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A GOVERNANÇA AMBIENTAL INTERNACIONAL, DESASTRES AMBIENTAIS E ORGANIZAÇÕES-NÃO GOVERNAMENTAIS: EM ESPECIAL A CRUZ VERMELHA Fernanda Ribeiro de Azevedo∗ RESUMO Este trabalho aborda o surgimento da governança ambiental internacional e de suas características principais, o desenrolar de suas atuações, do início da preocupação com as questões ambientais até os dias atuais. Através do desempenho das organizações não governamentais e de suas atividades no plano internacional, notadamente quanto à problemática dos desastres ambientais, proceder-se-á ao exame da matéria, limitando-se aos desastres de origem natural. Por fim, estudar-se-á o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e suas características institucionais, jurídicas e assistencialistas. Será analisado seu mandato, suas atividades para o desenvolvimento do DIH, sendo apreciadas suas ações no plano internacional para uma efetiva e eficaz assistência nos casos de catástrofes. PALAVRAS- CHAVE: Governança Ambiental; desastres ambientais; organizações não governamentais; Cruz Vermelha; assistência. ABSTRACT This article outlines the emergence of international environmental governance and its main characteristics: outlining the course of their actions, tracing its origins from the early concern with environmental issues to today’s state of the practice. It will be analyzed the performance of non-governmental organizations and their activities at the international level, particularly regarding the issue of environmental natural disaster response. The article will also delve into the Red Cross International Committee and analyze its institutional characteristics, including legal aspects and aid policy. It will be ∗ Advogada, mestranda em Ciências Jurídico Internacionais na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 2 considered its mandate, its activities for the development of IHL, and analyzed their actions at the international level for an effective and efficient assistance in cases of disasters. KEYWORDS: Environmental Governance; natural disasters; non-governmental organizations; Red Cross; assistance. INTRODUÇÃO As últimas décadas presenciaram um inédito e irreversível processo de mudança no cenário internacional. O surgimento de novos atores evidenciou uma necessidade de transformação das velhas estruturas e uma adaptação à realidade que despontava. Dessa forma, delinearam-se as bases de um processo no qual o Estado e os novos sujeitos atuam em cooperação e administração de interesses comuns: a governança. A governança significa a mudança do paradigma de relação entre o Estado e os atores não estatais, notadamente a sociedade civil, os quais começam a participar dos processos decisórios, em busca de interesses que atendam a toda a comunidade. O Estado passa a exercer sua autoridade em cooperação com as entidades não estatais, visando sempre atender ao benefício da coletividade em si. Nesse panorama, a atuação das organizações não governamentais, como um dos proeminentes sujeitos da governança, tem ganhado destaque tendo em vista o seu crescente papel na persecução de interesses públicos e na expansão das suas atividades para diversos setores da sociedade. Entre esses setores, vale ressaltar as importantes conquistas que esses atores vêm obtendo no desenvolvimento do Direito Ambiental Internacional e na defesa do coletivo. Assim, suas atividades se desdobram e abrangem temas de relevância atual, como a pobreza, o desenvolvimento sustentável, o aquecimento global, as mudanças climáticas e os desastres naturais. A ocorrência de fenômenos naturais de grande magnitude sempre foi presente na história do planeta, desde seus primórdios. Entrementes, desde a Revolução Industrial houve um aumento exponencial na população humana e na exploração desmedida da natureza. O resultado dessa combinação já se torna visível perante o meio ambiente e os ecossistemas, com o aumento da incidência de extremos climáticos. Destarte, muitos 3 desses fenômenos provocam tragédias de grandes proporções, com alto número de vítimas e enormes prejuízos para os países atingidos. Nas nações mais pobres, as consequências de um desastre alcançam cifras alarmantes, ocasionando crises sem precedentes paras as instituições locais e resultando em situações de total desamparo à população vitimada. É nessa esteira que o Comitê Internacional da Cruz Vermelha presta seus serviços, através da proteção e da assistência dos que se encontram em posição de penúria. Suas atividades buscam minorar o sofrimento dessas pessoas, com o fornecimento dos bens necessários para uma vida condigna e com o auxilio para um recomeçar. Tendo em vista a importância desse tema e a sua relevância no cenário atual, que o presente trabalho se desenvolverá. 1. GOVERNANÇA AMBIENTAL INTERNACIONAL 1.1 O que é Governança Ambiental Internacional? A governança define-se, em um sentido amplo, como uma mudança no paradigma do exercício do poder pelo Estado, de onde surgem novos sujeitos na produção do Direito. Dessa forma, desponta um novo modo de organização, não só no âmbito interno, mas também no internacional, com a inovação da participação da sociedade civil. No entendimento de Maria da Glória Garcia, a governança pode ser definida como um poder que visa alcançar a otimização de resultados, agindo de maneira a atingir a melhor decisão, atendendo a interesses públicos que em sua natureza acabam por ser diferentes e conflitantes1. É um processo amplo, dinâmico e complexo de cooperação2 entre vários atores na tomada de decisão. Esse processo inclui instituições formais e informais, habilitadas para fiscalizar o cumprimento de acordos e tratados, podendo agir por meio de novos métodos de negociação. E é nesse novo modelo de articulação entre Estado-sociedade 1 GARCIA, Maria da Glória Dias. Governança Local, Política e Direito. Em Especial, a Ação sobre o Ambiente, Ordenamento do Território e do Urbanismo. In: Revista do Ministério Público, nº. 112, 2007, p.11. 2 BIRNIE, Patricia W.; BOYLE, Alan, International Law and The Environment. Second Edition. Oxford University Press, 2002, p. 34. 4 que a governança se caracteriza, posto que, para se chegar a um resultado satisfatório, a própria sociedade se mobiliza junto ao “órgão decisor” para a obtenção de determinado interesse coletivo. Essa participação de indivíduos, de organizações da sociedade civil e mesmo de empresas com o Estado, no sentido caracterizador da governança, surge para preencher lacunas na interferência do domínio político, em que se torna quase impossível a convocação desse poder habitual, com a austeridade que o caracteriza3. Observa-se que a dimensão estatal não é afastada, mas partilhada. Milani e Solinís notam que a governança costuma ser definida como um sistema de tomada de decisão que antecipa e ultrapassa o governo4 e descrevem as características que, normalmente, são imputadas a ela, quais sejam: a divisão do poder entre o administrador e os administrados; os processos de gestão e orientação entre os múltiplos atores e a flexibilização da autoridade e dos encargos derivados da atividade de governar. Portanto, a governança é um conjunto de atividades entre atores públicos e não públicos, sem a tradicional hierarquização entre essas relações, atuando em um sentido mais horizontal, reciprocamente dependente, com intuito de regular possíveis conflitos de interesses5 e alcançar o bem comum. A participação de novos atores é fundamental e com elesnascem também novos mecanismos nesse controle social, inclusive mecanismos informais, como uma abordagem menos de cima para baixo e mais horizontal6. Michael Heldeweg cita cinco importantes princípios da governança (que foram estabelecidos no Livro Branco da governança europeia7). São eles: abertura, participação, responsabilidade, eficácia e coerência8. Abertura estabelece uma comunicação mais funcional e dinâmica por parte das instituições, de maneira que as decisões governamentais sejam mais acessíveis e de um entendimento mais fácil. 3 GARCIA, Maria da Glória Dias, Governança Local..., cit., p.12. 4 MILANI, Carlos; SOLINÍS, Germán. Pensar a Democracia na Governança Mundial: Algumas pistas para o futuro. In: Democracia e Governança Mundial: Que regulações para o século XXI? Programa MOST, UNESCO, 2002. Disponível em: http://www.unesco.org/most/demgov_port.htm#conclusion Acesso em 04 de Julho de 2010. 5 COVAS, António. A Governança Europeia: a política europeia no limiar de uma nova revisão dos tratados. Editora Colibri, Lisboa, 2007, p. 13. 6 HELDEWEG, Michael A. Towards Good Environmental Governance in Europe. European Law Review, 2005, p. 2. 7Mais informações sobre o Livro Branco da Governança Europeia disponível em: <http://eur- lex.europa.eu/LexUriServ/site/en/com/2001/com2001_0428en01.pdf>. Acesso em 04 de Julho de 2010. 8 No texto de HELDEWEG os princípios são openness; participation; accountability; effectiveness e coherence. A tradução dos mesmos para o português foi a encontrada no Relatório da Comissão sobre a Governança Europeia, disponível em < http://ec.europa.eu/governance/docs/comm_rapport_pt.pdf>. Acesso em 04 de julho de 2010. 5 Participação garante ampla participação em todos os níveis da estrutura política. Responsabilidade determina que Estados-membros e as instituições esclareçam seus atos e que também se responsabilizem por eles. Eficácia estabelece que as políticas devam ser eficazes e adequadas, nas avaliações de impacto passado e futuro, com objetivos determinados, de forma a serem implementadas de maneira apropriada e proporcional. Coerência demanda uma visão objetiva e coerente das políticas e ações a serem tomadas, com uma perspectiva das estruturas como um todo9. O surgimento da governança ambiental internacional desenrolou-se com a consciência da escassez dos recursos naturais do planeta. Desde o advento da Revolução Industrial, ocorrida no século XVIII, e as inovações tecnológicas que se seguiram, o mundo se deparou com um desenvolvimento econômico ininterrupto, resultando em uma exaustão dos recursos naturais. A partir da década de 1970 e 1980, houve um aumento na preocupação com o meio ambiente, um “despertar ecológico”, quando essas questões e as bases de Direito Ambiental Internacional começaram a ser abordadas no âmbito internacional. A Organização das Nações Unidas, 1968, através da resolução 2398(XXIII) da Assembleia Geral, decidiu convocar uma conferência para debater problemas com a proteção ambiental. Em 1972, foi realizada em Estocolmo, a Conferência sobre Meio Ambiente Humano. Essa Conferência assinalou a necessidade de se instituírem princípios comuns e critérios a serem observados para a salvaguarda do meio ambiente humano, e teve como resultados a adoção da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano e posteriormente, a criação do PNUMA. O PNUMA - Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente surgiu com objetivo de buscar a conservação do meio ambiente, estimular a utilização dos recursos por meio do desenvolvimento sustentável, coordenar as atividades internacionais de proteção ambiental, procurando alertar os Estados e a comunidade internacional para as questões que surgem10. Em 1983 a ONU estabeleceu uma comissão independente (Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento) com objetivo de preparar um estudo sobre o meio ambiente e o desenvolvimento. Três anos depois, em 1987, a Comissão apresentou seu trabalho, intitulado “O Futuro de Todos Nós” comumente conhecido por 9 HELDEWEG, Michael A. Towards Good Environmental..., cit., p. 3. 10 Organization Profile- United Nations Environment Program: <http://www.unep.org/PDF/UNEPOrganizationProfile.pdf> P. 3 6 Relatório Brundtland. O relatório consagrou uma conexão entre a conservação ambiental e o desenvolvimento, por meio do conceito de desenvolvimento sustentável, salientando a necessidade de conservação e utilização consciente dos recursos naturais. O documento definiu a sustentabilidade como um novo modelo de crescimento econômico, com vistas a assegurar a preservação dos recursos para as gerações futuras11. Esse relatório culminou na realização de uma nova conferência, que foi realizada em 1992 no Rio de Janeiro. A Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, ou Eco-92, como ficou conhecida, tinha as questões socioeconômicas como uma das pautas principais do programa, e por isso, atentava para a redução da degradação ambiental, para o desenvolvimento econômico-social visando a sustentabilidade, a erradicação da pobreza, buscando promover atuações integradas com a sociedade, para a proteção dos recursos naturais. Foi nessa Conferência que se oficializou a expressão “desenvolvimento sustentável”. Desde então, houve uma sequência de conferências, que se sucederam de 10 em 10 anos: em 1982 em Nairóbi; 1992 no Rio de Janeiro; 2002 em Joanesburgo. Foram estabelecidos alguns instrumentos importantes na Conferência do Rio entre eles a Agenda 21 e a Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Essa participação da sociedade se revela essencial, de modo que nasce a chamada “cidadania ambiental internacional”, pois o meio ambiente é um bem coletivo e não se limita a determinado Estado ou pessoa, de modo que não é de ninguém, mas, sim, usufruto de todos. Portanto, a governança, entendida como o processo que abrange regras, estruturas e instituições12, estatais e não estatais que se relacionam de maneira a gerir as dificuldades coletivas, caracteriza-se em uma perspectiva ambiental como a busca pela colaboração entre esses diversos atores de modo a promover a questão ambiental, de vital importância para a condução dos problemas e a tomada de decisão, como em relação às mudanças climáticas, os desastres ambientais, a pobreza, a poluição e outros13. 11 KISS, Alexander; SHELTON, Dinah. Guide to International Environmental Law. Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers, 2007, p.38-39. 12 BARNETT, Michael; DUVALL, Raymond. Power in Global Governance. Cambridge University Press, Cambridge, 2005, p.2. 13 GIRÃO, Mardônio Da Silva. Uma Governança Global Funcional no Trato das Questões Ambientais: Limites e Possibilidades. In: Direito Ambiental, Mudanças Climáticas e Desastres. Impacto nas Cidades e no Patrimônio Cultural. Antônio Herman Benjamim, Eladio Lecey, Sílvia Cappelli (orgs.), São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, V. II, p. 428. 7 1.2 SUJEITOS DA GOVERNANÇA As ONGs possuem um papel importante como sujeitos da governança ambiental internacional haja vista a multiplicidade de funções e de papéis que desempenha. A Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio consagrou a participação da sociedade civil nos fóruns internacionais da ONU. Calcula-se que tomaram parte nas atividades da Eco-92 um número de 2,400 ONGs14. Como Peter Bombay nota, mais tarde a Comissão de Desenvolvimento Sustentável-CDS (a Comissão é o fórum de alto nível para o desenvolvimento sustentáveldentro do sistema das Nações Unidas, e atua como uma comissão funcional do Conselho Econômico e Social-ECOSOC15) desenvolveu o princípio 10 da Declaração16, expressando seu desejo de estimular essa nova prática de incluir representantes dos chamados grandes grupos17 nas delegações nacionais da Comissão, como uma maneira efetiva de aumentar internacionalmente a participação deles18. Essa prática do CDS foi estabelecida na Resolução 47/19119, de 1993, que fixou recomendações para a participação das ONGs na Comissão e determinou que os procedimentos do ECOSOC fossem considerados. O princípio 10 da Declaração enunciou ainda que se incluiriam acesso à informação, participação na tomada de decisão e acesso a procedimentos administrativos e judiciais20. As organizações não governamentais21 desempenham atualmente um papel muito maior do que antes. A vantagem de sua participação é que suas decisões se baseiam em dados científicos e não meramente políticos, como fazem os Estados, e 14 EBBESSON, Jonas. Public Participation. In: The Oxford Handbook of International Environmental Law. Daniel Bodansky; Jutta Brumee ; Ellen Hey (Eds.) Oxford Press, 2007, p.683. 15 De agora em diante denominado ECOSOC. 16 O princípio 10 da Declaração afirma que “a melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações relativas ao meio de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar do processo de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e reparação de danos”. (Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente de Desenvolvimento). Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente de Desenvolvimento. Disponível em <http://www.cedin.com.br/site/pdf/legislacao/pdf_tratados11/Declara%E7%E3o%20do%20Rio%20de%20Janeiro%20sobre%20Meio%20Ambiente%20e%20Des envolvimento.pdf>. Acesso em 11 de Fevereiro de 2010. 17 A denominação grandes grupos, ou partes interessadas veio substituir o termo “sociedade civil” para que pudesse abranger uma gama maior de grupos, notadamente aqueles que não tivessem origens estatais. 18 BOMBAY, Peter. The Role of Environmental NGOs in International Environmental Conferences and Agreements: Some Important Features. European Law Review, 2001/7, P. 230. 19 Resolução 47/191 disponível em <http://www.un.org/documents/ga/res/47/ares47-191.htm>. Acesso em 12 de janeiro de 2010. 20 EBBESSON, Jonas. Public Participation..., cit., p. 684. 21 Doravante denominada pela sigla ONG, no plural ONGs. 8 enquanto estes agem através de uma visão egoísta, as ONGs, em contraponto, possuem uma visão altruísta. Atuam também como grupos de pressão, por meio do monitoramento e na implementação de convenções e acordos internacionais. Elas podem influenciar decisões internacionais ao invocar determinados interesses públicos e alertam para assuntos que poderiam passar despercebidos, agindo na disseminação da informação e na dinamização da opinião pública. Mesmo quando sua atuação é restrita ao papel de observador, as organizações não governamentais acabam por influenciar o desenvolvimento e o cumprimento das leis e políticas ambientais, por meio do fornecimento de conhecimentos técnicos, do lobbying e da fiscalização dos deveres ambientais22. Dessa forma, nesse processo de ascensão de organizações internacionais, a importância crescente da atuação das ONGs, de empresas e de outros representantes do setor privado vem limitando e, de certa forma, pressionando a soberania dos Estados23. Apesar dessa multiplicidade de atores, o Estado continua sendo o principal sujeito da governança. Não obstante essa influência que novos atores vêm adquirindo no cenário internacional, isso não significa que os Estados tenham abdicado dos seus poderes na tomada de decisão ou nos processos de produção normativa, mas demonstra que eles não mais são os únicos a representar os interesses públicos ambientais na tomada de decisão e nem no cumprimento dos acordos e convenções internacionais 24. Assim, a governança ambiental internacional surge como elemento de originalidade, com a atuação conjunta entre esses sujeitos. Reflete, não uma limitação da soberania, mas uma expansão da democracia, para a qual todos contribuem, não exclusivamente em busca de seus próprios interesses, mas na promoção de interesses públicos ambientais. 2. ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS 22 EBBESSON, Jonas. Public Participation..., cit., p.683. 23 Alcindo Gonçalves enfatiza que “A governança não é ação isolada da sociedade civil buscando maiores espaços de participação e influência. Ao contrário, o conceito compreende a ação conjunta de Estado e Sociedade na busca de soluções e resultados para problemas comuns. Mas é inegável que o surgimento dos atores não- estatais é central para o desenvolvimento da ideia e da prática da governança.” O Conceito da Governança, p. 14. Disponível em: http://conpedi.org/manaus/arquivos/Anais/Alcindo%20Goncalves.pdf Acesso em 04 de Julho de 2010. 24 EBBESSON, Jonas. Public Participation..., cit., p. 684. 9 Pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que as organizações não governamentais são uma particularidade da nova ordem internacional25. No entanto, a existência de entidades não vinculadas a nenhum organismo estatal remonta ao século XVIII, tendo sua atuação majoritariamente ligada a fins religiosos e de assistência. Mas com o passar do tempo essas entidades foram se desenvolvendo e se diversificando, passando a operar em diversas áreas. Entre algumas cabe ressaltar a criação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em 1863 e do Institut de Droit Internacional (IDI) e da International Law Association em 187326. Contudo, foi somente no período seguinte à Segunda Guerra Mundial que houve um crescimento significativo dessas organizações, que surgiram com intuito de prestação de serviços sociais, de ajuda mútua e de solidariedade. Foi um movimento originário da Europa Ocidental e da América do Norte, entretanto, nas décadas de 60 e 70, tornou-se um fenômeno mundial. Essa explosão não se deu exclusivamente no número dessas organizações, mas na atuação em variados setores de interesse público, tais como no desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo, na proteção dos direitos humanos e do meio ambiente – resultando, quanto a este último, o que Ana Luisa Riquito denominou “esverdejamento da consciência coletiva27”. A delimitação do conceito de organizações não governamentais se traduz numa certa dificuldade, posto não existir uma concepção formal comumente aceita. Em uma acepção mais abrangente, pode-se defini-las como associações ou instituições, criadas por iniciativa privada ou mista, e com exclusão de qualquer acordo intergovernamental28, sem fins lucrativos, com o objetivo de influenciar ou corrigir a atuação dos sujeitos do Direito Internacional, notadamente dos Estados soberanos e das Organizações Internacionais29. Apesar da possibilidade de serem instituições mistas, é necessário ressaltar que a participação de entidades governamentais é admitida, contanto que não haja nenhuma interferência na viabilização dos objetivos organizacionais. Não possuem finalidade25 SILVA , Roberto Luiz. Direito Internacional Público. 3ª Edição. Del Rey: Belo Horizonte, 2008, p.184. 26 HOBE, Stephan. Non Governmental Organizations. In R. Wolfrum (Ed.), The Max Planck Encyclopedia of Public International Law, Oxford University Press, 2010, online edition. Disponível em: <http://www.mpepil.com.ezproxy.ub.unimaas.nl/subscriber_article?script=yes&id=/epil/entries/law-9780199231690- e968&recno=1&searchType=Advanced&title=non+governmental+organizations>, acesso em: 13 de junho de 2010, pg. 9. 27 RIQUITO, Ana Luisa .Variações sobre a Nova Sociedade Civil Mundial. ONGs Internacionais: Um Sujeito Sem Personalidade? In: Nação e Defesa, nº. 97, 2001, p. 212. 28 DINH, Nguyen Quoc; DAILLER, Patrick ; PELLET, Allain. Direito Internacional Público. 2ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p.659. 29 PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual de Direito Internacional Público. 3ª Edição. Lisboa: Almedina, 2009, p.402. 10 lucrativa, de modo que as rendas da instituição não são divididas entre os integrantes e o corpo dirigente. Toda a parcela de patrimônio deve ser aplicada na persecução dos propósitos do objeto social. No presente trabalho estudar-se-ão as ONGs internacionais, que além dos requisitos supramencionados, para terem a qualificação de internacionais precisam desenvolver suas atividades em mais de um Estado e possuir membros de nacionalidades diferentes. Atualmente, essas organizações vêm ganhando destaque cada vez maior através da produção de orientações de “políticas públicas internacionais” 30. 2.1 NATUREZA JURÍDICA Sujeitos são, na esfera jurídica, todos aqueles que forem titulares de direitos e deveres perante determinada ordem jurídica. Sujeitos de Direito Internacional, consequentemente, são todos aqueles suscetíveis de possuírem direitos e obrigações no plano internacional. Entre os sujeitos de Direito Internacional temos os Estados, que são os sujeitos primários por excelência, e que usufruem de uma capacidade jurídica internacional absoluta. Em seguida, temos os sujeitos de capacidade limitada, e que de acordo com a classificação de Pereira e Quadros, são sujeitos com base territorial, sujeitos sem base territorial, exceções para a Santa Sé e a Ordem de Malta, os indivíduos e as organizações internacionais31. As organizações não governamentais, objeto do presente estudo, possuem personalidade jurídica de direito interno do Estado que as sedia. Este, ao reconhecer- lhes a personalidade, concede-lhes poderes para prosseguirem suas atividades. No entanto, a doutrina majoritária entende que as ONGs não são sujeitos de Direito Internacional e não possuem personalidade jurídica para tal32. Em sentido contrário, Quoc Dinh, Daillier e Pellet entendem que essas organizações possuem “personalidade derivada, funcional e relativa33” e para Pereira e 30 MACHADO, Jónatas E. M. Direito Internacional: Do Paradigma Clássico ao Pós- 11 de Setembro. 2ª Edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 240. 31 PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual.., cit., p. 303. 32 Nesse sentido ver SILVA, Roberto Luiz .Direito Internacional Público. 3ª Edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 184-185; SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público. 2ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2004, p.154-155. 33 DINH, Nguyen Quoc et all. Direito Internacional..., cit., p 661. 11 Quadros34 elas possuem personalidade jurídica iniciante dentro do ordenamento jurídico internacional, sendo sua capacidade jurídica limitada pelas atividades que desempenham. A posição das organizações não governamentais, no cenário internacional, encontra-se incerta. Não obstante o papel por elas desenvolvido, não existe um instrumento internacional que regulamente suas atividades, seu âmbito de atuação e nem sua personalidade jurídica. Em âmbito regional, o Conselho da Europa, em 24 de abril de 1986, regulamentou a matéria com a Convenção Europeia sobre o Reconhecimento da Personalidade Jurídica das Organizações Internacionais Não Governamentais. No seu preâmbulo, a Convenção reconhece a utilidade da participação das ONGs na comunidade internacional e a sua contribuição para a concretização dos princípios e objetivos, não só do Estatuto do Conselho da Europa mas também nos da Carta da ONU35, e define em seu artigo 1º que as organizações não governamentais reguladas sejam ONGs sem finalidade lucrativa, mas que tenham relevância internacional; sejam criadas por ato relevante de direito interno de um Estado- parte; exerçam uma atividade em pelo menos dois Estados; tenham sede estatutária no território de uma parte e sua sede real no território desta ou de outra parte. O artigo 2º estabelece não uma nova personalidade jurídica internacional às organizações não governamentais, mas se limita a conceder que a personalidade e a capacidade jurídica delas, reconhecidas pelo Direito interno de um Estado-parte onde tenham sede estatutária, sejam reconhecidas de pleno direito no território das outras partes. Dessa forma, esse reconhecimento somente se dá quando os Estados-membros do Conselho da Europa ratificarem a Convenção, depois de cumpridos os requisitos nela fixados 36. A Carta Social Europeia dispõe que informações fornecidas por ONGs sobre a aplicação da Convenção no território dos Estados signatários sejam incluídas em seus relatórios. Ana Luisa Riquito observa que o Protocolo Adicional de 1995 foi mais além 34 CYNTHIA SOARES CARNEIRO vai ainda mais longe e afirma que as ONGs, como associações que representam a sociedade civil, não são somente destinatárias de direitos e obrigações no plano internacional, como também possuem personalidade internacional e capacidade de agir mais ampla que a do individuo, que é claramente reconhecido pela doutrina, como sujeito de Direito Internacional com capacidade jurídica limitada. Artigo 71, Capítulo X- Conselho Econômico Social. In: Comentário à Carta das Nações Unidas. Leonardo Nemer Caldeira Brant (Org.), Belo Horizonte: Cedin, 2008, p. 959. 35 Convenção Europeia sobre o Reconhecimento da Personalidade Jurídica das Organizações Internacionais Não Governamentais. Disponível em: http://www.gddc.pt/cooperacao/materia-civil-comercial/ce/ce-124-rar.htm. Acesso em 31 de janeiro de 2010. 36 PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual.., cit., p. 310. 12 e garantiu locus standi às ONGs que possuem estatuto consultivo junto ao Conselho, para apresentar uma queixa coletiva37. No decorrer dos últimos anos, percebeu-se uma clara mudança quanto ao envolvimento e à participação de novos atores no cenário internacional, notadamente com as organizações não governamentais e outros atores não estatais, em uma irreversível “senda de privatização das relações internacionais” 38. 2.2 ATUAÇÕES DAS ONGS NO PLANO INTERNACIONAL As ONGs podem estar ligadas a organizações internacionais, como é o caso da Organização das Nações Unidas39, da Organização Internacional do Trabalho- OIT-, entre outras. Nesta última, excepcionalmente, sindicatos, empresários e entidades governamentais se articulam em níveis de igualdade, mas essa não é a regra. A ONU, no artigo 7140 da sua Carta apresentou a possibilidade de diálogo, até então inédito, entre uma organização internacional e associações da sociedade civil, garantindo-lhes o estatuto consultivo. Esse estatuto foi conferido na esfera do Conselho Econômico e Social e prevê participação dessas associações como observadoras em seus foros, podendo inclusive, submeter declarações escritas e orais ao Conselho, desde que dentrodos parâmetros fixados pela própria organização. Por motivo de artigo 71 não definir critérios para a participação das ONGs, foi criado em 1946 o atualmente denominado Comitê Encarregado das Organizações Não Governamentais, que, entre, as suas funções, já redigiu relatórios utilizados pelo Conselho para embasar certas decisões referentes a normas gerais de procedimentos com as instituições não estatais41. Dentre essas normas, foi editada, em 23 de maio de 1968, a Resolução 1296 (LXIV), uma substituição à Resolução 288 B(X) de 1950, que regulamentava os critérios para a entrada e a participação das ONGs nas conferências 37 RIQUITO, Ana Luisa. Variações..., cit., p. 222. 38 GOUVEIA, Jorge Bacelar. Manual de Direito Internacional Público. 3ª Edição. Coimbra: Almedina, 2008, p.600. 39 Doravante denominada pela sigla ONU. 40 Artigo 71, Carta das Nações Unidas: “O Conselho Econômico e Social poderá entrar nos entendimentos convenientes para a consulta com organizações não governamentais, encarregadas de questões que estiverem dentro da sua própria competência. Tais entendimentos poderão ser feitos com organizações internacionais e, quando for o caso, com organizações nacionais, depois de efetuadas consultas com o Membro das Nações Unidas no caso”. Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc5.php. Acesso em 30 de janeiro de 2010. 41 CARNEIRO, Cynthia Soares. Capítulo X..., cit., p.950. 13 internacionais convocadas pela ONU. Em 25 de julho de 1996, foi adotada a Resolução 1996/3142, que alterou e aperfeiçoou as resoluções anteriores. Foram fixadas as regras para a análise dos requerimentos de admissão das organizações não governamentais, os procedimentos em caso de aceitação ou de recusa, os limites de suas participações e também os casos de suspensão e/ou retirada do estatuto consultivo. Essa resolução estabeleceu também três categorias de status consultivo: geral, especial e Roster. A primeira categoria, denominada geral, são as organizações que compreendem em suas finalidades vários temas abrangidos pelas atividades do Conselho e de seus órgãos subsidiários e que denotem capacidade para cooperar para a consecução dos objetivos das Nações Unidas. O status consultivo especial é mais limitado e é conferido às ONGs dedicadas apenas a algum campo específico, mais restrito entre aqueles desenvolvidos pelo Conselho. E, por fim, as organizações que não se encaixam em nenhuma das categorias citadas, mas que podem fazer contribuições ocasionais e úteis para o Conselho e seus órgãos subsidiários, inclusive a outros órgãos das Nações Unidas, dentro de suas competências, são incluídas em uma lista, Roster, mas que não são qualificadas com o status consultivo geral nem especial43. A resolução supramencionada oficializou a participação das organizações não governamentais nas sessões do Conselho, nas Conferências Internacionais da ONU e também nos trabalhos preparatórios, na qualidade de observadores44. Para a participação das ONGs no sistema da ONU, elas precisam ter garantia de representatividade, mais de dois anos de existência e de atuação, podendo receber incentivos estaduais, mas que não ultrapassem o montante de 30%, e suas decisões internas tem de ser tomadas, por vias democráticas. Com os avanços advindos dessa resolução, notam-se a importância e o crescimento do papel das organizações não governamentais no cenário internacional atual. 42 Resolução 1996/31, disponível em: http://esango.un.org/paperless/Web?page=static&content=resolution. Acesso em 30 de janeiro de 2010. 43 Resolução 1996/31, parágrafo 24. 44 Resolução 1996/31, parágrafo 42. 14 Jónatas Machado salienta que as organizações não governamentais são as grandes impulsionadoras do nascimento da sociedade civil global45, haja vista a importância que esses novos atores vêm obtendo nos últimos anos. Observando-se a multiplicidade de campos de atuação dessas instituições, suas atividades de fiscalização de cumprimento dos acordos internacionais, de busca e transmissão da informação, têm lhes granjeado acesso aos principais fóruns internacionais e possibilitando um maior acesso e participação na tomada de decisão. 3. DESASTRES AMBIENTAIS Desastre46 é um acontecimento inesperado, podendo ser natural ou provocado por ação humana, susceptível de provocar vítimas, prejuízos materiais e ambientais. Assim, se um evento geofísico resulta em elevado número de vítimas e gera um grande prejuízo econômico pode-se defini-lo como um desastre natural. Seguindo essa ideia, se um fenômeno natural acontece em uma região desprovida de interesses humanos, não constituiria uma calamidade. Entretanto, com a atual interdependência do meio ambiente com o homem, as devastações que afetam o meio ambiente puramente podem ser definidas como catástrofes47. Reduzir o conceito de desastre a uma relação causa/efeito com a presença humana não condiz com a real percepção do acontecimento natural como resultante de forças inevitáveis da natureza48. 45 MACHADO, Jónatas E. M. Direito Internacional..., cit., p. 239. De acordo com ANA FLÁVIA BARROS- PLATIAU “a sociedade civil global, como Wapner define, é tudo que se encontra entre as esferas pública e individual, ou seja, o que há abaixo do Estado e acima do indivíduo. A sua maior diferença com o conceito de sociedade internacional é o fato de ressaltar o papel dos atores não- estatais, cada vez mais independentes dos Estados.” Novos Atores, Governança Global e o Direito Internacional Ambiental. In: Meio Ambiente, Vol. I. Grandes Eventos. Brasília: Escola Superior do Ministério Público, 2004, p. 4. 46 De acordo com a Resolução nº. 2 da Política Nacional de Defesa Civil do Brasil, desastre natural é “o resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais e ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais. A intensidade de um desastre depende da interação entre a magnitude do evento adverso e a vulnerabilidade do sistema, e é quantificada em função de danos e prejuízos”. Disponível em: http://defesacivil.gov.br/politica/index.asp. Acesso em 10 de Julho de 2010. 47GARBACCIO, Grace Ladeira; PAGEAUX, Mathieu. Visão Europeia do Direito das Catástrofes. In: Direito Ambiental, Mudanças Climáticas e Desastres. Impacto nas Cidades e no Patrimônio Cultural. Antônio Herman Benjamim, Eladio Lecey, Sílvia Cappelli (orgs.), São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Vol. II, 2009, p.293. 48 Em sentido contrário, JEAN-PIERRE DUPUY aduz que “Um risco natural caracteriza-se pela combinação do acaso (ou seja, do fenômeno geológico gerador) com a vulnerabilidade (o efeito sobre agrupamentos humanos). O que caracteriza hoje um risco, no plano de seu impacto, o que faz dele uma catástrofe, é a exposição dos homens. Nesta medida, uma das conclusões do decênio internacional para a prevenção das catástrofes naturais (DIPCN), que terminou em 2000, foi considerar que já não fazia sentido falar de <catástrofe natural>. Se o acaso natural existe, e não o podemos impedir, é a vulnerabilidade social que transforma o fenômeno em catástrofe”. Ainda há catástrofes naturais? In: Análise Social. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, vol. XLI, nº. 181, 2006, p.1183. 15 Claro que não se pode negar e nem poderia deixar de ser discutido o impacto que a atuação humana produziu e ainda produz sobre o planeta. O homem, agindo sob o prisma de superioridade sobre a natureza, através da exploração desenfreada dos recursos naturais,da explosão demográfica, da urbanização desordenada, da poluição, do desmatamento entre outras coisas, afeta de forma profunda o meio ambiente e, com isso, as mudanças nos ecossistemas e no planeta já são visíveis. As mudanças climáticas, notadamente o aquecimento global, estão, sem sombra de dúvida, intimamente ligadas ao aumento dos extremos climáticos49. E o questionamento que surge é até que ponto essas calamidades são realmente naturais? Peter Walker observa que, apesar de inundações na China e secas na África se enquadrarem como desastres naturais, no que diz respeito às inundações, muitas vezes elas têm a ver não só com a quantidade de chuva, mas também como o uso indiscriminado da terra. Ele exemplifica com a ocorrência do tsunami que atingiu Papua Nova Guiné, em 1998, e que teve consequências pioradas por causa do desmatamento resultante da exploração madeireira na região e com as ocorrências de fome derivadas da seca extrema no continente africano, que muitas vezes coincidiram com conflitos das mais variadas intensidades50. Dados da Cruz Vermelha revelam que, em comparação com 1989-1998, a década passada teve um aumento de mortes por catástrofes em 62%, e o número de pessoas afetadas por esses eventos aumentou em 26%51. Pode se concluir, então, que as mudanças climáticas52 com as intervenções humanas na natureza são fatores que afetam sim e de maneira substancial a incidência dos desastres naturais. 49 Apesar das alterações climáticas no planeta terem impulsionado um movimento crescente de preocupação quanto aos reais e potenciais efeitos de um desastre natural e da assistência a ser prestada nesses casos, esse tema já se encontrava há algum tempo na agenda mundial. Prova disso foi a criação, em 1927, no âmbito da Liga das Nações, da União Internacional do Socorro (International Relief Union), que tinha como objetivo “oferecer assistência em caso de catástrofes que superassem os recursos das populações atingidas; coordenar as organizações de ajuda humanitária durante calamidades públicas; promover o estudo da prevenção de desastres e influenciar a assistência mútua internacional”. Não obstante a inovação que a União representava em relação às preocupações dos Estados quanto à assistência humanitária em casos de catástrofes naturais, essa nunca chegou a ter plena efetividade. As dificuldades enfrentadas por esse organismo, foram oriundas em grande parte, do seu orçamento reduzido, que lhe possibilitou uma atuação meramente simbólica e por ter ser restringido aos meios administrativos e burocráticos URIOSTE, Alejandra de. When Will Help Be on the Way? The Status of International Disasters Response Law. In: Tulane Journal of International and Comparative Law, Vol. 15, issue 1, 2006, p. 181- 206, p. 183-184; COURSEN- NEFF, Zama. Preventive Measures Pertaining to Unconventional Threats to Peace such as Natural and Humanitarian Disasters. In: New York University Journal of International Law and Politics, Vol. I, issues 3/ 4, 1998, p. 645-708, p. 645-646. 50 WALKER, Peter. Victims of Natural Disaster and the Right to Humanitarian Assistance: a Practitioner´s View. In: International Review of the Red Cross. Disponível em: <http://www.icrc.org/web/eng/siteeng0.nsf/htmlall/57jpje?opendocument> Acesso em 15 de Fevereiro de 2010. 51 World Disasters Reports, International Federation of Red Cross and Red Crescent Societies, 2009, p. 180. 52 Em 1988, as Nações Unidas juntamente com a Organização Meteorológica Mundial e o Programa das nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) estabeleceram o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC (sigla em inglês para Intergovernmental Panel on Climate Change) com o propósito de avaliar, analisar e fornecer dados e informações científicas, técnicas e sócio - econômicas sobre as alterações climáticas. É uma organização científica e por sua natureza intergovernamental está aberta para a participação de todos os países da ONU e da Organização Meteorológica Mundial. Mais informações disponíveis em: http://www.ipcc.ch/organization/organization_history.htm Acesso em 11 de Julho de 2010. 16 Ante essa percepção, as Nações Unidas declararam os anos 90 como a Década Internacional para Redução dos Desastres Naturais. Posteriormente, em dezembro de 1999, a organização declarou por meio da Resolução 44/236 e depois confirmou com a Resolução 56/195 que a segunda quarta-feira de outubro seria o Dia Internacional para Redução de Desastres Naturais. Ainda em 1999, também foi criada no âmbito das Nações Unidas, a Estratégia Internacional para Redução de Desastres (International Strategy for Disasters Reduction- ISDR), que surgiu com o objetivo de conscientizar, promover e desenvolver um compromisso com autoridades públicas sobre risco, vulnerabilidade e redução dos desastres, difusão da informação e de conhecimentos científicos, de modo a reduzir as perdas humanas, sociais, econômicas e ambientais53. A crescente preocupação mundial com as calamidades naturais é um fator que pode ser mensurado. O número de mortos resultantes dessas tragédias e os prejuízos que delas decorrem chamam a atenção dos governos e, com isso, atenta-se para uma maior inclusão nas políticas públicas de questões relativas à prevenção e à redução dos riscos. Nos países desenvolvidos, como Japão e Estados Unidos que costumam ser afetados por fenômenos naturais, já se encontram bastante desenvolvidos tecnologicamente e com infraestrutura para lidar com acontecimentos de tal magnitude. Mas nem eles estão imunes às consequências que podem vir a ser devastadoras. Um grande exemplo foi o furacão Katrina, que em 2005 devastou Nova Orleães, no sul dos Estados Unidos, e que deixou um rastro de milhares de mortos e um prejuízo que chegou a bilhões de dólares. Quando os eventos de natureza catastrófica atingem países em desenvolvimento, os resultados são ainda mais alarmantes. Em uma gama de fatores que vai desde a inexistência de estruturas aptas para lidar com essas situações, aliada à concentração de populações em áreas vulneráveis, a carência de recursos financeiros não só na prevenção, mas principalmente na recuperação, acaba por resultar em tragédias de grandes proporções. Um dos problemas resultantes dos desastres tem sido o aumento do número de refugiados ambientais. As alterações climáticas no planeta têm ocasionado secas prolongadas, aumento na incidência de chuvas e dos próprios fenômenos naturais, obrigando, dessa forma, que milhares de pessoas abandonem suas casas e migrem em busca de melhores condições. As correntes migratórias impulsionadas por problemas 53 Estratégia Internacional para Redução de Desastres- International Strategy for Disasters Reduction- ISDR. Mais informações disponíveis em: http://www.unisdr.org/eng/about_isdr/isdr-mission-objectives-eng.htm Acesso em 10 de Julho de 2010. 17 ambientais e calamidades naturais tendem a sobrecarregar as estruturas dos locais onde os refugiados procuram abrigo e com isso, inicia-se um ciclo inesgotável de problemas. E é nesse cenário que surge a atuação de organismos da sociedade civil, como as ONGs e, em especial, a Cruz Vermelha, com intuito de fornecer condições mínimas de subsistência para aqueles vitimados por esses eventos catastróficos. Contudo, os desastres naturais estudados neste trabalho serão limitados a fenômenos naturais, tais como terremotos, inundações, furacões, tsunamis, erupções vulcânicas, não englobando calamidades resultantes da ação humana, os chamados desastres tecnológicos. 4. COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA Em 1859, o médico suíço Henry Dunant, ao presenciaro fim da Batalha de Solferino, entre a França e a Áustria, ficou chocado diante do abandono dos feridos e dos mortos em combate. Dessa forma, resolveu, juntamente com mais cinco pessoas criar uma organização voluntária, neutra, que teria como objetivo a assistência aos feridos e aos mortos em conflitos. Dunant também visualizou a necessidade de se criar um acordo internacional para garantir a proteção dos feridos e dos que atuavam na assistência em campos de batalha. Em função dos seus esforços, foi criado, primeiramente, o Comitê Internacional para Ajuda aos Militares Feridos, que mais tarde se transformou no Comitê Internacional da Cruz Vermelha. E esse Comitê organizou, em 1864, uma conferência em Genebra, em convênio com o governo suíço, que resultou na Convenção para Melhoria das Condições dos Feridos nos Exércitos no Terreno, o embrião da I Convenção de Genebra para proteção das vítimas de guerra. Posteriormente, foram criadas as Sociedades Nacionais, e suas atividades se espalharam pela Europa e, em seguida, por uma série de outros países. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Cruz Vermelha teve uma atuação intensa, especialmente com os prisioneiros e com os seus repatriamentos54. Em 1949, foram aprovadas as quatro Convenções de Genebra e, em 1977, os dois protocolos adicionais. 54 GASSER, Hans- Peter. International Committee of the Red Cross. In: R. Wolfrum (Ed.), The Max Planck Encyclopedia of Public International Law, Oxford University Press, 2010, online edition. Disponível em: http://www.mpepil.com/subscriber_article?script=yes&id=/epil/entries/law-9780199231690- e310&recno=1&author=Gasser . Acesso em 15 de Janeiro de 2010. 18 O Movimento Internacional da Cruz Vermelha é formado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha55, Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho e Federação Internacional de Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. O CICV, as Sociedades Nacionais e a Federação Internacional são organizações independentes, mas possuem como mais alta autoridade a Conferência Internacional, que se reúne, a princípio, em período de quatro em quatro anos ou quando há, excepcionalmente, um caso de necessidade extraordinária, com os representantes dos Estados-membros das Convenções de Genebra56. Os Estatutos do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho57 foram adotados primeiramente na Conferência Internacional de 1986, sendo complementados em 1995 (pela Resolução VII) e por fim, em 2006, pela Resolução I da 29ª Conferência Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Os Estatutos determinam a relação entre as duas instituições; e o Acordo de Sevilha, de 1997, explicita a responsabilidade e os princípios que regem o Movimento. O Comitê é o órgão fundador do movimento é ele que coordena as ações internacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. É composto de 15 a 25 membros, de nacionalidade suíça, que tenham experiência e vasto conhecimento em assuntos humanitários. O Comitê se reúne durante o ano em assembleia, que fixa os objetivos, as políticas a serem tomadas, bem como aprova o orçamento e elege o presidente do Comitê. O mandato do presidente é de um período de quatro anos renovável por mais quatro. As atividades do Movimento da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho são embasadas pelos princípios da Humanidade, Imparcialidade, Neutralidade, Independência, Voluntariado, Unidade e Universalidade. Esses princípios, que foram estabelecidos na 20ª Conferência Internacional da Cruz Vermelha de 1965, seguem uma hierarquia apoiados no princípio fundamental da Humanidade e têm como objetivo colocar regras de conduta para a atuação humanitária58. 55 De agora em diante denominado pela sigla CICV. 56 Descubra o CICV, disponível em: http://www.icrc.org/Web/por/sitepor0.nsf/htmlall/p0790/$File/ICRC_007_0790.PDF. Acesso em 15 de fevereiro de 2010. 57 Mais informações sobre os Estatutos <http://www.ifrc.org/Docs/pubs/who/constitution/120500-statutory-texts-en.pdf> 58 Esses princípios são divididos em substanciais, derivados e orgânicos. Os princípios substanciais são aqueles que se consubstanciam em um fim e não em meios, já os derivados são os que garantem a transposição dos substanciais para a realidade dos fatos e, por fim, os princípios orgânicos versam sobre as regras de aplicação sobre a forma e o funcionamento da organização58. Humanidade é o princípio basilar do Movimento, e afirma, em seu âmbito nacional e internacional, seu dever em prevenir e aliviar o sofrimento humano, bem como empenhar-se no respeito à pessoa humana, na proteção da vida e da saúde. Estimula a compreensão mútua, a amizade, a cooperação e a paz entre os povos. O princípio da Imparcialidade compromete-se ao socorro dos que dele necessitam, não havendo distinção entre raça, nacionalidade, religião, condição social ou vinculação política, priorizando somente os casos de maior necessidade. 19 O financiamento da organização é feito por meio de contribuições voluntárias dos Estados signatários das Convenções de Genebra, das Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, de organizações supraestatais e de fundos de origem público e privado. As contribuições podem ser feitas de várias maneiras, podendo ser por meio de alimentos, de dinheiro, de serviços. A maior parte do financiamento provém de um grupo denominado Grupo de Doadores, formado por doadores governamentais e internacionais, que doam por ano o mínimo de 10 milhões de francos suíços. Ainda assim, a organização faz apelos para aumentar as contribuições e, com isso, ter a capacidade financeira para atuar em todas as situações em que sua presença se faz necessária59. 4.1 NATUREZA JURÍDICA A natureza jurídica do Comitê Internacional da Cruz Vermelha se destaca dentro do quadro legal em que outras organizações não governamentais se inserem. A Cruz Vermelha é uma associação criada em consonância com o direito interno suíço, regida pelos artigos 60 e seguintes do Código Civil desse país, mas que tem como característica relevante sua atuação no campo do Direito Internacional, mais especificamente no Direito Internacional Humanitário. Suas ações no domínio humanitário, agindo sob o prisma de um serviço público internacional60, permitem-lhe que intervenha no território de determinados Estados para que exerça sua missão de assistência aos necessitados. A base legal de sua atuação vem das quatro Convenções de Genebra de 1949. A primeira Convenção diz respeito à proteção dos feridos e enfermos; a segunda é relativa aos náufragos, feridos e enfermos no mar; a terceira refere-se aos prisioneiros de guerra e a última à proteção dos civis em tempo de guerra61. Em 1977, foram adotados dois Neutralidade tem como objetivo envolver-se nas situações de conflito, sem qualquer interferência nas questões de matéria política, racial, religiosa e ideológica, de modo a conservar a confiança de todas as partes. Independência- visa levar as Sociedades Nacionais a atuarem em apoio ao poder público, com suas atividades submetidas às normas dos seus respectivos países, mas conservando sempre uma autonomia para agir dentro dos princípios que regem o movimento. Voluntariado objetiva auxiliar desinteressadamente aqueles que necessitam de ajuda. Unidade - em cada país só pode haver uma Sociedade da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, acessível a todos de maneira a atuar dentro de todo o território. Universalidade- sendo a Cruz Vermelha uma instituição universal, todas as sociedades têm direitos iguais e o dever de se ajudarem umas às outras. 59 Descubra o CICV, p. 51. 60 PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual..., cit., p. 403. 61 BORGES, Leonardo Estrela. O Direito Internacional Humanitário. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006, p. 28. 20 protocolos, com o objetivo de complementar as lacunas existentes nas Convenções citadas. Desse modo, apesar da sua origem e ligação com o estado suíço, país da sede da organização, o Comitê, pela importância das suas atividades internacionais, possui uma natureza jurídica sui generis, que lhe é conferida diante dos inúmeros Acordos sede e Convenções assinadas com diversos países. Os acordos com os Estados lhe concedem uma serie de privilégios e imunidades, em um status quase diplomático, em que não somente é garantida a independência e a liberdade de ação, mas a inviolabilidade das suas instalações e também a imunidade de jurisdição e execução da instituição e de seus funcionários62. Os privilégios e imunidades de que ela goza lhe permitem atuar dentro da esfera da neutralidade e da independência, possibilitando, assim, que ela cumpra sua missão e garanta a confiança entre as partes em conflito. Pode-se afirmar que o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, não obstante a sua característica não governamental e não lucrativa, é um sujeito internacional, mas com personalidade jurídica limitada, posto que sua atuação é restrita aos objetivos estabelecidos nas Convenções de Genebra. Wladimir Brito observa que, examinando a prática internacional, percebe-se a atribuição de direitos e obrigações a essa organização e ressalta inclusive, a sua contribuição na produção normativa do Direito das Gentes, quando participa da celebração de tratados e acordos internacionais63. A sua personalidade jurídica internacional foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas através da Resolução 45/664, de 16 de outubro de 1990, que lhe concedeu o status de observador na Assembleia Geral e lhe garantiu uma gama de direitos necessários ao exercício de sua missão. O Comitê atua como observador, não somente na Assembleia Geral da ONU, mas em várias agências dessa instituição como o “OCHA-UN Office for the Coordination of Humanitarian Activities”, - o ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – e também em inúmeras outras organizações intergovernamentais, tais como a União Europeia e União Africana. 62 GASSER, Hans- Peter. International Committee of the Red Cross. In: R. Wolfrum (Ed.), The Max Planck Encyclopedia of Public International Law, Oxford University Press, 2010, online edition. Disponível em: Disponível em: http://www.mpepil.com/subscriber_article?script=yes&id=/epil/entries/law- 9780199231690-e310&recno=1&author=GasserAcesso em 12 de Janeiro de 2010. 63 BRITO, Wladimir. Direito Internacional Público. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 449. 64 Resolução 45/6 disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/563/95/IMG/NR056395.pdf?OpenElement. Acesso em 13 de Fevereiro de 2010. 21 4.2 PAPEL DA CRUZ VERMELHA COMO APLICADORA DO DIREITO HUMANITÁRIO Como Leonardo Estrela Borges observa o nascimento do Comitê Internacional da Cruz Vermelha confunde-se com a origem do próprio direito internacional humanitário65. O Direito Humanitário66 é um ramo específico do Direito Internacional Público, que tem como escopo regulamentar as normas em situações de conflitos armados. Essas normas têm como finalidade limitar os métodos e meios de guerra e tentar minimizar os sofrimentos dos que se encontram atingidos pelo conflito. Esse direito se desenvolveu com base em três correntes, o Direito de Haia, o Direito de Genebra e o Direito de Nova York. O Direito de Haia, também denominado como Direito da Guerra, originou-se nas Conferências de Paz ocorridas em 1899 e 1907 e busca regular os meios de condução das hostilidades. O Direito de Genebra, que engloba as Convenções de Genebra e os Protocolos Adicionais, visa à proteção das vítimas em caso de conflitos armados. E por fim, o Direito de Nova York, que se desenrolou com a atuação das Nações Unidas na esfera do Direito Humanitário67. Com a adoção da Resolução 2444 pela Assembleia Geral, que reconhecia a necessidade de se aplicarem os princípios humanitários às situações de conflitos armados, as Nações Unidas adotaram também a Resolução XXVIII da XX Conferência da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, realizada em 1965, e que continha os princípios norteadores em ocorrência de conflitos: a) O direito das partes em conflito de escolherem os meios para prejudicar o inimigo não é ilimitado b) A proibição de direcionar ataques contra a população civil como tal; c) A distinção, entre os que participam das hostilidades e a população civil, que deve ser feita a todo tempo, de modo a poupar os últimos sempre que possível68. 65 BORGES, Leonardo Estrela. O Direito Internacional..., cit., p .63. 66 Esse Direito pode ser entendido como: “As regras internacionais, de origem convencional ou costumeira, que são especificamente destinadas a regulamentar os problemas humanitários decorrente diretamente dos conflitos armados, internacionais ou não internacionais, e que restringem, por razões humanitárias, o direito das partes no conflito de empregar métodos e meios de guerra de sua escolha ou que protegem as pessoas e bens afetados ou que podem ser afetados pelo conflito”. GASSER apud BORGES, Leonardo Estrela.. O Direito Internacional..., cit., p. 16. 67 Nessa atuação das Nações Unidas se destacam: a Resolução 2603 de 1969, relativa a condenação de uso de armas químicas e biológicas; Resolução 2936 que condena o uso de armas e forças nucleares; a Declaração sobre a Proteção das Mulheres e Crianças em Período de Urgência e Conflitos Armados de 1974 e a Convenção sobre a Proibição do Uso de Técnicas de Modificação Ambiental para Fins Militares ou Quaisquer outros Fins Hostis, de 1977. 68 Resolução 2444 da Assembleia Geral, disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/244/04/IMG/NR024404.pdf?OpenElement. Acesso em 09 de Julho de 2010. 22 O fortalecimento da relação entre as Nações Unidas e o CICV ocorreu em 1990, após o Comitê receber o status de observador junto aos fóruns da organização69. Na esteira do surgimento em julho de 1998, do Tribunal Penal Internacional, instituído pelo Tratado de Roma, origina-se o Direito de Roma. A instauração desse Tribunal vem a preencher uma das maiores lacunas existente no Direito Internacional Penal, ou seja, a falta de um sistema jurisdicional internacional permanente apto para punir indivíduos acusados de desrespeito aos Direitos Humanos e Direito Humanitário. A Cruz Vermelha tem entre suas tarefas difundir o Direito Internacional Humanitário, zelar para a aplicação dele e de suas eventuais violações. Através da comunicação e na difusão de conhecimentos, o CICV atua em três níveis: na conscientização; na promoção do DIH através do ensino e da formação e na articulação entre o Direito Humanitário e os programas públicos de caráter educativo, jurídico e operacional70. O Comitê, por meio da Assessoria de Direito Humanitário, estimula os Estados- membros das Convenções de Genebra a adotarem legislação no sentido de aplicar o Direito Humanitário nacionalmente. Ele também procura maneiras de promover a implementação das disposições pertinentes a esse direito, inclusive por meio do desenvolvimento de novas normas71. Embora sejam os Estados os principais aplicadores desse direito,seus preceitos se materializam por meio da atuação da Cruz Vermelha. 4.2.1. Proteção e Assistência A atuação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha se realiza em duas frentes: a da proteção e da assistência, e ambas são abordadas e regidas pelas Convenções de Genebra de 1949. 69 O Direito Internacional Humanitária e Direitos Humanos. Ficha Informativa sobre Direitos Humanos nº. 13, Rev. I. Gabinete de Documentação e Direito Comparado, Procuradoria Geral da República, Lisboa, 2001, p.13. 70 Descubra o CICV, p. 41. 71 Descubra o CICV, p. 16. 23 O sentido de assistência engloba dois conceitos, a assistência em si mesmo e o instituto da proteção. A proteção se desenvolve antes da assistência, e esta só acontece quando a primeira não funciona72. Em situações de urgência ou de conflitos armados a organização busca garantir o respeito pelas normas de Direito Humanitário, relembrando as partes dos seus deveres e direitos assegurados pelas Convenções de Genebra. O CICV busca, através do contato com as partes em combate, proteger a vida, a saúde e a pessoa humana. Dessa forma, suas atividades procuram minimizar os perigos e ameaças que afligem as pessoas, em meio ao conflito ou estados de urgência, e prevenir ou pôr um fim às situações de violações dos direitos humanos. A Cruz Vermelha tem como compromisso a proteção e a assistência dos que se encontram em desamparo, e para isso, opera em diálogo com os atores estatais e os não estatais, buscando a promoção, a difusão e a aplicabilidade das regras de Direito Humanitário. Assim, a ação protética deve anteceder a assistencialista, com o objetivo de sempre de evitar que se recorra a ultima. No entanto, caso isso seja possível, a assistência deverá sempre ser acompanhada da proteção73. O Instituto de Direito Internacional (IDI) adotou no Relatório Bruges74, de 2003, a definição de Assistência Humanitária: Todos os atos, atividades, recursos humanos e materiais para o fornecimento de bens e serviços de caráter exclusivamente humanitário, indispensável para a sobrevivência e para a satisfação das necessidades essenciais das vítimas de catástrofes 75. O conceito de Assistência tem como ponto fundamental todas e quaisquer ações com o intuito de minorar o sofrimento daqueles que, seja pela guerra, pelas catástrofes naturais ou por qualquer outro evento, encontram-se em situação de penúria. Essa ajuda, geralmente, é feita pelo envio de bens para a satisfação de necessidades básicas urgentes, como alimentos, medicamentos, ou por envio de profissionais e até suporte econômico. 72 RAIMUNDO, Isabel. Imperativo Humanitário e Não-Ingerência. Os Novos Desafios do Direito Internacional Contemporâneo. Lisboa: Edições Cosmos, Instituto de Defesa Nacional, 1999, p. 49. 73 RAIMUNDO, Isabel. Imperativo Humanitário..., cit., p. 49. 74 Relatório Bruges. Disponível em: http://docs.google.com/viewer?a=v&q=cache:oIcTcWuUMuQJ:www.idi- iil.org/idiE/resolutionsE/2003_bru_03_en.PDF+Bruges+Resolution&hl=pt-BR&pid=bl&srcid=ADGEESiMgmnq3_j4-kkiCnbrdPmv- fTsJXIdFYSJ96gXrajNudNppygH_QW9u68tfy8g_Fl7FKKAEkVGa0pHI4X5MVmmB_FhU5jBoDYESsd7svf_fwJpJsXD6USyZaUrXTCn3dIERId&sig=AHIEt bSfP8b6qjaBPq7ssfxHBzC97sTKqg Acesso em 15 de Fevereiro de 2010. 75 ‘Humanitarian assistance’ means all acts, activities and the human and material resources for the provision of goods and services of an exclusively humanitarian character, indispensable for the survival and the fulfillment of the essential needs of the victims of disasters. (Artigo 1º.) Tradução nossa. 24 Diante do estudo desse instituto, faz-se necessária a distinção entre assistência humanitária principal e assistência humanitária subsidiária ou internacional. Assistência humanitária principal é a prestada pelos Estados onde ocorreu a emergência humanitária. E ela é, acima de tudo, um dever do Estado atingido, uma vez que decorre da sua própria soberania e também em função de ser ele o que mais tem condições de atuar de maneira rápida e eficaz após uma análise das necessidades exigidas pela ocorrência. Nesse sentido, Budislav Vukas pondera que o Estado onde ocorreu a emergência é o principal responsável pela organização, coordenação, disposição e distribuição de assistência humanitária. No entanto, ele ressalta que nesse dever primário dos Estados afetados, incluem-se também todos os seus órgãos centrais, autoridades locais e inclusive os componentes da sociedade civil que são capazes de ajudar, em especial as ONG nacionais, cuja finalidade é a assistência em tais situações76. Apesar de ser o sujeito da assistência humanitária primária, o Estado atingido, em caso de inaptidão de proporcionar o auxílio necessário, tem o dever de permitir a assistência humanitária oferecida por outras instituições de vocação protética/assistencialista e de outros organismos da comunidade internacional. A assistência subsidiária ou internacional surge concomitante às ações governamentais ou diante da inércia ou da inaptidão do Estado que as deveria proporcionar. Essa assistência é prestada por organizações internacionais e organizações não governamentais de atuação humanitária, tal como a Cruz Vermelha, objeto deste trabalho. J. A. Carrillo Salcedo entende que o direito de receber assistência implica o direito a solicitá-la, ou seja, o direito à assistência humanitária engloba o direito de solicitar/receber esse auxílio77. De acordo com os “Princípios que regem o Direito à Assistência Humanitária”, enunciados pelo Instituto Internacional de Direito Humanitário em 1992, o Estado tem o dever de prestar assistência às vítimas dentro de seu território; e os outros Estados, as Organizações Internacionais e as ONGs têm o direito de fornecer a assistência humanitária para as vítimas, mas com o prévio 76 VUKAS, Budislav. Humanitarian Assistance in Cases of Emergency. In: R. Wolfrum (Ed.), The Max Planck Encyclopedia of Public International Law, Oxford University Press, 2007, online edition. Disponível em: http://www.mpepil.com.ezproxy.ub.unimaas.nl/subscriber_article?script=yes&id=/epil/entries/law- 9780199231690-e823&recno=1&searchType=Advanced&title=humanitarian+assistance+in+cases+of+emergency. Acesso em 18 de Fevereiro de 2010, parágrafo 20. 77 Carrillo Salcedo apud RUIZ, Rosario Ojinaga. Emergencias Humanitarias y Derecho Internacional: La asistencia a las víctimas. Cruz Roja Española. Valencia: Tirant lo Blanch, 2005, p.198-199. 25 consentimento do país onde se desenrola a crise78. Em um cenário de multiplicidade de novos atores, capazes de prestarem essa assistência subsidiária, o Estado, em situações de emergências humanitárias, deve não só aceitar, mas também facilitar a entrada desses organismos. Desse modo, a assistência em um sentido amplo, engloba tanto as ações destinadas a promover o envio de recursos materiais e econômicos, como as medidas de proteção das vítimas dos desastres79. Entretanto, o direito à assistência humanitária em situações de catástrofes ambientais não possui um escopo legal definido. Apesar de já existirem instrumentos jurídicos relativos à assistência humanitária, esses são voltados para as que ocorrem em tempos de conflitos. Ainda assim, pode-se atribuir à assistência humanitária em desastres naturais, princípios gerais de direito e princípios relacionados com os direitos humanos. Os princípios e regras que podem ser aplicados à assistência, tema deste trabalho, são diversos e somente variam em razão da sua natureza jurídica, posto que alguns são princípios gerais e normas do direito consuetudináriointernacional, outros são normas ius cogens80 de observância geral e imperativa81. O direito à vida, direito à liberdade, à integridade física, à dignidade da pessoa humana são princípios mais do que consolidados na esteira jurídica e embasam o direito à assistência humanitária também em caso de catástrofes naturais. O direito à assistência humanitária tem a sua origem no costume internacional. Sob a ótica da doutrina do direito costumeiro, para que uma norma se cubra de um caráter obrigatório e vinculativo perante um Estado, tem de existir uma ampla e uniforme prática, como prova da aceitação dessa regra como direito. Diante disso, alguns autores afirmam o surgimento de uma nova visão do direito consuetudinário internacional e entendem como possível a criação de costume por atores não governamentais, tais como organizações internacionais e algumas 78 FERNANDES, J. Alcaide; MÁRQUEZ CARRASCO, Mª. Del C.; CARRILLO SALCEDO, J. A. La Asistencia Humanitaria en Derecho Internacional Contemporáneo. Universidad de Sevilha, 1997, p.128. 79 STOFFELS, Ruth Abril. La Asistencia Humanitaria en los Conflictos Armados. Cruz Roja Española, Centro de Estudios de Derecho Internacional Humanitario. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2001, p. 37. 80 As normas de ius cogen estão estabelecidas no artigo 53 da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados: “Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza”. 81 VUKAS, Budislav. Humanitarian Assistance..., cit., parágrafo 8. 26 organizações não governamentais que tenham relevância no cenário internacional82. As resoluções sobre esse tema, aprovadas pela Assembleia Geral da ONU também contribuíram de forma relevante para a criação desse costume. A Assembleia Geral adotou algumas resoluções nesse sentido, primeiramente com a Resolução nº. 43/13183, de 8 de dezembro de 1988, que estabeleceu o dever de prestar socorro aos afetados pela calamidade, com fulcro no princípio do livre acesso às vítimas, e legitimou assim o direito de assistência subsidiária quando o Estado atingido for incapaz de atender rápida e prontamente às necessidades que a situação demanda. Em 14 de dezembro de1990, foi editada a Resolução nº. 45/100 e, em 19 de dezembro de 1991, foi adotada a Resolução 46/182, denominada Fortalecimento da Coordenação da Assistência Humanitária de Emergência. Ambas visavam estabelecer os princípios norteadores da assistência diante de todas as fases existentes nesse processo. A Resolução 43/131, em seu parágrafo 8º, considerou também que “o abandono das vítimas de desastres naturais e situações de emergência semelhantes, sem a ajuda humanitária constitui uma ameaça à vida humana e ofensa à dignidade humana”. O parágrafo 6º da Resolução 43/13184 e o parágrafo 7º da Resolução 45/100 incentivam os Estados que se localizam perto das zonas afetadas pelas situações de emergência a facilitarem o trânsito da assistência e cooperarem com ele. Assim, a doutrina entende não haver uma obrigação de um Estado terceiro prestar a assistência a vítimas em território de outro país; contudo, eles têm o dever de facilitar a entrega desse auxílio e cooperar com ela85. 82 Nesse sentido, GUNNING aduz que “While nations remain powerful entities on the international scene, they no longer have the autonomous authority that traditional customary law presumed them to have. State actions that develop custom are themselves strongly influenced by a complex structure of international organizations. Similarly, the traditional theoretical framework upon which customary international law has rested - certain selected assumptions about human nature and interaction and by analogy states' actions and interaction - are now only a partial description of what nations do in fact. To reflect this shift in power in international relations, customary international law as well should look to non-state actors as having the ability to create custom. The modification of the development of customary international law could be achieved in two ways. One approach expands the role of international organizations when their acts are determined to constitute collective acts of states, so that these acts, which are traditionally understood as only highly influential, would be recognized as part of the process of custom creation in international law. The second approach recognizes that certain non-governmental organizations have a distinct, measurable impact on international affairs. As these groups mobilize widespread support, they should be given a legal role in the custom creation process”. GUNNING, Isabelle R. Modernizing Customary International Law: The Challenge of Human Rights. In: Virginia Journal of International Law, nº. 31, 1991, p. 221-222. Corroborando esse entendimento ver: HARDCASTLE, Rohan J.; CHUA, Adrian T. L. Humanitarian Assistance: Towards a Right of Access to Victims of Natural Disasters. Disponível em: http://www.icrc.org/web/eng/siteeng0.nsf/htmlall/57jpjd?opendocument. Acesso em: 23 fev. 2010. Essa produção do costume internacional por atores não estatais demonstra cada vez mais o papel que a governança tem exercido, não só no direito interno, mas claramente no internacional. 83 Resolução 43/131. Disponível em: < http://www.un.org/documents/ga/res/43/a43r131.htm> Acesso em 14 de Fevereiro de 2010. 84 Resolução 43/131, parágrafo 6º: “Urges States in proximity to areas of natural disasters and similar emergency situations, particularly in the case of regions that are difficult to reach, to participate closely with the affected countries in international efforts with a view to facilitating, to the extent possible, the transit of humanitarian assistance”. 85 RUIZ, Rosario Ojinaga. Emergencias Humanitarias..., cit., p. 194. 27 A proteção da pessoa humana e de sua dignidade tem sido uma das maiores preocupações do mundo jurídico, não só no âmbito interno, mas principalmente no externo. A salvaguarda dos direitos fundamentais são temas cujos princípios competem ao homem como seu patrimônio comum e devem ser amparados, não podendo mais se invocar a soberania como impeditivo para o desenvolvimento desses direitos. Dessa forma, diante da recusa injustificada de um Estado em aceitar a assistência humanitária, os organismos e as instituições de vocação humanitária podem recorrer a órgãos da ONU relacionados com a matéria, ou outros organismos regionais ou internacionais no sentido de se tomarem medidas para induzir o Estado a permitir a assistência e a impedir o abandono das vítimas86. E isso ocorreu quando o Conselho de Segurança adotou a Resolução 688, em abril de 1992, condenando a repressão que Iraque impingia aos curdos e aos xiitas, e solicitando que esse país pusesse um fim a esses atos, insistindo para que conferisse acesso imediato às organizações humanitárias, para que estas pudessem assistir a população necessitada e que colocasse à disposição todos os meios necessários para alcançar esse objetivo. Assim, foi-se reconhecido, implicitamente, o dever/obrigação do Estado de aceitar a assistência humanitária subsidiária87. 4.3 ATUAÇÕES DA CRUZ VERMELHA EM DESASTRES AMBIENTAIS Não obstante o enfoque da atuação da Cruz Vermelha ser diretamente ligado às situações de conflitos armados, o princípio da humanidade lhe garante atuação perante circunstâncias não previstas nas Convenções de Genebra, tais como em desastres
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