga esquizofrênica sobre a qual ele deve impor todo o peso de sua repressão, mas ele não cessa de reproduzi-la como limite do processo�. 
No fundo, não estamos longe de Marx afirmando, em trechos célebres do Manifesto Comunista a potência revolucionária da burguesia: 
A burguesia não pode existir sem revolucionar de modo permanente os meios de produção e, por conseguinte, as relações de produção – e, com elas, todas as relações sociais. Ao contrário, a conservação do antigo modo de produção constituía a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. A revolução contínua da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a eterna agitação e a incerteza distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Suprimem-se todas as relações fixas, cristalizadas, com seu cortejo de preconceitos e ideias antigas e veneradas; antes mesmo de se consolidar. Tudo que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado. 
No caso de Marx, a burguesia aparecerá como uma espécie de agente involuntário da história. Ela: “assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou”�, ela “produz seus próprios coveiros”�. Ou seja, sua ação é contraditória no sentido de ter por efeito necessário a destruição do próprio princípio que a gere. Contradição porque, no processo de auto-realização de si, a burguesia produz uma figura que lhe será oposta e que lhe destruirá, a saber, o proletariado. Assim, a burguesia é o local no qual se realiza uma impressionante operação de auto-negação que não é apenas a auto-negação dos interesses de uma classe, mas a auto-negação da própria “produção da vida” vigente até agora com suas relações entre sujeitos, entre sociedade e natureza, entre o sujeito e si mesmo. Podemos nos perguntar se algo deste esquema não subsistirá no projeto “Capitalismo e esquizofrenia” mas agora com outros atores.
� GUATTARI, Félix in DELEUZE, Gilles; L’île déserte, Paris: Minuit, pp. 301-302
� DELEUZE e GUATTARI; L’anti-OEdipe, pp. 36-37
� DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 274
� DELEUZE, Gilles; L’île déserte, p. 304
� Ver, por exemplo, ZIZEK, Slavoj: Organs without bodies, VANDERBERGHE, Frédéric; Deleuzean capitalism
� DELEUZE, Empirisme et subjectivité, p. 1
� DELEUZE e GUATTARI, L´anti-OEdipe, p. 163
� Lembremos a este respeito da afirmação de Deleuze, para quem: “A verdadeira história é a história do desejo. Um capitalista, um tecnocrata de hoje não desejam da mesma forma que um mercador de escravos ou que um funcionário do antigo império chinês” (DELEUZE, Gilles; L’île désert, p. 366)
� DELEUZE, L’île deserte, p. 325
� FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 320
� BECHERIE, Os fundamentos da clínica, p. 232
� DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 30
� DELEUZE e GUATTARI, idem, p. 105
� idem, p. 42
� Idem, p. 45
� Idem, p. 51

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