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Anais Eletrônicos do SIMPORI 2015 Simpósio de PósGraduação em Relações Internacionais do Programa “San Tiago Dantas” (Unesp, Unicamp, PUCSP) “Governança Global: transformações, dilemas e perspectivas” São Paulo, 09 a 12 de novembro de 2015 ISSN 19849265 TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA DA INCLUSÃO E DO RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS IDENTITÁRIAS 1 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS: AN ANALYSIS FROM THE PERSPECTIVE OF INCLUSION AND RECOGNITION OF IDENTITY DIFFERENCES Vanessa Capistrano Ferreira 2 RESUMO A partir da análise factual dos casos de intolerância e racismo (art.14 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos) julgados pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, este trabalho pretende identificar os atuais quadros limítrofes de promoção da inclusão social e do reconhecimento das diferenças no continente europeu. Sob a perspectiva da Teoria Reconstrutiva do Direito de Jürgen Habermas e da Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth, será possível contestarmos a aplicação exclusivista dos direitos humanos na Europa, com a exposição de suas lacunas jurisprudenciais, as quais comprometem, em sentido substantivo, sua efetividade e legitimidade democrática no escopo social. Arguirseão, ainda, os efeitos colaterais de um sistema de direitos efetivado e legitimado pelas vias particularistas de uma cultura ocidental majoritária, 1 Trabalho apresentado V Simpósio do Programa de PósGraduação em Relações Internacionais (UNESP/UNICAMP/PUCSP). 2 Doutoranda pelo Programa de PósGraduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUCSP), na área de “Instituições, Processos e Atores”. Mestre em Ciências Sociais, com ênfase em “Relações Internacionais e Desenvolvimento”, pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Filosofia e Ciências/ UNESP – Marília/SP. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Filosofia e Ciências/ UNESP – Marília/SP. Coordenadora da linha de “Direitos Humanos, Migrações e Novas Subjetividades”, no Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP), e membro do Grupo de Pesquisa em Relações Internacionais e Política Exterior do Brasil na área de “Direitos Humanos e Relações Internacionais”. Bolsista de doutorado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). que silencia a arbitrariedade e a opressão a que são submetidos grupos constantemente inferiorizados e não incluídos no direito moderno. Por fim, esperase problematizar, a própria ordem jurídica do Estado democrático de direito, com vistas à superação de suas vicissitudes no âmbito internacional à luz das possíveis realizações emancipatórias do tempo presente. Palavraschave: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos; Reconhecimento; Emancipação. ABSTRACT From the analysis of the cases of intolerance and racism (article 14 European Court on Human Rights) judged by the European Court of Human Rights, this work aims to identify the current limits for both the promotion of social inclusion and the recognition of identity differences in Europe continent. Using the Reconstructive Theory of Law by Jürgen Habermas and the Theory of the Struggle for Recognition by Axel Honneth, it will be possible to refute the exclusive application of human rights in Europe, with the exposure of its jurisprudential gaps, which significantly impairs, its effectiveness and democratic legitimacy in the social scope. Also, there will be considerations about the side effects of a system of rights carried out and legitimated majority by occidental culture, which silences the arbitrariness and oppression of minority groups, which are constantly inferiorized and not included in modern law. Finally, the egalitarian law of the democratic State will also be questioned, in order to overcome its vicissitudes in the international extent in the light of possible emancipatory achievements at the present time. Keywords: European Court of Human Rights; Recognition; Emancipation. 1. INTRODUÇÃO A conformação do corpo jurídico ao conjunto de elementos jusfilosóficos ocorreu com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Regida pela doutrina dos direitos naturais, a declaração possibilitou o surgimento da acepção de que todos os seres humanos possuem direitos, pela sua “igualdade essencial, como seres dotados de liberdade e razão” (COMPARATO, 2003, p.11). Após a definição das perspectivas individuais e coletivas no campo jurídico, essa nova constelação de valores influenciou a aplicação dos direitos (vistos como fundamentais), no âmbito do exercício da cidadania nos Estados modernos, e na criação de estruturas jurídicas eficazes para a implementação de tais diretrizes no escopo social (ALEXY, 2011, p.12). O sistema de direitos, anteriormente, restrito às fronteiras nacionais e ao desenvolvimento interno do Estado de direito, foi ampliado com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. No art.I da declaração, é reiterado que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, sendo ainda atribuído em seu preâmbulo, a aproximação dos direitos fundamentais ao novo conjunto moral de valores ascendentes. Isto é, na defesa “[d]a fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana”, como sendo os princípios normativos a serem seguidos também no âmbito internacional (HABERMAS, 2012, p.07). Com a radicalização dos conceitos de igualdade, dignidade e liberdade, em 1950, sob o anseio de “assegurar o reconhecimento e aplicação universais e efetivos dos direitos do homem”, garantir a promoção da unidade europeia e o fomento do progresso econômico e social, é celebrada, no bojo do Conselho da Europa (CE), a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). A CEDH traduziuse num mecanismo de reconhecimento universal da condição humana de igualdade essencial, visando a “proteção e o desenvolvimento dos direitos humanos”, os quais passaram a se constituir como “as verdadeiras bases da justiça”, que repousam “num regime democrático” (CONVENÇÃO, 2014, grifos nossos). Ao incipiente papel dos direitosindividuais clássicos foram incorporados, no seio da CEDH, os debates atinentes aos direitos econômicos, sociais e culturais, com a adição formal da Carta Social Europeia em 1961 e dos Protocolos Adicionais em 1988. No entanto, sua contribuição mais notória deuse a partir da criação de órgãos destinados a julgar e a executar sentenças, acerca da transgressão dos direitos humanos na Europa, por meio do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e do Comitê de 3 Ministros do CE , respectivamente. 4 3 Constituise como órgão incumbido de julgar casos individuais de violação dos Direitos Humanos na Europa, tendo como base a CEDH e seus protocolos adicionais. Os casos são encaminhados por vítimas diretas ou indiretas, e analisados por um juiz singular, o qual é assessorado por um conjunto de relatores não judiciais. Se a queixa for considerada admissível, o caso é avaliado com base na jurisprudência anterior do Tribunal pelo comitê de juízes (formado por três membros) ou pela Câmara (formada por sete juízes), sendo assim, atribuída a sentença. No entanto, se não houver precedência na história do Tribunal, o caso é encaminhado para julgamento na “Grande Câmara” (composta por 17 juízes) e deliberado a sentença, que é obrigatória. Se a queixa for considerada inadmissível, é impossível a apelação, tendo como base o mesmo processo. Até 2010, cerca de 95% do casos avaliados, foram considerados inadmissíveis pelo Tribunal (ESQUEMA, 2014). 4 Órgão responsável pela execução obrigatória das sentenças proferidas pelo Tribunal. Por ele, é encaminhado um dossiê que estipula o “pagamento de uma compensação”, ou a adoção de medidas gerais (como, por exemplo, a alteração da legislação do Estado parte), ou a adoção de medidas individuais (com a reabertura do processo). Caso o Estado parte não cumpra o dossiê, uma nova apreciação é realizada pelo Comitê de Ministros, com a aplicação de penalidades (TRAMITAÇÃO, 2014). No que tange às competências do Tribunal, desde que foi instituído em 1959, podese considerar a preservação dos valores inspirados no Estado de direito (para além de seus restritos projetos nacionais), a defesa da democracia pluralista e, acima de tudo, a proteção dos direitos do homem e de suas liberdades fundamentais. Sua assistência se estende a todos os cidadãos dos Estadosparte que compõe o CE, bem como os não cidadãos, que residem em seu espaço jurisdicional (BATTJES et all, 2009). Em suma, utilizandose do argumento de Soysal (2012), o Tribunal Europeu se apresenta como um órgão de representação dos valores universalistas e de validação dos direitos humanos, sob a forma do exercício pleno de um modelo de cidadania transnacional. A dicotomia entre cidadania e direitos humanos é cada vez mais insustentável [...] a institucionalização crescente dos direitos humanos é bem documentada. Não só o número de tratados e organizações internacionais dedicadas à proteção dos direitos humanos aumentou, como também o número de ratificações e de adesões dos países. As normas legais e institucionais também passaram a incorporar os direitos humanos [...] mas o mais importante, [...] é a expansão para além dos próprios termos da cidadania [...] tanto na gama dos requerentes contemplados quanto na gama de reivindicações aplicáveis. Amplos direitos para as mulheres, crianças, idosos, minorias, para as questões de gênero e para a cultura, para as pessoas com deficiências, os quais colocam em prática ademocracia social europeia, estendida aos residentes que não são cidadãos [...] esses direitos foram definidos em uma razão universalista e codificados na convenção internacional dos direitos humanos (SOYSAL, 2012, p.16, tradução livre, grifo nosso). Entretanto, a enfermidade do otimismo mostrase perceptível quando analisamos a jurisprudência do Tribunal na atualidade, apresentada por meio dos documentos oficiais: o Country Fact Sheets (19592010) e o Factsheet – Racial Discrimination (2013) . O estudo críticojurisprudencial desses relatórios proporciona a observância de 5 possíveis omissões jurídicas, nos casos que envolvem as leis e as políticas de não discriminação, ligadas aos grupos minoritários no continente. Pois, como argumenta Battjes (2009), a situação dos estrangeiros e não cidadãos ainda varia conforme as noções de identidade, construídas no interior dos Estados nacionais, nos valores étnicos e culturais, nas raças e nas lealdades nacionais. A partir do estudo do Factsheet – Racial Discrimination (FRD), notase que, desde 1978, muitos casos passaram a ser apresentados ao Tribunal Europeu em matéria 5 Esses relatórios traduzem em síntese, as bases jurisprudenciais do Tribunal Europeu que datam do ano de 1959 até 2013. Suas violações dizem respeito a todos os artigos que envolvem a CEDH, no entanto, concentrarnosemos apenas nos casos de violação do art.14 da CEDH (foco de estudo dessa pesquisa). Eles estão disponíveis, em sua íntegra, no website oficial do Tribunal Europeu. de violação dos direitos do homem, com a exposição de ameaças à integridade física e à dignidade humana, em associação às formas de discriminação com base na raça, na cor, na origem étnica e em outras situações. O relatório ilustra – no que tange à jurisprudência do Tribunal, acerca do art.14 da CEDH –, como notórios êxitos, os julgamentos de Sander contra o Reino Unido (processo nº34129/96) e de Nachova contra a Bulgária (processo nº43577/98 e 43579/98). Segundo ele, esses processos apresentaramse como ímpares no combate ao racismo e à intolerância na Europa e serviram para reforçar “a visão da democracia numa sociedade em que a diversidade não deve ser percebida como ameaça” (FRD, 2013, p.03). Em consonância a essa conduta, também são elencados no Country Fact Sheets (CFS) (19592010) alguns dos principais padrões jurisprudenciais que se constituíram como as bases para a história de formação do Tribunal. Sobre o direito de não discriminação encontramse referidos os casos de Velikova contra a Bulgária (processo nº 41488/98) e de Anguelova contra a Bulgária (processo nº 38361/97). Sob essa insígnia, MarieBénedicte Dembour(2009), em seu artigo “Still silencing the racismo suffered by migrants”, tece vigorosas críticas à jurisprudência do Tribunal no combate à discriminação no continente. Segundo Dembour (2009), as omissões do Tribunal são evidentes no que se refere ao reconhecimento das diferenças e das garantias morais de acesso aos direitos equitativos de inclusão social, face às arbitrárias decisões estatais e ao abuso de poder na Europa. Pois, apesar dos casos de Sander contra o Reino Unido (processo nº34129/96), de Velikova contra a Bulgária (processo nº 41488/98), de Anguelova contra a Bulgária (processo nº 38361/97), e de Nachova contra a Bulgária (processo nº43577/98 e 43579/98), serem avaliados pelo Tribunal como exemplos de “sucesso” na luta contra a discriminação, para a autora, eles se transformaram “numa elaborada técnica jurídica, que produziu paradoxalmente a possibilidade e a necessidade de silenciar o racismo na Europa” (DEMBOUR, 2009, p.223, tradução livre, grifo nosso). (Esses) julgamentos configuramse como os mais polêmicos do Tribunal, pois revelam os pontos internos da crítica, acerca de sua jurisprudência [..] Como Dembour argumenta, o tabu que repousa sobre o racismo tem fomentado uma mentalidade de negação, tornando muitos de nós – incluindo os juízes do Tribunal – cegos para as tensões raciais que ainda marcam as sociedades europeias (HEMME, 2009, p. 203, tradução livre, grifo nosso). Nas palavras de Dembour (2009, p.223231, grifo nosso, tradução livre): [...] o caso de Sander contra o Reino Unido foi um julgamento comumente considerado por analistas como um caso ilustre no combate ao racismo pelo Tribunal. No entanto, minha tese sugere o oposto, que nem de longe se configurou numa ação jurídica de combate ao racismo, mas apenas o silenciou [...] (Em Velikova e Anguelova) explorase também como se constituiu a regra de direito que tornou possível o Tribunal se manter distante de reconhecer o racismo por décadas, insistindo, até recentemente num padrão irreal de prova e por rejeitar, o próprio conceito de discriminação indireta. [...] E, (finalmente), em Nachova, o Tribunal encontrou uma violação do art.14 da CEDH, mas que poderia ser identificada apenas em seu aspecto processual [...] (Apesar disso) o Tribunal não encontrou violação em seu sentido substantivo [...] A verdade é que (todos esses casos) são invariavelmente analisados como conquistas por juristas otimistas que afirmam existir uma mudança. No entanto, eles representam apenas pequenas concessões num espaço onde o racismo cresce a cada dia [...] e referemse às ocorrências de não reconhecimento do racismo e no seu contínuo silêncio. Assim, a partir da análise da literatura existente sobre as sentenças proferidas pelo Tribunal Europeu – no que tange à violação do art.14 da CEDH – , surgem como casos exemplares a serem avaliados por esse trabalho, os casos de Sander contra o Reino Unido (processo nº34129/96), de Velikova contra a Bulgária (processo nº 41488/98), de Anguelova contra a Bulgária (processo nº 38361/97), e de Nachova contra a Bulgária (processo nº43577/98 e 43579/98). Com a utilização dessa amostra jurisprudencial, propõese problematizar o fundamento último dos direitos humanos, concebidos também como um legado moral, acerca da concretização de seu projeto de reconhecimento do pluralismo sociocultural – mediante acesso igualitário ao sistema de direitos na Europa – e, da consolidação dos espaços de luta pela preservação da dignidade humana (HONNETH, 1999). Em suma, colocarseão em evidência, os possíveis empecilhos socionormativos inclusivos do reconhecimento humano, o qual é continuamente subjugado pelo viés cultural e pelos males etnocêntricos, recorrentes na tradição ocidental. Em seguida, a persecução deste artigo visa testar a hipótese de que os marcos tradicionais ainda estão presentes nas deliberações do Tribunal Europeu, o que abala, não apenas as premissas igualitárias existentes no interior da concepção políticofilosófica do Estado democrático de direito, mas principalmente, a resolidarização dos laços sociais pautados no reconhecimento das especificidades de toda a pessoa e de todas as pessoas, sem que ocorra a inferiorização ou a discriminação. Condição essa, imprescindível para a realização da autonomia individual, base de edificação e desenvolvimento dos parâmetros elementares do sistema moderno de direitos (CRISSIUMA, 2013). A partir disso, buscaremos responder: Seria o Tribunal Europeu o exemplo de maior eficácia, no que tange à proteção dos direitos humanos, justamente por silenciar as violações cometidas no âmbito dos Estados nacionais? As estruturas jurídicas supraestatais, criadas e inspiradas nas bases políticofilosóficas do Estado de direito, seriam mecanismos incumbidos de reconhecer e simultaneamente omitir os direitos humanos? Por meio da análise dos casos empíricos, seria o suposto universalismo categórico dos direitos humanos fruto de direitos exclusivistas, pautados no não reconhecimento de outras formas de vida? As omissões nos procedimentos jurídicos, que garantem a ordem em detrimento do caos do reconhecimento do outro, seriam casos nítidos de fracasso da aplicação dos direitos de cidadania sob uma perspectiva universal? Com base em tais indagações, esse trabalho será desenvolvido e justificado, a fim de analisar as reais implicações das práticas jurisprudenciais do Tribunal, as quais, presumivelmente, ainda versam sobre prerrogativas de aplicação exclusivista de direitos, o que enfraquece o seu ideal de universalidade, tornandoo controverso em sociedades cada vez mais complexas. 2. OS DIREITOS HUMANOS E O PARADOXO DA UNIVERSALIDADE As perspectivas de universalidade e inclusão em torno dos direitos do homem foram introduzidas pela filosofia iluminista do séc.XVIII. Muitos filósofos do Esclarecimento, tais como Voltaire, Rousseau, Diderot, Grotius, Kant, Locke, e Montesquieu, construíram uma base transcendental para a criação de uma comunidade política humana, a qual poderia se estender para além das fronteiras territoriais dos Estados europeus e da própria história cristã (GIESEN, 2001, p.37). Aacepção de que todos os seres humanos possuíam direitos, pela sua intrínseca igualdade – como seres dotados de razão –, passou a definir uma constelação ascendente de valores. Contudo, apesar de seus elementoschave sustentarem o universalismo do exercício dos direitos, da proteção substantiva, das garantias, da preservação da igualdade, da liberdade e da dignidade humana, um novo modelo de privilégios foi instituído. Estabeleceramse no interior das comunidades políticas ocidentais relações de igualdade entre aqueles que estavam incluídos, excluindose concomitantemente a maior parte da população dos assuntos públicos: pois, nenhum camponês, plebeu, escravo, mulher, ou indígena teriam a “educação” ou a “liberdade” necessárias para serem incluídos como iguais (EDER; GIESEN, 2001, p.0607). A dualidade existente entre os direitos humanos universais de abrangência irrestrita e os direitos de cidadania (ancorados em marcadores estáticos e oposições binárias – tais como o nós/eles, nacionais/estrangeiros, cidadãos/não cidadãos), passou a moldar grande parte dos debates acerca do sistema moderno de direitos. Entre os teóricos clássicos encontramse, principalmente, Theodor Marshall, Isaiah Berlim, Ronald Dworkin, Stuart Mill, John Rawls, Michael Walzer, Charles Taylor, dentre outros. Esses apresentaram notórias contribuições acerca dos embates recorrentes entre liberdade e igualdade, sem perder de vista às exigências de justiça e de pertença comunitária (KYNLICKA, NORMAN; 1997). Não obstante, a teoria dos direitos ocupouse, majoritariamente, com a conduta dos cidadãos, ora oscilando entre a passividade comunitária e a participação ativa, ora sobre suas responsabilidades, papéis e lealdades. A ênfase na virtude cívica e na participação auxiliou a produção legal de novas e mais radicais distinções no interior dos contextos sociais. Pois, como lembra Boaventura de Souza Santos (2007), tanto no âmbito do conhecimento como no do direito moderno, mantiveramse as mesmas linhas abissais da Era colonial, ou seja, a existência de delimitações rotineiras entre aqueles que eram considerados amigos e inimigos. Apesar das conquistas, para cada novo direito instituído se perpetuava estruturalmente a exclusão. Segundo ele, “a teoria do direito mostra os lastros de exclusões e de decadência das próprias perspectivas [de universalidade] e inclusão” (SANTOS, 2007). Linda Bosniak (2000, p. 963), em seu ensaio “Universal citizenship and the problem of alienage”, também reflete sobre as permanentes tensões existentes entre a natureza e a qualidade do sistema moderno de direitos. Para a autora, não basta clarificar o vago conceito de universalidade, com vistas à criação de uma desejada cidadania universal – como pressupõe os defensores da cidadania liberal –, sem ao menos considerar as reais ocorrências de exclusão e de inferiorização do outro. Já que, tornase imperioso refletir sobre as prementes questões da justiça distributiva e, compreender, a priori, como os limites da “Era dos Direitos” são criados e executados pelos seus respectivos órgãos implementadores. Nas palavras de Bosniak (2000, p. 970, grifo nosso), [...] o reconhecimento dos direitos de cidadania sob a forma (exclusiva) de lei, não desfaz as miríades das desigualdades substantivas e da exclusão sofrida por vários grupos de pessoas nas sociedades liberais [...] (ao contrário disso) serve para perpetuar as desvantagens e a opressão. Neste contexto, os direitos humanos fundamentais passaram a ser concebidos ora como fruto de reivindicações de privilégios, ora como formas alternativas de um universalismo utópico, sendo essa tensão um dos principais motivos de ineficácia dos sistemas de proteção contemporâneos. Pois, por vezes, os direitos humanos tornaramse instrumentos de um artefato cultural particularista, que “apenas a cultura ocidental tendia a formulálos como universais” (SANTOS, 1997, p.112), quando nada mais pretendiam do que legitimar suas posições de poder hegemônico em detrimento de grupos minoritários. Entretanto, quando analisamos os direitos humanos sob o prisma das reivindicações morais, esses passam a se configurar como espaços primordiais de realização da dignidade humana, que realçam, sobretudo, “a esperança de um horizonte moral, pautado pela gramática da inclusão, refletindo a plataforma emancipatória de nosso tempo” (PIOVESAN, 2005, p.44). Boaventura (1997, p.122) ressalta, ainda, a importância de não reduzirmos o estudo científico ao que existe de mais concreto, “pois, de outro modo, podemos ficar obrigados a justificar o que existe, por mais injusto ou opressivo que seja”. Tendo como base as possibilidades de realização dos potenciais emancipatórios, fundamentados no ideal de justiça social e no reconhecimento do outro, Habermas (1997; 2002; 2012) apresenta um modelo reconstrutivo do sistema dos direitos, que cumpra o seu papel de conectar as tensões iminentes nas sociedades modernas, acerca dos dilemas do universalismo vs particularismo, da liberdade vs igualdade, da autonomia pública vs autonomia privada, presentes nos direitos humanos fundamentais, e que ainda sejam compatíveis com as pressuposições da soberania popular, do Estado de direito, e da democracia deliberativa (WERLE, 2012, p.187). Seus esforços estão 6 6 “Esse modelo propõe concentrarse nos discursos e processos intersubjetivos de entendimento entre os cidadãos. A deliberação oferece a oportunidade de envolver a solidariedade que se forma comunicativamente. As qualidades orientados para o reestabelecimento de diretrizes capazes de conduzir a uma nova práxis jurídicodemocrática, à luz das transformações históricosociais de seus contextos de aplicação. Com a utilização do conceito kantiano de legalidade , Habermas (2002, p.286) 7 considera as normas jurídicas, pautadas na garantia dos direitos fundamentais, como leis coercitivas (devido à sua obrigatoriedade fática) e leis da liberdade (devido ao seu teor ético de interesse simétrico de todos, acerca da preservação dos bens morais pertinentes à vida). Isto é, somente com a preservação concomitante dessas duas esferas, é possívelenredarse à legitimação do direito, o qual torna viável a preservação igualitária da autonomia de todas as pessoas, independentemente de seus costumes e/ou tradições. Ao abordar a complementariedade entre o direito e a moral, Flynn (2003) relembra o caráter peculiar dos direitos humanos para Habermas, como sendo normas jurídicas, que apresentamse também como normas morais. Segundo o autor, Habermas (2001) os considera como a cabeça de Janus, estando voltada uma face para o direito positivo e outra para a moral. Em seu aspecto moral se expressa, sobretudo, a substância universal da dignidade humana de cada um e do acesso igualitário ao direito, devido sua condição humana de ser dotado de unicidade existencial. Nas palavras de Habermas (2001, p.149150): Os direitos humanos possuem uma cabeça de Janus voltada ao mesmo tempo para a moral e para o direito. Independentemente do seu conteúdo moral, eles possuem a forma de direitos jurídicos. Relacionamse como normas morais com tudo “que porta o rosto humano”, mas como normas jurídicas que protegem as pessoas individualmente apenas à medida que elas pertencem a uma comunidade jurídica [...] Portanto, existe uma tensão peculiar entre o sentido universal dos direitos humanos e as condições locais da sua efetivação: (no entanto) eles devem valer de modo ilimitado para todas as pessoas. Entretanto, o conteúdo moral dos direitos humanos não pode satisfazer seu imperativo funcional no escopo da aplicabilidade nas sociedades modernas, mas somente ele é capaz de justificálo simetricamente e de modo indivisível. Assim como a argumentativas de processos de deliberação trazem adicionalmente momentos de racionalidade no processo político democrático. O sistema político é então não mais a ponta nem o centro da sociedade, mas um sistema comunicativo de ações, entre outros” (REESESCHÄRFER, 2010, p. 177). 7 “Na verdade, para Kant, o conceito de legalidade se refere exclusivamente à capacidade de seguir uma norma exclusivamente conforme com a lei, enquanto seguila por respeito à lei consiste no conceito de moralidade. Ao afirmar que o conceito kantiano de legalidade implica a dupla possibilidade de ação conforme com a lei e respeito à lei, Habermas está simplesmente expressando uma interpretação mais útil para os propósitos da sua própria teoria do direito, ao invés de se envolver em precisões conceituais acerca da teoria kantiana do direito” (DURÃO, 2008: 17). moral, o direito também deve preservar equitativamente a autonomia de todos, provando para além da própria legitimidade, seu aspecto garantidor da liberdade. Segundo o autor, “a autonomia, que no campo da moral é monolítica, por assim dizer, surge no campo do direito apenas sob a dupla forma da autonomia pública e privada” (HABERMAS, 2002, p.290). A autonomia pública dos cidadãos adquire sua forma na organização social de uma comunidade éticopolítica, regida pela ação comunicativa e pelas experiências de reconhecimento mútuo, a qual atribui a si própria suas leis, por meio do exercício da vontade soberana do povo. Já a esfera da autonomia privada encarregase de afigurar a garantia da autorrealização dos seres humanos, no que tange às suas relações pessoais e sociais. Em síntese, pela imbricação dessas duas esferas, Habermas (2002) formula o nexo existente entre a formação da opinião e da vontade, mediada pela soberania do povo num espaço público, e os direitos humanos, garantidores dos parâmetros universais de reconhecimento da dignidade humana, dos parâmetros particulares da autorrealização individual e da garantia do acesso igualitário ao sistema de direitos. Conjugase, por intermédio dos direitos humanos e da democracia, os valores da liberdade e da igualdade, tão caros ao Ocidente. Habermas (1997) apresenta uma interpretação com a edificação de um sistema que não negue o reconhecimento das particularidades humanas, consubstancializado em padrões de eticidade em decomposição. E que traduza, ainda, as “expectativas de comportamento generalizadas temporal, social e objetivamente” (HABERMAS, 1997, p.142). Estabelecese um modelo democrático deliberativo capaz de abarcar a totalidade de subculturas e que não abdique de sua obrigação de se fundamentar em padrões morais de respeito à dignidade humana, bem como no respaldo ético garantido pela participação de toda a comunidade política. Logo, seria por intermédio dos direitos humanos, que a autodeterminação dos povos e a autorrealização individual, tornarseiam possíveis e alcançariam o objetivo ideal de uma sociedade justa e emancipada. Contudo, as experiências de inferiorização, privação de direitos, degradação e de não inclusão, possivelmente, perpetuadas pelas omissões jurídicas de condenação das formas de intolerância e racismo nas sociedades contemporâneas, transformaram os sistemas de proteção ocidentais em meros simulacros e veículos de imposição de parâmetros e interesses provenientes de uma cultura majoritária, incapazes de promover as concepções de justiça, necessárias para a edificação de um sistema de direitos regido pelas prerrogativas de preservação da dignidade e dos princípios democráticos de bemcomum. Pois, com a negação de oportunidades reais de inclusão e reconhecimento das diferenças, os indivíduos seriam negados de desenvolver seus próprios mundos de herança, bem como seus sensos internos de autonomia (autoconfiança, autorrespeito e autoestima) (WERLE, 2012, p.193). Para Honneth (2009, p.211), somente com o desenvolvimento desses três elementos, seria possível que se atingisse espaços sociais verdadeiramente democráticos, e se implementasse os próprios parâmetros normativos que sustentam as concepções jurídicofilosóficas do Estado de direito. Essas três esferas de reconhecimento proporcionam os níveis reguladores para o desenvolvimento da confiança, do respeito e da estima, tanto nos âmbitos individuais quanto coletivos, sendo somente por intermédio do reconhecimento das identidades particulares, que seria viável concebermos seres autônomos, individuados, e de igual valor (HONNETH, 2009, p.266). Em suma, segundo a teoria do reconhecimento honnethiana, processosde negação do outro transformamse em requisitos que inviabilizam a concretização da dignidade humana, com a inferiorização devido às diferenças identitárias. A teoria do reconhecimento aborda as experiências que levam ao rebaixamento do autorrespeito moral dos indivíduos, estruturalmente, excluídos ou inferiorizados no interior de comunidades políticas. Se direitos são negados ou omitidos a determinados grupos sociais, está implícito que esses não são reconhecidos como parceiros dignos de interação. Para Honneth (2009, p.216), “a denegação de pretensões jurídicas socialmente vigentes significa ser lesado na expectativa de ser reconhecido como sujeito capaz de formar juízo moral; nesse sentido vai de par com a experiência de privação de direito uma perda do autorrespeito”. O desrespeito constituise como o último rebaixamento social possível, através do qual se nega o valor social de indivíduos e coletividades, com a depreciação de suas tradições e formas de vida. Uma vez que, para existir estima, é fundamental que seja concedido juridicamente uma real inclusão e reconhecimento do outro, capazes de fazerem nascer sentimentos de autorrealização, bem como laços abstratos de solidariedade cívica . Portanto, a discriminação, o desrespeito e os procedimentos 8 exclusivistas acabam por abalar o significado positivo de grupos inteiros. [a] ofensa ou [o] rebaixamento, referemse às formas de desrespeito, ou seja, às formas de reconhecimento recusado. Conceitos negativos dessa espécie designam um comportamento que não representa uma injustiça só porque ele estorva os sujeitos em sua liberdade de ação, ou lhes inflige danos; pelo contrário, visase àquele aspecto de um comportamento lesivo pelo qual as pessoas são feridas numa compreensão positiva de si mesmas (HONNETH, 2003, p. 213). Para o autor, as relações jurídicas e as comunidades, a despeito das diferenças, devem estar sempre abertas aos processos de subversões, mediadas pelos conflitos moraisintersubjetivos, capazes de conduzir as sociedades à novas conquistas universalistas de igualdade e particularistas de autonomia e autorrealização pessoal. Tornase evidente que o Direito, que busca se isolar das reivindicações sociais e de seus dissensos, condensandose à mera função simbólica, tornase inidôneo para representar as sociedades modernas, marcadas pela convivência supercomplexa (HONTEH, 2009, p.267). Em suma, a tarefa basilar deste trabalho assentase numa verificação políticosociológica dos possíveis parâmetros exclusivistas de aplicação dos direitos humanos fundamentais na Europa contemporânea. Visto que sua conivência representa não apenas uma negação do projeto universalista dos direitos humanos – sobre seus imperativos morais de respeito à dignidade humana, à liberdade e à igualdade –, mas de negação dos próprios preceitos da democracia, do Estado de direito e da formação identitária autônoma (fundada a partir das experiências de reconhecimento mútuo). Deste modo, este estudo se constituirá num importante debate acerca das possibilidades de se conceber os direitos humanos como uma linguagem viável, no campo das Relações Internacionais, para a produção de conhecimento crítico e emancipatório. 3. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL: SANDER versus REINO UNIDO, VELIKOVA versus BULGÁRIA, ANGUELOVA versus BULGÁRIA, E NACHOVA versus BULGÁRIA 8“Que nasce no nível da heterogeneidade das consciências populares. [Provenientes] das experiências vividas no âmbito da sociedade e derivadas dos processos de socialização, que distinguem a necessidade de um homem livre e solitário, que possa contrapor os desafios e a crescente complexidade social que a modernidade traz. A partir dessas experiências surge a questão de como sua universalidade se comporta frente às diversidades culturais” (ALVES; POKER; FERREIRA, 2015, p. 118). Como exposto até o momento, a prática “bem sucedida” dos princípios universalistas (presentes nos sistemas de proteção nacionais e internacionais contemporâneos, acerca da garantia e da defesa irrestrita dos direitos humanos fundamentais), tornase, possivelmente, menos convincente quando analisada sob o viés críticonormativo. Uma vez que, simultaneamente à constante reiteração jurídicoformal da nova “Era dos direitos” nas sociedades liberais, continuase a proliferar casos de desrespeito, discriminação, exclusão e indiferença, bem como situações de inferiorização, não reconhecimento e desproteção, que negam as prerrogativas jurídicofilosóficas da constituição elementar do Estado Democrático de Direito (NOGUEIRA, 2005, p. 05). Para tanto, o foco deste artigo assentase em uma avaliação rigorosa da atual jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, acerca do combate ao preconceito, ao racismo e à discriminação no continente (violação do art.14 da CEDH), a fim de compreender como são traçados os limites do reconhecimento e da inclusão, na nova “Era dos Direitos”, por intermédio de um de seus principais órgãos formuladores e implementadores no escopo institucional e social. Visto que, como menciona NinaLouisa Arold (2007, p.02, tradução livre), [...] o Tribunal é (considerado) um sucesso excepcional: composto por 46 Estados membros, possui tamanho, alcance e impacto únicos [...] (constituise, ainda) como a mais alta competência em questões constitucionais, abraça(ndo) muitas tradições jurídicas, e dando soluções eficazes para os indivíduos [...] (Sendo ele descrito) na literatura como o sistema de controle mais eficaz para os direitos humanos em matéria de proteção na Europa. Devido à sua estrutura constitucionaldoutrinária, fazse necessária uma verificação de seus atuais códigos jurídicos e procedimentos formais de combate às formas de discriminação de grupos alternativos, no âmbito dos Estados nacionais europeus e, de suas sociedades supercomplexas. Na medida que, um possível caráter exclusivista, compromete a conquista de perspectivas mais abrangentes de inclusão social e a edificação de espaços plurais. Condição esta, elementar para a concretização democrática do sistema moderno de direitos, que incorpora todas as projeções das liberdades individuais e coletivas de seus contextos sociais de aplicação e formulação.Assim, no tocante às análises empíricas, em Sander contra o Reino Unido, o requerente de origem asiática, pautouse na refutação de sua condenação pela Corte de Birmingham, com a alegação de que comentários racistas haviam sido proferidos durante as deliberações do júri, o que comprometia a imparcialidade da sentença emitida. O juiz nacional, diante do ocorrido, apenas relembrou a importância de julgar com base nas provas, para que o art.6 da CEDH, acerca da garantia de um julgamento justo, fosse respeitado. No entanto, por considerar as posições do júri e do juiz ética e racialmente tendenciosas, Sander recorreu ao Tribunal Europeu que considerou a reclamação juridicamente admissível, nos termos da CEDH. Nas circunstâncias do caso relatado ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, foi defendido no processo nº 34129/96, que: [...] um jurado chegou ao Tribunal de Birmingham e entregou um envelope contendo uma queixa: “Eu decidi que não poderia permanecer em silêncio por mais tempo. Durante o julgamento, eu me preocupei, pois dois colegas jurados não estavam levando a sério seus deveres. Os dois fizeram comentários abertamente racistas e piadas que temo que estão em direção de condenar o réu não pela evidência, mas porque é asiático. Minha preocupação, portanto, é de receber um veredito que não seja justo” [...] (Posteriormente) o juiz de Birmingham leu a denúncia ao júri e disse: “Eu não sou capaz de realizar um inquérito sobre a validade dessas afirmações e não me proponho a fazêlo [...] quando você faz um juramento ou confirma ser um jurado, precisa considerar as provas. Isso é solene e obrigatório. Vou adiar agora e pedir para que todos procurem sua consciência durante a noite, e se você sentir que não é capaz de julgar esse caso apenas com base nas provas e descobrir que não é capaz de deixar seus preconceitos de lado, deverá indicar numa nota pessoal e entregala ao oficial de justiça” [...] Na manhã seguinte, o juiz recebeu duas cartas do júri. A primeira carta foi assinada por todos os jurados, incluindo o jurado que tinha enviado a denúncia, que declarava: “Nós, abaixo assinados, membros do júri, desejamos colocar no registro do Tribunal nossa resposta à nota de um jurado implicando possível viés racial: 1) Nós refutamos a acusação; 2) Estamos profundamente ofendidos com essa acusação; 3) Nós, asseguramos ao Tribunal que temos a intenção de chegar a um veredicto exclusivamente com base nas provas sem o viés racial”. A segunda carta, que o juiz elogiou, foi escrita por um dos jurados que parecia ser um daqueles que haviam realizado as piadas. O jurado explicou que poderia ter feito piadas racistas, e que estava arrependido por qualquer ofensa, que ele era alguém com muitas ligações com pessoas de minorias étnicas e que não era racialmente preconceituoso. (Diante disso o juiz atestou) que erabastante claro que todos estavam conscientes de seu juramento e preparados para cumprir sua obrigação. Em 8 de março de 1995, o júri condenou Sander e aplicou a pena de cinco anos de prisão. (Após a conclusão do processo, foi verificado que) o jurado que tinha escrito a reclamação foi por um tempo separado dos outros membros do júri, o que levou também à sua identificação perante aos demais (ECHR SANDER, 1996, tradução livre, grifo nosso). Após a verificação do caso, o Tribunal Europeu declarou: [...] Todos os jurados sabiam quem era o jurado delator. Obviamente, ele foi forçado a retirar a queixa. A divulgação de sua identidade deve ter prejudicado a sua posição, inibindoo depois. Além disso, um jurado admitiu ter realizado comentários racistas. O outro jurado sobre quem a queixa tinha sido feita permaneceu em silêncio. Esses fatos deveriam ter alertado o juiz de que havia algo errado com o júri e o juiz deveria têlos descartado. O juiz não reagiu dessa forma, e como resultado, houve violação do artigo 6 da Convenção [...] O Tribunal considera que, uma advertência ou a direção de um juiz, embora clara, detalhada e contundente, não mudaria opiniões racistas durante a noite. Embora, no presente caso, não se possa presumir que tais pontos de vista foram de fato realizados por um ou mais jurados,foi estabelecido que pelo menos um jurado havia feito comentários racistas. Nestas condições, o Tribunal considera que a orientação dada pelo juiz ao júri não poderia dissipar a impressão razoável e o medo de falta de imparcialidade [...] Daqui resulta que o Tribunal de Birmingham que condenou Sander não era imparcial de um ponto de vista objetivo (ECHR SANDER,1996, tradução livre, grifo nosso). Não obstante, a deliberação final do Tribunal Europeu, pautouse apenas na violação objetiva do art.6 e, paradoxalmente, a proibição com base no preconceito racial sofrido foi omitida da sentença. Não houve, qualquer condenação associada à discriminação sofrida pelo requerente durante todo o procedimento judicial. Segundo Marie Dembour (2006; 2009), o silêncio sobre o reconhecimento do racismo em Sander representou a conivência do Tribunal à persistente lógica racista nas sociedades europeias e a criação de uma jurisprudência incapaz de condenar a aplicação de um direito construído sobre bases sociais exclusivistas de não reconhecimento do outro. Pois, enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação implica em inferiorizações e em intolerância às diferenças e às diversidades. Nas palavras da autora, É aceito que a Europa em geral é liberal, democrática e ligada às concepções do Estado de direito e respeito aos direitos humanos. No entanto, essa imagem baseiase num racismo silenciado que ainda permeia a Europa[...] a jurisprudência (do Tribunal Europeu) tem sido decepcionante [...] O que poderia se esperar de uma sociedade que foi, em grande parte, construída sobre ideais colonialistas, e que permanece incapaz de enfrentar sua realidade e implicações. O Tribunal Europeu não é menos racistas do que a sociedade europeia, mas tão racista quanto a sociedade europeia. Assim como a sociedade, ele é uma arena contestada e dividida (2009, p.226234, traduçãolivre, grifo nosso). Casos semelhantes de discriminação do outro também se repetiram em Velikova contra a Bulgária (processo nº 41488/98). No processo, a esposa contestava o espancamento de seu marido cigano até a morte, sob custódia da polícia, o qual expunha claramente a violação do direito à vida (inscrito no art.2 da CEDH), tanto em termos substanciais (com a perda real da vida e das condições de dignidade humana), quanto em seus aspectos processuais (ou seja, falta de investigação efetiva da polícia sobre o homicídio). Em suma, o processo de Velikova baseouse inteiramente na crítica ao preconceito generalizado contra a minoria étnica composta por ciganos na República da Bulgária. Consta nos atos do processo judicial que, O homem com quem a requerente viveu por 12 anos, o Sr.Slavtcho Tsonchev, pertencente ao grupo étnico dos ciganos, morreu depois de ficar 12 horas sob custódia da polícia, após sua detenção sob a acusação de roubo de gado. [...] Segundo o depoimento do sargento, num determinado momento da noite, o Sr.Tsonchev começou a vomitar na cela, onde havia sido colocado. Ele foi autorizado a ir ao banheiro e não foi preso depois [...] o diretor, ao notar que o Sr.Tsonchev estavadoente, chamou a unidade de emergência que chegou for volta das 2 horas da manhã, encontrando o Sr.Tsonchev morto [...] Na autópsia foi revelado como causa da morte a perda aguda de sangue resultante de grandes e profundos hematomas nos membros superiores e na nádega esquerda (devido) ao impacto de um ou mais objetos longos e duros [...] na análise, foi revelado que a morte não estaria relacionada com qualquer doença anterior [...] e o horário da morte teria acontecido dez horas antes da autópsia [...] a requerente alega violação do artigo 2 da CEDH em que o Sr.Tsonchev teria morrido como resultado de ferimentos infringidos intencionalmente pela polícia, que não havia recebido tratamento médico adequado e imediato, e que a polícia não havia realizado uma investigação significativa sobre as circunstâncias duvidosas que envolveram sua morte (devido) à sua origem étnica. A recorrente sustentou que os policiais conheciam o Sr.Tsonchev e sua origem étnica era sabida por todos no momento de sua prisão, e que isso era tão forte, que durante um depoimento no inquérito, o sargento fez referências explícitas e pejorativas à sua origem étnica. A observação de que (a polícia não havia notado os hematomas), inicialmente, devido à “cor escura da pele”, também foi expressão de preconceito [...] (a requerente sustenta que) a percepção dos policiais da etnia de seu marido foi um fator decisivo também para o seu mau trato. O preconceito foi motivo para a recusa das autoridades em investigarem as causas da morte de modo eficiente (ECHR VELIKOVA, 1998, tradução livre). No entanto, a denúncia de Velikova foi rejeitada pelo Tribunal Europeu em maio de 2000, devido à ausência de provas nos termos do art. 14 da CEDH, isto é, da impossibilidade objetiva de atestar os fatos em termos jurídicos. A admissibilidade do caso fundamentouse apenas na deficiência do Estado em garantir o auxílio médico adequado ao Sr. Slavtcho Tsonchev (violação do art.2 da CEDH, nos termos processuais), e nas lacunas da investigação policial sobre a sua morte (violação do art.13 da CEDH). Segundo o processo nº 41488/98, O Tribunal considera que não há provas suficientes sobre as quais, podese concluir, sem dúvidas, que o Sr.Tsonchev morreu como resultado de ferimentos infligidos enquanto ele estava sob custódia da política [...] considera também que não há nenhuma evidência que a vítima tenha sido examinada por um profissional, em qualquer momento durante a sua detenção [...] concluise que, portanto, houve violação do artigo 2 da CEDH, em termos processuais, no que diz respeito à morte do Sr.Tsonchev (já que) cabe ao Estado assegurar a todos dentro de sua jurisdição os direitos e liberdades definidos nele [...] O Tribunal admite que houve falha em realizar as investigações (sendo) responsabilidade do Estado de proteger a vida do Sr.Tsonchev. (Considera, portanto) que houve violação da obrigação do Estado demandado nos termos do art.13 da CEDH para conduzir uma investigação efetiva. [No que tange à violação do art.14 da CEDH) o Tribunal recorda, que o nível de prova exigido ao abrigo da Convenção é “acima de qualquer dúvida razoável”. O material oferecido não permite ao Tribunal concluir, sem dúvidas, que a morte do Sr.Tsonchev e a falta de investigação tenha sido motivadas por preconceitos raciais, como alegado pela requerente. Seguese que não houve violação do art.14 da CEDH (ECHR VELIKOVA, 1998, tradução livre, grifo nosso). Ao adotar essa doutrina “para além de qualquer dúvida razoável”, nos termos do art.14 da CEDH, o Tribunal Europeu transferiu o ônus de prova da discriminação para a vítima e/ou o requerente durante o procedimento judicial. Segundo Dembour (2009, p.229), o Tribunal “[...] não considerou em nenhum momento que as atitudes racistas poderiam ter desempenhado um papel relevante nos eventos que levaram aos ferimentos e à morte” do Sr.Tsonchev. Conduta essa, que se repetiu, por exemplo, em Anguelova (processo nº 38361/97). Pois, para o Tribunal, todas as alegações de discriminação e intolerância, retratadas até aquele momento, “não haviam sido provadas para além de qualquer dúvida, não havendo, portanto, qualquer violação do art.14 da CEDH” (ECHR VELIKOVA, 2014). No caso Anguelova (processo nº38361/97), a mãe de Anguel Zabchekov, de dezessete anos, acionou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em novembro de 1998, com a alegação de que seu filho havia sido torturado (violação do art.3 da CEDH), morto (violação do art.2 da CEDH), e privado de sua liberdade (violação do art.5 da CEDH) pelas autoridades búlgaras, devido ao preconceito racial que envolve toda a minoria étnica composta por ciganos (violação do art.14 da CEDH) na República da Bulgária. Como é apresentado nos atos do processo, Anguel Zabchekov, havia saído para um bar com seus amigos na noite de 28 de janeiro de 1996.Sua mãe afirma que ele estava em boa saúde e sem ferimentos quando o viu pela última vez, às 22:30h. O menino foi visto, à meia noite, sendo perseguido por um sargento da polícia. O sargento Mutafov alegou que Zabchekov caiu várias vezes com o rosto no chão ao tentar fugir da polícia, em uma suspeita de furto de carro, sendo preso e levado à delegacia antes da uma hora da manhã. Às três horas da manhã, a polícia informou que a saúde do menino estava se deteriorando. Levaramno para o hospital, e por volta das cinco horas da manhã foi declarado morto. [...] Na autópsia realizada, do primeiro relatório de exame direto do corpo, constou como causa da morte uma fratura no crânio que ele teria sofrido cerca de quatro horas antes de sua morte. A autópsia também encontrou um hematoma na mão esquerda e graves contusões em sua mão direita. Também foi relatado, que em algum momento, ele foi algemado em uma árvore, devido aos arranhões e a presença de fiapos de madeira em sua pele [...] Não sendo apoiado, ainda, a evidência forense de características típicas de queda [...] No entanto, um segundo relatório, baseado num exame visual de fotografias de coágulos de sangue, foi utilizado pela polícia búlgara no caso, e passou a sugerir que as lesões teriam acontecido 10 horas antes de sua morte. O inquérito da investigação se apoiou apenas no segundo relatório e o caso foi encerrado. [Das reclamações], a requerente alega que seu filho morreu depois de ser maltratado por policiais, que a polícia falhou em fornecer tratamento médico adequado para seus ferimentos, que as autoridades não conduziram uma investigação adequada do caso, que a detenção de seu filho era ilegal, e que houve discriminação com base na origem étnica de Anguel Zabchekov (ECHR ANGUELOVA, 2002, tradução livre). A sentença do Tribunal Europeu sobre o processo conduzido pela mãe da vítima, Assya Anguelova, foi de que: [...] o Tribunal constatou que Anguel Zabchekov morreu depois de ter sido detido por várias horas na delegacia Razgrad e que o primeiro relatório forense considerou que sua lesão no crânio, provavelmente, tenha sido infringida quatro horas antes de sua morte, um momento que ele estava sob custódia da polícia [...] O governo não ofereceu nenhuma outra explicação da utilização apenas do segundo relatório forense [...] O Tribunal também observa que a polícia atrasou na prestação de assistência médica, o que contribui de forma decisiva para a sua morte, portanto, houve violação do art.2 da CEDH [...] Observado que o governo não ofereceu uma explicação plausível para as lesões ao corpo de Zabchekov, e que os ferimentos indicam tratamento desumano, o Tribunal considera que houve violação do art.3 da CEDH [...] O Tribunal verificou que a privação da liberdade de Zabchekov não foi registrada inicialmente e, que o registro na delegacia da polícia foi forjado mais tarde [...] A falta de uma ordem escrita e de um registro adequado informando a detenção de Zabchekov foi suficiente para confirmar que seu confinamento por várias horas, caracterizou uma violação do art.5 de privação da liberdade [...]O Tribunal constatou que, apesar das alegações de discriminação, baseadas em argumentos sérios, não foi capaz de concluir que tenha sido “provada para além de qualquer dúvida razoável”, não havendo, portanto, violação do art.14 da CEDH (ECHR, 2002, tradução livre, grifo nosso). Apesar da unanimidade aparente, o juiz Giovanni Bonello no caso de Anguelova, apresentou uma opinião divergente, sendo essa anexada ao processo final. Segundo Bonello (ERRC, 2014, p.3942, tradução livre): Considero particularmente perturbador que o Tribunal Europeu, em mais de cinquenta anos de escrutínio judicial, não tenha, até agora, encontrado um único caso de violação do direito à vida (art. 2 da CEDH) ou o direito de não ser submetido à tortura, nem a outro tratamento degradante ou desumano (art. 3 da CEDH), induzido pela raça, cor ou lugar de origem da vítima [...] Curdos, mestiços, muçulmanos, ciganos e outras minorias são mortos, torturados e mutilados, mas o Tribunal não está convencido de que sua raça, cor, nacionalidade, ou lugar de origem tenha alguma coisa a ver com isso [... ] O caminho a seguir, ao meu ver, encontrase num repensar radical da abordagem do Tribunal, levando à remoção das barreiras que em alguns domínios importantes dos direitos humanos, fazem do Tribunal um administrador inepto da CEDH e da preservação dos Direitos Humanos na Europa. Como resposta às alegações de Bonello, o Tribunal Europeu (em fevereiro de 2004) abandonou sua exigência de obtenção de prova para “além de qualquer dúvida razoável” nos termos do art.14 da CEDH e, finalmente, em Nachova contra a Bulgária (processos nº 43577/98 e 43579/98), a violação foi considerada admissível nos termos processuais. Isto é, no que tange à ineficácia do Estado em investigar a morte de dois jovens ciganos, devido aos preconceitos raciais envolvidos no processo de investigação policial. Não obstante, os termos substantivos (de que as mortes foram motivadas devido às origens étnicas das vítimas) continuaram inalterados, sob o pretexto de que a função do Tribunal não consiste na avaliação do contexto social ou na condenação de formas indiretas de intolerância ainda presentes nas sociedades europeias (ECHR NACHOVA, 2014). Nas circunstâncias do caso de Nachova (processo nº43577/98 e 43579/98), temos que: Os requerentes alegam, que seus parentes próximos o Sr. Kuncho Anguelov e o Sr. Kiril Petkov, foram baleados e mortos por policiais, havendo violação do art.2 da CEDH. Além disso, a investigação sobre os acontecimentos foram ineficazes, com violação do art.13 da CEDH [...] e que os acontecimentos denunciados foram resultado de atitudes discriminatórias contra pessoas de origem cigana, com violação do art.14 em conjunto com o art.2 da CEDH. [...] Tanto Angelov quanto Petkov possuíam 21 anos, já haviam sido presos por ausência de licença para lidar com construção de blocos de apartamentos e projetos civis. Posteriormente, foram condenados por roubo,e fugiram para a casa da avó, deixando um canteiro de obras, onde trabalhavam. Nenhum deles estava armado [...] imediatamente, dois oficiais com uniformes e dois com trajes civis pararam na frente da casa da avó de Angelov, e o sargento K reconheceu que ambos estavam lá dentro. Tendo notado o veículo da polícia, os acusados tentaram fugir novamente pela janela, correndo em direção ao quintal de um vizinho. O sargento N puxou a arma e gritou: “Pare! Polícia!”. Ele havia sacado a arma, mas não tinha disparado nenhum tiro ainda. Foi então que o Major G. gritou: “Pare ou eu atiro!”. Foi então, que o tiroteio começou. O Sr. Anguelov e o Sr.Petkov foram baleados e morreram à caminho do hospital. [...] De acordo com o vizinho, o Sr.MM, três policiais atiraram. Dois deles haviam disparado tiros ao ar, e o terceiro oficial (Major G.) disparou tiros com um rifle automático em direção aos acusados. Sr.MM declara ter ouvido de 15 à 20 tiros, talvez mais. [...]Sr.MM também atesta ter escutado o Major G insultar os dois corpos caídos em seu quintal “vocês, droga de ciganos!”[...] Nove cartuchos foram recuperados pela perícia [...] E, de acordo com a autópsia, a causa da morte do Sr.Petkov foi uma feria no peito “de frente para trás”. No que diz respeito ao Sr. Angelov, o relatório concluiu que a causa da morte foi uma ferida de bala, com a direção do tiro de “trás para frente” [...] O relatório concluiu, ainda, que as lesões foram causadas por um fuzil automático disparado à uma curta distância (ECHR, 2005, tradução livre, grifo nosso). Na avaliação do Tribunal Europeu sobre a alegação da privação da vida de Kuncho Anguelov e de Kiril Petkov (art.2 da CEDH), tendo como base a discriminação em relação à raça e à origem étnica das vítimas (art.14 da CEDH), foi declarado que: A violência racial é uma afronta à dignidade humana e, em vista de suas consequências, exige das autoridades uma vigilância especial e uma reação vigorosa. É por esta razão que as autoridades devem utilizar todos os meios disponíveis para combater a discriminação e a violência racistas,reforçando a visão da democracia [...] Confrontado com a queixa de violação do art. 14 da CEDH, a tarefa do Tribunal é de estabelecer se o racismo foi um fator causal no tiroteio que levou à morte do Sr. Angelov e do Sr.Petkov, em associação ao art.2 da CEDH [...] a este respeito, o Tribunal tem adotado o padrão de prova “para além de qualquer dúvida razoável”. No entanto, nunca foi o propósito de aproximar sua jurisprudência aos sistemas jurídicos nacionais que se utilizam desse padrão. O seu papel não é o de decidir sobre a culpa ou a responsabilidade civil, mas sim sobre a responsabilidade do Estado contratante acerca da violação da Convenção Europeia dos Direitos Humanos [...] já que, ele tem que assegurar o cumprimento e o engajamento para a preservação dos direitos fundamentais consagrados na Convenção [...] Em primeiro lugar, considerando os fatos revelados que o Major G descarregou um rifle automático em uma área povoada, desrespeitando a segurança do público, e considerando que não existe uma explicação racional para tal comportamento, os requerentes são da opinião de que o racismo por parte do Major G foi a única explicação plausível [...] (Mas) o Tribunal observa, que o uso de armas de fogo nas circunstâncias em questão, não é proibida nos termos dos regulamentos nacionais [...] No que tange à declaração feita pelo vizinho, o Sr.MM, que informou o insulto “vocês, droga de ciganos!”, imediatamente após o tiroteio... tal evidência sugere que, o insulto racial sendo proferido em conexão com um ato de violência, deveria ter levado as autoridades a verificar a declaração do Sr.MM, [...] No entanto, essa afirmação, em si, não possui uma base suficiente para concluir que o assassinato teve um impulso racista [...] O Tribunal decidiu transferir o ônus da prova para o governo por conta do fracasso das autoridades em realizar uma investigação eficaz sobre a alegação de motivações racistas por detrás dos homicídios. A incapacidade do governo resultou em encontrar uma violação processual do art.14 da CEDH em conjunto com o art.2 da CEDH. [...] Em suma, depois de avaliados os elementos relevantes, o Tribunal não considera que atitudes racistas desempenharam um papel na morte do Sr.Anguelov e no Sr.Petkov, assim conclui que, não houve violação do art.14 tomada em conjunto com o art.2, em seu aspecto substantivo. Ao proferir tal justificativa, o Tribunal Europeu defendeu sua ausência de responsabilidade em condenar formas de intolerância e/ou de racismo nas sociedades civis europeias, cabendo a ele apenas a função de responsabilizar ou não os Estados contratantes acerca da violação dos termos presentes na Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Sua postura não apenas descarta o desenvolvimento históricosocial indispensável ao aprimoramento moral e ético da própria substância normativa dos direitos humanos fundamentais, como também se utiliza de garantias legais para omitirse em relação ao obscurecimento e à inferiorização de determinadas formas de vida em detrimento de outras, nos contextos sociais europeus. Comprometese, assim, sob um viés crítico, a maior expressão do processo de emancipação da humanidade, com a exposição de uma problemática que não perpassa somente sobre o âmbito incipiente acerca dos imperativos da moralidade, mas da própria regressão do ideal de Estado de direito legitimamente democrático (VASCONCELOS, 2012, p.544). Uma vez que, experiências de privação de direitos, inferiorização e degradação das prerrogativas de reconhecimento, influem diretamente na consolidação das esferas de autorrespeito e autoestima. Âmbitos esses, substanciais para se pensar na consolidação da honra e da dignidade humana , bem como da própria efetividade dos 9 direitos humanos fundamentais. Com o abalo das prerrogativas de autorrealização dos indivíduos, tornase inviável pensar em ideais igualitários, em concepções abrangentes de justiça social e em emancipação humana . 10 O sistema moderno de direitos é apresentado por Jürgen
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