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Capitalismo e esquizofrenia Aula 03

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Capitalismo e esquizofrenia
Aula 3
Na aula de hoje, gostaria de falar sobre a influência da psicanálise no cenário psicanalítico francês, em especial aquela vinculada à experiência intelectual de Jacques Lacan. Tal discussão é fundamental se quisermos compreender melhor a natureza das estratégias e problemáticas adotadas por Deleuze e Guattari, especialmente em O anti-Édipo. Em certo sentido, o livro se insere em um longa tradição de recurso filosófico à psicanálise que marcará um dos eixos da especificidade da filosofia francesa no século XX. 
	De fato, a relação entre filosofia e psicanálise na França obedece a dois eixos principais. Primeiro, temos a maneira com que a reflexão filosófica será marcada pela experiência psicanalítica. Lembremos, inicialmente, como a fenomenologia francesa, de Sartre e Merleau-Ponty, tem uma diálogo fundamental com a psicanálise, seja através das críticas de Sartre ao conceito freudiano de inconsciente a fim de construir uma “psicanálise existencial”, seja através do recurso à psicanálise feito por Merleau-Ponty a fim de construir uma antropologia filosófica. Este movimento será complexificado com o aparecimento de Jacques Lacan, o psicanalista que mais claramente aproximou conceitos psicanalíticos de problemas próprios ao campo da filosofia. Assim, seu conceito de desejo será construído através de aportes fundamentais vindos do hegelianismo. Haverá uma “dialética do desejo”. A transferência será discutida através de um comentário de O banquete, de Platão. Seu conceito de sujeito será forjado no diálogo contínuo e explícito com Hegel, Descartes, Heidegger. 
	Esta aproximação entre clínica do sofrimento psíquico e problemas da tradição filosófica fará com que toda a geração de filosófos que aparecerá a partir dos anos sessenta na França tenha alguma forma de relação decisiva com a psicanálise. Deleuze, Foucault, Derrida, Lyotard serão impulsionados por um momento de proximidade e distância com o pensamento psicanalítico. 
	Antes de discutir a natureza deste movimento, faz-se necessário, no entanto, contextualizar o que está realmente em jogo aqui. Isto nos auxiliará na compreensão do caminho empreendido por Deleuze e Guattari em direção ao projeto “Capitalismo e esquizofrenia”. Neste sentido, lembremos como algumas das correntes mais relevantes da filosofia do século XX assumiram para si a tarefa de fornecer quadros de reflexão sobre os impasses das sociedades capitalistas. Partindo da certeza de que as expectativas abertas pela modernidade filosófica só poderiam ser realizadas através de uma compreensão clara dos desafios próprios a contextos sócio-políticos de ação, tais correntes não temeram em dar, a problemas ligados a modos de racionalização de vínculos sociais, o estatuto de objetos de indiscutível dignidade filosófica. Pois estava claro que a razão demonstra sua real configuração sobretudo através das estratégias de justificação de práticas sociais em operação nas relações de sujeitos às instituições, à família ou à si mesmo em um determinado tempo histórico. Fazer uma auto-crítica da razão e de suas aspirações era pois um movimento indissociável de uma certa recuperação filosófica do campo da teoria social, já que se tratava questão de mostrar como os conceitos da modernidade filosófica ganhavam sua significação apenas lá onde instituições e práticas partilhadas que aspiravam racionalidade afirmavam sua hegemonia.
	No entanto, tal recuperação filosófica do campo da teoria social foi, muitas vezes, realizado graças a um movimento que consistia em operar recursos sistemáticos à psicanálise. Esta articulação cerrada entre filosofia, teoria social e psicanálise perpassa a filosofia do século XX desde a enunciação do programa interdisciplinar da primeira geração da Escola de Frankfurt. Ela será novamente encontrada em filósofos fundamentais do pensamento francês contemporâneo, como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jean-François Lyotard, mesmo que, nestes casos, o recurso à psicanálise seja, muitas vezes, marcado pela ambivalência de quem reconhece que uma clínica inovadora e prenhe de novas problematizações pode ser solidária de práticas disciplinares que bloqueiam a reconstituição de vínculos sociais a partir de novas bases. 
	Tais experiências intelectuais díspares tinham em comum, no entanto, a certeza de que a compreensão dos modos de racionalização em operação nas sociedades capitalistas era dependente da análise da maneira com que sujeitos investiam libidinalmente vínculos sociais. O recurso à psicanálise era, sobretudo, recurso a uma teoria que se recusa a deixar de operar no ponto exato de contato entre estruturas da subjetividade e modos de interação social. Recusa resultante da certeza de que um campo é sempre exposição sintomática do outro e de que, se a cura em relação a certas patologias subjetivas sempre obedece à particularidade do caso, ela não pode, no entanto, deixar de levar o sujeito a reconfigurar seus vínculos com a linguagem e com as instituições sociais. Neste sentido, a seu modo, o recurso à psicanálise apenas realizava a intuição weberiana a respeito da necessidade de explicar como a racionalidade dos vínculos sociais depende fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta. Não se tratava de incorrer em alguma espécie de déficit sociológico, mas de insistir que nenhuma perspectiva de reflexão sobre o social pode abrir mão de uma análise das disposições que desvelam a maneira com que os sujeitos investem libidinalmente os vínculos sociais e produzem representações imaginárias que sustentam múltiplas formas de engajamento em práticas partilhadas.
Deleuze e Guattari antes de O anti-Édipo
	Tendo isto em mente, lembremos de como a relação de Deleuze e Guattari com a psicanálise foi forte e decisiva. Cada um tem um encontro e uma reviravolta, que não se dará sem ambiguidades. Guattari é, desde os anos cinquenta, assíduo frequentador dos seminários de Jacques Lacan, será membro da Escola Freudiana de Psicanálise e analisando de Lacan até praticamente o lançamento de O anti-Édipo. 
	Desde os anos cinquenta, ele fará parte do projeto clínico de La Borde, tronando-se diretor da clínica a partir de 1957. La Borde é, até hoje, um dos centros mais importantes de prática de psicoterapia institucional e durante muito tempo foi fortemente influenciado por aportes psicanalíticos. Procurando uma abordagem inovadora no tratamento das psicoses, o dispositivo central de intervenção clínica da psicoterapia institucional é baseado na noção de “comunidade terapêutica”. Ao invés de uma intervenção clínica centrada na transferência analista-paciente, trata-se de constituir grupos de pacientes, médicos e membros do corpo clínico na condução de tarefas, tanto de organização quanto de criação. Tais tarefas podem ser tanto a organização da alimentação no interior da clínica quanto a montagem de uma peça de teatro. Esta construção de um espaço de grupo tem efeitos clínicos, na medida que permitiria a abertura do paciente à “fantasias de grupo”, a um inconsciente que se materializa nos problemas de grupo e sua “transversalidade”. Guattari descreve bem tal inovação clínica ao afirmar:
A principal descoberta da psicoterapia institucional, a qual temos sempre de retornar para nos ressituar diante das ‘heresias’, consiste em reconhecer que o lugar de existência, no caso o hospital psiquiátrico, traz uma radical modificação a tudo o que vem a surgir em seu âmbito, seja em que ordem for. Uma técnica terapêutica, exercida no ‘contexto’ de um hospital psiquiátrico, torna-se essencial outra�. 
Mas se o lugar de existência traz uma modificação radical a tudo o que surge em seu âmbito, então haverá uma produção desejante outra a partir do momento em que as relações entre os sujeitos e o lugar forem privilegiadas. Pois a instituição, como sujeito inconsciente ou, se quisermos utilizar um termo de Guattari, “agente coletivo de enunciação” é um analisando que não coincide com o indivíduo e que, por isto,poderia permitir ao sujeito operar construções impossíveis no interior dos limites de um indivíduo. Há um sujeito de grupo, um inconsciente de grupo que não se reduz à soma dos sujeitos e inconscientes individuais. Este agente coletivo de enunciação não mobiliza o universo individualista de representações e seu circuito de desejos marcado pelos romances familiares. Eles tendem a mobilizar mitos, lutas de classes, experiências históricas, deixando em evidência outras dimensões da produção desejante dos sujeitos. 
	Guattari irá procurar associar tais experiências clínicas a suas preocupações políticas militantes. É a partir de tais experiências que ele poderá se perguntar: 
“A habitual proliferação de instituições na sociedade contemporânea não levou senão ao reforço da alienação do indivíduo: haverá condições de ocorrer uma transferência de responsabilidade , e de que suceda ao burocratismo uma criatividade institucional?”�. Ou ainda: “Como pode um grupo tomar a palavra, numa dada instituição, num momento dado de sua história, sem reforçar os mecanismos seriais e alienantes que costumam caracterizar as coletividades nas sociedades industriais? Haverá, no nível de uma instituição que dispensa cuidados, a possibilidade de colocar o indivíduo numa situação radicalmente distinta da que marca o colóquio singular, os impasses identificatórios correlativos ou estatuto da família conjugal, das relações de submissão socioprofissional e assim por diante?”�.
Durante anos, Guattari acreditou em um compatibilidade possível entre os princípios fundamentais da psicoterapia institucional e dispositivos fundamentais do quadro teórico de Jacques Lacan. O que não deveria nos estranhar já que o conceito lacaniano de sujeito não se confunde nem com o Eu, nem com o indivíduo, nem com a consciência. Ele é uma entidade, desde o início, profundamente relacional, que tem em sua relação à linguagem, como instância fundadora do vínculo social, o eixo central de seu desenvolvimento. Isto talvez explique boa parte da ambiguidade da posição de Lacan no interior dos textos Guattari, não só antes mas ainda em O anti-Édipo. Assim, leremos, ainda em O anti-Édipo, notas sobre “a admirável teoria do desejo de Lacan”�. O mesmo aparecerá ainda como o descobridor: “deste rico domínio de um código do inconsciente”� mais próximo da multiplicidade do que da serialidade simples, como aquele que procurou “esquizofrenizar” a neurose a fim de fazer explodir os limites do complexo de Édipo�. Ou seja, o projeto de O anti-Édipo acaba por se colocar como uma peculiar crítica da psicanálise que parece, de forma um tanto quanto esquizofrênica, querer livrar exatamente aquele que representava a corrente dominante da psicanálise na França. A não ser, e isto talvez não estivesse de todo errado, que o projeto o fosse animado por uma peculiar tentativa de “salvar Lacan de si mesmo”.
Já Deleuze também terá uma relação bastante intensa com a psicanálise. Percebam, na verdade, como há uma espécie de preocupação clínica na filosofia de Deleuze desde seu início. Seu primeiro livro, a monografia dedicada a Hume intitulada “Empirismo e subjetividade” procurava desenvolver uma teoria da constituição de individualidades que deveria entrar no lugar de uma psicologia. Em sua monografia sobre Nietzsche, “Nietzsche a filosofia”, ficava evidente que Deleuze compreendia a crítica da razão como análise de patologias sociais, ou seja, crítica feita em nome da identificação de como formas de pensar produzem experiências de sofrimento social. Na verdade, Deleuze eleva o conceito nietzscheano de “ressentimento” à condição de paradigma do sofrimento social resultante da instauração do homem moderno, com sua memória, seu sentimento de culpa e suas força sreativas. Neste contexto, a crítica da razão tende a virar uma clínica das formas patológicas de vida, o que Nietzsche com sua “fisiologia da razão moderna” não teria dificuldade alguma em aceitar.
Em Apresentação de Sacher-Masoch, de 1965, Deleuze desenvolve uma teoria sobre as perversões a partir da sua relação à Lei. O livro será a primeira ocasião para Deleuze entrar de maneira sistemática em uma discussão a respeito da constituição de dispositivos clínicos, em especial através de Freud. Isto a ponto de Deleuze afirmar: “O que gostaria de estudar (este livro seria apenas um primeiro exemplo) é uma relação enunciável entre literatura e clínica psiquiátrica”�. A obra de Masoch, com sua dissociação entre desejo e prazer seria uma sintomatologia, já que: “A obra de arte porta sintomas, tanto quanto o corpo ou a alma, ainda que de maneira muito diferente. Neste sentido, o artista, o escritor podem ser grandes sintomatologistas, tanto quanto o melhor médico: assim é Sade ou Masoch”�.
Mas será em Diferença e repetição e, principalmente, em Lógica do sentido que o recurso à psicanálise será posto de maneira evidente no interior do eixo de desenvolvimento do pensamento deleuzeano. No primeiro, o conceito freudiano de pulsão de morte (traduzido por Deleuze como “instinto de morte”) será mobilizado para dar conta da força de despresonalização própria à repetição. No segundo, são conceitos lacanianos como objeto a e Falo que serão mobilizados para dar conta de formas renovadas de síntese e de significação. No entanto, a mudança será brusca a partir de O anti-Édipo.
	
O desejo em Lacan
	
	Para iniciar uma discussão que perpassará todo nosso curso, gostaria de usar nossa aula de hoje para apresentar a vocês o conceito lacaniano de desejo. Partamos de uma afirmação como:
“Os antigos colocavam o acento sobre a tendência, enquanto que nós, nós o colocamos sobre o objeto (...) nós reduzimos o valor da manifestação da tendência, e nós exigimos o suporte do objeto pelos traços prevalentes do objeto”�. 
Tal proposição lacaniana, feita com uma ponta de nostalgia a respeito da vida amorosa dos antigos, é, na verdade, a exposição de todo um programa analítico de cura. Enunciada em 1960, ela trazia atrás de si uma longa reflexão a respeito do destino do desejo no final de análise. Colocar o acento sobre a tendência desprovida de objeto aparece aqui como uma solução possível para romper um certo ciclo alienante do desejo preso às amarras do Imaginário; ruptura fundamental como indicação da proximidade do final de análise. 
	A este respeito, vale a pena relembrar alguns princípios básicos que serviram de guia para as primeiras reflexões lacanianas. Até o final dos anos cinqüenta, há um conceito central na metapsicologia lacaniana: o desejo puro. Como Lacan dirá, a respeito da especificidade da “nova mensagem” trazida por Freud: 
Este lugar que nós procuramos apreender, definir, coordenar, que nunca foi identificado até agora em seu desdobramento ultra-subjetivo, é o lugar central da função pura do desejo�.
Este desejo puro foi um dispositivo que serviu durante um certo tempo como orientação para o desejo do analista. Lembremos de afirmações como: "o lugar puro do analista, enquanto podemos defini-lo no e pelo fantasma, seria o lugar do desejante puro"�. Isto nos indica como a cura estava necessariamente ligada ao reconhecimento de que a verdade do desejo era ser desejo puro.É verdade que Lacan dirá claramente mais tarde: "O desejo do analista não é um desejo puro"�. Mas não basta simplesmente notar a mudança nos protocolos de direção da cura e nos modos de subjetivação do desejo na clínica. Há uma trajetória dos conceitos que se faz necessário recompor. Proponho-me pois a seguir o processo de esgotamento da categoria do desejo puro, isto a fim de compreender quais são os motivos que foram rejeitados e quais aqueles que foram incorporados ao desdobramento conceitual da metapsicologia lacaniana.
A respeito do desejo puro, notemos que, na teoria lacaniana, a característica principal do desejo é ser desprovido de todo procedimento natural de objetificação. Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de "nada de nomeável"�. Aqui, escutamos o leitor atento de Kojève. O mesmo Kojève que tentava costurar o ser-para-a-morteheideggeriano à Begierde hegeliana a fim de afirmar que a verdade do desejo era ser “revelação de um vazio”�, ou seja, pura negatividade que transcendia toda aderência natural e imaginária. Um estranho desejo incapaz de se satisfazer com objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade imediata de realização fenomenal. 
De fato, Kojève foi, ao menos neste ponto, fiel à intuição hegeliana de insistir que a primeira manifestação da subjetividade é uma pura negatividade que aparece inicialmente como desejo. Ao articular desejo e negatividade, Hegel vincula-se a uma longa tradição que remota a Platão e compreende o desejo como manifestação da falta�. No entanto, já em Hegel esta falta não é falta de algum objeto específico, falta vinculada à pressão de alguma necessidade vital, tanto que o consumo do objeto não leva à satisfação. A falta é aqui um modo de ser do sujeito, o que levará Lacan a falar do desejo como uma “falta-a-ser”. Um modo de ser que demonstra este indeterminação fundamental do sujeito moderno, esta liberdade manifestada pela ausência de essência positiva que faz com que ele nunca tenha correlação natural com atributos físicos, nunca seja completamente adequado às suas representações, imagens e papéis sociais. É pensando nisto que o jovem Hegel chamará o homem de “a noite do mundo”. 
Mas por que esta pura tendência que insiste para além de toda relação de objeto transformou-se em algo absolutamente incontornável para Lacan? Nós podemos fornecer aqui uma explicação geral.
Lacan desenvolveu uma teoria da constituição dos objetos a partir sobretudo de considerações sobre o narcisismo. Neste momento do pensamento lacaniano, tanto os objetos quanto os outros indivíduos empíricos são sempre projeções narcísicas do eu. Lacan chega a falar do caráter egomórfico dos objetos do mundo empírico. De onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas as relações de objeto, assim como a necessidade de atravessar este regime narcísico de relação através de uma crítica ao primado do objeto na determinação do desejo. Lacan é claro a respeito deste narcisismo fundamental. Ele dirá, por exemplo, que: “A relação objetal deve sempre submeter-se à estrutura narcísica e aí se inscrever”�. E ele dará um caráter epistemológico a sua crítica do primado do objeto ao afirmar que : “todo progresso científico [e todo progresso analítico] consiste em dissolver o objeto enquanto tal"�. 
Este motivo da crítica ao primado do objeto aparecerá em Lacan principalmente através da crítica às relações reduzidas a dimensão do Imaginário, já que o Imaginário lacaniano designa, na sua maior parte, a esfera das relações que compõem a lógica do narcisismo com suas projeções e introjeções�. Assim, a fim de livrar o sujeito da fascinação por objetos que são, no fundo, produções narcísicas, restava à psicanálise “purificar o desejo” de todo e qualquer conteúdo empírico. Subjetivar o desejo no seu ponto brutal de esvaziamento. Haveria uma outra possibilidade através da tentativa de determinar as modalidades possíveis de uma experiência de objeto que não estivesse inscrita a priori em uma lógica narcísica. De fato, tal hipótese ganhará relevância na segunda metade da trajetória intelectual lacaniana, o que pode nos explicar as estratégias posteriores de pensar o final de análise através da identificação do sujeito com o objeto desprovido de estrutura de apreensão, ou seja, com o objeto como resto opaco, como dejeto, como materialidade sem imagem, como dirá Adorno na mesma época. O que nos permitirá repensar a questão do destino da categoria de objeto na clínica analítica.
Mas, por enquanto, insistamos na via da purificação do desejo. Lacan percebeu claramente que a psicanálise nascera em uma situação histórica na qual o sujeito era compreendido como entidade não-substancial, desnaturada e marcada pelo selo de uma "liberdade negativa" que lhe permitia nunca ser totalmente idêntica a suas representações e identificações. A operação de 'purificação do desejo' escondia assim uma estratégia maior. No fundo, tudo se passava como se Lacan projetasse a função transcendental própria ao conceito moderno de sujeito em uma teoria do desejo (o que nos explica como foi possível à psicanálise desenvolver uma teoria não-psicológica do desejo). A aproximação lacaniana entre, por exemplo, o sujeito do inconsciente e a estrutura do cogito cartesiano era uma das conseqüências de tal estratégia. O que Badiou sublinhou bem ao lembrar que: "o que ainda vincula Lacan (mas este ainda é a perpetuação moderna do sentido) à época cartesiana da ciência é pensar que seja necessário sustentar o sujeito no puro vazio da substração se quiseremos salvar a verdade [do regime fantasmático de apresentação de objetos]"�.
Isto permitiu a Lacan concluir que, para além das realizações fenomenais, haveria uma "permanência transcendental do desejo"�. O que nos envia à definição canônica do sujeito como falta-a-ser, já que:
O desejo é uma relação do ser à falta. Esta falta é falta de ser propriamente dita. Não se trata de falta disto ou daquilo, mas falta de ser através da qual o ser existe�. 
Neste caso, esta estranha falta que não é disto ou daquilo é o próprio regime de experiência subjetiva da estrutura transcendental do desejo. Transcendental porque a falta-a-ser é uma condição a priori de constituição do mundo dos objetos do desejo humano. Podemos falar aqui de a priori porque a falta não seria derivada de nenhuma perda empírica. Para Lacan, não há nada parecido a uma origem empírica do desejo. O que explica por que Lacan parece tentar fazer uma verdadeira ' dedução transcendental' do desejo puro. Contrariamente a Freud, ele não identifica a causa da falta à perda do objeto materno produzida pela interdição vinda da Lei do incesto�. É verdade que Lacan afirmará: "o objeto da psicanálise não é o homem, mas o que lhe falta - não uma falta absoluta, mas falta de um objeto "�. No entanto, devemos sublinhar que tal objeto que lhe falta não é exatamente um objeto empírico.
Notemos, finalmente, como funcionará esta clínica baseada em uma crítica da alienação do Eu na imagem e na defesa do caráter negativo do desejo. Ela será fundamentalmente uma clínica do reconhecimento intersubjetivo do desejo. “Intersubjetivo” porque se trata de levar o sujeito a ter seu desejo reconhecido no interior de um campo social partilhado. Dentro desta perspectiva, as patologias mentais aparecerão como déficits de reconhecimento. Mesmo os sintomas serão compreendidos como formações que procuram veicular uma demanda de reconhecimento do desejo lá onde o acesso á palavra mostrou-se impossível. 
	Assim, quando Lacan afirmar, no início da década de sessenta, que a clínica analítica é direcionada pela injunção ética de levar o sujeito a não ceder em seu desejo, devemos compreender o que quer dizer exatamente “seu desejo” neste contexto. Não se trata de um conjunto de escolhas pessoais ou de modos particulares de conduta. Desde que se admite que o desejo do homem é o desejo do outro, a dimensão da individualidade entra em colapso. Neste sentido, não ceder em seu desejo significa apenas sustentar o que o desejo é em sua verdade essencial, ou seja, levá-lo a ser reconhecido como a pura presença do negativo. 
	 Tudo isto soa bastante abstrato, mas já podemos fornecer algumas coordenadas clínicas esclarecedoras. Primeiro, sabemos que a clínica analítica, por ser uma clínica do reconhecimento, é radicalmente desmedicalizada, isto no sentido de que a medicalização, embora possa ser aceita como processo que em certos casos permite viabilizar o início do tratamento, não se confunde com o tratamento. Neste sentido, a clínica opera fundamentalmente com a reorientação da palavra do sujeito. Mas: “a linguagem, antes de significar algo, significa para alguém”�. Isto quer dizer: toda fala tem um endereçamento; sua entonação, seu estilo (reivindicativo, passivo, questionador, mortificado etc.), indica como ela é direcionada à imagem de um certo outro que sempre trago comigo. A falajá traz a figura de seu ouvinte ideal. Se o analista atuar como um espelho vazio, ou seja, como alguém que não “responde”, mas que, graças a um não-agir calculado, apenas permite a projeção destas imagens no interior da relação analítica, então a análise poderá começar.
	O trabalho analítico consistirá em levar o sujeito a apreender estas imagens, atualizadas pela relação analítica, que determinam sua relação ao mundo e à si mesmo. Como tais imagens são contrações de tramas sócio-simbólicas nas quais o sujeito se inseriu ao socializar seu desejo, sua apreensão será uma: “assunção falada de sua história”� ou, se quisermos, uma certa forma de rememoração da “história natural das formas de captura do desejo”�. 
	No entanto, não se trata apenas de rememorar, mas mostrar como tais imagens às quais o sujeito se vinculou eram a maneira desesperada de dar forma a um desejo fundamentalmente opaco e desprovido de objeto, maneira de se defender desta indeterminação angustiante fundamental que faz com que todo vínculo à imagem seja frágil. Ou seja, esta análise, longe de resultar em uma ampliação da capacidade de síntese do Eu, é solidária de uma operação de dissolução do mundo dos objetos imaginários do desejo que deve ser chamada de “subjetivação da falta”. Neste contexto, “subjetivação” significa: transformar algo em modo de manifestação de um sujeito. Resta saber como transformar a falta em modo de manifestação do sujeito, ou ainda, como reconhecer a si mesmo naquilo que não se conforma à imagem.
� GUATTARI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 120
� GUATTARI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 61
� idem, p. 123
� DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix, L’anti-Oedipe, p. 34.
� Idem, p. 46
� Idem, p. 62
� DELEUZE, L´île desèrte, p. 184
� idem, p. 183
� LACAN, S VII, p. 117
� LACAN, S X, sessão de 08/05/63
� LACAN, S VIII, p. 432.Ou ainda : " Nós sempre desconhecemos, até um certo grau, o desejo que quer se fazer reconhecer pois nós o indicamos seu objeto, enquanto que não é de um objeto que se trata - o desejo é desejo desta falta que, no Outro, designa um outro desejo" (LACAN, S V, p. 329) 
� LACAN, S XI, p. 248
� LACAN, S II, p. 261
� KOJÈVE, Introduction à la lecture de Hegel, p. 12
� Sobre este ponto, ver “Hegel e o trabalho do desejo” Em: Vladimir Safatle, A paixão do negativo (São Paulo; Unesp, 2006)
� LACAN, S I, p. 197
� LACAN, S II, p. 130
� "Nós consideramos o narcisismo como a relação imaginária central para a relação interhumana " (LACAN, S III, p. 107)
� BADIOU, L'être et l'événement, Paris: Seuil, 1988, p. 472. É tal articulação entre transcendentalidade e negatividade na função do sujeito que permitirá a comentadores como Slavoj Zizek ler Kant de maneira 'lacaniana', como vemos em afirmações coimo: "o ensinamento maior da consciência de si transcendental é totalmente oposto à transparência de si absoluta e à presença a si. Sou consciente de mim mesmo, eu me volto de maneira reflexiva em direção a mim mesmo porque nunca posso 'encontra mim mesmo' na dimensão numenal, como a Coisa que sou atualmente" (ZIZEK, Slavoj, The ticklish subject, London: Verso, 2000, p. 304)
� LACAN, S VIII, p. Por que, ao invés de falar em uma ´permanência transcendental do desejo', Lacan não fala simplesmente em uma 'transcendência do desejo', como o faz Kojève? Estaria ele confundindo transcendência e transcendentalidade? De fato, é verdade que, por um lado, o desejo puro transcende toda possibilidade de realização fenomenal, já que ele é desprovido de objeto empírico e se manifesta como pura negatividade. Mas, como veremos, Lacan não se engaja em uma 'gênese empírica' da negatividade do desejo, e é isto que o leva a falar de transcendentalidade do desejo. 
� LACAN, SII, p. 261. 
� Podemos seguir aqui uma afirmação de Bernard Baas: "Pois, ao mostrar que o pensamento de Lacan é trabalhado pelo procedimento do questionamento transcendental, tal interpretação permite também dar conta do sentido propriamente crítico do ´retorno à Freud´, já que ele explicita como ilusão transcendental o mito no qual a psicanálise sempre ameaçou recair e contra o qual Lacan nunca cessou de se opor. Trata-se do mito da origem perdida, o mito da experiência originária de gozo, ou seja, o mito da empiricidade da Coisa " (BAAS, De la chose à l'objet, Louvain: Peeters, 1998, p. 32). Podemos encontrar um exemplo do que pode dar uma leitura ´realista´ do desejo lacaniano nesta afirmação de Judith Butler: "Para Lacan, o sujeito vem a existência somente através do recalcamento originário dos prazeres incestuosos pré-individuais com o corpo materno (agora recalcado)" (BUTLER, Gender trouble, New York: Routledge, 1999, p. 57) 
� LACAN, AE, p. 211
� Jacques Lacan, Escritos, p. 86 
� Jacques Lacan, SI. p. 312
� Jacques Lacan, Escritos, p. 359

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