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A DESTRUIÇÃO DO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE PELO ESTADO ISLÂMICO COMO CRIME DE GUERRA Arthur Gustavo Saboya de Queiroz 1 RESUMO: O Estado Islâmico é um grupo terrorista que busca instaurar um califado nas regiões do Iraque e do Levante. Uma de suas mais questionáveis ações é a destruição de monumentos históricos inscritos na lista da UNESCO de Patrimônio da Humanidade. Evidentemente, os atos são proibidos pelas normas de Direito Humanitário. Assim, o julgamento e punição dos responsáveis pelo crime de guerra cometido é necessário. O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre as especificidades do tema, apresentando pontos do ordenamento humanitário, que regula os atos de guerra, as nuances do Estado Islâmico, como forma de compreender as suas manifestações, a definição de Patrimônio da Humanidade e os monumentos já destruídos, e o caminho jurídico penalmente adequado aos seus militantes. PALAVRAS-CHAVE: Estado Islâmico. UNESCO. Tribunal Penal Internacional. Convenções de Genebra. ABSTRACT: The Islamic State is a terrorist group which seeks to establish a caliphate in Iraq and the Levant. One of its most questionable actions is the destruction of historical monuments inscribed on the UNESCO list of World Heritage. Evidently, the acts are prohibited by the rules of humanitarian law. Thus, the trial and punishment of those responsible for this war crime is necessary. This paper aims to discuss the specificities of the theme, as the humanitarian system, which regulates the acts of war, the nuances of the Islamic State, in order to understand its actions, the definition of World Heritage and the monuments already destroyed, and the applicable prosecution to its members. KEYWORDS: Islamic State. UNESCO. International Criminal Court. Geneva Conventions. 1 Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza. Aluno da especialização em Direito e Relações Internacionais da Universidade de Fortaleza. Advogado. Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 23 1 INTRODUÇÃO As guerras acontecem constantemente na história das civilizações. Malgrado a busca por soluções pacíficas, onde a atuação da diplomacia e de organizações internacionais são importantes meios para cessar um embate ou mesmo evitar o seu início, estes ainda acontecem com frequência. Visando frear a crueldade decorrente do choque entre os combatentes nesses conflitos, criou-se o Direito Internacional Humanitário. Contudo, não há nenhuma observância das normas de Direito Humanitário nas regiões ocupadas pelo Estado Islâmico, muito menos possibilidade de atuação da Cruz Vermelha no cuidado aos feridos, tendo em vista o caráter assustadoramente nocivo de seus integrantes. É dito que o Estado Islâmico surgiu em meados de 2006, dos escombros da Al Qaeda no Iraque. Contudo, somente após a ascensão de Abu Bakr al-Baghdadi à liderança, em 2010, que o grupo terrorista adquiriu a atual forma, desaguando, quatro anos depois, na proclamação de seu califado. Seu crescimento está irremediavelmente ligado ao seu poderio econômico, fruto do financiamento de ricos simpatizantes da causa e da venda de petróleo e gás natural das áreas conquistadas, além da cobrança de impostos nas regiões controlados. Está localizado no Iraque e na Síria, tendo já ocupado grandes porcentagens territoriais dos dois países, valendo-se da fragilidade institucional de que sofrem. A fim de moldar as regiões conquistadas à ideologia fundamentalista, toda menção a religiões não islâmicas acabou por ser contestada, resultando no problema do ataque a alguns dos símbolos desses credos, vestígios de civilizações extintas e de imensurável valor histórico e cultural. Os mais notórios, por estarem na lista de Patrimônio da Humanidade da UNESCO, são Hatra, cidade parte do império macedônico construída com representações do panteão grego, e Palmira, que contém edificações como o Templo de Bel e o Leão de Alat, ambos alegadamente destruídos pela militância. Em conflitos desse tipo, seu fim acaba quase que invariavelmente com a morte das lideranças da milícia e consequente enfraquecimento. Contudo, isso não representa uma punição pelos crimes perpetrados. Esta deve partir de um órgão legitimo para tanto, acreditado pelas normais internacionais, como forma de pautar-se na legalidade. A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 24 Este artigo justifica-se na necessidade de compreender as consequências que cercam esse gesto do Estado Islâmico, tanto as decorrentes de suas ações como também aquelas a serem sofridas por seus praticantes. Assim, tem como objetivo esclarecer a postura do grupo, e que medidas penais seriam cabíveis aos seus participantes. Busca-se aqui a resposta para três questionamentos essenciais: qual o ordenamento que regula a questão, no que consiste o Estado Islâmico e por que destrói obras tão antigas meramente por simbolizarem religião diversa, e qual o caminho legalmente aplicável, no seio desse ordenamento, para os responsáveis por essa destruição. No próximo tópico, trataremos do Direito Humanitário, abordando importantes aspectos, como seu conceito e os princípios que o regem, além de uma breve exposição sobre o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e o Direito de Genebra. Em seguida, serão apresentadas características do Estado Islâmico, como seu surgimento e desenvolvimento, área de localização e métodos de atuação, e principais objetivos. Também falaremos sobre a proteção do Patrimônio da Humanidade, sobretudo no Iraque e na Síria, analisando a destruição praticada pelo Estado Islâmico na região. Finalmente, no último tópico, será explicado o processo penal internacional aplicado ao tema, partindo dos conceitos de Direito Internacional Penal e de crime de guerra, ressaltando que é esta a modalidade cometida pelo Estado Islâmico, passando pela apresentação do Tribunal Penal Internacional, e alcançando o problema da não adesão de Estados como a Síria e o Iraque ao seu tratado constitutivo, que torna o problema refém de arranjos políticos nem sempre muito claros. A destruição de um pouco da história do mundo afeta a todos, mesmo tão indiretamente. Com a exposição do problema, defendendo categoricamente a punição dessa prática ao invés de mais mortes (o que os terroristas desejam, por sinal), este artigo busca auxiliar nos estudos sobre problemas humanitários e culturais, constituindo-se em fonte de pesquisa para estudantes dessas áreas do conhecimento, ou mesmo para interessados em alcançar maior aprendizado geral. Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 25 2 DIREITO HUMANITÁRIO: ASPECTOS GERAIS E INSERÇÃO TEÓRICA Ao longo da existência humana, ocorreram conflitos de diversos tipos: para conquista, para libertação; com fins revolucionários, com objetivos de defesa; pela sucessão e pela religião. Não obstante existam essas e outras diferenças, suas consequências são sempre as mesmas: ressentimento, miséria, violência e uma retrocesso de valores incompatível com a evolução da humanidade. Contudo, mesmo a guerra é regulável pelo Direito. Não que este continue a admiti-la como um método de resolução de divergências, mas porque, por seu intermédio, a guerra encontra limitações. O ramo jurídico que tutela a sua prática é o Direito Internacional Humanitário.No presente capítulo serão expostos alguns pontos marcantes do Direito Humanitário, traçando uma pequena introdução, com o objetivo de auxiliar na compreensão dos demais aspectos seguintes e a problemática discutida pelo presente trabalho. 2.1 CONSTRUINDO UM CONCEITO DE DIREITO HUMANITÁRIO A busca por uma definição do Direito Humanitário, embora seja aparentemente fácil, pede certa cautela. Muitas vezes relacionado somente às práticas de direitos humanos, pode-se dizer que este ramo do Direito Internacional acabou por possuir um objeto ainda mais amplo. Yoram Dinstein 2 disserta sobre o assunto com bastante proficiência. Explica o professor da Universidade de Tel Aviv que esta percepção, equivocada, de que o também Direito Internacional dos Conflitos Armados volta-se unicamente para as questões de direitos humanos decorre da similaridade entre os termos cognatos “humano” e “humanitário”. Para os intérpretes dessa perspectiva, o Direito Internacional Humanitário seria “o direito responsável pela proteção de direitos humanos em conflitos armados”. Inegavelmente, o Direito Humanitário foi criado por razões de direitos humanos, com a finalidade de conter atos cruéis praticados em campos de guerra. Contudo, percebe-se que, após a Segunda Guerra Mundial, onde teve 2 DINSTEIN, Yoram. The Conduct of Hostilities Under de Law of International Armed Conflicts. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 19-20. A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 26 seu rol normativo ampliado, adquiriu uma função mais extensa: a regulação das condutas dos participantes de um conflito armado internacional O conceito adequado de Direito Internacional Humanitário precisa, ao mesmo tempo em que exalta a necessidade de proteção de direitos, reconhecer a possibilidade da guerra, garantindo que esta, ao receber a irradiação da proteção de direitos humanos, torne-se menos violenta, menos pérfida, e que os combatentes sejam éticos e conscientes das consequências da medida, buscando assim o seu fim (não por vitórias em combate, mas por meios diplomáticos, evidentemente). A interpretação que parece mais adequada a essa visão é a de Christophe Swinarski 3 . O direito internacional humanitário é o conjunto de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não internacionais, e que limita, por razões humanitárias, o direito das partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as pessoas e os bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conflito. Visualiza-se neste excerto quatro pontos centrais: a positivação das normas de Direito Humanitário; o seu âmbito de aplicação; a proteção de direitos humanos; e a limitação dos métodos de guerra. Como visto, não ocorre somente a menção a origem convencional dos tratados nesta seara, mas também a sua origem consuetudinária. Expõe-se também que o Direito Humanitário, não obstante seja um tema inserido no Direito Internacional, não versa somente por conflitos acontecendo em mais de um ente soberano, podendo sê-lo mesmo caso ocorra em uma única localidade. Ademais, descreve as duas principais características do Direito Humanitário já mencionadas: a limitação da estratégia de combate, que deve ocorrer na medida das necessidades, sem um massacre desmedido, e o teor protetivo de direitos humanos, vital para a sobrevivência das únicas vitimas dos combates. Assim, por sua amplitude, esse conceito se mostra o mais adequado para uma boa compreensão do que representa o Direito Internacional Humanitário. 2.2 PRINCÍPIOS DE DIREITO HUMANITÁRIO A existência de princípios a anunciar a essência de uma determinada legislação configura-se como uma característica crucial do Direito. Nesse sentido, e até por seu 3 SWINARSKI, Christophe. Introdução ao direito internacional humanitário. Brasília: Comitê Internacional da Cruz Vermelha e Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1996. p. 18. Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 27 forte caráter axiológico, não se poderia negar a irradiação das normas de Direito Humanitário por mandamentos desse tipo. Para Robert Kolb e Richard Hyde 4 (2008, p. 43), todas as regras do Direito Internacional dos Conflitos Armados existem inseridas em um equilíbrio entre dois princípios fundamentais, que, por seguirem em direções opostas, acabam por determinar que o conteúdo das normas seja o resultado de um diálogo entre ambos, a partir das negociações para a elaboração dos textos dos tratados ou de decisões feitas por Estados. São estes o princípio da humanidade e o princípio da necessidade militar. Se somente o princípio da humanidade fosse levado em conta, explicam os autores, as regras de Direito Humanitário seriam consideradas impraticáveis pelos agentes militares em conflito. Da mesma maneira, caso o escolhido fosse aquele que preza tão somente por facilidades na condução do combate, o direito seria incapaz de fazer frente aos males provocados pela guerra. Esse embate das duas perspectivas antagônicas permite, assim, que os dispositivos se configurem como adequados, na medida correta. Leonardo Estrela Borges 5 menciona outros dois princípios orientadores do Direito Humanitário: princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade. O princípio da necessidade prega o não ataque a bens de caráter civil, que não ofereçam alguma vantagem estratégica para os rumos do combate. Os alvos devem ser justificados, a destruição não deve ser desnecessária. Precisa de um fundamento, direcionado essencialmente a objetivos militares. Para um bem ser considerado um objetivo militar, ele deve possuir dois aspectos: contribuir de fato para a logística de combate, além de sua perda representar uma baixa significativa para a Parte que o possui. Percebe-se uma mescla entre os princípios da humanidade e da necessidade militar, porquanto do princípio da necessidade decorrem medidas protetivas, não obstante reconheça a existência de alvos de combate. Encontra positivação no artigo 52(2) do Protocolo I adicional às Convenções de Genebra: Os ataques devem ser estritamente limitados aos objetivos militares. No que respeita aos bens, os objetivos militares são limitados aos que, pela sua natureza, localização, destino ou utilização contribuam efetivamente para a ação militar e cuja destruição total ou parcial, captura ou neutralização ofereça, na ocorrência, uma vantagem militar precisa. 4 KOLB, Robert & HYDE, Richard. An Introduction to the International Law of Armed Conflicts. Portland: Hart Publishing, 2008. p. 43. 5 BORGES, L. E. O Direito Internacional Humanitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 19-20. A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 28 Por sua vez, o princípio da proporcionalidade, apesar de também inserir-se na moldura dos dois princípios fundamentais já mencionados, encontra-se claramente pendente para o lado das necessidades humanas na guerra, determinando que, mesmo para a escolha de um alvo efetivamente utilizado no conflito, a agressão deve privilegiar aquele bem cuja destruição ofereçamenos riscos a população civil e seus bens. Nesse sentido encontramos o artigo 57(3), igualmente do Protocolo I. Nos termos do artigo, “quando for possível escolher entre vários objetivos militares para obter uma vantagem militar equivalente, a escolha deverá recair sobre o objetivo cujo ataque seja suscetível de apresentar o menor perigo para as pessoas civis ou para os bens de caráter civil”. Com efeito, o embate entre proteção de direitos humanos e permissividade de atos de guerra deve subsistir, ora privilegiando princípios menos afeitos a agressões, ora sobrepondo aqueles que resguardam os ataques. Resta aos estudiosos e aos aplicadores do Direito Humanitário debater os benefícios e os prejuízos dessas perspectivas, interpretando suas possibilidades, contextos de aplicação e mudanças de entendimento. 2.3 O COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA E O DIREITO DE GENEBRA Ao perguntar sobre a organização atuante no âmbito da proteção de direitos humanos dentro dos conflitos, inevitavelmente a Cruz Vermelha é lembrada. Contudo, deve-se reforçar que esta é somente parte do organismo, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Com sede na Suíça, foi o CICV a associação fundada em 1863 por Henry Dunant (1828-1910), um cidadão suíço, que, após presenciar os desdobramentos da violenta Batalha de Solferino (1859), decidiu se mobilizar pela criação de uma organização internacional de auxílio as vítimas das guerras. O Comitê possui um verdadeiro mandato de guardião do Direito Humanitário, tendo fundado o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, agindo como responsável por elaborar as diretrizes e direcionar as atividades deste movimento, traçando todo o planejamento das atividades. Foi premiado com o Nobel da Paz por três vezes, em 1917, 1944 e 1963. Ademais, são também membros do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho a Federação das Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho e suas Sociedades Nacionais, funcionando como instâncias de atuação localizada. Seu presidente atual é Peter Maurer, com mandato iniciado em 2012. Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 29 Os textos clássicos de Direito Humanitário são, sem dúvidas, as Convenções de Genebra. A primeira Convenção de Genebra foi celebrada em 1864. Sob o título de Convenção sobre o socorro aos feridos nos campos de batalha, continha dez artigos. A partir de seu teor, verifica-se que sua função maior era a regulamentação do trabalho da Cruz Vermelha. Vejamos nesse sentido o seu artigo 7°: Um uniforme e um símbolo serão adotados por hospitais, ambulâncias e retiradas. Devem ser acompanhadas em todas as ocasiões de uma bandeira nacional. Uma braçadeira deve ser entregue aos indivíduos que recebam a Condição de Neutralidade, mas esta entrega deve ser realizada por uma autoridade militar. A bandeira e a braçadeira devem apresentar uma Cruz Vermelha sobre um fundo branco. Swinarski 6 apresenta a evolução normativa de Genebra, iniciando a partir da ampliação do Tratado de 1864, em 1906, para adaptar-se aos avanços alcançados sete anos antes, na Convenção de Haia de 1899, instituindo um texto sobre os feridos e doentes em combate. Em 1929, coube uma nova ampliação, a partir de um texto que regulamentasse juridicamente o estatuto dos prisioneiros de guerra. A grande revolução na positivação dos ideais humanitários veio em 1949. A Segunda Guerra Mundial acabara alguns anos antes, provocando milhões de mortes. Contribuíram para esses números a inovação tecnológica na produção de armamentos. Estima-se que, entre 1940 e 1945, as principais fábricas americanas do setor produziram para o país cerca de 304.887 7 aviões. A crueldade desta Guerra, capaz de superar o horror visto durante sua antecessora, impingiu a necessidade de ampliar o rol humanitário. Deste modo, foi convocada uma assembleia pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha com o fito de revisar a convenção já estabelecida, bem como criar novos tratados. Assim, no ano de 1949, foram finalizadas, além da revisão da I Convenção, para melhorar a situação dos feridos e doentes das Forças Armadas em campanha; os textos da II Convenção de Genebra, para melhorar a situação dos feridos, doentes e náufragos das forças armadas no Mar; da III Convenção de Genebra, relativa ao tratamento dos prisioneiros de guerra; e da IV Convenção de Genebra, relativa a proteção das pessoas civis em tempo de guerra. 6 SWINARSKI, Christophe. Introdução ao direito internacional humanitário. Brasília: Comitê Internacional da Cruz Vermelha e Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1996. p. 16. 7 TOTA, Pedro. Segunda Guerra Mundial. IN: MAGNOLI, Demétrio (Org.). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2006. p. 356. A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 30 Cumpre ressaltar uma particularidade do ordenamento jurídico humanitário inserida nas quatro Convenções de Genebra: todas contém, em seu artigo 3º, as mesmas disposições. Este artigo obriga as partes a adotar medidas garantistas dos direitos dos seus adversários lesionados no combate e que acabem de alguma forma sob a sua custódia: As pessoas que não tomem parte diretamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto as armas e as pessoas que tenham sido postas fora de combate por doença, ferimentos, detenção, ou por qualquer outra causa, serão, em todas as circunstâncias, tratadas com humanidade, sem nenhuma distinção de caráter desfavorável baseada na raça, cor, religião ou crença, sexo, nascimento ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo. As Convenções de Genebra de 1949 foram complementadas, no ano de 1977, por dois protocolos. O Protocolo I adicional às Convenções de Genebra, relativo a proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais, como o título explica, busca aprofundar a tutela humanitária relacionadas com conflitos a ocorrer dentro dos territórios de nações distintas. Por sua vez, O Protocolo II, relativo a proteção das vítimas dos conflitos armados não internacionais, menciona possibilidades como o embate contra grupos armados organizados, entre eles os movimentos de libertação nacional, tal qual a Organização pela Libertação da Palestina (OLP), como bem exemplifica Valério Mazzuoli 8 , e que, fundada em 1964, praticava a luta armada à época da assunção do protocolo. Finalmente, em 2005, houve a elaboração de um terceiro protocolo adicional, pouco comentado. Este versa somente sobre a adoção de emblema distinto das tradicionais cruz e crescente vermelhos pelos grupos de auxílio a doentes e feridos, o cristal vermelho. Outra especificidade dos tratados que merece comentário particular, agora também inserida no âmbito dos protocolos, é a existência da cláusula Martens. Conforme Robert Kolb e Richard Hyde 9 , esta foi aproveitada do preâmbulo das Convenções de Haia de 1899 e 1907, e proposta pelo russo Frédéric de Martens, professor de direito internacional e delegado de seu país na Conferência de Paz de Haia 8 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.447. 9 KOLB, Robert & HYDE, Richard. An Introduction to the InternationalLaw of Armed Conflicts. Portland: Hart Publishing, 2008. p.61-62. Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 31 de 1899, responsável pela elaboração destes tratados. Este dispositivo, a partir da ciência de que não havia possibilidade de regulamentação de todas as situações de risco aos direitos humanos em conflitos armados, simplesmente instituiu a irradiação dos princípios e entendimentos de cunho internacional que por ventura se apliquem a um contexto de risco não apreciado pelo ordenamento protetivo. Esta cláusula encontra-se em todas as convenções e nos dois primeiros protocolos adicionais, sendo sua redação moderna apresentada no artigo 1(2) do Protocolo I: Nos casos não previstos pelo presente Protocolo ou por outros acordos internacionais, as pessoas civis e os combatentes ficarão sob a proteção e autoridade dos princípios do direito internacional, tal como resulta do costume estabelecido, dos princípios humanitários e das exigências da consciência pública. Percebe-se assim que os textos de Direito Humanitário são vastos em seu conteúdo, cobrindo boa parte dos temas atinentes aos conflitos armados, sem ignorar a possibilidade de alguma omissão, onde, caso detectada alguma situação não expressa, esta encontra o seu devido amparo a partir do artigo assinalado. 3 O ESTADO ISLÂMICO E A DESTRUIÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL DA HUMANIDADE Ao falar de grupos armados, o Estado Islâmico logo é lembrado. Possui projetos ambiciosos, métodos de combate cruéis, que são amplamente publicizados, e está em célere processo de crescimento. Liderado por Abu Bakr al-Baghdadi, seu califa 10 , possui orientação jihadista 11 , visando implantar, como sua própria denominação aponta, uma nação pautada essencialmente nos preceitos do Islamismo. O Estado Islâmico do Iraque e do Levante 12 é considerado uma organização terrorista por inúmeros países, inclusive o Brasil 13 , gerando assim forte mobilização internacional pela sua desarticulação Buscar-se-á, neste capítulo, fornecer instrumentos para a compreensão do referido grupo, discorrendo sobre o seu surgimento, suas áreas e métodos de atuação e seus principais objetivos, entendendo assim o porquê de seus atos, sobretudo a 10 Autoridade máxima de um califado. 11 Jihad, segundo Houaiss (2009, p. 1132), representa um “dever religioso dos muçulmanos de defender o Islã através de luta”. Jihadista, portanto, é o seu militante, o praticante desse dever. 12 Também segundo Houaiss (2009, p. 1173), Levante é um “conjunto de países do Mediterrâneo oriental (Turquia, Síria, Egito) e Ásia Menor”. 13 BRASIl. Ministério das Relações Exteriores. Nota 14 de 17 de janeiro de 2016: Atentados na Síria. Disponível em: <http://goo.gl/C9ygF7>. Acesso em 17. fev. 2016. A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 32 destruição de sítios arqueológicos históricos, considerados pagãos, mas até então intocados pelas comunidades muçulmanas tradicionalmente residentes nas regiões hoje sob o seu controle. Ademais, será feita uma breve introdução sobre a ideia de Patrimônio da Humanidade, seu órgão protetor e a dimensão do dano sofrido no contexto das atividades da milícia em comento. 3.1 O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO ESTADO ISLÂMICO O surgimento do grupo se insere no contexto do movimento jihadista do século XXI, cuja ascensão ocorreu em grande parte como uma reação a todas as articulações realizadas pelas potencias ocidentais para a governança do mundo árabe no século passado. O termo jihad, do idioma árabe, significa “esforço”, o trabalho com determinação por uma causa nobre. Nesse sentido, haveria um esforço de grupos islâmicos pela defesa de sua fé, materializado através da luta armada. Difere, portanto, da tradução costumeira dada a palavra como “Guerra Santa”. Pode-se dizer que o ato de maior impacto dos guerrilheiros até agora foi a destruição das torres do World Trade Center, protagonizado pelo grupo Al Qaeda, de onde surgiu, de certa forma, o Estado Islâmico. Osama Bin Laden, mentor dos ataques de 11 de setembro e líder da Al Qaeda, decidiu, por ocasião da invasão americana ao Iraque, iniciada em 2003, ampliar a força da organização naquele país. Para tanto, aliou-se a Abu Musab al-Zarqawi, chefe do grupo Jama’at al-Tawhid wal-Jihad, atuante naquele território, famoso pelo assassinato do diplomata americano Laurence Foley, em 2002. Essa coligação acabou por resultar na absorção do segundo pelo primeiro, passando a ser conhecido como a Al Qaeda no Iraque. Posteriormente, houve a formação de uma nova coligação, dessa vez com grupos menores, que resultou na formação de uma nova organização, o Conselho Shura Mujahideen, uma coalização para enfrentar as forcas ocidentais a essa altura já estabelecidas em solo iraquiano, liderada por al-.Zarqawi até a sua morte, no mesmo ano, e depois continuada por Abu al-Masri, outro dirigente fundamentalista. Sob a liderança de al-Masri, em 2006, o Conselho proclamou o estabelecimento do Estado Islâmico do Iraque, em prol do qual encerrou suas atividades. Com a morte de al-Masri e de Omar al-Baghdadi, seu sucessor, assume em 2010, finalmente, Abu Bakr al- Baghdadi, liderança do presente momento. Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 33 Desde a assunção do atual mandatário do grupo, este teve um grande crescimento, passando a atuar também na Síria, e pleiteando a região do Levante, que engloba a Palestina, o Líbano, a Jordânia e Israel. Em 2014, a organização proclamou a criação de um califado islâmico entre a Síria e o Iraque, sob o comando de al-Baghdadi. A instituição de um califado é polêmica mesmo entre grupos islâmicos antiocidentais. A Al Qaeda, rompida com o Estado Islâmico, não reconhece a instituição do califado, negando a representatividade de al-Baghdadi como líder de todos os muçulmanos. Também merece questionamentos a sua anunciação como território independente, pois não contém todos os elementos de um Estado de fato. Paulo Bonavides 14 , citando Jellinek, transcreve uma definição ideal de Estado, irrepreensível, nas suas palavras. Estado seria “a cooperação de um povo, assentada num determinado território e dotada de um poder originário de mando”. Assim, ao analisar os pressupostos de tal configuração no seio das áreas ocupadas pelos guerrilheiros, visualizamos a ausência de alguns desses pontos. A partir de artigo escrito por Kleber Couto Pinto 15 , que estuda o Estado Islâmico sob a ótica da Teoria Geral do Estado, conclui-se que lhe falta, por exemplo, a soberania, em sua modalidade positiva, que representa o poder originário de mando, já que seu controle sobre as regiões comandadas não é reconhecida pela população nativa daqueles terrenos, mas tão somente por seus partidários que lá se estabeleceram, o que também remete a não existência da “cooperação de um povo”. Percebe-se que a formação da organização foi complexa, decorrente da diversos grupos radicais, cujo objetivo em comum era emplacar uma sociedade muçulmana obediente unicamente a sharia, a lei islâmica, além da derrubada das potências ocidentais. Embora fruto de um arranjo bastante complexo, continua a crescer, atraindo também cidadãos europeus e assim expandindo seu alcance. Cumpre ressaltar a tendência de absorção e alinhamento de mais grupos terroristasque lhe juram fidelidade em virtude dessas afinidades, como foi o caso do Boko Haram, da Nigéria. A necessidade de medidas que bloqueiem a ampliação do dito califado faz-se, portanto, urgente. 14 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo. Malheiros, 2011. p.71. 15 PINTO, KC. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro, 2015. v. 18, n. 68, p. 60-79. Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista68/revista68_60.pdf>. Acesso em 19 fev. 2016. P A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 34 3.2 ÁREA DE LOCALIZAÇÃO E MÉTODOS DE ATUAÇÃO Conforme subtópico anterior, O Estado Islâmico, fruto da Al Qaeda no Iraque, iniciou sua expansão neste país. As dificuldades encontradas naquela localidade, simbolizadas pelas mortes de seus primeiros líderes, al-Zarqawi, al-Masri e Omar al- Baghdadi, acabou por direcionar os movimentos da milícia ao território vizinho, a Síria. Abu Bakr al-Baghdadi então ingressou na guerra civil já existente naquela nação desde 2011, entre o regime ditatorial de Bashar al-Assad, governante desde 2000, sucessor de seu pai, Hafez al-Assad, que foi o presidente local por trinta anos, e os dissidentes anti- governistas, que buscavam o fim da ditadura e a instauração de uma democracia, no contexto da Primavera Árabe. Percebe-se que o grupo sunita atua em países de frágil soberania, inseridos em conflitos internos, provenientes da derrubada de ditaduras e transições de regime. Deste modo, sem a dificuldade de enfrentar um governo coeso, houve maior facilidade em invadir os territórios e expandir suas ocupações. Dessa maneira, o Estado Islâmico corresponde atualmente a mais da metade do território sírio, seguido em controle pelo governo sírio, as forcas curdas e a oposição democrática. Contudo, a capital do auto proclamado califado continua no Iraque, na cidade de Mossul, a terceira maior daquele Estado. O Estado Islâmico enfrenta, contudo, dificuldades para avançar na conquista de mais cidades. Após a aproximação de Bagdá, a cidade permanece sob o governo do primeiro ministro Haider al-Abadi. Tikrit, anteriormente dominada, foi retomada pelas tropas iraquianas. Estas contenções no avanço do grupo se devem a vários personagens. Evidentemente, as forças armadas iraquianas desenvolveram importante papel no combate aos terroristas. Acrescentam-se a este as milícias formadas por minorias locais. Curdos, cristãos e yazidis, estes adeptos de uma religião muito específica, aparentada do antigo zoroastrismo persa e das religiões da antiga Mesopotâmia, massacrados sempre que possível pelos fundamentalistas, acabaram por pegar em armas para evitar seu extermínio. Em virtude dessa reação, os grupos curdos continuam a controlar boa parte do Iraque e da Síria, além de manterem-se os yazidis e os cristãos locais estabelecidos em pequenas aldeias. Postura determinante, inegavelmente, exerceu os Estados Unidos com sua entrada no conflito. A expertise na prática da guerra, sobretudo com modernos aviões não tripulados, ocasionou severos golpes na infraestrutura do Estado Islâmico, garantindo que o Iraque, no presente momento, controle a grande maioria das suas fronteiras. Vejamos um mapa de Síria e Iraque, com marcas na cor vermelha Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 35 representando as regiões sob o comando do Estado Islâmico, e, em azul, os monumentos inscritos no Patrimônio da Humanidade. A Síria, em estado caótico, passou a receber intervenções da Federação Russa. Sob insinuações de que tal postura se motiva no socorro ao aliado Assad, o presidente Vladimir Putin conseguiu a aprovação do parlamento local para o envio de tropas e aviões, provocando perdas incontornáveis aos terroristas desde a primeira operação. Ademais, aliados americanos da OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte, como o Reino Unido e a França, passaram a também realizar intervenções no combate. Espera-se que, com a entrada de grandes potências internacionais no conflito, o Estado Islâmico retroaja, porquanto seja inegável o poderio bélico dos países acima citados. O Estado Islâmico se vale de expedientes inegavelmente cruéis. Característica marcante é a publicidade que dá aos seus atos. Elaboração de vídeos, publicações em fóruns na internet, mensagens de áudio, a tecnologia serve ao grupo para propagar o seu discurso e chocar seus oponentes. As marcantes vestes e bandeiras negras, somadas as decapitações, imolações, afogamentos e enforcamentos constituem cenas macabras, não consoantes com um grupo que afirma seguir uma religião. As mulheres, por sua vez, estrangeiras ou nacionais, muçulmanas ou representantes de outras religiões, acabam por servir aos militantes com a mais extrema submissão. A prática de estupros é comum. Se mesmo muçulmanos são afetados pelas atitudes do Estado Islâmico, pode-se dizer que as minorias religiosas habitantes das regiões ocupadas sofrem verdadeiros massacres. Os yazidis acabam inseridos no mesmo contexto das construções históricas da região, tidas como pagãs, portanto passíveis de eliminação. Deve-se ressaltar sua pequena população mundial, por volta de um milhão de pessoas, onde seiscentos e cinquenta mil residem no Curdistão do Sul, território iraquiano, para apontar a possibilidade de um genocídio. Já cristãos, de maneira comovente e ao mesmo tempo chocante, acabam crucificados. A estratégia mais marcante do Estado Islâmico talvez seja a sua habilidade de alistamento de estrangeiros a sua causa. Procuram pessoas desajustadas, tímidas, insatisfeitas com sua posição na sociedade local. Oferecem glória, riquezas, um casamento, um objetivo de vida, a salvação. A quantidade de europeus que A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 36 abandonaram o seu continente, se converteram e rumaram ao Oriente Médio para se alistar ao movimento terrorista chega a milhares. Igualmente grande é o numero de muçulmanos também moradores da Europa, sem nenhum traço de fundamentalismo, que, a partir da amizade com fanáticos, geralmente conhecidos no seio das mesquitas locais, traçaram o mesmo caminho. De grande repercussão no Brasil foi o caso do jovem belga Brian de Mulder, filho de uma brasileira, que ingressou nas fileiras do movimento. Essa realidade acabou por gerar muitos temores de atentados aos grandes centros do continente. Pode-se dizer também que esse fato acabou por intensificar a xenofobia já ascendente no Velho Continente, reforçando o crescimento eleitoral nos países de partidos de tendência fascista e anti-imigração. Existe, portanto, uma ação em duas frentes, já que, ao mesmo tempo em que o desajuste na comunidade, muitas vezes motivado pela xenofobia, acaba por levar o jovem a se identificar com a organização, esta acaba por crescer justamente por ocasião da desconfiança provocada por aqueles muçulmanos. É um movimento que se alimenta da intolerância e igualmente a pratica, uma das muitas razões para pedir a sua neutralização. 3.3 PRINCIPAIS OBJETIVOS Como um movimento inegavelmente ambicioso, muitas mensagens são passadas pelo grupo em suas atitudes e movimentos. É possível mencionar a existência de três objetivos essenciais do Estado Islâmico, pautados na supremacia territorial, militar e cultural. No âmbito da supremaciaterritorial, encontra-se a instituição de um califado. Com efeito, um califa é, além de governante, uma autoridade religiosa. Contudo, seu verdadeiro peso está na manifestação da soberania do Estado, aonde o Aiatolá poderia fazer o papel de guia espiritual. Como o antigo nome, Estado Islâmico do Iraque e do Levante, anunciava, o objetivo seria controlar toda a região mencionada. Pode-se inferir que, caso detenha o comando da totalidade dos já invadidos Iraque e Síria, as atenções se voltariam para as demais regiões que compõe o Levante, como Jordânia, Líbano, Israel e parte do Egito. Isto se não houver decisão pela expansão ainda maior caso aconteça um improvável sucesso. A questão militar encontra guarida na máxima da destruição dos infiéis. Infiéis, a primeira leitura, pode também remeter a motivações religiosas. Contudo, esse objetivo Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 37 não encontrar-se-ia saciado com a aniquilação das minorias. Infiéis, mais do que cristãos e ateus, representam as potências ocidentais, administradoras da ordem mundial, intervencionistas, que inegavelmente provocaram nos países do Oriente Médio, a exceção de Israel, um ressentimento de grandes proporções. Eliminar os Estados Unidos, o Reino Unido, a Alemanha, a França, além de Israel, potência local, significaria destruir todas as forças que controlaram a região desde pelo menos a segunda metade do século XVIII. Finalmente, a supremacia religiosa, de que se revestem os objetivos já mencionados, mas que possui caráter mais especifico, se materializaria na unificação do mundo islâmico, e sob a obediência dos preceitos enunciados na sharia. Notoriamente, as influências ocidentais geram muitas discordâncias na leitura do Islamismo entre as nações árabes. Muitos países possuem costumes tidos como progressistas, onde existe a equiparação formal da mulher ao homem, com a possibilidade de divórcio e a ausência do uso de burca em público, até a adoção de lazeres tidos como vícios, como o fumo e a aposta em jogos de azar. Em um país regido pela sharia, haveria uma unificação dos hábitos da população local, sem qualquer atitude dissonante, sob a pena de sofrer punições em total discordância com os mais caros princípios de direitos humanos consagrados pelos organismos internacionais. Deste modo, pode-se concatenar os principais anseios do Estado Islâmico em um só objetivo norteador, qual seja a instituição de um governo soberano regido por preceitos religiosos, a partir da destruição de ideologias não conforme a cultura local (cultura esta moldada pelas lideranças estatais). 3.4 PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE E SUA PROTEÇÃO O conceito de patrimônio pede delimitação. Mais do que uma posse privada, garantida por um valor pecuniário, o patrimônio também pode ser coletivo, de valor imensurável. Nessas situações, o bem é único e representa valores caros a uma comunidade. Um bem desse tipo é classificado como Patrimônio Cultural, descrito como um “bem ou conjunto de bens naturais ou culturais de importância reconhecida, A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 38 que passam por um processo de tombamento para que sejam protegidos e preservados”16. Para garantir a preservação e a difusão desses ícones, que podem ser culturais (materiais ou imateriais) ou naturais, foi criada, em 1945, a UNESCO, sigla da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Seu surgimento partiu de um esforço da sociedade internacional para, no período pós Segunda Guerra Mundial, incentivar valores sociais que contribuíssem para a reconstrução de um caminho para a paz mundial. Atualmente, tem cento e noventa e cinco países membros, dois países a mais do que a Organização das Nações Unidas, como informa Nilo Dytz Filho 17 , além de mais oito associados. Sua sede está localizada em Paris, possuindo também mais de cinquenta escritórios espalhando pelo globo, inclusive no Brasil. Sua diretora-geral é Irina Bokova, com mandato até 2017. A partir da leitura dos tratados da organização, podemos verificar diversos compromissos adotados para a valorização da cultura no mundo. Nesse sentido, a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, elaborada durante a Conferência-Geral da Unesco de 1972, o significado de Patrimônio Cultural: Para os fins da presente Convenção, são considerados ‘patrimônio cultural’: - os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, - os conjuntos: grupos de construç es isoladas ou reunidas, que, por sua arquitetura, unidade ou integração paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, - os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas, que incluem os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. O patrimônio cultural pode ser também imaterial, englobando manifestações do intelecto humano, como comidas típicas de uma região e danças folclóricas. Estes bens são regulamentados pela Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003. Outro tratado bastante importante para o resguardo da cultura é a Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em caso de conflito armado, de 1954, elaborada em Haia. 16 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 1447. 17 DYTZ FILHO, Nilo. Crise e reforma da UNESCO. Brasília: Funag, 2014. p. 162. Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 39 Notoriamente, é nos conflitos armados que a destruição de importantes locais ocorre. A parte atacante muitas vezes age motivada pelo ódio, buscando ofender e destruir da mais grave maneira o seu inimigo. A parte atacada, por sua vez, encontra-se enfraquecida, sem condições de responder a altura todas as manobras do inimigo. Nessas circunstâncias, cidades históricas e monumentos são alvos fáceis, sofrendo graves danos. Cumpre ressaltar a diferença entre patrimônio cultural e bem cultural, onde este ultimo possui maior abrangência, estendendo a proteção convencional a pinturas e museus, por exemplo. Diante de todo o exposto, visualiza-se o papel preponderante da UNESCO na efetivação de uma agenda cultural mundial, tanto por sua criação ter, entre outras, essa finalidade, como por sua efetiva atividade na criação de mecanismos de proteção e difusão da cultura, que passa pela definição dos conceitos até a tutela dos bens pelos Estados em que estão situados. 3.5 A DESTRUIÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL DA HUMANIDADE PELO ESTADO ISLÂMICO Como visto, a motivação religiosa nas ações do Estado Islâmico é profunda. Por seu fanatismo, o movimento acaba por adotar uma postura de desprezo por qualquer pessoa ou objeto não islâmico. Essa posição não se opõe simplesmente a religião e ao modo de vida ocidental, mas também a formação do Oriente Médio, em seu período pré-maometano, e mesmo pré-cristão, onde as diversas comunidades humanas que lá habitavam idolatravam seus deuses particulares. Deste modo, as diversas relíquias desses períodos ainda existentesencontram-se em sérios riscos de sofrer eliminação. Assim, o grupo acabou por devastar dois sítios dentre os nomeados como Patrimônio Histórico da Humanidade inseridos nas regiões já ocupadas: Hatra e Palmira. Inscrita na lista em 1985, a antiga cidade de Hatra esta situada na Província de Ninawa, antiga Nínive, e atualmente ocupada pelo Estado Islâmico, foi atacada em março de 2015 pelos militantes fundamentalistas, e até então as dimensões dos danos sofridos por suas construções permanecem indefinidos, por força do controle do local pelo auto proclamado califado. Já na Síria, com a tomada da região de Palmira, na Província de Homs, foram destruídos vários monumentos do sítio arqueológico, como o Leão de Alat, o Arco do Triunfo e o Templo de Bel. A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 40 A UNESCO monitora a segurança desse patrimônio. Aponta, atualmente, quarenta e oito monumentos listados em situação de perigo 18 . Das construções em território iraquiano, somente a Cidadela de Arbil continua, em relativa segurança. Sua proteção é feita por milícias curdas que habitam a região, opositoras do Estado Islâmico, que pegaram em armas para defender suas fronteiras. Na Síria, cuja menor parte do território está sob controle do regime de Bashar al-Assad, a situação é também preocupante, pois todos os seus representantes na lista da UNESCO encontram-se em situação de perigo. Fora os monumentos já mencionados, estão também inseridos na lista da UNESCO a cidade de Ashur, primeira capital da Assíria, e o Sítio Arqueológico de Samarra, no Iraque, e o complexo de castelos do Crac des Chevaliers e Qal’at Salah El- Din, as Antigas Vilas do Norte da Síria e as cidades antigas de Aleppo, Bosra e Damasco, na Síria. São, portanto, dez patrimônios da humanidade inseridos nos territórios destes dois países. É possível perceber a valorização da cultura no planeta inteiro. A comoção provocada pela destruição de relíquias de tempos antigos, construídas por povos não mais constituídos e a existência de uma instituição internacional difusora desses valores com número de membros maior até do que a principal organização intergovernamental que é a ONU reforçam a crença no encontro de uma solução para a preservação desses locais. Membros de outras religiões, pessoas sem religião alguma e mesmo muçulmanos tem repudiado veemente os atos já praticados, o que reforça o repúdio de uma pluralidade de indivíduos nesse sentido. São verdadeiros crimes de guerra, de cuja punição os responsáveis não poderão deixar de cumprir. Assim, no capitulo seguinte, será apresentado o enquadramento das violações dos tratados internacionais cometidas pelo Estado Islâmico, apontando o órgão responsável pelo julgamento de seus membros e as sanções cabíveis. 4 A DESTRUIÇÃO DO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE COMO CRIME DE GUERRA Muitas violações de crimes internacionais acabam não passando por um julgamento. Isso ocorre por duas razões: a necessidade de o crime ter ocorrido em 18 Dados de 19 fev. 2016. Para consulta das informações, acessar: <http://whc.unesco.org/en/danger/>. Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 41 Estado onde o tratado vigora, o que, muitas vezes, subsiste para proteger o soberano local, que mantém seu poder por meio de atos desumanos, e porque a única exceção para essa hipótese parte de determinação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, cujas recomendações são limitadas por interesses geopolíticos dos seus componentes que possuem o poder de veto. Esse cenário pode, inclusive, refletir na desvalorização da corte, acabando como um tribunal simbólico. Tendo em vista a clara destruição do Patrimônio da Humanidade atualmente promovida pelo Estado Islâmico, contudo, este não deve escapar de um julgamento, já que é grande a pressão internacional para uma punição. Como será aqui apresentado, esses atos são tipificados como crimes de guerra, ato ilícitos claramente positivados entre as atribuições de julgamento do Tribunal Penal Internacional. Assim, deve ocorrer a responsabilização do grupo e seus militantes por essa violação. Objetivando a melhor compreensão do enquadramento penal do feito, serão expostas neste momento algumas considerações sobre o conceito de crime de guerra e o seu enquadramento no caso específico dos ataques a monumentos perpetrados pelo Estado Islâmico, além de uma apresentação da estrutura responsável pelo julgamento e seus mecanismos processuais, complementada com uma observação critica acerca do caráter muitas vezes político dos processos no Tribunal. 4.1 O DIREITO INTERNACIONAL PENAL Para assimilar a ideia de punição por um crime a partir de um organismo externo ao país onde o ato foi cometido e mesmo ao local de nascimento ou residência da vítima ou do criminoso, faz-se necessário compreender a ideia de Direito Internacional Penal. Para Guido Fernando Silva Soares 19 , o surgimento do Direito Internacional Penal estaria inserido no processo de globalização, que, em sua irradiação horizontal, ocasionou uma extensão da incidência da norma internacional a áreas jurídicas diversas do Direito Internacional Publico, como também ocorreu com os temas ambientais, tributários e trabalhistas. Com efeito, a mundialização de temas outrora restritos ao direito interno trouxe novas temáticas de estudo e aplicação do direito internacional. Pretende-se assim atrelar temáticas cruciais, seja por sua importância para a integração 19 SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002. p. 32. A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 42 econômica ou pelo seu caráter valorativo superior, a organismos imparciais, que não representam qualquer Estado, e que, a partir de sua imparcialidade, sejam legítimos desenvolvedores dessas áreas. Conceitua José Cretella Neto 20 o Direito Internacional Penal, após ressaltar a não existência de uma definição universalmente aceita, como a disciplina que abriga o conjunto de normas e princípios que tipificam os crimes internacionais, julgam os acusados e punem os culpados por esses crimes. Parece conceituação razoável, com a ressalva de que, mais que uma disciplina, o ramo do direito deve ser visto como um conceito que representa estruturas práticas, transcendendo o aspecto didático. Nesse sentido escreve Paulo Henrique Goncalves Portela 21, para quem “o Direito Internacional Penal é o ramo do Direito Internacional que visa reprimir atos que ofendam valores basilares da convivência internacional”. Ressalta ainda o autor que este tem como objeto “o combate aos chamados ‘crimes internacionais’, com o intuito de promover a defesa da sociedade internacional, dos Estados e da dignidade humana contra ações que possam provocar danos a bens jurídicos cuja proteção permite que a convivência internacional se desenvolva dentro de um quadro de segurança e de estabilidade, como a manutenção da paz, a proteção dos direitos humanos, a preservação ambiental etc.” Percebe-se assim o reconhecimento do Direito Internacional Penal pela doutrina, que se justifica pela existência de fato de um sistema penal global, composto por órgãos e procedimentos específicos, de grande importânciapara a tutela de atos que violem gravemente a segurança mundial. Finalmente, cabe um aparte essencial acerca da diferença entre Direito Internacional Penal e Direito Penal Internacional. Expõe Celso Mello 22 que o Direito Internacional Penal pode ser definido como “o conjunto de regras jurídicas concernente as infrações internacionais que constituem violações do direito internacional, enquanto que o Direito Penal Internacional faria mais parte do direito penal que do direito internacional, pois seria simplesmente “o ramo do direito penal que determina a competência do Estado na ordem internacional para a repressão dos delitos”. Ressalva 20 CRETELLA NETO, José. Direito Internacional Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 27. 21 PORTELA, P. H. G. Direito Internacional Público e Privado: incluindo noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 525. 22 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 1009-1010. Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 43 contudo que essa distinção, na prática, não é clara. Parece, não obstante, uma separação cabível. Enquanto o primeiro parte do direito internacional, o segundo sairia do direito interno. Certo é que a cooperação entre os organismos responsáveis pela tutela das leis penais internacionais e os Estados soberanos mostra-se crucial para que sejam coibidas as condutas ilícitas que extrapolem em seus atos o âmbito de um território em particular. 4.2 O CONCEITO DE CRIME DE GUERRA E O ENQUADRAMENTO DO ESTADO ISLÂMICO O conceito de crime de guerra, apesar de aparentemente claro, pede atento estudo, caso a caso, para determinar se aquele ato em particular pode ser enquadrado como tal. Notório mecanismo de investigação foi a Comissão das Nações Unidas sobre Crimes de Guerra. Criada em 1943 e dissolvida em 1949, o grupo tinha como objetivo verificar os crimes de guerra cometidos pela Alemanha Nazista e seus aliados no âmbito da Segunda Guerra Mundial. Cumpre ressaltar que a comissão não tinha poder para iniciar processos criminais, mas tão somente indicar as violações aos membros das Nações Unidas, que posteriormente levariam ou não os casos à apreciação do Tribunal de Nuremberg, órgão ad hoc responsável por punir os criminosos do Eixo. Com a ascensão do Tribunal Penal Internacional, através, do Estatuto de Roma, os crimes internacionais mais graves passaram a ter uma competência de julgamento objetiva. Vejamos o seu artigo 5º, claro ao descrever os crimes em cuja competência a corte se insere: A competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes: a) O crime de genocídio; b) Crimes contra a humanidade; c) Crimes de guerra; d) O crime de agressão. O crime de genocídio visa a destruição de um grupo de características nacionais, étnicas, raciais ou religiosas similares. Existem confrontos do Estado Islâmico com a minoria local curda, sobretudo contra os componentes da comunidade yazidi desse povo. Existem, inclusive, relatórios no sentido da prática de genocídio pelos militantes islâmicos. Ademais, crimes contra a humanidade são assim definidos por serem direcionados a qualquer população civil. Sem dúvida, o movimento terrorista também A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 44 protagonizou inúmeros ataques nesse sentido, seja no Oriente Médio ou na Europa. Já os crimes de agressão, que foram tipificados apenas a partir de emenda ao Estatuto de Roma, constituem “o uso de força armada por parte de um Estado contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com a Carta das Naç es Unidas”, nos termos do acordado na Conferência de Revisão do Tribunal Penal Internacional de 2010, realizada em Kampala, Uganda. Aqui, por não ser um Estado de fato, constitui o único crime internacional não imputável às milícias de al-Baghdadi. Ademais, as modificações ainda não foram ratificadas por um quórum mínimo que garanta a sua entrada em vigor. Essas situações apresentadas não são, contudo, objeto desse trabalho, sendo aqui mencionadas no contexto do melhor esclarecimento da adequada tipificação dos atos de destruição de obras qualificadas como Patrimônio da Humanidade da UNESCO. Portanto, não receberão aqui estudado mais aprofundado do que o acima descrito. Por ser evidente a capacidade atribuída ao órgão de julgar um crime de guerra, resta agora a necessidade de sua definição. Para tanto, novamente evocamos Paulo Henrique Gonçalves Portela 23 , para quem este seria um ato ilícito cometido contra as normas do Direito Humanitário, estabelecidas no Estatuto de Roma e nas convenções de Haia e de Genebra. Seria, simplesmente, uma violação aos tratados que regulam os conflitos armados, os quais foram objetos de explanação na primeira parte desse trabalho. Esse tipo de ato ilícito compõe, juntamente com os crimes de genocídio, contra a humanidade e de agressão, o rol de violações de Direito Internacional Penal. Explicação mais sucinta, porém igualmente adequada, é a de Malcolm Shaw 24 (2014, p. 312), onde crime de guerra são, essencialmente, “sérias violaç es das regras de direito costumeiro e dos tratados relacionadas com o Direito Internacional Humanitário”. Assim, encontram-se na Convenções de Genebra a possibilidade de definir, não pela doutrina, mas pela legislação, o que seriam esses crimes de guerra. Ao comparar o acima mencionado Estatuto de Roma, em seu artigo 8º, às Convenções de Genebra, em seu tratamento dado especificamente aos bens civis, encontramos a positivação do ataque de bens resguardados como Patrimônio da Humanidade como crime de guerra: 23 PORTELA, P. H. G. Direito Internacional Público e Privado: incluindo noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 534. 24 SHAW, Malcolm. International Law. 7. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. p. 312. Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 45 2. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crimes de guerra”: a) As violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos seguintes atos, dirigidos contra pessoas ou bens protegidos nos termos da Convenção de Genebra que for pertinente: (...) iv) Atacar intencionalmente edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares; Assim, resta descrita expressamente, na menção a monumentos históricos, a qualificação dos ataque a Hatra e Palmira como crimes de guerra. É possível verificar também, a partir da definição genérica de crime de guerra que esse tem a maior amplitude entre os crimes internacionais descritos, visto que não se aplica apenas a um grupo de indivíduos atingidos, mas a um ordenamento, as Convenções de Genebra. Esses textos, por sua vez, como visto no primeiro capítulo desse artigo, regulam diversassituações, o que praticamente define todos os ilícitos em conflitos armados como crimes de guerra. Percebe-se que a proteção do tratado se estende a quaisquer construções de valor histórico considerável, indo além da lista da UNESCO. Não obstante, deve-se ressaltar a primazia daquelas localidades já qualificadas pela organização internacional responsável, seja por seu reconhecimento em um processo solene pela organização maior da cultura mundial, como também essa condição torná-las alvos mais visados do grupo terrorista. Deste modo, verifica-se, a partir do exposto no artigo destacado do Estatuto de Roma, que a destruição de bens descritos pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade configura-se como crime de guerra. 5 CONCLUSÃO Diante de todo o exposto neste artigo, podemos tecer algumas conclusões sobre o problema da destruição do Patrimônio da Humanidade pelo Estado Islâmico e a necessidade de sua punição. O Direito Humanitário regula claramente a questão, pois, como visto, anuncia a proteção dos monumentos históricos. Esse ordenamento representou uma clara evolução A destruição do patrimônio da humanidade pelo Estado Islâmico como crime de guerra Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 46 na proteção aos participantes dos conflitos armados, visto que compilou os entendimentos costumeiros aplicados no combate e acrescentou novos. Malgrado seja um verdadeiro paradigma da proteção de direitos humanos, encontra sua efetividade bastante mitigada. Isso decorre muito em razão do não acompanhamento de suas normas a evolução das inovações bélicas. Deve-se reconhecer, inclusive, que poucos são julgados por sua violação, embora elas aconteçam quase todos os dias. Parece interessante, portanto, a convocação pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha de uma nova assembleia do órgão onde sejam criadas novas convenções, além da atualização das já existentes. Deve-se frisar novamente que, por datar a primeira convenção de 1864 e a atual configuração de 1946, percebe-se que novos tratados foram criados e o originário revisado. Não é, então, algo inédito, nem mesmo condenável. É, essencialmente, necessário. Como visto, a postura adotada pelo Estado Islâmico nos territórios conquistados é claramente nociva a qualquer aspecto cultural diverso de sua orientação. Por isso, Hatra e Palmira foram atacadas, e os demais locais históricos de Síria e Iraque, mesmo que tivessem se mantido representando manifestações diversas daquela dominante na região desde antes de cristo. Assim, a intolerância não pode ser vista como pautada na religião muçulmana, mas em um radicalismo não adequado aos preceitos do Alcorão. Por traz da proposta religiosa residem, na verdade, interesses seculares, como o controle de poços de petróleo, e, de certa forma, um desejo de vingança contra as diversas intervenções de países ocidentais no mundo árabe ao longo do século XX. Para alcançar seus objetivos, se vale de métodos cruéis, totalmente alheios a noções de Direitos Humanos. Essa violência tem o fito de intimidar seus adversários, passando uma imagem de poder muito maior que a real. Sofrem assim, em virtude dessa necessidade de manifestar poder, os diferentes, desde as construções de povos antigos até povos, como os curdos e os cristãos. Seguramente, a destruição do Patrimônio da Humanidade representa um crime de guerra. Esse tipo de violação encontra a legitimidade para seu julgamento no Tribunal Penal Internacional, conforme seu tratado constitutivo. Assim, não parece razoável que, caso presos, os responsáveis diretos e indiretos pelo ataque a esses sítios históricos não sejam processados e julgados pelo órgão. Tribunais ad hoc já foram necessários, mas não são ideais, pois denotam alguma arbitrariedade em sua instituição, estando ausente o princípio de juiz natural. O grande empecilho a esse julgamento está nas constantes Arthur Gustavo Saboya de Queiroz Revista Eletrônica de Direito Internacional, ISSN 1981-9439, vol.17, jan./jun., 2016, pp.22-49. 47 divergências entre os membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre os rumos da região. Tendo em vista que o processo de membros do Estado Islâmico só poderá chegar ao Tribunal por indicação do Conselho, é necessária a construção de um consenso nesse sentido. Percebe-se que, mesmo existindo um expresso repúdio ao grupo terrorista, associado a ataques militares, tanto por Estados Unidos como Rússia, eles o fazem sob perspectivas diferentes. Precisa, na verdade, que seja formado um entendimento, uma coalização para cessar o crescimento do califado. Não há solução fora do consenso, sem um comprometimento verdadeiro com as demais perspectivas, algo válido tanto para o Estado Islâmico como para os países responsáveis por sua contenção. A pluralidade ideológica, religiosa, em suma, cultural, deve ser respeitada, sendo esse um dos pressupostos básicos para a composição nos conflitos e a manutenção da paz. 6 REFERÊNCIAS BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo. Malheiros, 2011 BORGES, L. E. O Direito Internacional Humanitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. BRASIl. 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