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VERÍSSIMO A Constituição de 1988 vinte anos depois Suprema Corte e ativismo judicial à brasileira

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REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO
4(2) | P. 407-440 | JUL-DEZ 2008
407:8
RESUMO
ESTE ARTIGO EXAMINA AS TRANSFORMAÇÕES POR QUE VEM
PASSANDO O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NOS ÚLTIMOS ANOS,
RELACIONANDO-AS À SUA RECONFIGURAÇÃO INSTITUCIONAL
OCORRIDA POR OCASIÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. ESSAS
TRANSFORMAÇÕES SÃO APRESENTADAS COMO RESPOSTAS A UM
DUPLO FENÔMENO (IMPULSIONADO POR ESSA MESMA
RECONFIGURAÇÃO INSTITUCIONAL) DE INCREMENTO DO PAPEL
POLÍTICO DO TRIBUNAL, POR UM LADO, E DE SOBRECARGA
EXTRAORDINÁRIA DE SEU VOLUME DE TRABALHO, POR OUTRO. ESSA
TENSÃO REFLETE NO MODELO MISTO DE CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL E PARECE APONTAR PARA
MUDANÇAS IMINENTES NESSE MESMO MODELO, ALGUMAS DAS QUAIS
JÁ VÊM SENDO CONCEBIDAS PELO PRÓPRIO TRIBUNAL.
PALAVRAS-CHAVE
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL; CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE;
JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA NO BRASIL
Marcos Paulo Verissimo
A CONSTITUIÇÃO DE 1988,VINTE ANOS DEPOIS:
SUPREMA CORTE E ATIVISMO JUDICIAL “À BRASILEIRA”
ABSTRACT
THE BRAZILIAN SUPREME COURT IS CURRENTLY CHANGING.
THIS PROCESS OF CHANGE SEEMS TO AIM AT SOLVING A
IMPORTANT CONTRADICTION CAUSED BY THE INSTITUTIONAL
REDESIGN OF THE COURT IN THE 1988 CONSTITUTION THAT,
ON THE ONE HAND, HAS TRANSFORMED IT INTO ONE OF THE
COUNTRY’S MAJOR POLITICAL ACTORS, BUT, ON THE OTHER
HAND, HAS ALSO CAUSED ITS DOCKETS TO GET INCREDIBLY
OVERLOADED, FORCING THE COURT TO DEAL WITH MORE THEN
100,000 CASES A YEAR. THE SOLUTION FOR SUCH PARADOX
WILL PROBABLY LEAD TO CHANGES IN THE BRAZILIAN MIXED
MODEL OF JUDICIAL REVIEW, AND SOME OF THESE CHANGES
ARE ALREADY BEEN CONCEIVED BY THE JURISPRUDENCE OF
THE COURT ITSELF.
KEYWORDS
BRAZILIAN SUPREME COURT; JUDICIAL REVIEW IN BRAZIL;
JUDICIALIZATION IN BRAZIL
1
THE BRAZILIAN 1988 CONSTITUTION TWENTY YEARS ON: SUPREME
COURT AND ACTIVISM IN A “BRAZILIAN MODE”
INTRODUÇÃO
A CONSTITUIÇÃO DE 1988, O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO DA VIDA POLÍTICA NACIONAL
A Constituição de 1988 aniversariou em outubro de 2008 e a comemoração de seus
vinte anos passa a ensejar, como é comum acontecer nessas datas especiais, processos
variados de avaliação, balanço e revisão.Trata-se de um documento importante por mui-
tas razões, algumas óbvias e outras menos evidentes. Sua posição privilegiada na
hierarquia normativa poderia, do ponto de vista interno à dogmática jurídica, ser usada
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como justificativa formal bastante dessa importância. No entanto, uma análise ao
menos parcialmente externa à dogmática é capaz de pôr em relevo outras razões de
destaque menos evidentes e talvez mais importantes. A primeira é simbólica: trata-se
da “Constituição Cidadã”, que nasceu para traduzir uma espécie de novo pacto insti-
tucional para a democracia. Nesse sentido, além de documento jurídico, ela incorpora
a promessa da construção e manutenção de uma democracia sustentável após um
período longo de tempo em que o Brasil foi marcado mais por governos de exceção
que por governos democráticos. Além disso, a democracia prometida institucional-
mente pela Constituição de 1988 não diz respeito apenas ao regime de governo, aos
direitos de participação política, mas também a direitos de inclusão social: é, portan-
to, uma democracia social marcada pela garantia de direitos sociais próprios a um
Estado que se quis fundar como welfarista, e que tem objetivos declarados de transfor-
mação social, redução de desigualdades de renda e de oportunidades, e também de
desigualdades regionais.
Esse plano de ação social foi incorporado ao discurso constitucional por meio do
léxico da dogmática jurídica, com seus substantivos, adjetivos e verbos bastante pró-
prios. Assim, a proposta de construção de uma democracia social foi configurada no
documento constitucional debaixo do jargão dos direitos, e os objetivos de redução
da pobreza traduzidos em direitos sociais cuja estrutura foi interpretada pela dogmá-
tica jurídica sob a mesma tradicional chave dos direitos subjetivos. Essa característica
marcante da Constituição de 1988 (que não constitui, vale dizer, fenômeno exclusi-
vamente nacional), produziu importantes modificações no discurso da dogmática
constitucional, que incorporou à adjudicação constitucional, com isso, novos e
importantes problemas, aos quais estão relacionados os temas candentes da exigibi-
lidade dos direitos sociais, da eficácia normativa das normas ditas programáticas, dos
limites do controle de constitucionalidade e outros semelhantes, crescentemente
lançados na pauta dos debates constitucionais a partir da promulgação do texto atual-
mente em vigor.
Sob um prisma externo à dogmática constitucional, o primeiro produto mais
importante desse novo arranjo constitucional consistiu em uma espécie de “fuga” cada
vez mais acelerada dos temas políticos (de política pública, de ação governamental exe-
cutiva, de política representativo-partidária) para dentro do mundo do direito e, deste,
para dentro dos órgãos judiciários. Esse processo, chamado globalmente pela alcunha de
“judicialização”, que se torna cada vez mais prevalente na experiência nacional, não
parece ter sido, ademais, um resultado imprevisto do novo arranjo constitucional. Ao
revés, parece ser um resultado previsível e talvez desejado por esse mesmo arranjo, na
medida em que, para além de traduzir o compromisso de democracia social para den-
tro do léxico do direito, o texto constitucional promulgado em 1988 também cuidou
de criar novos mecanismos de tutela judicial capazes de viabilizar a “implementação” dos
“direitos” e “princípios” de transformação social incorporados à nova carta.2
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A Constituição de 1988 também teve um papel fundamental no redesenho da
política tradicional, isto é, não judiciária, no contexto nacional. Outorgando enor-
mes poderes de agenda à chefia do executivo, entregou a esse poder uma
capacidade de ditar a pauta legislativa até então inédita no País, ao menos se consi-
derarmos as experiências democráticas anteriores. Entregando também ao
executivo poderes intensos de interferência na política de distribuição de recursos,
deu a esse poder capacidade de aglutinação em torno de si de um sistema partidá-
rio fragmentado, fundando as condições para o nosso chamado “presidencialismo de
coalizão”, em que o executivo central passa a ter, simultaneamente, enorme predo-
minância na determinação da pauta legislativa, além de altas taxas de sucesso na
aprovação de seus projetos.3 Por sua vez, esse expressivo aumento no poder de
determinação da política partidária por parte do executivo parece ter contribuído,
lateralmente, para a construção de um ambiente institucional apto a atribuir aos
órgãos judiciários uma espécie de “competência de controle” do novo e fortalecido
executivo, transformando esses órgãos em um importante fórum de contestação de
políticas públicas e projetos de governo, em uma espécie de “segunda instância deli-
berativa”, que passou a ser largamente utilizada tanto pela sociedade civil quanto
pelos partidos de oposição.
A lista de transformações institucionais provocadas ou viabilizadas pela
Constituição de 1988 seria enorme, e não é objetivo deste texto apresentá-la exaus-
tivamente. Contudo, um determinado aspecto dessas transformações parece poder
ser indicado com razoável clareza, aspecto esse que, como demonstrarei adiante, se
relaciona, diretamente, ao processo de judicialização supra-referido. Trata-se do
surgimento, no País, de um judiciário “ativista”, que não se constrange em exercer
competências de revisão cada vez mais amplas, quer incidentes sobre a política par-
lamentar (via controle de constitucionalidade, sobretudo), quer incidentes sobre as
políticasde ação social do governo (por intermédio das competências de controle
da administração pública, controle esse interpretado de forma cada vez mais larga
nos dias atuais).
Dentro desse arranjo, um entre os demais órgãos judiciários destaca-se, tendo tido
seu papel e características institucionais transformados radicalmente nos últimos vinte
anos. Trata-se, evidentemente, do Supremo Tribunal Federal. Apontado pelo texto de
1988 como o órgão responsável, “precipuamente”, pela “guarda” da Constituição, esse
tribunal foi inteiramente reformado pela nova Carta, destacando-se, entre as caracte-
rísticas gerais desse processo da reforma, uma enorme preocupação em ampliar as vias
de acesso popular à sua jurisdição. Isso se traduziu em instrumentos os mais diversos,
entre os quais sobrelevam os seguintes: (i) ampliação do rol de legitimados para a
movimentação do controle concentrado; e (ii) eliminação das barreiras de acesso ao
controle difuso, por meio, sobretudo, da eliminação dos requisitos de relevância geral
como condições especiais de admissibilidade do recurso extraordinário.
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O resultado último dessas transformações foi dúbio. Por um lado, colocou o STF
em uma posição de absoluto destaque na política nacional, transformando-o em um
órgão que passou, pouco a pouco, a agir declaradamente como uma das mais impor-
tantes instâncias políticas da nação. Por outro lado, soterrou essa mesma corte
debaixo de uma avalanche de processos, obrigando-a a conciliar esse seu papel polí-
tico, de instância de revisão e segundo turno da política representativa, com um
papel bem mais “rotineiro”4 de prestador de serviços forenses, de “terceira instância”
na estrutura judiciária tradicional de solução de disputas individuais. E assim é que,
um ano antes de ser promulgada a atual Carta Constitucional, em 1987, computa-
vam-se nas estatísticas de julgamento do órgão 20.122 casos resolvidos em doze
meses. Vinte anos depois, ou seja, em 2007, essas mesmas estatísticas registravam
159.522 casos para o mesmo período de tempo.
É em meio a essa crise de identidade institucional do Supremo Tribunal Federal
que se comemorará o vigésimo aniversário da Constituição de 1988. As propostas
para a solução da crise vão aparecendo aqui e ali e incluem instrumentos de concen-
tração decisória, mecanismos de filtro, propostas de transformação da corte em um
“tribunal constitucional”.5
Nesse sentido, meu propósito com o presente ensaio é o de analisar com alguma
atenção os dados que compõem as estatísticas de julgamento do Supremo, de sorte a
tentar compreender como se tem dado, efetivamente, o desenvolvimento de sua mis-
são política em meio a tamanha congestão de casos. A partir dessa análise, procuro
examinar, ainda que superficialmente, algumas das propostas de reforma institucio-
nal do STF, incluindo uma proposta que se poderia chamar de “autoconduzida” que
se encontra presentemente em curso de julgamento no tribunal, ligada à atribuição
de efeito vinculante às decisões tomadas pelo STF em sede de controle difuso de
constitucionalidade. Em conclusão, procuro demonstrar que um debate mais inten-
so acerca da feição institucional que se quererá emprestar ao órgão é premente, e
que, muito possivelmente, tal feição não será a de um “tribunal constitucional” em
sentido clássico, mas deverá aproximar-se, talvez, daquilo que poderia ser chamado,
por aproximação ao título que escolhi para este ensaio, de um tribunal constitucio-
nal “à brasileira”.6
1 CONSTITUIÇÃO DE 1988 E ATIVISMO “À BRASILEIRA”
O ponto de partida para a análise das transformações por que vem passando o
Supremo Tribunal Federal deve coincidir, creio, como o tema supramencionado da
judicialização da vida pública nacional. E esse tema, por sua vez, remete necessaria-
mente ao diagnóstico dúbio já referido acima. No curso do processo de
transformações por que passou nos últimos vinte anos, a justiça brasileira, de um
modo geral, acabou assumindo, por um lado, um papel marcadamente protagônico
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no espaço político, mas perdeu credibilidade, por outro lado, como prestadora do
“serviço público” de solução rotineira de controvérsias.
Por um lado, está completamente sobrecarregada e tem imensa dificuldade em
dar conta do volume de litígios com que é defrontada. É lenta e é ineficiente no
desempenho de inúmeras atividades fundamentais como, por exemplo, a recupera-
ção de créditos inadimplidos.Vista como prestadora de serviços de solução de conflitos
privados, ela é encarada com pessimismo e ansiedade, passando a estar submetida,
por conta disso, a toda uma agenda de reformas, concentrada no tema da eficiência na
gestão do serviço judiciário.
Por outro lado, essa mesma justiça engaja-se intensamente nas principais ques-
tões de política pública nacionais, vê seus instrumentos de ação aumentarem mais e
mais e é enxergada como canal de representação de minorias e de grupos sociais
excluídos do processo político formal (Vianna e Burgos, 2002). Em sua ação políti-
ca e de mediação social, a justiça parece encerrar expectativas esperançosas e apontar
para um potencial democrático revolucionário.7
Como ressaltado, boa parte das razões que explicam ambos os fenômenos
relacionam-se, direta ou indiretamente, à Constituição da Nova República. Essa
Constituição manteve o modelo brasileiro de jurisdição una e controle misto (difu-
so e concentrado) de constitucionalidade, o que significa que atribuiu a qualquer juiz
a tarefa e a prerrogativa de analisar a legalidade de atos produzidos quer pelo legis-
lativo, quer pelo executivo. Adicionalmente, o texto constitucional transformou em
regra jurídica um conjunto amplo e por vezes contraditório de anseios sociais e polí-
ticos, consagrando ideais de liberdade individual e igualdade material, propriedade e
redistribuição de renda, liberdade de empresa e dirigismo econômico. Outorgou à
justiça a tarefa de implementar esse plano difuso de ação e ampliou significativamen-
te os mecanismos de acesso que instrumentalizam esse ideal.
Assim é, por exemplo, que acabou eliminada no novo texto constitucional a pos-
sibilidade de escolha pelo Supremo Tribunal Federal dos casos que lhe são
submetidos. Essa escolha, antes materializada pelo mecanismo da argüição de relevân-
cia,8 foi considerada antidemocrática pelo legislador constituinte e expurgada do
sistema constitucional. Além disso, foram outorgadas ao Ministério Público garantias
de independência semelhantes às entregues ao próprio judiciário,9 positivando-se
sua competência para agir em proteção de qualquer interesse social, coletivo ou difu-
so.10 Ampliou-se o rol de legitimados ao controle de constitucionalidade das leis,
que ficou aberto, assim, também à sociedade civil, através dos partidos políticos, do
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, das confederações sindicais ou
das entidades de classe de âmbito nacional.11 Previram-se juizados especiais para
pequenas causas cíveis, criminais e federais.12 Estabeleceu-se constitucionalmente a
legitimidade processual das associações para representarem seus filiados em juízo.13
Constitucionalizaram-se inúmeros princípios processuais.14
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À justiça, e aos órgãos que a cercam, a Constituição de 1988 dedicou diretamen-
te 44 de seus 250 artigos, isso sem falar nas referências indiretas, espalhadas por todo
o texto constitucional.15 Criaram-se também, por força da nova Carta, cinco novostribunais de apelação em nível federal (os Tribunais Regionais Federais), além de um
novo tribunal de sobreposição em matéria infraconstitucional (o Superior Tribunal
de Justiça), destinado a absorver parte das competências antes atribuídas ao Supremo
Tribunal Federal.
Ao Supremo Tribunal Federal foi atribuída a “guarda” do novo texto constitucio-
nal. Operando seus termos dúbios e seu projeto de ação social, o tribunal foi chamado
a um verdadeiro papel de mediação de interesses e arbitramento de disputas entre
atores políticos, sobretudo entre governo e oposição. Os exemplos disso abundam e,
como eles demonstram eloqüentemente, o tribunal não parece ter ficado omisso a
esse chamamento. Ao revés, assumiu com cada vez mais clareza seu papel político, e
passou a exercer sua competência de revisão constitucional com cada vez mais desen-
voltura, quer no contexto do controle difuso, quer no do concentrado.
Para exemplificar isso em relação ao controle difuso, é possível referir uma pes-
quisa, apresentada por Marcus Faro de Castro ao XX Encontro Anual da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, em que foram analisadas
1.240 ementas de acórdãos julgados pelo Supremo Tribunal Federal e publicados no
Diário de Justiça da União no primeiro semestre de 1994 (Castro, 1997, 147). A amos-
tra compreendeu uma parcela significativa do total de 7.955 acórdãos publicados pelo
tribunal no mesmo ano (Castro, 1997, 151) e revelou resultados interessantes. Em
primeiro lugar, demonstrou que, na verdade, mais da metade dos processos analisados
(58,1%) veiculava questões de política fiscal ou tributária (Castro, 1997, 152). Em
segundo lugar, mostrou também que, em mais de três quartos dos casos (75,5%), o
tribunal produziu decisões totalmente contrárias aos interesses do Estado veiculados
nos respectivos processos. Entre o universo de decisões contrárias aos interesses do
Estado, a maior parte delas (50,88%) dizia respeito, justamente, a temas de política
fiscal e tributária (Castro, 1997, 153). Outro exemplo eloqüente de ativismo judicial
por parte do STF, também em sede de controle difuso, poderia ser o da derrota sofri-
da pelo governo em relação ao tema da correção monetária incidente sobre as contas
de FGTS durante o período de 1989–1990 (Plano Verão e Plano Collor).16 Muitos
outros exemplos semelhantes poderiam ser dados.
Mas é no campo do controle concentrado que o ativismo do tribunal fica mais
claro e produz resultados mais expressivos. Por essa via foram judicializados, em
tempos recentes, temas políticos importantes como aqueles ligados à Lei de
Biossegurança (Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 3.510), à reforma partidá-
ria (Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 1.351 e 1.354), e à verticalização das
candidaturas para a eleição de 2006 (Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
3.685), com declaração de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal,
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nos dois últimos casos. Se pensarmos na batalha judicial que foi travada em torno da
contribuição previdenciária dos inativos, teremos exemplo ainda mais expressivo.
Isso porque, apesar de o governo se ter saído vencedor por apenas três votos de van-
tagem, teve de arcar, mesmo assim, com uma vitória parcial, já que o voto vencedor
do Ministro Cezar Peluso manteve a constitucionalidade da política mas houve por
bem aumentar o limite de isenção respectivo de R$ 1.505,23 para R$ 2.508,72,17
em decisão que poderia ser compreendida, eventualmente, como demonstrativa do
exercício de competências legislativas pelo órgão judiciário, para além do mero
poder de veto.
Na verdade, segundo informações contidas no sítio do STF na internet, parece
haver, de modo geral, uma razoável propensão do tribunal a proferir juízos de incons-
titucionalidade nos casos que lhe são submetidos. Entre as Ações Direitas de
Inconstitucionalidade julgadas pelo mérito entre 1988 e 2008 (978 ações), nada
menos que 66,46% foram julgadas procedentes. Das restantes, 16,97% foram julgadas
parcialmente procedentes e apenas 16,57% foram julgadas totalmente improceden-
tes. Em relação aos pedidos de liminar em ADI julgados pelo mérito (442), o mesmo
ocorre. Em 55,43% dos casos a liminar requerida foi deferida integralmente. Em
16,06% dos casos foi deferida em parte e apenas em 28,51% dos casos foi totalmen-
te indeferida (BRASIL, 2008a).
Mas, como já dito, se a Constituição de 1988 está na base do processo de judi-
cialização da vida pública brasileira, tendo sido responsável por desenhar a face
protagônica que a justiça e o STF em particular ostentariam a partir da década de
1990, seus mecanismos de ampliação do acesso à justiça, aliados à aparente disposi-
ção dos tribunais em exercer ativamente as competências de revisão que lhes foram
atribuídas, também respondem, em contrapartida, por boa parte da crise de eficiên-
cia que acompanhou a atuação do Judiciário a partir dessa mesma década.
Segundo dados do próprio Supremo Tribunal Federal, a média anual de processos
distribuídos a essa corte era, na década de 1940, de 2.500. No final da década de 1950
esse número sobe para 7.000, mantendo-se estável entre 7.000 e 8.000 na década
seguinte. O número pouco mais que dobra entre as décadas de 1970 e 1980. Portanto,
em um espaço de 50 anos, o volume anual de distribuições ao Supremo Tribunal
Federal aumentou em aproximadamente oito vezes, isto é, cresceu a uma proporção
média de 4,5% ao ano.
Após a Constituição de 1988, contudo, em um espaço de apenas 16 anos
(1989–2004), o volume anual de distribuições mais que quadruplica. Isso representou
um aumento à proporção média de 10,5% ao ano. Se for tomado apenas o período
compreendido entre 1997 e 2002, o aumento é de espantosos 470%, ou 41,6% ao ano
(ver, a propósito, o Gráfico 1).18
Não por acaso, esse aumento é creditável, sobretudo, ao imenso alargamento das
vias de acesso ao exercício de competência recursal ligada ao exercício do controle
413:MARCOS PAULO VERISSIMO8
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difuso pelo STF. Assim, analisados os tipos de processo que experimentaram particu-
lar incremento e que respondem majoritariamente pelo volume de novos feitos
ingressados a cada ano, encontraremos, nas primeiras duas posições, tanto os recursos
extraordinários quanto os agravos interpostos contra decisões dos tribunais estaduais
ou federais que, na origem, negaram seguimento a recursos desse tipo.
Em 1990 (VER GRÁFICO 2), o número de agravos distribuídos ao STF foi de 2.465,
ao passo em que o número de recursos extraordinários representou 10.760. Juntas,
essas duas classes de processos representaram 81,5% de todas as distribuições. No
mesmo ano, foram distribuídas 267 ações diretas de inconstitucionalidade. Ao longo
dos 17 anos seguintes, o número de ações diretas de inconstitucionalidade variou
muito pouco, oscilando entre um patamar mínimo de 158, em 1996 e 2007, e um
patamar máximo de 306, em 2003. A média de ADIs distribuídas para o período foi
de 212 ao ano, verificando-se uma levíssima tendência de aumento médio do núme-
ro de distribuições ao longo do período. Mas, em relação ao número de agravos e
recursos especiais, o quadro é completamente outro. Em 2007, foram 56.909 agravos
e 43.708 recursos especiais distribuídos, o que representa um aumento, em relação
aos dados de 1990, de respectivamente 2.208,68% 306,20%. Em relação à participa-
ção percentual dessas duas classes processuais no total de distribuições, o que se
verificou no período foi uma forte tendência ao aumento da importância dos agravos
e uma diminuição expressiva na participação dos recursos extraordinários,conforme
se pode constatar a partir da leitura dos gráficos 3 e 4.
É desnecessário dizer que esses números passaram a colocar em questão o pró-
prio papel institucional do Supremo Tribunal Federal. Seu desenho institucional
corresponde ao de um órgão encarregado da “guarda da Constituição”. Isso significa
que sua missão não é, em princípio, a de solução de controvérsias, mas sim a de esta-
bilização da interpretação constitucional em um regime de controle misto, no qual a
importância do controle difuso exercido pelos mais diversos órgãos judiciários do
País, é significativa. Tal tarefa se exerce tanto por meio do controle concentrado de
constitucionalidade, que é sua competência originária, quanto do controle difuso,
que corresponde a uma de suas mais importantes competências recursais. Essas com-
petências recursais, todavia, deveriam ter o mesmo escopo de uniformização da
interpretação constitucional, e não serem usadas como mecanismos ordinários de
solução de casos particulares. Ao menos, essa seria a lógica se tomássemos como
ponto de partida o arranjo institucional em que se inspira o modelo de controle difu-
so com competência uniformizadora de uma corte suprema, que é o modelo
americano.Tais tarefas, contudo, ficam evidentemente prejudicadas se cada Ministro
do Supremo Tribunal Federal tiver que dar conta de um volume de distribuições indi-
viduais ao ano que supera a casa dos 10 mil feitos.
Ocorre que, não obstante esse volume imenso de distribuições anuais, o Supremo
Tribunal Federal é uma corte com baixa taxa final de congestão. De alguma forma, o
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tribunal consegue dar vazão, ano a ano, a quase a totalidade de seu volume de proces-
sos recebidos. Ademais, a julgar pela repercussão que ganharam, nos últimos meses,
casos importantes como o do julgamento da Lei de Biossegurança ou como a discussão
acerca da constitucionalidade do Prouni, parece que, ao fim e ao cabo, o Supremo con-
segue, de uma forma ou de outra, exercer sua competência de uniformização
(sobretudo no controle concentrado) apesar do imenso volume de casos que recebe
anualmente. O Gráfico 5, que compara o volume anual de processos recebidos e julga-
dos, dá conta dessa impressionante capacidade de resposta à demanda que tem marcado
o Supremo Tribunal Federal ao longo de sua história recente.
Como explicar essa notável produtividade, que supera em mais de oito vezes a
média nacional de produtividade por magistrado? Como justificar que os juízes res-
ponsáveis pelo tratamento do maior volume de casos no País sejam, justamente,
aqueles incumbidos de julgar os mais importantes, de interagir preferencialmente
com o espaço político em um processo de mediação de interesses, de atuação como
veto player, e de desestabilização e reorganização das respostas alcançadas nos canais
representativos tradicionais? O fato de possuir uma corte suprema ativista não che-
garia, por si só, a tornar o caso brasileiro uma espécie de anomalia entre as nações
ocidentais, já que o crescente ativismo das cortes supremas e constitucionais tem
sido um fenômeno relativamente global. No entanto, o que torna o caso brasileiro
anômalo é o fato de essa corte ser, também, a mais produtiva do País (certamente,
uma das mais produtivas do mundo), sobretudo quando se considera o número de
casos julgados ao ano por magistrado. Isso, sem dúvida, é um traço particular de
nossa experiência, caracterizando aquilo que poderia ser chamado, com alguma iro-
nia, talvez, de ativismo “à brasileira”.19
2 UM OLHAR SOBRE AS ESTATÍSTICAS DE JULGAMENTO DO STF
A compreensão da fantástica taxa de produtividade do STF passa pela percepção de
que são artificiais, em larga medida, os números atinentes aos feitos julgados a cada
ano, hoje, pelo STF. Eles dizem respeito, basicamente, ao volume de casos “resolvi-
dos”, isto é, eliminados da pauta do tribunal por terem sido objeto de algum tipo de
resposta jurisdicional, seja ela de mérito, seja ela meramente processual. O gráfico
6 mostra isso, revelando que o incremento expressivo do número de casos julgados
pelo tribunal, sobretudo após a promulgação da nova Constituição, não foi, todavia,
seguido por um aumento correspondente nas estatísticas de acórdãos publicados pelo
tribunal a cada ano. Estas mantiveram-se, surpreendentemente, muito mais estáveis.
Além disso, o percentual de acórdãos publicados em comparação com o número
geral de casos julgados tem caído década após década, deixando a média de 83,88%
que caracterizou a década de 1940 para atingir uma média de 11,80%, relativa aos
sete primeiros anos da década de 2000 (cf. Tabela 1).
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Assim, se nos sete primeiros anos da década de 2000 foram julgados em média
109.411 processos pelo STF a cada ano, o número de acórdãos publicados anualmen-
te foi bem menor, atingindo 12.903 (v. Gráfico 5).
Para explicar essa enorme diferença entre o volume anual de casos julgados e o
volume anual de acórdãos publicados é preciso investigar com um pouco mais de cui-
dado as hipóteses de elaboração e publicação de acórdãos no âmbito do tribunal. Essa
investigação fornecerá pistas valiosas sobre os modos que permitem ao Supremo lidar
com o espantoso volume de litígios que lhe é apresentado a cada ano. Sugerirá tam-
bém a possível existência de uma espécie de certiorary à brasileira, isto é, de um filtro
de cunho processual que pode estar permitindo ao tribunal gerir, de forma eventual-
mente informal, sua expressiva carga de trabalho.
Nesse sentido, é preciso ressaltar que há uma variadíssima gama de processos que
se submetem à competência decisória do STF. Por sua vez, essas competências são
repartidas entre competências originárias, recursais ordinárias e recursais extraordi-
nárias, estas últimas, sobretudo, próprias ao modelo de cortes supremas, cujo
paradigma fundamental é o da Suprema Corte Americana.20
A formatação do Supremo Tribunal Federal como corte suprema, isto é, como
órgão de cúpula do judiciário brasileiro, aliada ao modelo de controle difuso de cons-
titucionalidade, deriva do arranjo constitucional da primeira república. E isso
responde pela variada gama de atividades que são atribuídas à corte até hoje. Além
disso, com a introdução (em 1965, no início, pois, do último governo militar), de um
mecanismo estruturado de controle concentrado de constitucionalidade, tais compe-
tências ficaram ainda mais amplas, consolidando-se o modelo de controle misto
(parte recursal-difuso, parte originário-concentrado) que marca a corte até hoje.21
Na Constituição de 1967, emendada em 1969, essas competências variadas
incluíam o processamento e julgamento, em instância originária: (i) de crimes comuns
e de responsabilidade, quando os acusados fossem autoridades públicas de alto esca-
lão; (ii) de litígios entre Estados estrangeiros ou organismos internacionais e a União,
os Estados, o Distrito Federal ou os Territórios; (iii) de litígios entre a União e os
Estados ou territórios ou entre uns e outros, inclusive os respectivos órgãos de admi-
nistração indireta.Além disso, competia ao STF resolver (iv) os conflitos de jurisdição
entre quaisquer Tribunais e entre Tribunal e juiz de primeira instância a ele não subor-
dinado; (v) os conflitos de atribuições entre autoridades administrativas e judiciárias
da União ou entre autoridades judiciárias de um Estado e as administrativas de outro,
ou do Distrito Federal e dos Territórios, ou entre as destes e as da União.Ao STF tam-
bém competia julgar e processar originariamente (vi) pedidos de extradição e
homologação das sentenças estrangeiras, (vii) os habeascorpus e as ações de mandado
de segurança impetradaos contra ou em favor de autoridades de alto escalão. A com-
petência originária do órgão também incluía o julgamento (viii) da representação do
Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade ou para interpretação de
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lei ou ato normativo federal ou estadual; e (ix) das causas que fossem excepcional-
mente avocadas para sua jurisdição.
Em sede recursal, as competências do STF incluíam, além de várias hipóteses de
recurso ordinário (instância especial de apelação), o julgamento do recurso extraordinário,
nos casos em que se alegasse (i) contrariedade a dispositivo constitucional; (ii) nega-
tiva de vigência a tratado ou lei federal; (iii) inconstitucionalidade de tratado ou lei
federal; (iv) validação de lei ou ato de governo local contestados em face da
Constituição ou de lei federal; ou (v) interpretação divergente lei federal por parte
de tribunais submetidos à sua jurisdição.
A Constituição de 1988 extinguiu algumas dessas competências (por exemplo, a
avocação excepcional de causas)22 e transferiu outras tantas ao Superior Tribunal de
Justiça, sobretudo no que se refere aos objetivos de uniformização da aplicação do direi-
to federal infraconstitucional. Nesse sentido, resolveu concentrar a atuação do STF
preponderantemente em matéria constitucional, sem ter pretendido, contudo, transformá-lo
em uma corte constitucional especializada, de modelo europeu.
Uma corte constitucional desse tipo possui, como sabido, certas características
próprias, adicionais a essa já mencionada, ligada à concentração de competências
exclusivamente em temas de interpretação constitucional. Muito esquematicamente,
elas seriam as seguintes: (i) posição institucional apartada do judiciário (não são, em
outras palavras, órgãos de cúpula do judiciário, mas sim órgãos autônomos, apartados
e desvinculados da estrutura organizacional do poder judiciário); (ii) competência
exclusiva ou semi-exclusiva de controle constitucional (o que significa que os sistemas
que adotam esse modelo não permitem, em geral, que outros magistrados sem assen-
to na corte pratiquem qualquer modalidade de controle constitucional); (iii)
mandatos fixos para os integrantes da corte (não há garantias de vitaliciedade, pró-
prias à magistratura em geral, mas sim termos fixos em que os magistrados terão
assento na corte); (iv) indicação política de magistrados para a corte, por meio de
esquemas variados de nomeação ou eleição destinados, em geral, a repartir os pode-
res de indicação entre Executivo, Legislativo e Judiciário; (v) controle de
constitucionalidade por via de ação originária, praticado à vista da lei em tese (isto é,
sem que exista qualquer litígio concreto para ser resolvido), com o efeito de retirar
definitivamente a lei do ordenamento jurídico, em caso de declaração de inconstitu-
cionalidade (eficácia erga omnes); e (vi) legitimação para a provocação do controle de
constitucionalidade atribuída pontualmente a alguns poucos atores políticos.
Parecem ter sido justamente essas características adicionais, próprias ao modelo
de corte constitucional, que foram consideradas, de modo geral, inadequadas pelo
legislador constituinte de 1988 (sobretudo a estrutura apartada em relação ao judi-
ciário), para o que contribuiu, inclusive, o lobby dos próprios membros da corte, que
temiam a excessiva politização de um tribunal constitucional independente em rela-
ção ao judiciário.23
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A Constituição de 1988 optou, portanto, por manter o Supremo Tribunal
Federal como órgão de cúpula do judiciário, mantendo diversas de suas competên-
cias recursais ordinárias e eliminando, em relação ao recurso extraordinário, a
relevância geral como requisito adicional de admissibilidade. Além disso, outorgou
ao STF novas competências, como, por exemplo, as de julgamento da ação direta de
inconstitucionalidade por omissão, do mandado de injunção e da ação de descum-
primento de preceito fundamental.
A emenda constitucional n. 3, de 1993, outorgou uma nova competência à corte,
consistente no julgamento da ação direta de constitucionalidade. Já a emenda constitu-
cional n. 45 eliminou várias das competências alheias ao controle de constitucionalidade
presentes no texto original da Constituição, transferindo-as, basicamente, ao Superior
Tribunal de Justiça. Reintroduziu, além disso, a relevância geral como requisito de
admissibilidade do recurso extraordinário, através do mecanismo da repercussão geral.
Tal como está configurada hoje, a competência do STF inclui, além do julgamen-
to de recursos extraordinários e dos agravos interpostos contra decisões que tenham
deixado de admitir, na origem, recursos desse mesmo tipo (competência recursal
extraordinária), as seguintes atribuições adicionais: (a) competências originárias ligadas
ao controle concentrado de constitucionalidade – (i) julgamento da ação direta de incons-
titucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual; (ii) julgamento da ação
declaratória de constitucionalidade; (iii) julgamento da ação de descumprimento de
preceito fundamental, (iv) julgamento de pedidos de medida cautelar ligados às ações
do controle concentrado, (v) julgamento do mandado de injunção; e (vi) julgamento
da reclamação apresentada para de sua competência e garantia da autoridade de suas
decisões; (b) competências originárias não ligadas ao controle de constitucionalidade – (i)
julgamento de ações penais relativas a infrações penais comuns e de crimes de respon-
sabilidade em que os acusados são autoridades públicas de lato escalão; (ii) julgamento
de "habeas corpus", sendo paciente qualquer das autoridades com foro privilegiado no
próprio STF, ou quando a autoridade coatora for tribunal superior ou pessoa cujos
atos estejam sujeitos à jurisdição do STF; (iii) julgamento de mandados de segurança
contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do
Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República
e do próprio Supremo Tribunal Federal; (iv) julgamento de "habeas data" contra atos
das mesmas autoridades; (v) julgamento das revisões criminais de seus julgados; (vi)
julgamento de litígio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a União,
o Estado, o Distrito Federal ou o Território; (vii) julgamento de litígios entre a União
e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respec-
tivas entidades da administração indireta; (viii) julgamento dos pedidos de extradição;
(ix) julgamento de ação em que todos os membros da magistratura sejam direta ou
indiretamente interessados; (x) julgamento de conflitos de competência entre o
Superior Tribunal de Justiça e quaisquer tribunais, entre Tribunais Superiores, ou
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entre estes e qualquer outro tribunal; (xi) julgamento de ações em face do Conselho
Nacional de Justiça ou do Conselho Nacional do Ministério Público; (xii) julgamento
de pedidos de suspensão de segurança, liminar ou tutela antecipada; (xiii) julgamen-
to dos pedidos de intervenção federal; (c) competência recursal ordinária – julgamento
de recursos ordinários – (i) em "habeas corpus", mandado de segurança, "habeas-data"
ou mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se
denegatória a decisão; e (ii) em crimes políticos.
Algunsdesses processos são de competência da presidência da corte, e, entre os
restantes, sua solução pode ocorrer tanto pela via do julgamento monocrático (quan-
do as normas aplicáveis atribuem poderes ao relator para tanto), quanto por meio de
julgamento colegiado, nas Turmas ou no Plenário. Nos termos do artigo 93 do
Regimento Interno do STF, apenas nesses últimos casos fala-se na produção de acór-
dão contendo as conclusões do julgamento, ficando, no entanto, dispensado o
acórdão quando as Turmas resolvem remeter simplesmente o caso ao Plenário e,
também, nas hipóteses de provimento de agravos de instrumento. De toda sorte,
havendo acórdão, ele deve ser objeto de publicação (arts. 95 e 100), em um prazo
que, salvo motivo justificado, não pode exceder sessenta dias (art. 95, parágrafo
único). Portanto, levadas em conta as disposições normativas relevantes, é possível
dizer que, grosso modo, as estatísticas relativas à publicação de acórdãos, divulgadas pelo
STF, podem ser lidas como indicativas do número de processos julgados, a cada ano, pelas
Turmas ou pelo Plenário, o que equivale, em termos aproximados, ao número de casos julgados
de forma colegiada.24
As estatísticas de casos julgados e acórdãos publicados ao ano dizem, portanto, que
a imensa maioria dos processos resolvidos atualmente pelo STF (algo em torno de
88,20% deles, utilizando-se o proxy da média de acórdãos publicados verificada para a
década de 2000) não são, ao final das contas, levados a julgamento colegiado, quer nas
Turmas, quer no Plenário. Ao contrário, são objeto de julgamento monocrático.
Essa constatação, tirada da análise do número de acórdãos publicados, é confirma-
da pelos dados específicos de classificação dos julgamentos do tribunal contidos no
Relatório de Atividades para o biênio de 2006-2008.25 A Tabela 2 compara os dados
divulgados nesse relatório, atinentes aos julgamentos monocráticos e colegiados, com
os dados totais de julgamento e publicação de acórdãos já referidos anteriormente,
demonstrando, para os anos em que a comparação foi possível, a completa consistên-
cia da conclusão apontada acima.
Mas qual é o perfil dessa esmagadora maioria de casos que está, com freqüência
cada vez maior, sendo resolvida monocraticamente?
Em tese, pode tratar-se de quaisquer dos casos em que o relator tem poderes con-
feridos pela lei para julgar o mérito ou as condições de admissibilidade da ação ou do
recurso, ordinário ou extraordinário. Entre outras, são desse tipo as competências
estabelecidas nos artigos 544, §§ 3o e 577 do Código de Processo Civil (juízos de
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admissibilidade e mérito em recursos em geral), nos artigos 4o e 15o da Lei n.
9.868/99 (indeferimento liminar de ação direta de inconstitucionalidade ou declara-
tória de constitucionalidade), no artigo 4o da Lei n. 9.882/92 (indeferimento liminar
da ação de descumprimento de preceito fundamental), e em diversos dispositivos do
regimento interno do STF, como, por exemplo, os arts. 161, parágrafo único (julga-
mento liminar da reclamação) e 248 (decisão de saneamento em ação cível originária).
São casos de improcedência ou procedência manifesta por confronto a jurisprudência
ou súmula, de ausência evidente de condições de ação, pressupostos processuais ou
requisitos de admissibilidade recursal. Pode tratar-se, ainda, de competência atribuída
pela lei monocraticamente ao Presidente do STF (por exemplo, a competência para
suspensão de segurança, disciplinada no art. 297 do regimento interno, entre outros
dispositivos normativos aplicáveis) ou mesmo de competência típica de relatoria exer-
cida por esse magistrado antes da distribuição de recursos (por exemplo, a do art. 13,
inc.V, alínea c do regimento interno, que autoriza o Presidente a exercer as prerroga-
tivas previstas nos artigos 544 e 577 do CPC, inclusive para o fim de analisar
preliminarmente as condições de admissibilidade relacionadas à repercussão geral).
Nesse sentido, o que organiza esse universo bastante díspar de hipóteses parece
ser o fato, comum a todas, de veicularem situações consideradas pela lei como de
menor complexidade, situações de solução supostamente evidente, que por isso não
justificam, no comum das vezes, o recurso ao órgão colegiado, nem mesmo quando
se apresentam em um tribunal comum de segunda instância. São situações, portan-
to, que sequer deveriam poder ser levadas à presença do Supremo Tribunal Federal,
sobretudo quando relativas ao exercício da competência recursal extraordinária da
corte, que deve, ao final, responder pelo número mais expressivo de decisões mono-
cráticas, já que os agravos e recursos extraordinários responderam, nos sete
primeiros anos da década de 2000, por 95,10% de todos os casos distribuídos ao tri-
bunal e a 94,13% de todos os casos julgados.
É verdade que pode haver também, por trás dessas decisões monocráticas, uma
espécie de certiorary informal, isto é, de filtro informal destinado a tornar viável a ges-
tão de casos nas turmas e no plenário. Nesse sentido, não se pode saber se já não estaria
sendo praticado informalmente, no tribunal, antes mesmo da Emenda Constitucional
n. 45.04, um juízo prévio de relevância dos casos relativos a recursos extraordinários,
juízo esse justificado formalmente sob o prisma formal-procedimental da admissibili-
dade (nesse sentido, decisões de indeferimento liminar fundadas na falta de requisitos
formais ou materiais de admissibilidade poderiam estar travestindo, já de algum
tempo, juízos materiais de irrelevância, somente autorizados a partir da EC 45). Essa
é uma conjectura que pode fazer especial sentido quando se tem em conta a rigidez
com que o STF foi construindo ao longo do tempo suas exigências formais e materiais
de admissibilidade do recurso extraordinário (por exemplo, quanto às últimas, no que
diz respeito ao prequestionamento, ou à noção de interpretação razoável, contida na
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Súmula 400, ou a todas as matérias tratadas nas Súmulas 283, 284, 356 e 636, entre
outras). No entanto, a inexistência de qualquer pesquisa metodologicamente consis-
tente apontando essa tendência com clareza impede-nos de tratar essa suposição como
qualquer coisa além de pura conjectura.
Não obstante, fato é que tais decisões monocráticas não podem atingir, ao menos
sob o ponto de vista legal, o coração das atribuições institucionais do STF, sobretu-
do no que diz respeito às mais importantes, àquelas ligadas à produção de decisões
vinculantes com efeito geral. Tais decisões, ligadas aos julgamentos de mérito no
controle concentrado, à edição de Súmulas, ao julgamento das questões constitucio-
nais mais polêmicas trazidas pelo controle difuso, são exclusivas das Turmas ou do
Plenário. Sobretudo no que diz respeito ao controle concentrado, que tem efeitos
gerais mais amplos e que tem se mostrado como locus privilegiado das decisões mais
importantes do STF, daquelas que ganham mais relevo na mídia e no debate público,
são competências que estão atribuídas, privativamente, ao Plenário. E, se as decisões
colegiadas já são uma minoria entre os julgamentos proferidos atualmente pelo STF,
as decisões proferidas no Plenário são a minoria entre a minoria.
De fato, os números publicados no Relatório de Atividades do STF para o biênio
de 2006–2008 demonstram que o julgamento de casos pelo Plenário é evento ainda
mais raro que o julgamento colegiado em si. Em 2006, os casos julgados em plenário
corresponderam a 0,5% de todos os casos julgados no ano. Em 2007, o percentual foi
de 5,04% e em 2008, até 10 de abril, estava em 4,81%. A média do período corres-pondeu a 3,34%.
Em 2006, o Plenário do STF julgou 565 casos (o número de decisões do pleno foi
particularmente baixo nesse ano), ao passo em que o tribunal, como um todo, profe-
riu 112.403 decisões. Apesar da aparente excepcionalidade dos números de julgados
do Pleno em 2006, é inevitável que eles provoquem algum tipo de reflexão quanto ao
trabalho do tribunal. A primeira pode ser a seguinte: se é inconcebível imaginar uma
corte suprema ou constitucional que julgue mais de uma centena de milhares de casos
ao ano, o número algo superior a cinco centenas, atinente aos julgamentos do
Plenário do STF em 2006, ainda que permaneça alto, já é bem mais próximo daquilo
que se pode encontrar nas experiências estrangeiras.
Em 2007, foram proferidas pela Corte Constitucional italiana 464 decisões. Esse
número havia sido de 463 em 2006 e 482 em 2005. Em 2000 foram 592 decisões
(Itália, 2007 e 2008). O Tribunal Constitucional português julgou, em 2006, 711
casos. Em 2005, 2004 e 2003 haviam sido, respectivamente, 723, 725 e 638 casos
(Portugal, 2008). O Tribunal Constitucional espanhol julgou, em 2007, 11.590 casos,
a maior parte consistindo em recursos de amparo inadmitidos, produzindo um total
de 295 sentenças de mérito (ESPANHA, 2008). Em 2006 esses números haviam sido
de 9, 173 e 382, respectivamente. O Tribunal Constitucional do Peru, entre proces-
sos de inconstitucionalidade, amparo, habeas corpus, habeas data, queixas e outros
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processos semelhantes, julgou ao ano, em média, 7.505 processos, no período com-
preendido entre 2004 e 2997 (PERU, 2008).
É evidente que cada corte suprema e cada tribunal constitucional possui, para além
dos esquemas fáceis de classificação em um ou outro desses modelos, particularidades
específicas, ligadas à tradição e à cultura jurídica nacionais, que determinarão perfis de
julgamento diferentes, apontando para um maior ou menor volume de casos.Todavia,
quando olhamos o número de casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal, ele apa-
rece, na comparação internacional, como uma evidentíssima anormalidade. Quando
olhamos, contudo, para os julgamentos colegiados, a anormalidade começa a amenizar.
Quando focamos nossa atenção exclusivamente ao trabalho do Plenário, a imagem que
temos é algo mais próximo do que poderia ser considerado “normal”, em termos de
volume de trabalho atribuído a um tribunal com as características dessa Corte.
Quando sugiro que a nossa experiência de ativismo constitucional seja marcada
por traços próprios, em alguma medida desviantes do que normalmente se encontra
na experiência internacional (um ativismo “à brasileira”), um dos pontos a que me
refiro consiste justamente nessa disparidade imensa entre o número de casos lança-
dos ao STF, o número de casos “formalmente resolvidos” por ele a cada ano, e o
número de casos que efetivamente geram discussões sofisticadas de constitucionali-
dade no Plenário. Refiro-me ainda ao conforto que o acesso formalmente irrestrito
à corte parece dar à comunidade jurídica, fazendo parecer que existe, mesmo, uma
espécie de “direito individual” à solução de certos casos pelo STF, mesmo que a expe-
riência mostre que a esmagadora maioria dos casos pode estar sendo resolvida de
forma burocrática por meio de juízos singulares de inadmissão. Creio que esse seja
um dos pontos que destaca a experiência brasileira das demais.
Mas há um outro ponto de destaque, algo paradoxal, que é distinto, porém se rela-
ciona ao anterior. Trata-se da imensa resistência que temos em outorgar ao STF
poderes efetivos de concentração das decisões sobre constitucionalidade. O caráter
paradoxal desse traço consiste em seu contraste com o imenso poder que o órgão já
detém para, de um lado, produzir decisões vinculantes de efeito geral (como no con-
trole concentrado), ou de outro, para produzir juízos em princípio informais de
irrelevância (por exemplo, por meio dos critérios rígidos de admissão do recurso
extraordinário, já mencionados acima, que se traduzem em uma expressiva maioria de
julgamentos monocráticos, provavelmente de inadmissão).Tais poderes já existem e já
são praticados de fato. Contudo, temos, de um modo geral, imenso receio de consoli-
dá-los em mecanismos formais de unificação vinculante de jurisprudência e de escolha
(fundamentada, mas com alguma dose de discricionariedade no julgamento) das hipó-
teses de exercício formal da competência recursal em sede de controle difuso.
Esse segundo traço é, ao mesmo tempo, responsável pela sobrecarga no volume
de trabalho do STF e, também, por uma certa sensação de descontrole que parece
haver intrínseca ao nosso sistema atual de revisão difusa de constitucionalidade. Esse
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é o segundo elemento que parece caracterizar nosso ativismo “à brasileira” e sobre
ele é que concentrarei as considerações restantes deste ensaio.
3 QUAL É O TRIBUNAL QUE QUEREMOS? UMA SUPREMA CORTE
“À AMERICANA” OU UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL “À EUROPÉIA”?
As considerações feitas acima remetem claramente a uma questão fundamental, ati-
nente ao modelo de Supremo Tribunal Federal que desejamos construir. E qualquer
ponderação que se possa fazer a respeito disso terá que levar em consideração, neces-
sariamente, nosso modelo híbrido e particular de controle de constitucionalidade,
em que se misturam os modelos concentrado e difuso e no qual o modelo de contro-
le difuso é desacompanhado de mecanismos “de organização”, por assim dizer:
mecanismos que permitam a uniformização dos entendimentos sobre a constitucio-
nalidade das leis a partir da jurisprudência do órgão de cúpula do judiciário.
Desenvolvi, em um outro trabalho (VERISSIMO, 2006), considerações mais
extensas sobre a natureza eminentemente distributiva da jurisdição constitucional,
ou seja, dos processos variados de negociação de interesses, ação de veto, contribui-
ção para a redefinição e para a criação de políticas públicas que são inerentes à
aplicação de uma Constituição vasta, principiológica, socialmente orientada e por
vezes contraditória como é a brasileira. E ressaltei o fato de haver um desajuste fun-
damental quando as decisões distributivas são tomadas com foco na singularidade dos
casos individuais. Esse é um tema absolutamente central à análise de nosso modelo
de controle misto de constitucionalidade.
De fato, analisando comparativamente os modelos de controle difuso e concentra-
do, Mauro Cappelletti (1984, p. 77-8) advertia para os perigos que seriam inerentes a
qualquer tentativa de introduzir o sistema difuso de controle de constitucionalidade
em países de tradição jurídica ligada à família da civil law, nos quais não existe a doutri-
na do stare decisis ou da vinculação pelo precedente. Segundo o autor, “a introdução, nos
sistemas de civil law, do método ´americano´ de controle, levaria à conseqüência de
que uma mesma lei ou disposição de lei poderia não ser aplicada, porque julgada
inconstitucional, por alguns juízes, enquanto poderia, ao invés, ser aplicada, porque
não julgada em contraste com a Constituição, por outros”. Prosseguindo adiante com
seu espanto diante dessa possibilidade, diz Cappelletti que “a conseqüência, extrema-
mente perigosa, de tudo isto, poderia ser uma grave situação de conflito entre órgãos
e de incerteza do direito, situação perniciosa quer para os indivíduos como para a cole-
tividade e o Estado”.
Essas considerações dizem respeito a um problema jurídico fundamental (talvez
o primeiro dos problemas jurídicos): a necessidade de tratar igualmente aos iguais.
Esse postulado de tratamento isonômico é também um problemaprocedimental
interno aos arranjos institucionais do controle de constitucionalidade, pois esses
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podem, dependendo de sua configuração, reduzir ou amplificar desigualdades de tra-
tamento no plano do direito. A advertência é de William Rubenstein (2002), para
quem a desigualdade torna-se um problema das estruturas processuais tanto quando
elas se defrontam com litigantes desiguais, dotados de desequilibrada capacidade de
apresentar suas teses, quanto nas hipóteses em que o próprio processo gera resultados desiguais
para pessoas que deveriam estar na mesma situação. Isso pode ocorrer, por exemplo, “quan-
do um conjunto de partes similares litiga de forma independente um determinado
dano” (Rubenstein, 2002, p. 1893).Assim, “[u]ma parte das escolhas relativas ao dese-
nho dos procedimentos e das regras processuais, mais ou menos explicitamente,
procura evitar esse tipo de disparidade de resultado” (RUBENSTEIN, 2002, p. 1894).
Um desses mecanismos, no campo do controle difuso de constitucionalidade, consis-
te na concentração de poderes decisórios nas cortes superiores, que existem
exatamente para essa finalidade (mecanismos de uniformização de jurisprudência,
vinculação por precedentes e, em alguns casos excepcionais, avocação de causas).
Outro consiste no próprio uso dos mecanismos de controle concentrado.
O hibridismo de nosso sistema não atentou para essas advertências. Assim, se de
um lado gerou um sistema especialmente aberto à participação de atores sociais na
jurisdição constitucional, com conseqüente ampliação do papel político institucional
do STF (Vieira, 2002), não permitiu, por outro, que esse tribunal pudesse exercer
qualquer papel relevante de uniformização do direito no uso de sua competência
recursal extraordinária ligada ao sistema de controle difuso. Isso, aliado à existên-
cia de uma constituição vasta e por vezes contraditória, gerou um ambiente em que
a jurisdição constitucional tornou-se especialmente caracterizada por incertezas,
processos contraditórios de aplicação e tratamentos por vezes desiguais de situações
que deveriam merecer tratamento jurídico uniforme.
Tal cenário fez com que nosso sistema de controle de constitucionalidade fosse des-
crito por um observador estrangeiro, em artigo publicado em 2000, da seguinte forma:
O Brasil tem um sistema de controle de constitucionalidade extenso e
complicado. Tem também uma Constituição enorme, carregada de direitos
individuais específicos e de objetivos sociais e econômicos de longo alcance.
Colocar direitos e objetivos por escrito, no entanto, mesmo em uma
constituição nacional, não assegura seu respeito por aqueles encarregados 
de administrar as operações diárias do governo. Em virtude da existência no
Brasil de um sistema judicial acessível, muitas dessas violações constitucionais
estão nas secretarias dos tribunais esperando solução judicial. Como o Brasil
tem apenas um sistema mínimo de vinculação por precedentes, as cortes
decidem as mesmas questões constitucionais muitas vezes seguidas. Além 
de isso consumir recursos judiciais valiosos, isso produz interpretações
conflitantes das disposições constitucionais (ROSENN, 2000).
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No diagnóstico desse autor, as mudanças promovidas pela Constituição de 1988,
consolidando um modelo de controle de constitucionalidade “híbrido e extraordina-
riamente complexo, que tenta conciliar as tradições de civil law e de common law”,
teriam criados “sérios problemas para o sistema judiciário”, apontando a necessidade
de mudanças. Especialmente, de mudanças que permitam ao Supremo Tribunal
Federal escolher, discricionariamente, os casos em que irá atuar sua competência
recursal extraordinária atinente ao controle difuso e, também, que se destinem a tor-
nar sua jurisprudência, de algum modo, vinculante.
Um dos pontos mais importantes a considerar nesse debate é que a escolha entre
o modelo de Corte Suprema e o modelo de Tribunal Constitucional tem muito pouca
relação com o ponto fulcral dos debates que envolvem hoje a reforma do STF, já que
estes são fundados, penso eu, em dois elementos fundamentais que são comuns a
ambos os modelos, e que são relacionados entre si, a saber: (i) a concepção de meca-
nismos de vinculação geral pelas decisões do tribunal; e (ii) o controle sobre o acesso
de casos à corte, de modo a expurgar de seu trabalho de julgamento casos rotinei-
ros, que não tenham algum tipo de interesse geral.
No que diz respeito ao primeiro ponto, a solução dada pelo modelo puro de cor-
tes constitucionais consiste no ataque constitucional à lei em tese, com o efeito, em
caso de declaração de inconstitucionalidade, de retirá-la do ordenamento jurídico.
Dizer que não há, dentro desse modelo, nenhum espaço para o exercício de contro-
le de constitucionalidade por outros órgãos do judiciário é algo que faz sentido
quando se pensa no modelo puro, mas já não corresponde completamente à realida-
de das experiências concretas, como demonstram os casos da Alemanha e Itália, por
exemplo. E a explicação para isso é simples:
[...] uma vez que as normas, princípios e valores constitucionais se tornam
relevantes para a aplicação de normas infraconstitucionais específicas, eles
passam a ser aplicados não apenas pela corte constitucional, que normalmente
intervém como “última instância”, mas também – e primariamente – por todas
as outras cortes e juízes. A constitucionalização de ramos específicos do direito
significa que o conteúdo normativo de cada um desses ramos é agora determinado
não apenas pelas leis e códigos particulares a eles, mas também pelas disposições
constitucionais pertinentes e pela jurisprudência constitucional aplicável. [...]
Tais desenvolvimentos demonstram que não é possível uma separação genuína
entre jurisdição constitucional e jurisdição ordinária em um Estado de Direito
moderno” (GARLICKI, 2007, p. 49).
Assim, o que acaba distinguindo a corte constitucional é o fato de ela estar incum-
bida de dar a última palavra sobre a interpretação constitucional, e de suas decisões
serem vinculantes. No modelo americano de corte suprema, essa vinculação é da
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essência do sistema de stare decisis, produzindo-se, ao fim e ao cabo, o mesmo tipo de
elemento uniformizador.
Já em relação ao segundo ponto, o da existência de filtros, ambos os modelos tam-
bém convergem em alguma medida. No modelo puro de cortes constitucionais, haveria,
em princípio, uma ação direta de constitucionalidade, cuja legitimação seria atribuída a
um rol seleto de atores políticos. Desse modo, a seletividade na atribuição de legitima-
ção agiria como um filtro. No modelo puro (americano) de Corte Suprema, não há esse
filtro formal, esta é órgão de cúpula do judiciário e tem competência recursal irrestri-
ta, capaz de ser provocada por qualquer um. No entanto, o filtro incidente é o do
certiorary e, conforme mencionado, esse filtro passa a ser aplicado em quase todos os
casos submetidos à jurisdição da corte, tendo sido praticamente suprimidas, recente-
mente, as competências recursais não discricionárias.
Assim, em nenhum dos modelos se cogita atribuir ao órgão encarregado guardar a
constituição competências recursais obrigatórias, e irrestritas, aplicáveis à generalidade
dos casos. Nem, tampouco, se cogita atribuir, como regra, às decisões desse órgão, cará-
ter de mera recomendação. Há, quase sempre, algum tipo de efeito vinculante e geral,
independentementede o juízo de constitucionalidade ter tido origem em um exame
abstrato da norma ou na análise de um caso concreto em que ela foi aplicada.
Essa mesma diferença, entre o caráter abstrato ou concreto do controle, que
seria uma das marcas características a dividir os modelos de cortes supremas e cons-
titucionais, também é mais esquemática que real, como exemplifica o caso italiano,
em que boa parte do trabalho da Corte Constitucional se dá à vista de casos concre-
tos, referidos à corte pelas instâncias ordinárias do próprio judiciário.26 Ou mesmo
o caso alemão, em que o recurso constitucional traz à consideração do Tribunal
Constitucional casos concretos, com iniciativa dos próprios indivíduos lesados. Mas
vale anotar que o tribunal se reserva, nesse último caso, a competência para escolher
quais irá julgar, e os efeitos da decisão continuam a produzir-se erga omnes, tal como
ocorreria, grosso modo, no controle difuso à americana.
Isso tudo significa que os modelos de corte suprema e tribunal constitucional
funcionam mais como tipos ideais do que como camisas de força institucionais, e que
as experiências nacionais e estrangeiras são, normalmente, ligadas à construção de
instituições específicas, com particularidades ligadas às necessidades e tradições
especiais de cada país.
Assim, o apego brasileiro ao hibridismo que marca nossa jurisdição constitucio-
nal não precisa, necessariamente, impedir eventuais projetos de reforma. O
hibridismo, por sinal, parece ser a marca de vários dos principais arranjos institucio-
nais que marcam o controle de constitucionalidade em tempos atuais. O que parece
haver de errado com a jurisdição do STF não é propriamente o sistema misto de con-
trole, mas sim o desgoverno na entrada de casos na secretaria da corte (fenômeno
razoavelmente único na experiência internacional, quer do modelo difuso, quer do
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concentrado, como já visto) e o desprestígio que as decisões têm quando dadas no
contexto do controle difuso (o que não se observa nem no modelo americano, nem
na experiência alemã do recurso constitucional, por exemplo, já que em ambos os
casos, tirados de modelos opostos de controle, a decisão da corte suprema ou cons-
titucional, uma vez dada, fica investida de algum tipo de efeito geral).
CONCLUSÃO E FUTUROLOGIA:
UM TRIBUNAL CONSTITUCIONAL “À BRASILEIRA”?
Qual seria, então, o caminho de reforma para o Supremo Tribunal Federal? Seria o de
transformá-lo em uma “corte constitucional” pura, como se cogitou na Constituinte de
1988? Creio que uma reforma desse tipo teria chances muito pequenas de ser bem-
sucedida no caso brasileiro, quer no que se refere às suas chances de ser aprovada, quer
no que diz respeito a seu eventual sucesso institucional, se a aprovação acabasse acon-
tecendo.27 O caminho da experiência nacional tem particularismos importantes e o
que parece estar se construindo não apenas pelas progressivas reformas constitucionais
e legislativas, mas também, como veremos adiante, pela própria jurisprudência do STF,
parece ser um caminho próprio, que mescla elementos dos dois modelos ideais de tri-
bunal constitucional, de sorte a criar um Tribunal Constitucional “à brasileira”.
Esse tribunal é, antes de mais nada, órgão de cúpula do judiciário. Isso o aparta
do modelo de cortes constitucionais puras e está traduzido, por exemplo, na compe-
tência outorgada ao STF para julgar casos “de interesse geral da magistratura”. Além
disso, parece haver uma experiência nacional ligada ao controle difuso bastante con-
solidada, que seria dificilmente transformada de modo radical. Essa experiência, em
uma de suas faces, outorga competências à magistratura em geral para realizar con-
trole de constitucionalidade, e tais competências se traduzem em um tipo de poder
que a magistratura não estaria disposta a abrir mão. O exemplo francês é eloqüente
nesse sentido, dando conta da criação de uma curiosa válvula de escape à proibição
de exercício de controle difuso por parte dos juízes. Essa válvula de escape consistiu
na construção de uma doutrina que lhes permite deixar de aplicar a legislação fran-
cesa quando ela é tida por incompatível com a legislação comunitária, que tem, por
sua vez, normas abertas e princípios de ação muito parecidos com aqueles que seriam
encontráveis em uma constituição nacional. Assim, o controle de constitucionalida-
de instalou-se informalmente na França travestido de controle de compatibilidade
das leis francesas com o direito comunitário, demonstrando, eloqüentemente, que a
complexidade das relações reais de poder é capaz de contornar quaisquer tentativas
formais de controle do poder decisório da magistratura. Além disso, sequer parece-
ria conveniente extinguir essas competências de controle por parte dos juízes
brasileiros, já que uma das virtudes apontadas para o controle difuso, que parece estar
presente em nossa experiência, é sua enorme flexibilidade, aliada à possibilidade de
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“testarem-se”, em múltiplas instâncias e à vista de casos concretos, variadas soluções
constitucionais, antes que uma delas seja consolidada no entendimento de uma dada
corte suprema. O problema, portanto, parece ser o de permitir que nosso arranjo
institucional produza, em algum momento, esse resultado último de consolidação e
organização dos entendimentos constitucionais.
Uma das soluções propostas para esse problema, nas reformas recentes, é a da
súmula vinculante. Mas trata-se, ao fim e ao cabo, de uma solução algo tímida. Ao
invés de impedir o julgamento repetido de questões idênticas pelo STF, a súmula
depende, justamente, da existência desses julgamentos idênticos e repetitivos, para
que possa ser editada. Isso porque, nos termos do artigo 103-A da Constituição
Federal, sua edição somente pode ocorrer “após reiteradas decisões sobre matéria
constitucional”. Em um tribunal comum de apelações, tal exigência até poderia fazer
algum sentido, já que um tribunal desse tipo é composto de uma infinidade de magis-
trados, reunidos em órgãos colegiados distintos, que podem até mesmo ter
interpretações distintas sobre uma mesma questão legal (esse é o modelo de cortes
supremas na Europa, que encontraria alguma semelhança, no Brasil, com o arranjo
institucional próprio ao STJ, como seus 33 Ministros divididos em 6 Turmas, 3
Sessões, uma Corte Especial e um Tribunal Pleno).28 Mas no STF, em princípio, as
declarações de inconstitucionalidade (ressalvada a competência das Turmas, como
visto supra), deveriam em princípio ser remetidas, prioritariamente, ao próprio
Plenário. Exigir julgamentos repetitivos para que o entendimento do tribunal possa
tornar-se vinculante passa a fazer pouco sentido nesse contexto, ainda mais quando
se tem em conta que o regime de vinculação no controle concentrado é completa-
mente outro e não depende de qualquer repetição.
Para a solução do problema ligado à existência de filtros, a reforma constitucional
concebeu o mecanismo da relevância geral. Mas o fez, novamente, de sorte a tornar o
mecanismo quase impossível de ser aplicado, caso se quisesse levar às últimas conse-
qüências o regime processual determinado pela Constituição.
De fato, ao instituir esse requisito de admissibilidade, a Constituição determi-
nou, em seu artigo 102, § 3o, que o STF somente poderia recusar-se a julgar um
recurso extraordinário, por falta de relevância, mediante “manifestação de dois ter-
ços de seus membros”. Em outras palavras, exigiu, para o julgamento de irrelevância,
quorum maior até mesmo que o necessário para o julgamento de mérito do recurso,
que acontece,ordinariamente, nas Turmas. Nesses termos, qualquer um que medi-
tasse sobre a viabilidade de reunião do Plenário do STF para o julgamento de
irrelevância de mais de 100 mil casos ao ano seria capaz de perceber que o mecanis-
mo, assim aplicado, seria mais custoso que o mecanismo já existente de filtro por
meio de decisões monocráticas de inadmissão formal (por falta de requisitos formais,
ou de prequestionamento, ou por violação de quaisquer das Súmulas que tratam da
admissibilidade, como visto supra).
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A salvação do mecanismo, no entanto, parece ter sido dada pelas normas
infraconstitucionais que o regularam. Em primeiro lugar, pela Lei n. 11.418/96,
que estabeleceu que, “negada a existência de repercussão geral, a decisão valerá
para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmen-
te”, prevendo ainda a possibilidade de sobrestamento de recursos idênticos, para
análise de repercussão geral em apenas um deles. De outra parte, as emendas n.
21, 22 e 23 ao Regimento Interno do STF criaram o mecanismo do “Plenário
Virtual” para processar as decisões sobre repercussão geral eletronicamente,
criando ainda condições para a própria secretaria aplicar, com certas restrições,
os mecanismos de filtro criados.
Se esse mecanismo for utilizado com o devido rigor pelo STF, talvez seja possí-
vel, afinal, racionalizar a pauta de julgamentos do Supremo, ao menos no que diz
respeito à sua competência recursal extraordinária. Em outras palavras, talvez seja
possível reduzir o imenso abismo que separa, hoje, os números atinentes aos julga-
mentos totais da corte em relação aos números atinentes aos casos julgados em
Plenário. Mas, aparentemente, outras reformas precisariam ser feitas, inclusive para
reduzir ainda mais as competências recursais ordinárias e as competências originá-
rias do tribunal, no último caso em relação, sobretudo, ao julgamento de ações
penais envolvendo autoridades políticas, ou das ações cíveis envolvendo “pequenas
causas políticas”, para usar uma expressão que tem sido usada pelo Professor Oscar
Vilhena (VIEIRA, 2007).29
Voltando, contudo, ao tema do controle difuso, e também ao das súmulas vincu-
lantes, é preciso ter em mente que o endurecimento no uso dos filtros atinentes à
admissão de recursos extraordinários não fará qualquer sentido se não for introduzi-
do algum mecanismo mais eficaz de atribuição de efeito geral às decisões dadas pelo
STF no exercício dessa competência recursal. Nesse ponto, as soluções vindas do
espaço legislativo sempre foram tímidas.
Desde muito tempo se discute no plano legislativo a atribuição de efeito vincu-
lante às decisões desse tipo proferidas pelo STF. Em todas as oportunidades, a tese
de criação de uma espécie de stare decisis brasileiro ficou vencida. A alternativa que
encontramos foi a de suspensão da execução da lei pelo Senado Federal, mas essa
alternativa, por razões até mesmo óbvias (o Senado tem, no mais das vezes, uma
agenda política própria, que pode perfeitamente ser incompatível com o juízo de
inconstitucionalidade proferido incidentalmente pelo STF), nunca produziu efeitos
substantivos concretos.
Todavia, está ocorrendo, agora mesmo, um fenômeno curioso de contorno desse
impasse institucional pelo próprio STF. Refiro-me ao julgamento da Representação
n. 4.335-5, em curso perante o tribunal.
Essa representação tem origem no julgamento do habeas corpus n. 82.959, em que
se decidiu, incidentalmente (por via de controle difuso, portanto), ser inconstitucional
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o art. 2o, § 1o, da lei de crimes hediondos (Lei n. 8.072/90). Esse artigo estabele-
cia a proibição de progressão de regime, determinando o cumprimento de toda a
pena imposta a esse tipo de crime em regime fechado. E foi com base justamente
nessa decisão incidental que a Defensoria Pública da União ajuizou a reclamação,
afirmando que a decisão do STF, proferida neste caso, estaria sendo descumprida
pela Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, que estaria continuando
a aplicar o artigo em questão, ainda que para o efeito de julgar o regime das penas
atinentes a outros condenados, distintos daqueles que haviam sido beneficiados
diretamente pelo HC n. 82.959.
Em defesa de sua posição, o juiz reclamado ponderou que não teria ocorrido,
no caso, violação de qualquer decisão do STF, já que os interessados na
Reclamação n. 4.335-5 seriam pessoas distintas daquelas beneficiadas pelo HC n.
82.959, sendo que esta decisão foi proferida no contexto do controle difuso, pro-
duzindo, portanto, apenas efeitos concretos, aplicáveis especificamente às partes
no processo. Para que tal decisão possa ganhar efeitos gerais seria preciso que o
STF comunicasse o Senado Federal, para que este, a seu critério, resolvesse sus-
pender, ou não, a execução do dispositivo tido por inconstitucional. O conteúdo
dessas razões foi (como seria normalmente de se esperar) acolhido no parecer da
Procuradoria Geral da República, mas, surpreendentemente, não convenceu o
relator, Ministro Gilmar Mendes.
O voto desse Ministro, dado a público na sessão de 01.02.2007, fala na ocorrên-
cia de mutação constitucional, cujo efeito teria sido o de equiparar, hoje, os efeitos
da decisão de inconstitucionalidade, quer se trate de controle difuso, quer de contro-
le concentrado. Isso porque, a partir dos novos arranjos trazidos pela Constituição
de 1998, “a ênfase passou a residir não mais no sistema difuso, mas no de perfil con-
centrado”, “sendo inevitáveis as reinterpretações ou releituras dos institutos
vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade”. Segundo o Ministro
Gilmar Mendes:
[...] a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas
finalidades e aos procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso 
e concentrado, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das
decisões proferidas no controle direto e no controle incidental. Somente essa
nova compreensão parece apta a explicar o fato de o Tribunal ter passado a
reconhecer efeitos gerais à decisão proferida em sede de controle incidental,
independentemente da intervenção do Senado. O mesmo há de se dizer das
várias decisões legislativas que reconhecem o efeito transcendente às decisões 
do STF tomadas em sede de controle difuso. Esse conjunto de decisões
judiciais e legislativas revela, em verdade, uma nova compreensão do texto
constitucional no âmbito da Constituição de 1988.30
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Essa não é uma nova compreensão que nasce desvinculada do cenário descrito
neste artigo, de forte distorção do sistema difuso no período posterior a 1988, gera-
da pela multiplicação de processos em face da ausência de filtros, do crescimento no
exercício das competências de controle de constitucionalidade, e da ausência, em
contrapartida, de efeito vinculante para as decisões incidentais de inconstitucionali-
dade proferidas pelo STF. Segundo ainda o voto do Ministro Gilmar Mendes, “[a]
multiplicação de processos idênticos no sistema difuso – notória após 1988 – deve
ter contribuído, igualmente, para que a Corte percebesse a necessidade de atualiza-
ção do aludido instituto”.
Em linha de conclusão, entende o voto do Ministro Relator ser:
[...] legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão 
de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade.

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