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Capitalismo e esquizofrenia Aula 02

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Capitalismo e esquizofrenia
Aula 2
Na aula de hoje, gostaria de fazer uma apresentação geral do estruturalismo e de alguns de seus problemas filosóficos relevantes. Ela nos servirá para compreendermos algumas discussões centrais que Deleuze e Guattari procuram desenvolver, principalmente, em O anti-Édipo. 
	Discutir tais questões é algo que guarda extrema importância principalmente se lembrarmos como raros foram os momentos históricos que viram configurar uma experiência intelectual como aquela que se colocou sob a égide do estruturalismo. Experiência que realizou, à sua maneira, um verdadeiro “programa crítico interdisciplinar” nascido da articulação cerrada entre antropologia, psicanálise, lingüística, crítica literária, teoria econômica e reflexão filosófica. Programa que, de uma certa forma, aliava sob protocolos comuns nomes como Claude Lévi-Strauss, Jacques Lacan, Louis Althusser, Roland Barthes, Michel Foucault, Roman Jakobson, entre outros.
Digamos, inicialmente, que analisar com calma o estruturalismo e seus projetos, significa deparar-se com uma tentativa singular de procurar redefinir por completo o parâmetro de racionalidade e os métodos das chamadas ciências humanas. Tentativa com conseqüências filosóficas absolutamente evidentes. Tal redefinição partiu da defesa da lingüística como “ciência ideal” que deveria guiar a reconfiguração do campo das ciências humanas. Notemos, por exemplo, o tom ditirâmbico que anima a seguinte afirmação de Lévi-Strauss : 
No conjunto das ciências sociais ao qual pertence indiscutivelmente, a lingüística ocupa, entretanto, um lugar excepcional; ela não é uma ciência social como as outras, mas a que, de há muito, realizou os maiores progressos: a única, sem dúvida, que pode reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo tempo, a formular um método positivo e a conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua análise�.
Este primado da lingüística implicava um duplo efeito. Primeiro, como vemos na afirmação de Lévi-Strauss, tratava-se de uma questão de método. A lingüística estrutural inspirada por Saussure, e implementada por nomes como Jakobson (sem esquecermos de todo o Círculo lingüístico de Praga: Troubetzkoy, Vachek entre outros), Greimas e Hjelmslev havia realizado um amplo processo de formalização de seu objeto, o fato lingüístico, através da compreensão da linguagem como sistema diferencial-opositivo de unidades elementares, chamadas de fonemas. Não se tratava de uma matematização no sentido próprio àquela implementada no campo das ciências físicas, ou seja, redução dos objetos a uma unidade comum de medida que permite a implementação de processos de quantificação, mensuração e comparação. Tratava-se de uma formalização estrutural, ou seja, sistematização, em uma espécie de espaço virtual inextenso, de “elementos que se especificam reciprocamente em relações”� e que não tem nenhuma realidade intrínseca para além deste campo de relações. Gilles Deleuze compreendeu bem este ponto ao afirmar que: “a ambição científica do estruturalismo não é quantitativa, mas topológica e relacional”�. Tratava-se de insistir que as ciências humanas deveriam ser capazes de determinar redes de relações constitutivas de lugares simbólicos que definem o valor dos termos que eles submetem. 
Sobre esta ausência de realidade intrínseca dos elementos que compõem a linguagem, lembremos, por exemplo, das palavras de Saussure a respeito da lingüística nascente: 
Os objetos que ela tem diante de si são desprovidos de realidade em si, ou a parte dos outros objetos a considerar. Eles não tem absolutamente nenhum substratum de existência fora de suas diferenças ou das diferenças de toda forma que o espírito encontra um meio de atribuir à diferença fundamental�. 
	
Esta teoria do valor lingüístico, com sua anulação da autonomia da referência, era resultado da transformação de um setor do estudo da linguagem, a saber, a fonologia enquanto sistema de sons disponíveis a uma língua, em modelo para a inteligibilidade do processo de produção do valor do signo lingüístico. Era por pensar inicialmente na natureza meramente diferencial dos fonemas que Saussure afirmava, de maneira canônica: “Na língua, só existem diferenças. E mais ainda: uma diferença supõe em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece, mas na língua há apenas diferenças sem termos positivos”�. Como dirá Derrida, a respeito desta estratégia: “A fonologia, diz-se freqüentemente hoje, comunica sua cientificidade à lingüística que serve, por sua vez, de modelo epistemológico a todas as ciências humanas”�.
Mas o que tal modelo epistemológico implicava? Primeiro, ele implicava, necessariamente, uma teoria da sociedade que transformava a linguagem no fato social central, já que todos os fatos sociais : trocas matrimoniais, processos de determinação de valor de mercadorias, articulação do ordenamento jurídico, assim como fatos psíquicos como a produção onírica, a formações de sintomas vinculados a patologia mentais, seriam todos estruturados como uma linguagem. Neste sentido, a linguagem não seria um dentre outros fatos sociais, mas a condição de possibilidade de todo e qualquer fato social, já que ela forneceria a ordem sistemática dos fenômenos sociais, a “arquitetura” dos fatos do cultura. Assim como a filosofia anglo-saxã do início do século XX defrontou-se com uma certa guinada lingüística que reorientou os problemas ontológicos para o campo da análise da linguagem, as ciências humanas francesas da segunda metade do século XX reconstruíram seu objeto e seu campo ao usar a análise da linguagem como método e parâmetro. Podemos ver claramente tal estratégia em ação na seguinte afirmação de Lévi-Strauss : 
No estudo dos problemas de parentesco (e sem dúvida também no estudo de outros problemas), o sociólogo se vê numa situação formalmente semelhante à do lingüista fonólogo: como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação; como eles só adquirem esta significação sob a condição de se integrarem em sistemas; os ´sistemas de parentesco´, como os ´sistemas fonológicos´, são elaborados pelo espírito no estágio do pensamento inconsciente; enfim a recorrência, em regiões afastadas do mundo e em sociedades profundamente diferentes, de formas de parentesco, regras de casamento, atitudes identicamente prescritas, entre certos tipos de parentes etc. faz crer que, em ambos os casos, os fenômenos observáveis resultam do jogo de leis gerais, mas ocultas�.
 
Esta recompreensão dos fatos sociais como fatos estruturados como uma linguagem permitirá, por exemplo, o re-enquadramento do campo da política e da crítica da ideologia no interior de um campo de análise do discurso (lembremos de Foucault com sua noção de “práticas discursivas”, de Lacan com sua teoria do vínculo social a partir de uma tipologia de discursos e de Derrida com seus procedimentos de desconstrução como substituto dos protocolos de crítica da ideologia). Procedimento fundamental para compreendermos, entre outros, a guinada cultural da crítica social a partir dos anos setenta. 
O problema do inconsciente
Mas aproveitemos a ocasião para analisarmos três características centrais do projeto estruturalista, a saber, a noção de ordem estrutural como princípio transcendental de determinação do sentido, o caráter inconsciente de tal ordem e, por conseqüência, a noção determinista do sujeito como suporte da estrutura. Cada uma destas características exige, ainda hoje, uma reflexão profunda que toca as discussões sobre o modelo epistemológico à disposição para as ciências humanas. Pois cada uma destas características define um problema central: o problema do estatuto do inconsciente, da estrutura do transcendental e da natureza do sujeito.
Partamos da segunda característica, a saber, a estrutura como ordem inconsciente. Tal colocação vem do fato da estrutura não ser dada de maneira imanente no campo fenomenal. Ao contrário, ela determina de maneira transcendente este campo e seus atores, que agem deforma inconsciente. Ao falar, os sujeito não têm consciência da estrutura fonemática que determina seus usos da língua, da mesma maneira que, ao operar escolhas matrimoniais, os sujeitos não têm consciência dos sistemas de parentesco que determinam tais escolhas. Na verdade, eles reificam um objeto cujo valor viria simplesmente do lugar por ele ocupado no interior de uma estrutura articulada. Ou seja, eles acreditam que o valor vem do objeto, enquanto ele vem da estrutura. Tudo se passa assim como se as relações com o outro, como se as ações ordinárias escondessem as mediações das estruturas sócio-lingüísticas que determinam a conduta e os processos de produção de sentido. Tal ilusão nos faria esquecer como temos relações com a estrutura antes de termos relações com outros empíricos. Como se a verdadeira relação intersubjetiva fosse entre o sujeito e a estrutura, e não entre o sujeito e os outros empíricos. 
Partindo deste ponto, podemos dizer que o fundamento do estruturalismo consiste em mostrar como o verdadeiro objeto das ciências humanas não é o homem enquanto centro intencional da ação e produtor do sentido, mas as estruturas sociais que lhe determinam. Michel Foucault compreendeu isto claramente ao afirmar que: “Há ciências humanas não em todo lugar onde é questão do homem, mas em todo lugar onde analisamos, na dimensão própria do inconsciente, as normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciências as condições de suas formas e de suas condutas”�. 
Pensamento em larga medida determinista, ele pode chegar a afirmar que o sujeito é uma construção ideológica (Althusser), uma ilusão metafísica (Deleuze e Foucault), já que, em última instância, ele não seria agente, mas apenas suporte de estruturas que agem em seu lugar. Como se, por exemplo, os sujeitos não falassem, mas fossem falados pela linguagem, como se eles não agissem, mas “fossem agidos” pelas estruturas sociais. Posição que levou Lévi-Strauss a afirmar: 
“Não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos [ou através das estruturas, o que, neste contexto, dá no mesmo], mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia. E. como sugerimos, talvez convenha ir ainda mais longe, abstraindo todo sujeito para considerar que, de um certo modo, os mitos se pensam entre si”�. 
Dizer que os mitos sociais se pensam nos homens sem que estes o sabiam é uma proposição absolutamente central. Pois se trata de afirmar que as estruturas sociais são autônomas e inconscientes em relação à vontade individual, ou ainda que: “os fenômenos fundamentais da vida do espírito, o que condiciona e determina suas formas mais gerais, situam-se no nível do pensamento inconsciente”�. Notemos que já Durkheim abria, de uma certa forma, esta via ao afirmar: 
Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo, de cidadão, quando me desincumbo de encargos que contraí, pratico deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo estando de acordo com sentimentos que me são próprios, sentido-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação (...) estamos, pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta caracteres muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem�. 
Ou seja, já aqui percebemos como não é o campo fenomênico da ação dos indivíduos que realmente interessa com suas motivações intencionalmente elaboradas, mas a determinação desta estrutura prévia que coage os sujeitos, a partir do exterior, a agir de certa forma e a assumir certos lugares na vida social. Estrutura que totaliza e unifica a multiplicidade de fatos dispersos na vida social. No caso de Lévi-Strauss, esta estrutura social que não era composta exatamente por um conjunto positivo de regras socialmente enunciadas, mas por relações diferenciais e opositivas que determinam possibilidades de combinatória e interditos de transposição, tal como as relações que organizariam os fonemas. 
	A passagem da exterioridade dos modos de agir, pensar e sentir em relação aos indivíduos à sua natureza inconsciente é um elemento fundamental para compreendermos a perspectiva estruturalista. No entanto, sempre posso dizer que utilizar o termo “inconsciente” para descrever esta relação do sujeito com aquilo que determina seu agir e pensar não é exatamente adequado. É verdade que quando falamos não temos consciência das leis sintáticas e morfológicas da língua. Mas posso sempre de direito tomar consciência, objetivar tais leis.
 Eis um giro de perspectiva vão, dirá o estruturalista. Pois mesmo as modalidades de apreensão subjetiva da ação da estrutura são determinadas pela própria estrutura. O sujeito pode objetivar a estrutura que determina seu pensamento e falar dela em um discurso da terceira pessoa, como se fosse um Outro. Mas ele não pode objetivá-la a partir de uma perspectiva que não seja determinada por este próprio Outro. Mesmo o modo de tomar distância das leis que me condicionam já está marcado por estas mesmas leis�.
Esta articulação cerrada entre estrutura e inconsciente pode ser claramente encontrada em Jacques Lacan. O que interessa a Lacan é exatamente tal noção de inconsciente como sistema de regras, normas e leis que determina a forma geral do pensável. Ela estará presente na famosa afirmação: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, o que no fundo pode ser simplesmente traduzido como: o inconsciente é a linguagem (enquanto ordem que organiza previamente o campo de toda experiência possível). Daí uma afirmação chave como: “O inconsciente não é o primordial, nem o instintual e de elementar ele conhece apenas elementos significantes”�.
Isto permite a Lacan livrar-se de uma noção psicológica de inconsciente. Pois o inconsciente lacaniano não estará ligado a fatos psicológicos como: a memória, a atenção, a sensação ou à intencionalidade em geral. Lacan sabe que os chamados conteúdos mentais inconscientes (conteúdos latentes de sonhos, crenças não-conscientes, acontecimentos traumáticos denegados, lembranças esquecidas, sentimentos latentes etc.) não podem ser realmente inconscientes. Como eles são resultantes de um processo de recalcamento, chega-se rapidamente a um certo paradoxo: para que haja recalcamento é necessário uma consciência prévia do recalcado, já que o agente do recalcamento não é outro que a própria consciência. Encontramos aí o paradoxo resultante de uma noção de inconsciente construída a partir o modelo de eventos passados que foram, em dado momento, presentes à consciência mas que, devido à forte excitação que eles produziram, deveriam ser expulsos da consciência. 
Por isto, o que normalmente chamamos de ‘conteúdos mentais inconscientes’ devem ser compreendidos como conteúdos mentais pré-conscientes, ou seja, conteúdos mentais momentâneamente fora do acesso da consciência, esquecidos, mas que podem ser reintegrados através de processos de rememoração e de simbolização. Pois o inconsciente não tem conteúdos mentais. Na verdade, ele é vazio, já que todo conteúdo do pensamento é, de uma forma ou outra, acessível à consciência. Neste ponto, Lacan não fazia mais do que assumir a fórmula de Lévi-Strauss: 
O inconsciente deixa de ser o inefável refúgio das particularidades individuais, o depositário de uma história única, que faz de cada um de nós um ser insubstituível. Ele se reduz a um termo pelo qual nós designamos uma função: a função simbólica, especificamente humana, sem dúvida, mas que, em todos os homens, se exerce segundo as mesmas leis; que se reduz, de fato, ao conjunto destas leis�.
	
Notemos, por fim, que esta insistência em elevar o inconsciente a conceito fundamental de uma peculiar guinada transcendental trará uma conseqüência maior para a noção de forma do pensável. Pois a releitura estruturalista permite, à noção de inconsciente, não ser mais simplesmente pensada como “o círculo do que nãoé atributo (ou virtude) da consciência”�. Freud teria trazido algo de natureza totalmente diferente. Sua noção de inconsciente nos obrigaria a admitir que existem processos que não se submetem à forma da consciência, o que no nosso caso só pode significar, que não se deixam pensar a partir do regime de linguisticidade e representação próprios à consciência, a partir de seus dispositivos de categorização, a partir dos atributos da pessoa. 
De certa forma, é levando em conta tais processos estranhos à forma da consciência que Deleuze dirá: “Toda estrutura é uma multiplicidade”�. Ou seja, ela não é composta de uma série representável, mas de uma sobreposição de séries que constitui relações sobredeterminadas. Daí porque, ao menos para Deleuze, uma estrutura não é atual, mesmo sendo real; ela não é abstrata, mesmo sendo ideal. Ser atual significaria que ela se esgotaria nos limites da configuração atual. No entanto a estrutura: 
É uma forma de reservatório ou de repertório ideal no qual tudo coexiste virtualmente, mas no qual a atualização se faz necessariamente seguindo direções exclusivas, sempre implicando combinações parciais e escolhas inconscientes. Explicitar a estrutura de um domínio é determinar toda uma virtualidade de coexistência que preexiste aos seres, aos objetos e às obras de tal domínio. Toda estrutura é uma multiplicidade de coexistência virtual�. 
Uma virtualidade que expressa, na verdade, o excesso de possíveis em relação ao atual. Virtualidade que instaura um tempo no qual o movimento não vai de uma forma atual a outra, mas do virtual ao atual, da estrutura a suas atualizações. Todas as formas atuais seriam assim expressões localizadas de uma multiplicidade virtual unívoca. Não haveria assim relação de oposição e contradição entre formas atuais, mas relação de diferenciação entre virtual e atual. Daí porque só é possível “ler” uma estrutura a partir de seus efeitos. 
O problema do transcendental
Neste ponto, voltemos os olhos para outra característica fundamental do estruturalismo: a defesa da ordem estrutural como princípio transcendental de determinação do sentido. A este respeito, tomemos, inicialmente, algumas elaborações de Saussure. Podemos dizer que uma de suas características maiores é um certo “encaminhamento transcendental” de sua reflexão sobre a linguagem. Lembremos, por exemplo, da maneira com que Saussure determina a tarefa geral da lingüística: 
“fazer a história das famílias de línguas e reconstituir, na medida do possível, as línguas-mães de cada família; procurar as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fundamentos particulares da história e delimitar-se e definir-se a si própria”�. 
Ou seja, não apenas uma gramática comparada, mas um estudo sistemático das leis gerais da linguagem. Vale a pena atentar-se principalmente para o segundo ponto: estabelecer leis gerais, permanentes, universais e incondicionadas que determinariam os fatos lingüísticos. Pois se tratava, na verdade, de determinar as condições para a existência de fatos lingüísticos. Um questionamento transcendental a respeito da linguagem como elemento de estruturação do pensamento se insinuava aqui. Tal questionamento deveria dar conta, entre outras coisas, da maneira com que a linguagem estrutura o pensável e como ela se relaciona com a referência do pensamento. Mas não se tratava em absoluto de simplesmente procurar deduzir previamente tais leis gerais a partir de um conjunto não problematizado de determinações lógico-formais. O verdadeiro processo fora bem descrito por Gilles-Gaston Granger: 
Seria inexato caracterizar este encaminhamento preliminar como simples abstração. A estrutura lingüística aqui visada não é apenas um abstrato em relação ao fato da linguagem; ela é aquilo que, na ausência de termo melhor, chamaremos com Husserl de essência, ou seja, um esboço transcendental de objeto, para além de toda ontologia. Transcendental aqui não conserva nenhuma significação propriamente idealista, na medida em que não se trata de exposição de uma condição imutável de conhecimento de objeto fundada na natureza de um eu abstrato (...) A palavra transcendental justifica-se precisamente porque o esboço não se reduz a um empobrecimento do vivido por abstração. Não importa qual seja seu estatuto genérico, o esboço constitui o guia de um conhecimento conceitual possibilitando as contribuições de uma experiência controlada e o desenvolvimento de uma combinatória”.� 
É pensando em chave parecida que Deleuze afirmará: “O estruturalismo não é separável de uma filosofia transcendental nova na qual os lugares tem primazia em relação ao que os preenche”�. De fato, não se trata de pensar as condições de possibilidade dos fenômenos a partir da estrutura formal de uma subjetividade constituinte. Paul Ricoeur compreendeu isto muito bem ao falar que o estruturalismo era, no fundo, uma espécie de “kantismo sem sujeito transcendental”�. Afirmação que, longe de incomodar Lévi-Strauss, levou-lhe a dizer:
Reconheço perfeitamente esse aspecto de nossa tentativa nas palavras de Paul Ricoeur, quando a qualifica, com razão, de “kantismo sem sujeito transcendental”. Mas tal restrição, longe de nos parecer sinal de uma lacuna, se nos apresenta como a consequência inevitável, no plano filosófico, da escolha que fizemos em uma perspectiva etnográfica. Como nos pusemos em busca das condições para que sistemas de verdades se tornem mutuamente convertíveis, podendo, pois, ser simultaneamente admissíveis por vários sujeitos, o conjunto dessas condições adquire o caráter de objeto dotado de uma realidade própria, e independente de todo e qualquer sujeito�.
Tais colocações procuram dar conta de um problema constitutivo das ciências humanas bem definido por Granger, a saber, “a transmutação de significações vividas em um universo de significações objetivas”�. Daí sua idéia importante a respeito dos esboços transcendentais de objeto. Idéia que podemos encontrar claramente em Saussure quando este fala que o objeto lingüístico não é o som definido por suas qualidades sensíveis, ou seja, enquanto “substância fônica”. Pensando nisto, Saussure chegará a dizer que o significante: “em sua essência, não é fônico, ele é incorporal, constituído não por sua substância material, mas pelas diferenças que separam sua imagem acústica de todas as outras”�.
 	No entanto, notemos uma tensão fundamental neste projeto. Ao responder Ricoeur, Levi-Strauss deixa transparecer uma tensão nas palavras que escolhe. Ele precisa falar de “condições para que sistemas de verdades se tornem conversíveis”, “condições que adquirem o caráter de objeto com realidade própria”, da mesma forma que Granger deve falar de “transmutação de significações vividas em objetivas”. Como se tratasse de indicar uma espécie, dificilmente tematizável, de gênese daquilo que tem validade transcendental. Mesmo a afirmação de Saussure sobre o significante diz um pouco mais do que gostaria de dizer. Pois mesmo que o significante, enquanto elemento de um sistema de diferenças, não seja constituído por sua substância material, esta substância ainda é sua, ele não pode ter com ela uma relação completamente arbitrária, pois se arrisca a ser, além de incorporal, simplesmente inefetivo.
	Esta tensão entre gênese e validade transcendental no interior do estruturalismo pode ser compreendida se aceitarmos a força constituinte da estrutura. Este era o resultado da posição, sintetizada por Merleau-Ponty, a respeito de Lévi-Strauss: “A função simbólica antecede o dado”�. Ou seja, ela não se conforma aos dados naturais, mas estabelece previamente o campo possível de experiências no interior do qual a própria noção de “dado” se constituirá. Daí porque Lévi-Strauss poderá afirmar: “os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o significado”�. Maneira clara de indicar que a anterioridade da estrutura em relação ao dado é umaanterioridade que indica uma força constituinte. Desta forma, o convencionalismo da teoria saussureana da linguagem acabava por validar, em Lévi-Strauss uma “teoria criacionista do símbolo”. Para Lévi-Strauss, isto significava que a função simbólica determinava até mesmo as coordenadas da experiência que os sujeito têm de si mesmos e de seus próprios corpos, como vemos no relato da cura xamânica em A eficácia simbólica. Como lembrará Lacan: “A função simbólica constitui um universo no interior do qual tudo o que é humano tem de ordenar-se”�. 
No entanto, esta força constituinte não parece ser forte o suficiente para afastar toda e qualquer questão de gênese e de referência àquilo que se encontraria na exterioridade da estrutura. A respeito de questões similares, lingüistas estruturalistas como Jean Claude Milner gostariam de poder dizer, por exemplo : “O arbitrário recobre, de maneira extremamente ajustada, uma questão que não será posta : o que é o signo quando ele não é o signo ? o que é a língua antes de ser a língua ? – ou seja, a questão que exprimimos corriqueiramente em termos de origem. Dizer que o signo é arbitrário, é pôr a tese primitiva : há língua"�. No entanto, o próprio Lévi-Strauss fala sobre o que é a língua antes de ser a língua. Lembremos aqui de um trecho maior:
Quaisquer que tenham sido o momento e as circunstâncias de seu aparecimento na escala da vida animal, a linguagem só pôde nascer repentinamente. As coisas não puderam passar a significar de forma progressiva. Em conseqüência de uma transformação cujo estudo não compete às ciências sociais, mas à biologia e à psicologia, uma passagem efetuou-se, de um estágio em que nada tinha um sentido a um outro em que tudo o possuía. Ora, essa observação, aparentemente banal, é importante, porque essa mudança radical não tem contrapartida no domínio do conhecimento, o que se elabora lenta e progressivamente. Dito de outro modo, no momento em que o Universo interior, de uma só vez, tornou-se significativo, nem por isso ele foi melhor conhecido, mesmo sendo verdade que o aparecimento da linguagem haveria de precipitar o ritmo do desenvolvimento do conhecimento. (...) É que as duas categorias do significante e do significado se constituíram simultânea e solidariamente, como dois blocos complementares; mas que o conhecimento, isto é, o processo intelectual que permite identificar uns em relação aos outros, alguns aspectos do significante e alguns aspectos do significado (...) só se pôs a caminho muito lentamente (...) o homem dispõe desde sua origem de uma integralidade de significante que lhe é muito difícil alocar a um significado, dado como tal sem ser no entanto conhecido�. 
Este é um estranho trecho no qual a questão da origem e da gênese retorna no interior do pensamento estruturalista. No entanto, a maneira que Lévi-Strauss conjuga o problema da origem é peculiar. Ele diz: a origem é marcada por um excesso de significante, por uma superabundância em relação às possibilidades de significado. Há duas séries que não se recobrem completamente. Daí a necessidade de haver, em todo sistema simbólico, significantes flutuantes (como os significantes do tipo mana) que permitem às séries dos significantes e dos significados se relacionarem. Mas, para tanto, eles precisam ser “símbolos em estado puro”, ter “valor indeterminado de significação, em si mesmo vazio de sentido e portanto suscetível de receber qualquer sentido, cuja única função é preencher uma distância entre o significante e o significado”�. Preencher a distância significa aqui “fazer a função de”, como se puros significantes pudessem fazer a função de significado.
Deleuze insistirá que todo estruturalismo precisa reconhecer o lugar e a função fundamental deste elemento paradoxal�. Ele o encontrará em Lacan (através da noção de Falo enquanto “significante destinado a designar no seu conjunto os efeitos de significado”�), Jakobson (o fonema zero) e em Foucault (a noção de lugar vazio da estrutura�). Este elemento marca uma “casa vazio” (case vide) expressa por um objeto desprovido de identidade fixa por circular entre uma série e outra, por não pertencer a série alguma. Objeto que não tece consigo mesmo nem relações de pertencimento nem relações de semelhança, que não é igual a si mesmo. Sua função é ser um peculiar “diferenciante da própria diferença”�, ou seja, um elemento que, devido à sua circulação, devido à maneira com que ele faz o vazio circular, reconfigura continuamente as relações, produzindo novas determinações de diferença. Sua circulação responde pela dinâmica dos acontecimentos no interior de uma estrutura. Assim, a estrutura não conhecerá “acidentes” que lhe vem do exterior, mas acontecimento que constituem “tendências” internas à própria estrutura que desenvolve mutações a partir de um gênero muito específico de “causalidade imanente”. Pela circulação deste objeto que expressa a casa vazia, as séries podem se articular entre si em um processo que podem, continuamente, mudar de direção e ordem.: “Os ordenamentos da estrutura não se comunicam em um mesmo lugar, mas se comunicam todos pelas suas casas vazias ou objeto=x respectivo”�. Exemplo privilegiado aqui é a circulação da carta roubada na leitura lacaniana do conto homônimo de Edgar Allan Poe. 
É a partir desta causalidade produzida pelos objetos que expressam uma casa vazia que Deleuze pode introduzir o problema do estatuto do sujeito, problema que, de certa forma, nos leva diretamente a O anti-Édipo. Lembremos de uma afirmação como: 
O estruturalismo não é um pensamento que suprime o sujeito, mas um pensamento que o despedaça e o distribui sistematicamente, que contesta a identidade do sujeito, que o dissipa e lhe faz passar de lugar em lugar, sujeito sempre nômade, feito de individuações, mas impessoais, ou de singularidades, mas pré-individuais�. 
	Muito haverá a se dizer sobre este problema maior. No entanto, podemos inicialmente lembrar que a reflexão estruturaistal, com suas temáticas sobre a anterioridade da linguagem enquanto ordem que organiza o campo da experiência, nos impede de pensar um sujeito como substância auto-idêntica, como presença plena à si mesmo. Deleuze procura afirmar que o sujeito aparece não apenas como o que seria produzido pela estrutura, mas, principalmente, como o que é causado pela circulação do objeto, no interior da estrutura, que expressa a casa vazia. Tal objeto irá destituir o sujeito de sua individualidade e sua pessoalidade. Ele marcará seu desejo e seus modos possíveis de ser. É necessário, no entanto, uma ação para que tal lugar vazio seja deixado evidente, que ele seja deixado a um sujeito: “que deve acompanhá-lo através de novos caminhos sem lhe ocupar nem lhe desertar”�. Sujeito que poderá assim fazer variar as relações, redistribuir as singularidades, sempre lançando um novo “jogo de dados”. Deleuze reconhece que tal problema do sujeito e de sua praxis são os mais importantes, mas os menos tratados pelo estruturalismo. Serão deles que ele se ocupará em breve. 
� LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 45. Ou ainda, como nos diz Granger : “A tentativa de transformar o acontecimento vivido em objeto abstrato, essencialmente definido por suas correlações a outros objetos em um sistema formal, parece ter sido levada ao extremo pela lingüística estrutural e apresenta-se como uma verdadeira provocação aos olhos dos hábitos do conhecimento científico” (GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 74)
� DELEUZE, Em que se pode reconhecer o estruturalismo?, p. 280
� Idem, p. 243
� SAUSSURE, Essais de linguistique générale, p. 65
� SAUSSURE, idem, p. 139
� DERRIDA, De la grammatologie, Paris : Minuit, 1966, p. 45
� LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, op. cit. p. 48
� FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
� Claude Lévi-Strauss, O cru e o cozido, (São Paulo: Cosac e Naif, 2004) p. 31
� Idem, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 28
� DURKHEIM, O queé fato social?, p. 48
� Daí a afirmação de Lévi-Strauss : “as leis da atividade inconsciente estão sempre fora da apreensão subjetiva (nós podemos tomar consciência delas, mas como objetos); e de outro lado, no entanto, são elas que determinam as modalidades desta apreensão” (LEVI-STRAUSS, Claude; Introduction à l’oeuvre de Marcel Mauss,p. XXX)
� LACAN, Ecrits, p. 522
� LÉVI-STRAUSS, Claude; Antropologia estrutural, p. 234
� LACAN, Ecrits, p. 830
� DELEUZE, idem, p. 247
� DELEUZE, idem, p. 250
� idem, p. 13
� GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 76
� DELEUZE, idem, p. 244
� RICOEUR, O conflito de interpretações, Encontraremos também em Deleuze a afirmação de que o estruturalismo: “é inseparável de uma filosofia transcendental nova” (DELEUZE, ibidem, p. 244) 
� LÉVI-STRAUSS, Claude; O cru e o conzido, São Paulo: Cosac e Naif, 2004, p. 30
� GRANGER, ibidem, p. 66
� SAUSSURE, ibidem, p. 
� MERLEAU-PONTY, signos, p. 133
� LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 29
� LACAN, Jacques; Seminário II, p. 44
� MILNER, L'amour de la langue, Paris: Seuil, 1978, p. 59
� LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss In: MAUSS, Sociologia e antropologia, São Paulo: Cosac e Naif, 2006, p. 42
� Idem, p. 39
� Ver DELEUZE, Logique du sens, Paris: Minuit, 1969, p. 55
� LACAN, Ecrits, Paris: Seuil, 1966, p. 690
� “A ordem, é ao mesmo tempo o que se oferece nas coisas como sua lei interior, a rede secreta segundo a qual elas, de uma certa forma, se olham entre si e que só existe através da grelha de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem; e é apenas nas casas brancas deste esquadrinhamento que ela manifesta-se como algo que já está lá, esperando em silêncio o momento de ser enunciada" (FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 11). 
� DELEUZE, L’île déserte, p. 260
� Idem, p. 264
� Idem, p. 267
� Idem, p. 268

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