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Capitalismo e esquizofrenia aula 04

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Capitalismo e esquizofrenia
Aula 4
Na aula de hoje, gostaria de falar sobre a situação do marxismo francês no momento de aparecimento de O anti-Édipo. Alguns poderiam se perguntar sobre a necessidade desta discussão prévia. Insistiria que ela se justifica pelo fato de podermos ler o projeto Capitalismo e Esquizofrenia, em especial seu primeiro volume, como um desdobramento heterodoxo de certas problemáticas próprias à crítica social marxista. Isto a ponto de alguns comentadores afirmarem, por exemplo: 
O anti-Édipo se vincula ao problema fundador do freudo-marxismo, a saber, este da integração das contradições do capitalismo e dos antagonismos de classe nos complexos inconscientes da libido, e no que Wilhelm Reich chamava de “a armadura emocional” das massas. Deleuze e Guattari expressam claras reservas a respeito da tentativa reichiana de renovar a psicologia das massas, que se assentaria em uma compreensão insuficiente da imanência do desejo inconsciente em relação às estruturas socio-econômicas. No entanto, o materialismo histórico forma claramente o horizonte teórico no qual se desdobra suas argumentações e a partir do qual eles tentam redefinir a causalidade do desejo inconsciente�.
De fato, há de se lembrar como a relação ao marxismo é um eixo importante do pensamento de Deleuze e Guattari. Deleuze planejava escrever um livro, ao final da vida, que deveria se chamar A grandeza de Marx. É dele a afirmação segundo a qual: “Félix Guattari e eu continuamos marxistas, mas de maneiras diferentes”. Por outro lado, a extensa militância de Guattari no interior de movimentos de esquerda não deveria nos enganar. 
No entanto, se quisermos organizar melhor tal debate, devemos sublinhar como a compreensão da dinâmica do capitalismo proposta por Deleuze e Guattari assenta-se, em larga medida, em três eixos derivados dos debates internos ao marxismo. Primeiro, a compreensão do estágio atual do capitalismo como um “capitalismo monopolista de estado”, de onde se segue a centralidade de uma crítica totalizante ao Estado, através da crítica à forma-Estado. Tal capitalismo de estado não descreve apenas o sistema de alianças entre as burguesias nacionais e os respectivos Estados nacionais. Ele descreve também maneiras de sujeição através da organização das instituições disciplinares (escolas, hospitais, empresas, etc.) sob a forma daquilo que Althusser chamava à época (1971) de “aparelhos ideológicos de estado”. 
Segundo, Deleuze e Guattari trazem do marxismo uma compreensão das consequências da dinâmica dos limites entre forças produtivas e relação de produção como motor do desenvolvimento do capitalismo e de suas figuras. Serão tais limites que fornecerão a base para os processos de desterritorialização relativa descritos em Capitalismo e Esquizofrenia. Por fim, eles trarão também uma discussão sobre as condições de constituição de devires-revolucionários, ou seja, daquilo que no interior da tradição marxista chamamos de “sujeitos políticos”, sem no entanto pensar tal constituição através das temáticas clássicas do desenvolvimento da dita “consciência de classe”. Vejamos cada um destes pontos.
Estado e capitalismo
A experiência intelectual de Félix Guattari está profundamente ancorada na história do marxismo francês, em especial na procura em construir uma linha distinta das políticas hegemônicas nos meios sindicalistas e comunistas de então. Guattari faz parte daqueles que compreendem tais políticas como desprovidos de todo sentido de transformação revolucionária. Por outro lado, trata-se de lembrar como a divisão, então existente, entre países capitalistas e socialistas seria, na verdade, uma falsa divisão, pois os últimos estariam presos a um jogo de contradições econômicas e políticas impostas em escala internacional pelo modo de produção capitalista. Isto levará Mil Platôs a afirmar: 
na medida que o capitalismo constitui uma axiomática (produção para o mercado) todos os Estados e todas as formações sociais tender a se tornarem isomorfas a título de modelos de realização: só há um só mercado mundial centrado, o capitalista, ao qual participam mesmos os países ditos socialistas�.
Neste sentido, é sintomático a maneira com que Guattari centra suas análises do capitalismo contemporâneo, em 1966, a partir da temática do “capitalismo de estado”. Tal discussão fornece a base para o desenvolvimento posterior das reflexões entre Estado e Capital no interior do projeto Capitalismo e Esquizofrenia. 
Um termo, cunhado pela tradição marxista para múltiplas finalidades e que parecia não ter mais muito uso no interior do panorama histórico contemporâneo: esta era talvez a melhor definição para “capitalismo de estado”. Por um lado, o termo designava aqueles países capitalistas cujo Estado aparecia como forte ator econômico e planificador. Tal força fazia com que a livre concorrência no interior do mercado fosse redimensionada através da sua submissão a planos de desenvolvimento econômico de escala variada. Neste sentido, o conceito de capitalismo de estado parecia dar conta, principalmente, deste países europeus que optaram pelas vias da construção do chamado “Estado de bem-estar social”, mesmo que Friedrich Pollock, um dos teóricos responsáveis pela difusão do termo, tenha-o usado também para descrever a realidade político-econômica dos regimes nazistas. Pois Pollock acreditava na possibilidade de diferenciar um capitalismo de estado democrático de outro totalitário. Teóricos marxistas ainda usaram o termo para designar os países de socialismo real, como a antiga União Soviética. Pois tratava-se de afirmar que, nestes casos, tínhamos ainda um sistema de produção de mercadorias e de extração da mais-valia, mas agora organizado pelo estado que, no lugar da burguesia nacional, privilegiava os estratos superiores da burocracia.
	É fato que um termo com tantos usos distintos pode parecer inutilizável. No entanto, ele apontava para um fenômeno fundamental. Pois, no interior deste processo de redimensionamento do livre mercado pela força planificadora do estado, não estava em jogo apenas a consciência da necessidade de saber como limitar as tendências de pauperizacao e desigualdade produzidas pelo capitalismo. Se este era, digamos, o ponto positivo desta forma de capitalismo, havia outro ponto. Tratava-se do modelo de associação entre Estado e setores da burguesia nacional que encontravam, nas ações de intervenção estatal, o meio para garantir suas aspirações oligopolistas. O capitalismo de estado tendia necessariamente a ser um capitalismo monopolista de estado. Ou seja, mobilização do Estado para assegurar um processo de oligopolização da economia através da facilitação da criação e financiamento de grandes empresas nacionais graças a um sistema público de participação e garantias fornecidas pelo Estado. Através destes sistemas, grandes empresas nacionais tinha, entre outras coisas, acesso a fundos de financiamento a taxas reduzidas de juros. O resultado final era a submissão das dinâmicas de concorrência dos preços e ofertas a uma situação na qual todos os setores fundamentais da economia encontravam-se nas mãos de oligopólios, duopólios e outras formas de cartéis. 
Tendo tal situação em mente, Guattari dirá:
 O Estado desempenha um papel essencial no processo de circulação do capital, que permite notadamente acelerar o giro do capital e realizar a mais-valia contida nas mercadorias produzidas. Tanto no domínio da repartição como no da produção, o Estado toma a seu cargo a parte do capital cuja taxa de lucro é pequena, o que permite em compensação elevar a taxa de lucro do setor privado dos monopólios. Por múltiplas vias, o capital circula entre o setor público e o setor privado: há uma fusão entre os monopólios e o Estado num todo orgânico, o capitalismo monopolista de Estado�.
Este diagnóstico do capitalismo que aparece nas “Nove teses sobre a Oposição de esquerda”, texto escrito por um grupo do qual participava Félix Guattari e recuperado em sua coletânea Psicanálisee transversalidade, explicita um dos eixos principais de intepretação do capitalismo contemporâneo a ser desenvolvido em “Capitalismo e esquizofrenia”. Trata-se da tese de que não faz sentido ações políticas que procurem se orientar a partir da constituição de um Estado justo no momento em que o capitalismo funciona através de uma articulação profunda entre burguesias nacionais e Estado. Por estarmos em um capitalismo monopolista de estado, a crítica ao capitalismo deve ser, primeiramente, crítica totalizante à forma-Estado. A crença, tipicamente keynesiana, de que o intervencionismo regulador do Estado poderia aparecer como certo contraponto ao livre jogo do mercado, é expressão de um compromisso: 
Marcadas por suas tradições históricas e por seu particularismo social, a burguesia não é internacionalista, enquanto o modo de produção capitalista tende a sê-lo cada dia mais. Esse compromisso exige, de um lado, que a burguesia mantenha seu domínio sobre o aparelho de Estado e, do outro, que a sociedade política organizada institucionalize e integre ao máximo possível a classe operária, que vê suas lutas, dessa maneira, descentradas com relação aos locais reais de decisão da economia capitalista�. 
Ou seja, a burguesia tem necessidade do Estado nacional para sobreviver. A contradição entre relações de produção e forças produtivas se transforma em conflito entre os Estados nacionais e as dinâmicas econômicas globais. “Esta contradição vai se desenvolver outra vez no próprio seio do Estado, impelindo de um lado a mundialização das relações de produção e, do outro, rumo à necessidade de manter relações de produção no âmbito nacional e de reforçar os mecanismos do capitalismo monopolista de Estado”�. Esta contradição, no entanto, é uma oscilação interna ao próprio capitalismo, oscilação entre neoliberalismo e estatismo. O estatismo é chamado em situações nas quais a burguesia em crise apela aos fundos públicos. 
Por isto, o pior equívoco seria que a classe operária se reconhecesse no estatismo enquanto sua forma maior, esperando que as relações institucionais se sobrepujem às relações econômicas e acelerando, com isto, a integração do proletariado no Estado. Por esta razão, há de se lembrar que não há nada como um “proletariado nacional”. As identidades nacionais são, em larga medida, estratégias criadas para a perpetuação de uma polaridade do desenvolvimento capitalista. Não pode haver hegemonia do proletariado lá onde há hegemonia do Estado nacional. Daqui porque Guatarri afirma: “O mito do Estado, do serviço público, do interesse geral e assim por diante está de mãos dadas com o mito da união de todas as classes que pertencem a um mesmo todo: a nação”�. Segue-se então um diagnóstico que pode nos explicar muito a respeito das dificuldades que se seguirão na determinação das tarefas políticas do projeto de Deleuze e Guatarri:
A classe operária nunca poderá modificar espontaneamente as relações capitalistas de produção nem transformar o poder de Estado respeitando a legalidade burguesa. A contradição interna decorre do fato de a classe operária não dispor atualmente de meios para desenvolver sua luta em um âmbito distinto do predeterminado pelas relações capitalistas de exploração dos Estados nacionais. O capitalismo, em contrapartida, conseguiu meios para transferir e resolver parcialmente no nível internacional os problemas cruciais que essas lutas representam no nível nacional. Por esse motivo, cada uma das lutas setoriais do proletariado tende a questionar a armadura internacional do capitalismo, mas dado que restringiram suas lutas ao âmbito do Estado, as organizações operárias estão condenadas à impotência�. 
Coloca-se assim uma tarefa política fundamental: retirar os embates políticos do nível do Estado nacional. Mas o “salto mortal” presente em Capitalismo e esquizofrenia consistirá em afirmar que tal tarefa não significará apenas caminhar em direção ao internacionalismo proletário, mas estabelecer a luta política como crítica geral ao Estado enquanto forma de definição e organização das demandas políticas. O Estado não será apenas um nível de organização das relações de produção. Ele será uma forma, relativamente unitária, de codificação das demandas políticas. Ele não será apenas o Estado no capitalismo, mas um modo de organização sempre presente na história do mundo. Como eles dirão: “O Estado nasce adulto e surge de uma vez”�. 
Tal modelo de recodificação será baseado em duas operações centrais: “comparação direta, apropriação monopolista”, ou seja, estabelecimento de princípios gerais de comparação entre atividades e produções distintas a fim uma apropriação do valor produzido. 
O capital como potência de desterritorialização 
Falamos até agora de uma tensão entre as dinâmicas globais de produção e os Estados nacionais, no interior da qual: “pertence à deterritorialização do Estado de moderar a deterritorialização superior do Capital e de fornecer a este reterritorializações compensatórias”�. Aqui, tocamos um dos pontos mais importantes de influência do pensamento marxista sobre Deleuze e Guattari, a saber, a compreensão da maneira com que o Capital funciona como uma certa potência de desterritorialização. A sua maneira os dois, na verdade, glosam esta célebre passagem de Marx, no Manifesto Comunista:
 
A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os meios de produção e, por conseguinte, as relações de produção e, com elas, todas as relações sociais. Ao contrário, a conservação do antigo modo de produção constituía a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. A revolução contínua da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a eterna agitação e certeza distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Suprimem-se todas as relações fixas, cristalizadas, com seu cortejo de preconceitos e ideias antigas e veneradas; todas as novas relações se tornam antiquadas, antes mesmo de se consolidar. Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e por fim o homem é obrigado a encarar com serenidade suas verdadeiras condições de vida e suas relações com a espécie.
Marx não cansará de afirmar que a burguesia é uma classe revolucionária. É ela que, com seu ímpeto mercantil alargado, mostrará como tudo o que é solido se desmancha no ar. Deleuze e Guattari compreenderão isto da seguinte forma: o Capital descodifica o que estava codificado, impondo uma revolução contínua da produção e das formas de vida. No entanto, tal processo é controlado não apenas pelos Estados nacionais, mas sobretudo pela própria forma de produção do valor. A desterritorialização produzida pelo Capital é a ampliação da esfera da submissão dos processos de reprodução social à generalidade da forma-mercadoria, que profana o que até então aparecia como sagrado, como separado da codificação geral imposta pelos homens. Ela é ampliação da transformação do trabalho em trabalho abstrato que visa a geração de valor de troca. Por isto, sua desterritorialização é acompanhada de outra forma de territorialização. 
 Mas há um outro processo produzido por este fluxo de desterritorialização do Capital que será decisivo para Deleuze e Guattari. Lembrem como Marx não cansará de insistir que a burguesia é uma espécie de agente involuntário da história. Ela: “assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou”�, ela “produz seus próprios coveiros”�. Ou seja, sua ação é contraditória no sentido de ter por efeito necessário a destruição do próprio princípio que a gere. Contradição porque, no processo de auto-realização de si, a burguesia produz uma figura que lhe será oposta e que lhe destruirá. Figura que Marx chama de “proletariado”. Assim, a burguesia é o local no qual se realiza uma impressionante operação de auto-negação que não é apenas a auto-negação dos interesses de uma classe, mas a auto-negação da própria “produção da vida” vigente até agora com suas relações entre sujeitos, entresociedade e natureza, entre o sujeito e si mesmo. 
	Tal auto-negação é impulsionada pela produção do excesso. A burguesia produz crises descritas como “epidemias de superprodução” que destroem grande parte das forças produtivas já criadas: “A sociedade possui civilização em excesso, meios de subsistência em excesso, indústria em excesso, comércio em excesso”. Um excesso que: “lança na desordem a sociedade inteira e ameaça a existência da propriedade burguesa”. Pois tal excesso de produção, de comércio, de civilização leva a uma desvalorização tendencial da produção que só pode ser superada através ou da destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas ou pela conquista de novos mercados, pela exploração mais intensa dos antigos. Ela leva uma estrutura monopolista que só pode significar a abolição da propriedade privada “para nove décimos da sociedade”. Note-se um ponto importante. Por ser impulsionada pela produção do excesso, a burguesia é produtora necessária de desordem, ela nunca consegue ser adequada a seu próprio conceito. 
	No entanto, tal desordem produzida pela burguesia e sua escalada global não é apenas o anúncio da destruição. Ela é a produção involuntária de novas relações que tem em seu germe a forma de outro mundo:
Apenas esse desenvolvimento universal das forças de produção traz consigo um intercâmbio universal dos homens em virtude do qual, por um lado, o fenômeno da massa “despossuída” se produz simultaneamente em todos os povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das transformações revolucionárias dos outros e, por último, institui indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais�. 
A desordem produz um fenômeno universal de despossessão e de intercâmbio. Mas tal despossessão universal não é apenas um fenômeno negativo, pois ele produz novas formas de interdependência e de simultaneidade. A burguesia abre o espaço para o advento de indivíduos histórico-universais caracterizados pela despossessão comum e pela simultaneidade de tempos até então completamente dispersos. Ela produz as condições para o advento de uma universalidade concreta que suspenderá e superará o estado de coisas atual. É assim que ela produz seus próprios coveiros. 
O devir revolucionário
É a partir deste ponto que podemos compreender uma dimensão decisiva do projeto Capitalismo e Esquizofrenia que muito deve ao marxismo. Pois Deleuze e Guattari não querem apenas fornecer a descrição funcional do capitalismo contemporâneo, acrescentando a tal descrição reflexões sobre dinâmicas de sujeição psíquica ligadas a formas hegemônicas de socialização do desejo. Eles querem também pensar as condições para ações políticas de transformação estrutural, dentro da tradição marxista de pensar a formação de sujeitos revolucionários. Neste sentido, Deleuze e Guattari desenvolverão o conceito de “minoridade” a respeito do qual eles dirão:
A potência de minoridade, de particularidade, encontra sua figura ou sua consciência universal no proletário. Mas, enquanto que a classe operária se definir por um estatuto adquirido ou mesmo por um Estado teoricamente conquistado, ela aparecerá apenas como ‘capital’, parte do capital (capital variável) e não sairá do plano do capital. Rapidamente, o plano se torna burocrático. Ao contrário, é saindo do plano do capital, e não cessando de sair dele, que uma massa se torna revolucionária e destrói o equilíbrio dominante dos conjuntos enumeráveis (...) Se as minoridades não constituem Estados viáveis, é porque a forma-Estado não lhes convém, nem a axiomática do capital, nem a cultura correspondente (...) Também a questão das minoridades consiste em abater o capitalismo, redefinir o socialismo, construir uma máquina de guerra capaz de responder à máquina de guerra mundial por outros meios�.
Esta afirmação é importante por mostrar como o conceito de ação revolucionária em Deleuze e Guattari são tributários de uma apropriação heterodoxa da noção marxista de proletariado. Apropriação que guarda ainda o lugar de uma “consciência universal” como condição para ações políticas, à condição de liberar o proletariado da sua condição sociológica de descrição da classe operária. Tentemos entender melhor este ponto.
Notemos inicialmente que aquilo que Deleuze e Guattari chamam de “minoridade” não diz respeito a uma realidade numérica, mas a uma condição minoritária, ou seja, condição do que é colocado em minoridade, como o que não pode ser inscrito por estar em condição imperceptível. Tal concepção é, de certa forma, adiantada quando Guattari fala:
No nível do consumo, apenas fatores quantificáveis separariam um burguês de um proletário; mas, em suas respectivas relações com a produção, em seu modo de vínculo com o ‘enquadramento’ profissional, social etc., no plano cultural, ético e mesmo inconsciente, burgueses e proletários constituem, sem dúvida, duas raças distintas�.
Ou seja, não é um problema ligado a redistribuição da posse de bens e riquezas que define a separação entre burgueses e proletários. A diferença é entre modos gerais de existência. A fim de melhor compreender este ponto, lembremos como, segundo Marx, a revolução só pode ser feita pela classe dos despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de identidade. Classe formada por: “indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais”�. Para que apareçam indivíduos histórico-universais, faz-se necessário uma certa experiência da despossessão completa de si descrita por Marx em termos como: 
O proletário é desprovido de propriedade (eigentumslos); sua relação com mulher e crianças não tem mais nada a ver com as relações da família burguesa; o trabalho industrial moderno, a moderna subsunção ao capital, tanto na Inglaterra quanto na França, na América quanto na Alemanha, retiraram dele todo caráter nacional. A lei, a moral, a religião são para ele preconceitos burgueses que encobrem vários interesses burgueses�.
Como vemos, o proletariado não é definido apenas a partir da pauperização extrema, mas da anulação completa de vínculos a formas tradicionais de vida. Tais vínculos não são recuperados em um processo político de reafirmação de si, não se trata de permitir que os proletários tenham uma nação, uma família burguesa, uma moral e uma religião. Tais normatividades são negadas em uma negação sem retorno. No entanto, tal negação não leva o proletariado a aparecer como: “essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème”� e que Marx define como “lumpemproletariado”�. Vale a pena discutir melhor este ponto porque não foram poucos aqueles que tentaram, desde Bakunin, transformar o conceito de lumpemproletariado no verdadeiro conceito com força revolucionária em Marx.
	Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário:
Roués decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa, rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni, batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, maquereux, donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapaceiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème�. 
Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chegaa descrever a própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria funcional do capitalismo financeiro. 
O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de uma massa que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um termo unificador que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente. Tal termo, no 18 do brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do lumpemproletariado”. Aquele que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a história mesma repetida como farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder se manter. 
No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus crimes romantizados não se transformam em ação de transformação social. Na verdade, essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos termos usados por Marx no 18 de brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de estabilização no caos. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não pode ser integrada no processo dialético porque ele representa o congelamento da negatividade em uma espécie de cinismo social. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não produz processo histórico algum.
Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária. Por isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços a modos de vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de vida, o que Marx deixa claro quando afirma esperar: 
“um intercâmbio universal dos homens [há de se insistir no peso de uma formulação desta natureza] em virtude do qual, por um lado, o fenômeno da massa “despossuida” se produz simultaneamente em todos os povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das transformações revolucionárias dos outros e, por último, institui indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais”�. 
Para tanto devemos compreender que a afirmação da condição proletária não se confunde com alguma forma de demanda de reconhecimento de formas de vida desrespeitadas claramente organizadas em suas particularidades. Ao contrário, a afirmação de tal condição proletária gera a classe destes sujeitos sem predicados que, como diz a Ideologia alemã, poderão se satisfazer ao pescar de dia, pastorear à tarde e fazer crítica à noite, sem (e este é o ponto principal) ser pescador, pastor ou crítico, ou seja, sem permitir que o sujeito se determine inteiramente em seus predicados�. Isto significa que a atividade de pescar, pastorear e criticar não pode ser, ao mesmo tempo, identificação do sujeito. 
A posição do sujeito, sua exteriorização, mostra como há algo de radicalmente anti-predicativo a animar o movimento da essência. Como dirá Alain Badiou: “Marx já sublinhava que a singularidade universal do proletariado é não portar nenhum predicado, nada ter, e especialmente não ter, em sentido forte, nenhuma ‘pátria’. Essa concepção antipredicativa, negativa e universal do homem novo atravessa o século”�. O que não poderia ser diferente se pensarmos o proletariado como essa classe: “que expressa, de per si, a dissolução de todas as classes dentro da sociedade atual”�. A classe do que dissolve todas as classes por representar: “a perda total da humanidade”�, o que não encontra mais figura na imagem atual do homem. Neste sentido, podemos dizer que, tal como na teoria hegeliana do sujeito (embora Marx desqualificaria tal assimilação por ver, em Hegel, uma elaboração meramente abstrata do problema), o proletariado só supera sua alienação ao se confrontar com o caráter profundamente indeterminado do fundamento e conservar algo desta indeterminação. Seu papel de redenção (Erlösung) só pode ser desempenhado à condição de assumir sua natureza de dissolução (Auflösung). Como dirá Balibar, o advento do proletário como sujeito político é o aparecimento de um: “sujeito como vazio”� que não é, em absoluto, privado de determinações práticas. Trata-se de uma ideia presente também em Jacques Rancière, para quem: “os proletários não são nem os trabalhadores manuais nem as classes trabalhadoras. Eles são a classe dos não-contados, que só existe na própria declaração através da qual eles se contam a si mesmos como os que não são contados”�. Essa manifestação de um vazio em relação às determinações identitárias atuais leva-nos a compreender que o reconhecimento de si só é possível à condição de uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar identidades imediatas entre sujeito e seus predicados.
� SILBERTIN-BLANC, Guillaume; Deleuze et l’Anti-OEdipe: la production du désir, pp. 13-14
� DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix; Mil Plateaux, p. 544
� GUATARRI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 134
� Idem, p. 135
� Idem, p. 136
� Idem, p. 155
� Idem, p. 160
� DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix; Mille plateaux, p. 532
� DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix; Mille Plateaux, p. 568
� Idem, p. 45
� Idem, p. 51
� Idem, A ideologia alemã, p. 58
� DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix, Mille Plateaux, p. 590
� GUATTARI, Félix; Psicanálise e transversalidade, p. 165
� MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 58
� MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-bourprol.htm
� MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91
� Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the lumpenproletariat and the proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31 Number 3 August 2002: 434–460
� MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91
� MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 58
� MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56
� BADIOU, Alain; O século, Aparecida: Ideias e letras, 2007, p. 108
� MARX, Karl; A ideologia alemã, op.cit., p. 98
� MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução, São Paulo: Boitempo, 2005, p. 156
� BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: PUF, 2011, p. 260. 
� RANCIÈRE, Jacques; La mésentente: politique et philosophie, Paris: Galilée, 1995, p. 63

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