Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ATAQUES INDISCRIMINADOS EM CONFLITOS ARMADOS NÃO INTERNACIONAIS: UMA ANÁLISE JURÍDICA** Frank Dumas de Abreu Marinho * RESUMO Este artigo objetivou identificar as regras do Direito Internacional Humanitário (DIH) que proíbem os ataques indiscriminados, em conflitos armados não internacionais. A partir do campo de aplicação do DIH, pode se conceituar o conflito armado não internacional (CANI). Foi necessário identificar os fatores indicativos de CANI, ensejando a discussão sobre os ataques indiscriminados. Fez-se, então, a análise das regras do DIH que proíbem esses ataques, concluindo que o art. 3º comum às Convenções e o II Protocolo Adicional às Convenções, ambos aplicáveis aos conflitos internos, não dispõem sobre essa vedação, mas que o direito costumeiro proíbe, diante dessa lacuna, os ataques indiscriminados. Palavras-Chave: Direito Internacional Humanitário. Conflitos armados não internacionais. Ataques indiscriminados. Direito costumeiro. RÉSUMÉ Cet article a eu l’objectif d’identifier les règles du Droit International Humanitaire (DIH) qui interdisent les attaques sans discrimination, dans les conflits armés non internationaux. Dès le champ d'application du DIH, on a pu conceptualiser le conflit armé non international (CANI). Il était nécessaire d'identifier les éléments matériels du CANI et son environnement dans la guerre, permettant la discussion des attaques sans discrimination. Puis on a fait une analyse des règles du DIH qui interdisent ces attaques-ci, concluant que l'article 3 commun aux Conventions et le Protocole II additionnel aux Conventions, tous les deux applicables aux conflits internes, ne prévoient pas cet interdiction, mais que le droit coutumier interdit, en face de cet écart, les attaques sans discrimination. Mots-Clés: Droit International Humanitaire. Conflits armés non internationaux. Attaques sans discrimination. Droit coutumier. 1 INTRODUÇÃO * Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho; Ex-Instrutor de DIH da Escola de Comando e Estado- Maior da Aeronáutica; e Professor visitante do Curso de Mestrado da Universidade da Força Aérea. 2 Na segunda década do século XXI, observa-se no mundo a ocorrência de diversos conflitos armados, com destaque para os conflitos de índole não internacional ou conflitos internos denotando uma tendência dos enfrentamentos bélicos modernos, enredados em guerras assimétricas que possuem ambiente operacional geralmente urbano, sem a existência de um campo de batalha clássico, onde as partes contendoras entrechocavam-se. Não foi outra a abordagem do Expert Meeting – Explosive Weapons in Populated Areas: Humanitarian, Legal, Technical and Military Aspects (EXPERT..., 2015) – , promovido pelo Comitê Internacional da Crua Vermelha (CICV) em 2015, para debater os desafios e as oportunidades potenciais na escolha dos meios e métodos de guerra, com vista a minimizar os danos colaterais, quando um legítimo alvo é atacado em área povoada. Sob o olhar atento da mídia internacional, ataques dirigidos contra concentrações urbanas são revelados quase diariamente, principalmente no Oriente Médio. Independentemente do fato motivador ou deflagrador (casus belli), Síria, Iraque e Iêmen são países afundados em guerras, que expõem aspectos das hostilidades, provocadores de perplexidade na opinião pública internacional: as baixas excessivas de civis nas áreas conflagradas. Notadamente, ocorridas em regiões densamente povoadas, essas perdas de vidas humanas decorrem, supostamente, de ataques proibidos, que a lei internacional denominou como indiscriminados. Enquanto este trabalho é desenvolvido, a mídia internacional divulga a realização de um bombardeio contra um hospital dos Médicos sem fronteiras, ocorrido no dia 3 de outubro de 2015, em Kunduz, no norte do Afeganistão, acarretando a morte de pelo menos 19 pessoas (ONU..., 2015). Diante de fenômenos dessa natureza, com o qual a comunidade internacional defronta-se, restou uma inquietação que levou a um problema teórico-jurídico: quais são as regras do Direito Internacional Humanitário que proíbem os ataques indiscriminados, nos conflitos armados não internacionais? Para responder a essa indagação este artigo cuidou, na seção 2, do conceito de Direito Internacional Humanitário (DIH) e de outros aspectos importantes para edificação dos pilares jurídicos que foram articulados, em especial o campo de aplicação do direito. 3 Na seção seguinte, estudou-se o conflito armado não internacional, focalizando, entre outros vieses, o procedimento de classificação dos conflitos armados não internacionais (CANI) e o seu ambiente operacional. Sendo possível identificar um CANI, passou-se ao exame dos ataques indiscriminados. Inicialmente, pela abordagem dos princípios reitores do DIH, para entender-se o fundamento das normas proibitivas. Por fim, fez a análise das fontes do DIH para identificar aquelas que vedam a prática de ataques indiscriminados em contendas internas. 2 DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO Diz Peytrignet (1996) que dissertar sobre o direito humanitário conduz a inevitável referência às guerras, à violência armada e aos enfrentamentos diversos, fenômenos que marcam a história da humanidade e representam uma expressão da natureza do ser humano, nas relações entre grupos sociais organizados, povos e nações. Entretanto, afirma que a história universal gerou inúmeros esforços e tentativas para criar limitações ao uso da força e para proteger o ser humano, reduzindo os sofrimentos advindos da guerra, bem como evitando danos e perdas humanas e materiais inúteis. Nesse contexto, o DIH, também chamado de Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) 1 , surge, nas palavras de Swinarski (1997), como um conjunto de normas internacionais, de caráter convencional ou costumeiro, dedicado por razões humanitárias, durante os conflitos armados de índole internacional ou não internacional, a limitar o direito dos beligerantes de escolher livremente meios e métodos empregados na guerra e a proteger as pessoas e os bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conflito. Essa concepção expressa estruturas importantes do regramento dos conflitos armados: as fontes de direito, o âmbito de aplicação, a finalidade, os direitos dos contendores e as proteções das pessoas envolvidas. 1 Pictet (1986 apud Mello, 1997, p. 143) afirma que a denominação de Direito Internacional Humanitário foi adotada pela maioria da doutrina, mas reconhece a Organização das Nações Unidas prefere usar a de direito dos conflitos armados. 4 2.1 Fontes de convencionais de DIH O DIH deriva das convenções firmadas pelos Estados Partes e dos usos e costumes da guerra. Em síntese, pode-se dizer que o direito convencional divide-se em direito de Genebra, direito de Haia e direito de Nova York. O direito de Genebra consagra as regras protetoras das vítimas da guerra. O direito de Haia, as relativas aos meios e métodos de guerra (à própria condução da guerra). Já o direito de Nova York aparece, em decorrência da evolução da codificação do DIH, com algumas iniciativas das Nações Unidas em matéria de direitos humanos, aplicáveis em conflitos armados, e com a adoção de convenções relacionadas à limitação ou à proibição de certas armas convencionais (PEYTRIGNET, 1996). O direito de Genebra, formado primariamente pelostratados celebrados em 1949, denominados Convenções de Genebra (I, II, III e IV), tem como escopo a melhoria da sorte dos feridos e enfermos dos exércitos em campanha; a melhoria da sorte dos feridos, enfermos e náufragos das forças armadas no mar; o tratamento dos prisioneiros de guerra; e a proteção dos civis em tempo de guerra. Acrescenta-se, ainda, o desenvolvimento dessa matéria trazido pelos dois Protocolos Adicionais de 1977 às Convenções. O primeiro ocupa-se da proteção das vítimas nos conflitos armados internacionais e o segundo, nos não internacionais (MELLO, 1997). O direito de Haia compreende as convenções de 1907 2 . O direito de Nova York resta consolidado pela Convenção de 1980 3 sobre a proibição ou a limitação do emprego de certas armas convencionais que podem ser consideradas excessivamente lesivas ou geradoras de efeitos indiscriminados. Vinculados a este tratado, vários protocolos foram anexados, regendo o uso de determinados armamentos. O Protocolo I, por exemplo, proíbe a utilização de armas cujos fragmentos não sejam detectados por 2 Sobre o tema Mello (1997) entende que o advento dos protocolos de 1977 fez desaparecer a distinção entre o direito de Genebra e o de Haia, pois o primeiro protocolo regulamentou a guerrilha e os meios e métodos de combate que eram versados pelo direito de Haia. Nesse sentido, também argumenta Peytrignet (1996), ao asseverar que a quase totalidade das disposições das convenções de Haia incorporaram-se ao direito de Genebra, mediante adaptação e modernização, e encontram-se no I Protocolo Adicional às Convenções. 3 Cabe lembrar que Peytrignet (1996) destaca que outras iniciativas das Nações Unidas contribuíram para a formação do direito de Nova York. Nessa linha, Bierrenbach (2011, p. 95) informa que “[...] com o final da guerra fria, o CSNU passou incluir em sua agenda temas relativos ao DIH. Aprovou resoluções sobre a proteção de civis em conflitos armados, de crianças em conflitos armados, e sobre mulheres, paz e segurança”. Swinarski (1997) dá destaque à Resolução 2444 (XXIII), intitulada Respeito aos Direitos Humanos em Período de Conflito Armado, pois marcou o interesse das Nações Unidas sobre o assunto. 5 radiografia. Tais anexações conferem a essa convenção o status de umbrela agreement (MELLO, 1997). 2.2 Fontes costumeiras de DIH O costume internacional é uma prova de prática geral aceita como direito, nos termos do art. 38, alínea b do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (COUR INTERNATIONALE DE JUSTICE). A leitura feita por Silva e Accioly (2002) desse dispositivo legal indica que o direito costumeiro apresenta-se como uma fonte jurídica. Da mesma forma entende Bugnion (2007), que completa dizendo que tal fonte presta-se à criação de normas regentes das relações dos sujeitos na ordem internacional, principalmente, das relações entre os Estados. Nessa linha de raciocínio, os usos e os costumes de guerra surgem como fonte do DIH, uma vez que possuem eficácia jurídica própria, consoante a lição de Peytrignet (1996) que consigna a substância consuetudinária do direito humanitário, válida, de acordo com a Corte Internacional de Justiça, até para os Estados que não signatários de determinadas convenções. Logo, se o DIH funciona como uma regulação da conduta de guerra e um regramento de proteção às vítimas de guerra, nas palavras de Swinarski (1997). Depreende-se que o direito internacional consuetudinário rege essas condições independentemente de formalidade convencional. A denominada cláusula Martens, ínsita na Convenção de Haia de 1907, indica, também, a normatividade jurídica das regras consuetudinárias ou costumeiras, ao preconizar que, na ausência de regulação das práticas relacionadas aos meandros dos conflitos armados, as populações e os beligerantes permanecem sob a garantia e o regime dos princípios dos Direito das Gentes preconizados pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública. Significa dizer, segundo Bierrenbach (2011, p. 89), que “[...] nem tudo o que não era proibido era permitido. Em casos de lacunas legais, deveria prevalecer o princípio da humanidade 4”. 4 Na introdução do seu manual sobre condução das hostilidades, o CIVC (2001) propugna que os tratados, que regem a condução das hostilidades, e o direito consuetudinário internacional, que obriga a todos os Estados, estão fundados em dois princípios relacionados entre si: o de necessidade militar e o de humanidade, que, juntos, significam que são apenas permitidas ações necessárias para derrotar o inimigo e que estão proibidas às que causam sofrimentos ou perdas supérfluas. 6 O sentido da cláusula Martens foi reproduzido, mais recentemente, nas Convenções de Genebra de 1949 (MELLO, 1997), nos seus protocolos adicionais e na convenção sobre certas armas convencionais de 1980 (PEYTRIGNET (1996), consagrando a força jurídica que é inerente às normas costumeiras, nos seguintes termos: Nos casos não previstos pelo presente Protocolo ou por outros acordos internacionais, os civis e os combatentes ficarão sob a proteção e a autoridade dos princípios de direito internacional, tal como resulta do costume estabelecido, dos princípios humanitários e das exigências da consciência pública. (CICV, 1998). Nesse contexto, Mello reforça a ideia fazendo um alerta (1997, p. 147): [...] este dispositivo hoje é de um certo modo redundante, vez a prática internacional considera as normas aí consagradas como costumeiras, ou ainda, de jus cogens, significando que elas existem e continuarão a existir independente de norma convencional”. No julgamento perpetrado, no Tribunal Penal para ex-Iugoslávia, em face de Stanislav Galić, o direito internacional consuetudinário serviu para preencher as lacunas 5 ensejadas pelos tratados internacionais de DIH (UNITED NATIONS, 2006) 6 . Indubitavelmente, fica evidenciada a eficácia jurídica dos costumes nessa matéria. Dado o exposto, o CICV, em razão de mandato conferido pela XXVI Conferência Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, empreendeu estudo para realizar o levantamento das práticas de guerra, com o intuito de identificar a composição do denominado Direito Internacional Humanitário Costumeiro 7 (DIHC). Vale dizer que se buscou pormenorizar os usos e os costumes de guerra, que cumprem a função de reger a condução das hostilidades e de proteger as vítimas dos conflitos. Entende Kellenberger (2006) que o citado trabalho é uma fotografia tão rigorosa quanto possível do DIHC, haja vista as circunstâncias: de regular juridicamente as partes em conflitos armados, mesmo aquelas que abstiveram de celebrar certas convenções; de responder às necessidades de proteção, relacionadas aos conflitos 5 Sobre as lacunas do direito convencional, Bugnion (2007, p. 8) explica que “En ce qui concerne le droit des conflits armés, on constate cependant qu’il existe souvent un abîme entre les besoins de protection qu’engendrent certains conflits et les dispositions conventionnelles qui visent à protéger les victimes de ces mêmes conflits. C’est dans ce sens-là seulement que nous parlons de lacunes en droit des conflits armés” 6 “This is because in most cases, treaty provisions will only provide for the prohibition of a certain conduct, not for its criminalisation, or the treaty provision itself will not sufficiently define the elements of the prohibition they criminalise andcustomary international law must be looked at for the definition of those elements” (UNITED NATIONS, 2006, P. 38). 7 Une étude du droit international humanitaire coutumier peut aussi être utile pour réduire les incertitudes et les ambiguïtés potentielles inhérentes à la nature même du droit international coutumier (HENCKAERTS; DOSWALD-BECK, 2006) 7 armados não internacionais que foram minimamente regulamentados; e, por fim, de contribuir para a interpretação dos tratados. Já foi dito que costume internacional é a prática aceita como direito. O trabalho, acima mencionado, feito por Henckaerts e Doswald-beck (2006) foi concebido com o pressuposto de que a existência do DIHC exige dois elementos: a prática 8 dos Estados e a opinio juris, ou seja, a convicção de que essa prática (proibida ou autorizada) decorre de uma regra jurídica. 2.3 Âmbito de aplicação do DIH O DIH tem sua eficácia jurídica acionada quando, se somente se, houver deflagração de um conflito armado, seja de índole internacional, seja de caráter não internacional, conforme depreende-se das Convenções de Genebra e de seus protocolos adicionais (CICV, 1992). Em síntese, segundo os comentários, feitos pelo Comité international de la Croix- Rouge (CICR), ao artigo 2º comum às Convenções de Genebra de 1949, um conflito armado internacional (CAI) decorre de qualquer controvérsia entre dois Estados que leve à intervenção das forças armadas, mesmo que uma das Partes negue a existência do estado de guerra, não importando a duração do conflito ou quanta mortandade ocorra (CICR, 1952). Outra abordagem conceitual, mais recente, preconiza que um CAI existe sempre que houver recurso à força armada entre Estados 9 , nos termos da decisão do Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia (TPII), no caso Tadic, conforme mencionado pelo CICV (2008) que destaca que essa definição vem sendo adotada por outros organismos internacionais. 8 Segundo a metodologia empreendida pelo estudo, as práticas dos Estados foram observadas nos atos verbais (manuais militares, legislação nacional, jurisprudência nacional, doutrina militar, manifestações diplomáticas, assessoramentos jurídicos oficiais etc.) e nos atos materiais (comportamento no campo de batalha, emprego de certas armas e o tratamento concedido às categorias de pessoas envolvidas no conflito) (HENCKAERTS; DOSWALD-BECK, 2006). 9 Há que se recordar que no Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra estão incluídos, na categoria de CAI, os conflitos armados em que os povos lutam contra a dominação colonial, a ocupação estrangeira e os regimes raciais, no exercício do direito dos povos à autodeterminação (CICV, 1998). 8 Já um CANI 10 , nos termos conclusivos do CICV (2008, p. 6, grifo do autor), resta assim definido: Conflitos armados não internacionais são confrontos armados prolongados que ocorrem entre forças armadas governamentais e forças de um ou mais grupos armados, ou entre esses grupos, que surjam no território de um Estado [parte das Convenções de Genebra]. Os confrontos armados devem atingir um patamar mínimo de intensidade e as partes envolvidas no conflito devem apresentar um mínimo de organização. Dessa feita, o âmbito de aplicação do DIH será somente durante CAI ou CANI. 3. CONFLITO ARMADO NÃO INTERNACIONAL A acepção dada a este conflito, consoante o art. 3º comum às Convenções de Genebra e o seu Protocolo II adicional (GPII), traz algumas questões jurídicas interessantes, que serão discutidas na seção 5. Nesta oportunidade, serão estudados os elementos materiais que caracterizam o CANI, propiciando a classificação adequada do conflito perante o DIH. 3.1 Primazia do fato Um aspecto relevante que carece de discussão refere-se à classificação de um conflito armado, pois da sua revelação depende a aplicação de determinado sistema de proteção específico do DIH. A classificação de um estado de beligerância, segundo Swinarski (1997), na comunidade internacional, pode ser implementada de três modos distintos: pelas Partes em conflito; pelos órgãos da comunidade internacional (Organização das Nações Unidas, por exemplo); e pelo CICV. Contudo, afirma que esses modelos não são consistentes pelas razões as seguir. No tocante ao primeiro modo, evidenciou-se, no conflito do Atlântico Sul, que as Partes (Argentina e Reino Unido) não conseguiram classificá-lo oficialmente. Um dos motivos para tal indecisão residia nas relações dos contendores, individualmente, com os Estados Unidos, no âmbito do sistema de pactos e de alianças internacionais e, por conseguinte, nas obrigações de assistência correlatas. 10 As referências jurídicas sobre CANI encontram-se no 2º artigo comum à Convenções de Genebra e no 1º artigo do Protocolo II Adicional às Convenções de Genebra. 9 Já o entendimento sobre a classificação encarregada aos órgãos da comunidade internacional, também, convergiria aos problemas análogos àqueles concernentes aos pactos e às alianças internacionais, redundando em paralisia do processo. E por fim, a neutralidade inerente ao CICV torna-o incompatível com essa atividade, haja vista o caráter eminentemente político da qualificação de um conflito armado para comunidade internacional. Logo, conclui o autor, que, ante o viés político subjacente aos três procedimentos, prepondera o estado de fato 11 para determinar o âmbito de aplicabilidade do DIH (CAI ou CANI). Quanto ao exame do estado de fato, há precedente no TPII como lecionou Koutroulis (2014), em aula ministrada no Centre d'Etude de Droit Militaire et de Droit de la Guerre, quando analisou a situação na Líbia (de 15 fevereiro a 10 março de 2011) e na Síria (de 18 março de 2011 a 27 de maio de 2012), à luz dos fatores indicativos 12 estabelecidos pela jurisprudência daquele tribunal, expostos a seguir 13 . Primeiro, as partes em conflito devem ter um mínimo de organização. Essa característica compreende: a existência de um quartel general; a existência de uma estrutura hierárquica; a transmissão de ordens militares; a existência de teatro de operações definidos; a capacidade de adquirir, transportar e distribuir as armas; a resistência aos ataques inimigos; e a realização de ofensivas bem-sucedidas. Por fim, o nível mínimo de intensidade das hostilidades caracteriza-se pela escalada das ofensivas armadas; pela gravidade dos ataques; pela propagação de confrontos sobre um território, num dado período; pelo reforço dos efetivos das forças opostas; e pelo fato de o conflito ter sido objeto de uma análise ou resolução de 11 “[...] é oportuno partir-se de um estado de fato para determinar esse âmbito, porque segundo os atuais procedimentos de classificação nos quais deveriam ser levados em conta, em primeiro lugar, os elementos jurídicos, levam-se em consideração sobretudo elementos políticos, tornando-os inoperantes. E se chegarmos à conclusão de que são os fatos que constituem a situação de conflito armado internacional, seja qual for a classificação dada, por razões políticas, a este fato, e se postularmos que o conjunto do direito internacional humanitário em vigor é aplicável nesse caso[...] ” (SWNARSKI, 1998, p. 34-35, grifo nosso). 12 Neste artigo, usa-se o termo elementos materiais como homologo a fatores indicativos. 13 Na aula em comento, não foram apresentados critérios para a qualificação da duração prolongada de um conflito, mas infere-se da decisãodo TPII que este caráter deve ser identificado pelas circunstâncias do fato, conforme se segue: “(...) Les combats entre les diverses entités au sein de l'ex-Yougoslavie ont commencé en 1991, se sont poursuivis durant l'été 1992 quand les crimes présumés auraient été commis et continuent à ce jour. En dépit de divers accords provisoires de cessez-lefeu, aucune conclusion générale de la paix n'a mis un terme aux opérations militaires dans la région. Ces hostilités excèdent les critères d'intensité applicables aux conflits armés tant internes qu'internationaux. On a observé un conflit prolongé, sur une grande échelle, entre les forces armées de différents Etats et entre des forces gouvernementales et des groupes de rebelles organisés” (UNITED NATIONS, 1995, grifo nosso). 10 organismos internacionais, Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) ou Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). 3.2 Distúrbios e tensões internos As hostilidades de um CANI atingem um nível mínimo de intensidade (patamar mínimo). Algumas situações interiores aos Estados possuem, em certa medida, um grau de instabilidade, mas não demonstram um índice de violência suficiente para caracterizar um conflito armado. Tais circunstâncias são conhecidas como distúrbios interiores e tensões internas. Swinasrki (1997) argumenta que uma situação de distúrbio interior (ou interno) ocorre quando num Estado existe um conflito que apresente certa gravidade ou duração e que implique atos de violência, porém, sem caracterizar uma contenda armada. As manifestações relevantes desses fenômenos podem apresentar-se na forma de rebeliões; lutas entre grupos mais ou menos organizados; ou confrontos entre esses grupos e as autoridades constituídas. Nesses casos, comenta que se observa o recurso a numerosas forças policiais, inclusive, às forças armadas, para o restabelecimento da ordem, redundando num grande número de vítimas. No tocante às tensões internas, ressalta ainda que estão num nível inferior de violência em relação aos distúrbios interiores. Tal entendimento é compartilhado por Vité (2009), que vê as tensões internas como circunstâncias de menos violência, tais quais: prisões em massa, elevado número de detidos políticos, prática de tortura, desaparecimento forçado e perda das garantias fundamentais 14 . A importância de identificar os fatores indicativos de cada situação, para, então, defini-la adequadamente, deve-se à necessidade de respeitar o regime jurídico de aplicação ao caso concreto 15 . Logo, não se deve confundir distúrbios e tensões internos com CANI. 14 Swinarski (1998, p. 63) adverte que “(...) a situação de tensões internas pode apresentar todas as características ao mesmo tempo; mas é suficiente que apresente apenas uma delas para que possa ser classificada com tal”. 15 No GPII, prescreve-se que não se aplica o protocolo nos casos de tensão e distúrbios internos (CICV, 1998). 11 3.3 Aspectos operacionais de CANI Foram estudadas as características de fato que definem uma situação como um conflito de índole não internacional ou afastam-na dessa concepção, à luz dos elementos aceitos pelas leis e pelos tribunais internacionais. Entretanto, a abordagem deve se estender além da classificação ou da qualificação do conflito. Conhecer as algumas nuanças do campo operacional desse tipo de conflito significa ter uma compreensão concreta desse ambiente, onde se dão as hostilidades, ajudando o entendimento do fenômeno, em especial, aqueles relacionados às violações das Convenções de Genebra 16 . Para tal fim, aproximou-se o conceito de CANI ao da guerra irregular e assimétrica, sem perscrutar o tema em sua totalidade, mas, o suficiente para radiografar minimamente o ambiente operacional de um conflito interno. Os conflitos internos, por vezes, ocorrem em condições de guerra assimétrica 17 , haja vista o confronto de grupos armados e forças regulares, detentoras de capacidades esmagadoramente superiores. A significativa diferença entre os poderes militares em contraste leva a parte mais fraca a valer-se de táticas típicas da guerra irregular 18 , isto é, ações de guerrilha. A guerra de guerrilha, como aponta Visacro (2009), desenvolve-se por forças preponderantemente locais que agem de forma ostensiva e coberta e com o apoio da população. Depreende-se dessa visão de guerrilha que os seus combatentes estão imbricados com a população civil e com ela confundem-se 19 . Nessa esteira, Bernard (2011, p. 6) 16 Cada conflito tem um ambiente operacional e uma conduta nas hostilidades específicos, contudo é de bom alvitre trazer a impressão de Napoleoni (2015, p. 121) sobre os conflitos armados atuais, na Síria e no Iraque: “Em nenhum desses conflitos existem trincheiras, campos de batalha e nem sequer a observância ou o respeito a regras internacionais que, até certo ponto, estabeleciam códigos de conduta e limites ao comportamento de seus combatentes. A Convenção de Genebra foi atirada na lata de lixo”. 17 “Conflito armado que contrapõe dois poderes militares que guardam entre si marcantes diferenças de capacidades e possibilidades. Trata-se de enfrentamento entre um determinado partido e outro com esmagadora superioridade de poder militar sobre o primeiro. Neste caso, normalmente o partido mais fraco adota majoritariamente técnicas, táticas e procedimentos típicos da guerra irregular” (BRASIL, 2007, p. 125, grifo nosso). 18 “Conflito armado executado por forças não regulares ou por forças regulares empregadas fora dos padrões normais da guerra regular, contra um governo estabelecido ou um poder de ocupação, com o emprego de ações típicas da guerra de guerrilhas” (BRASIL, 2007, p. 126, grifo nosso). 19 No GPI, art. 44, parágrafo 3º, prescrevem-se as regras de distinção dos combatentes da guerrilha em ralação aos civis, conforme os comentários ao protocolo (EBERLIN et al, 1986). 12 lembra que a assimetria das forças conduz os grupos armados 20 a seguirem a estratégia maoísta, segundo a qual a guerrilha deve evoluir entre a população civil (“comme un poisson dans l’eau”), o que redunda na indistinção dos civis e na sua exposição à violência de contra-ataques ou represálias governamentais. Assim, dado que os grupos armados misturam-se com a população, Bernard (2011) observa um dilema submetido às forças regulares: atacar os insurgentes sem causar perdas maciças na população ou cometer crimes de guerra despertando hostilidade na população civil. Contudo, aponta que, diante dessa situação, o uso pelas forças armadas de táticas brutais contra a guerrilha, herdadas das guerras coloniais, busca neutralizar o apoio dado pela população local ao “vider le bocal pour tuer le poisson”. Enredada nessa violência, conforme menciona o International Committee Of The Red Cross (ICRC), a população civil não poderia ter outro destino senão ser o alvo primário dos confrontos, no seio dos conflitos armados não internacionais, conforme divulgado pelo relatório de 2010 (ICRC, 2010). 4 ATAQUES INDISCRIMINADOS A população civil, notadamente, no curso da história dos conflitos armados, sofre todo o tipo de violação aos seus direitos. À luz do que foi exposto na seção 3.3, o ambiente das contendas internas é o local onde ações de “vider le bocal pour tuer le Poisson” são perpetradas. Isso sugere, entre outras possibilidades, que o verdadeiro alvo militar não está distinguido em relação à população civil, ensejando ataques contra alvos indeterminadosnas concentrações urbanas. No relatório de 2014, que trata do seu trabalho em áreas de interesse 21 e das ações para promover o DIH, o ICRC (2014) identificou que mulheres e crianças são mortas ou feridas em decorrência de ataques indiscriminados; que as crianças são testemunhas da morte de seus pais em decorrência de ataques indiscriminados; e que violações aos DIH, entre elas os ataques indiscriminados, resultam em deslocamentos dos civis. 20 Bernard (2011) denomina-os como as organizações que não estão sob o comando ou controle de Estado, mas participam de conflitos armados. Adverte que contemporaneidade não permite fixar apenas uma definição, em razão da complexidade dos conflitos e da diversidade desses grupos. 21 Nesta nota, citam-se alguns dos países que foram mencionados no relatório, onde o CICV opera: Afeganistão, Colômbia, República Democrática do Congo, Iraque, Líbano, Mianmar, Somália, Sri Lanka e Síria. 13 No mesmo documento, o CICV insta às Partes envolvidas nos conflitos a respeitar as normas de DIH, entre elas a proibição de realizar ataques indiscriminados, como por exemplo, o emprego de explosivos em áreas densamente povoadas. Nesse contexto hostil, as mazelas advindas dos ataques indiscriminados justificam o seu estudo no âmbito das contendas internas. Entender esse fenômeno e as proibições correlatas passa pela necessidade de compreender primeiramente os princípios reitores do DIH. 4.1 Princípios reitores do DIH ou princípios humanitários Os princípios humanitários são as normas que informam as leis do DIH, definindo regras que devem ser observadas independentemente de convenção, haja vista o caráter costumeiro que lhes é conferido, conforme argumentado na seção 2.2. Em consonância ao que já foi exposto, o DIH limita o uso da violência, nos conflitos armados, para proteger as pessoas afetadas pela situação de beligerância e para restringir o nível do emprego da violência àquele unicamente necessário para atingir o objetivo militar de enfraquecer a capacidade militar do adversário. E partir dessa definição são delineados os princípios de base do DIH (SASSÒLI et al, 2012). 4.1.1 – Princípio da humanidade Segundo Blishenko (1984 apud Mello, 1997, p. 148), o princípio da humanidade ‘[...] engloba todos os aspectos do comportamento dos beligerantes nos conflitos armados [...]’, ressaltando que o uso da força deve corresponder ao emprego necessário. Ao encontro da assertiva acima, entende-se que esse princípio forma a estrutura normativa do DIH (regras de conduta das hostilidades), permeando toda a malha de regras convencionais e consuetudinárias. Vale dizer que em cada disposição da norma há o sentido do princípio da humanidade, que visa proteger a dignidade da pessoa humana. Henckaerts e Doswald-Beck (2006, p.64, tradução nossa) recordam que, no caso das activités militaires et paramilitaires au Nicaragua et contre celui-ci, a Corte Internacional de Justiça Corte Internacional de Justiça julgou que o artigo 3º comum às Convenções de Genebra refletem as ‘considerações elementares de humanidade’, que são um ‘mínimo’ aplicável a todos os conflitos armados. 14 Outras passagens do direito de Genebra e de Haia irradiam o princípio da humanidade, verbi gratia, o disposto no art. 12º da I Convenção de Genebra (GI), preconizando os cuidados com os combatentes feridos e enfermos: Serão tratados com humanidade pela Parte no conflito que tiver em seu poder, sem nenhuma distinção de caráter desfavorável baseada no sexo, raça, nacionalidade, religião, opiniões políticas ou qualquer outro critério análogo. É estritamente interdito qualquer atentado contra a sua vida e pessoa e, em especial, assassiná-los ou exterminá-los, submetê-los a torturas, efetuar neles experiências biológicas, deixá-los premeditadamente sem assistência médica ou sem tratamento, ou expô-los aos riscos do contágio ou de infecção criados para este efeito (CICV, 1992, p. 23, grifo nosso). Depreende-se do excerto que o tratamento com humanidade está calcado no respeito da dignidade humana 22 . Nesse diapasão, pode se concluir em Peytrignet (1996) 23 que, se as partes em conflito apenas infligirão aos seus adversários danos proporcionais ao objetivo da guerra (princípio geral), será concedido um tratamento humano em relação àquelas pessoas que estão fora de combate ou não participam diretamente das hostilidades. 4.1.2 Princípio da distinção Este princípio emana da regra fundamental, instituída no art. 48 do Protocolo I adicional às Convenções (GPI), e visa assegurar o respeito e a proteção da população civil e dos bens de caráter civil (CICV, 1998). Dispõe, para os conflitos armados internacionais, sobre o imperativo da distinção entre a população civil e os combatentes, assim como entre os bens de caráter civil e os alvos militares 24 (objetivos militares), quando da execução de operações bélicas. Determinando, por fim, que essas operações sejam direcionadas unicamente a alvos militares e proibindo alvejar a população civil e os bens de caráter civil. Ademais, de acordo com esse princípio, qualquer um envolvido em um conflito armado deve distinguir entre combatentes e civis (SASSÒLI et al, 2012) 25 . 22 Essa regra funciona para os casos de CAI e CANI, conforme GPI e GPII (CICV, 1998). 23 Nesta lição, Peytrignet (1996, p. 136) refere-se ao princípio geral que informa os tratados dos direitos de Genebra e de Haia. Princípio, onde o objetivo da guerra é destruir ou debilitar a capacidade militar do inimigo 24 O GPI menciona objetivos militares para designar alvos. Neste trabalho, optou-se pela denominação de alvos militares, a fim de discernir da acepção doutrinária dada aos objetivos militares que são afetos aos níveis de decisão da guerra, conforme Brasil (2012). 25 Segundo os autores, o processo de “civilianisation” (grupos armados e empresas militares e de segurança privadas) desafia o princípio da distinção. 15 Henckaerts e Doswald-Beck (2006) relatam a natureza de direito costumeiro dessa regra, no âmbito dos conflitos armados internacionais e não internacionais 26 , consoante a prática dos Estados. 4.1.3 Princípio da necessidade militar A necessidade militar encontra-se presente no §2º, art. 52 do GPI. Perfilando-se à distinção, determina que os ataques devem ser dirigidos contra alvos militares que tragam uma vantagem militar 27 precisa, nos seguintes termos: Os ataques devem ser estritamente limitados aos objetivos militares. No que respeita aos bens, os objetivos militares são limitados aos que, pela sua natureza, localização, destino ou utilização contribuam efetivamente para a ação militar e cuja destruição total ou parcial, captura ou neutralização ofereça, na ocorrência, uma vantagem militar precisa (CICV, 1998, p. 42, grifo nosso). Outro exemplo do GPI é citado por Mello (1997). No art. 56 e seguintes, observa- se que a proteção contra ataques consignada a obras e edificações contendo forças perigosas (usinas nucleares, represas etc.) cessa em caso de necessidade militar de interromper apoio regular, significativo e direto, provido por essas instalações às operações militares, mas somente se os ataques forem a única forma efetiva de eliminar esse suporte. Henckaerts e Doswald-Beck (2006) comentam a respeito da cessação da proteção contra ataques dos bens culturais em caso de necessidade militar imperiosa, nos termos do II Protocolo à Convenção de Haiade 1954, quando esses bens por suas funções tornarem-se alvos militares e quando não há outra solução possível para obter uma vantagem militar equivalente à oferecida por uma ação dessa natureza 28 . 26 No GPII, há disposição expressa apenas da proteção da população civil, conforme o art. 13º (CICV, 1998), o que, prima facie, afastaria a proteção aos bens de caráter civil aos conflitos internos. Entretanto, Henckaerts e Doswald-Beck (2006) articulam pela prática dos Estados a proteção desses bens em conflitos dessa índole. 27 Da leitura desse dispositivo entende-se que vantagem militar decorre do efeito (destruição, captura ou neutralização) obtido sobre o alvo, contribuindo para a ação militar. E da interpretação da doutrina da Força Aérea Brasileira (Brasil, 2012, p. 42) extrai-se que os efeitos são aqueles de interesse dos objetivos militares, a saber: “O somatório dos efeitos causados pelas Tarefas e pelas Ações contribui para a consecução dos objetivos da campanha ou operação militar e para o alcance do estado final desejado”. 28 Argumentam ainda que um ataque contra bens de natureza civil é um criem de guerra, salvo se essa ação for comandada por imperiosa necessidade do conflito (militar). 16 Portanto, pode deduzir-se que necessidade militar justifica ataques em razão da conquista de uma vantagem militar que se pretende adquirir no campo de batalha 29 e que contribua para os objetivos militares. 4.1.4 Princípio da limitação As regras fundamentais do emprego de métodos e meios de guerra expressam a limitação do uso do poder bélico à qual se sujeita as partes beligerantes. Esse regramento está prescrito no art. 35 do GPI, a saber (CICV, 1998): em conflitos armados 30 o direito de as Partes contendoras de escolherem os métodos ou meios de guerra não é ilimitado; é proibido usar métodos ou meios de guerra que causem danos supérfluos ou sofrimentos desnecessários; e é proibido utilizar métodos ou meios (armas, projéteis e materiais) de guerra concebidos para causar, ou que se presume que irão causar, danos extensos, duráveis e graves ao meio ambiente natural. Resume-se o princípio à limitação ao direito de escolha dos métodos e meios e à proibição de emprega-los para causarem danos supérfluos aos bens e sofrimentos desnecessários aos combatentes. Henckaerts e Doswald-Beck (2006) citam que alguns tratados internacionais são informados por esse princípio, v. g. a Convenção de 1980 sobre a proibição ou a limitação do emprego de certas armas convencionais. Nessa linha de pensamento, observa-se que os protocolos à citada convenção denotam o sentido do princípio, como por exemplo (CICV, 2001): a proibição de ferir por meio de fragmentos que, no corpo humano, não são detectáveis por raio x (Protocolo I); e a proibição ou restrição ao emprego de armas incendiárias (Protocolo III). 29 Nesse sentido, ao tratar da necessidade militar, o Manual de Direitos Internacional dos Conflitos Armados do Ministério da Defesa (BRASIL, 2011, p. 15) contempla que “(...) em todo conflito armado, o uso da força deve corresponder à vantagem militar que se pretende obter”. 30 Sejam eles de natureza internacional ou não internacional (HENCKAERTS E DOSWALD-BECK, 2006). 17 4.1.5 Princípio da proporcionalidade De acordo com Henckaerts e Doswald-Beck (2006), a proporcionalidade resta formulada no art. 51, §5 b do GPI 31 , nos seguintes termos: Os ataques de que se possa esperar que venham a causar incidentalmente perda de vidas humanas na população civil, ferimentos nas pessoas civis, danos nos bens de caráter civil ou uma combinação destas perdas e danos, que seriam excessivos relativamente à vantagem militar concreta e direta esperada (CICV, 1998, p. 40). Em outras palavras, denomina-se proporcionalidade dos ataques quando esses correspondem a uma vantagem militar concreta e direta esperada, sem ocasionar danos colaterais 32 excessivos em relação a essa vantagem. Observa-se, então, que proporcionalidade está relacionada à necessidade militar 33 . Por fim, outro aspecto relevante é trazido ao conhecimento por Henckaerts e Doswald-Beck (2006), quando lecionam que o GPII não cuida da aplicação da proporcionalidade nos ataques em conflitos internos, mas argumentam que obediência desse princípio, em CANI, vai ao encontro do respeito ao imperativo da humanidade, conforme prescreve preâmbulo protocolar. 4.2 Proibição de ataques indiscriminados No DIH, aplicável ao CAI, foram listadas ações militares proibidas por caracterizarem ataques indiscriminados 34 (normas proibitivas). Segundo os § 4º e §5º, art. 51 do GPI (CICV, 1998), elas estão assim designadas como: a) ações militares não dirigidas contra um alvo militar determinado; b) ações militares cujos métodos e meios de combate empregados não possam ser dirigidos contra um alvo militar determinado; 31 Tem-se, ainda, a manifestação desse princípio no art. 57, §2 a (iii) do GPI, ao determinar-se a abstenção de um ataque desproporcional (danos colaterais excessivos), conforme CICV (1998, p. 46). 32 Danos colaterais são um conceito empregado pela doutrina militar (BRASIL, 2011) e jurídica (Deyra, 2001) para representar as perdas de vidas humanas na população civil e danos em bens de caráter civil, ocorridos incidentalmente por ataques. 33 Segundo Blishchenko (1984, p. 300 apud Mello, 1997, p. 149), o GPI ‘subordina a necessidade militar em proporcionalidade’. Então, Mello (1997, p. 149) conclui que “[...] não se pode invocar o princípio da necessidade militar se as perdas para a população civil e os danos aos bens de caráter civil forem excessivos ‘em relação a vantagem militar concreta e esperada’”. 34 Ao comentar o § 4º, art. 51 do GPI, Eberlin et al (1986) salientam que esse dispositivo confirma as práticas detestáveis de ilegalidade utilizadas durante a Segunda Grande Guerra e os conflitos armados posteriores. Advertem, ainda, que, com muita frequência, os ataques foram concebidos para destruir toda a vida em uma área específica ou para arrasar uma cidade, sem obter vantagem militar substancial, na maioria dos casos. 18 c) ações militares em que os efeitos gerados pelos métodos e meios de combate não sejam limitados; d) bombardeios, independentemente do método e meio utilizado, que tratem como alvo militar único certo número de alvos, nitidamente separados e distintos, localizados em áreas de concentração de civis ou de bens de caráter civil (bombardeios maciços ou bombardeio de zonas); e e) ações militares das quais se possam esperar danos colaterais excessivos em relação à vantagem militar concreta e direta esperada 35 . Argumentam Henckaerts e Doswald-Beck (2006) que as designações, inscritas nas alíneas a, b e c, representam uma aplicação dos princípios da distinção e da necessidade militar. No tocante a alínea a, entende-se que os ataques são levados contra alvos militares não identificados ou mal identificados 36 . A leitura da alínea b enseja a ideia de imprecisão do armamento empregado em certas condições 37 , na mesma linha de raciocínio trazida por Henckaerts e Doswald- Beck (2006, p. 324), ao tratarem da aplicação da regra de proibição de empregar “des armes qui sont de nature à frapper sans discrimination”. A terceira designação proíbe o uso de métodos e meios de combate, cujos efeitos não sejam limitados. Isso pode ser caracterizado pela perda do controle dosefeitos de um ataque realizado contra um determinado alvo militar, mas atingindo também a população civil, como por exemplo, o emprego de armas biológicas 38 (HENCKAERTS E DOSWALD- BECK, 2006). Outro aspecto a considerar, além da natureza dos meios de guerra – como mostrado na ilustração acima – é o poder das armas. O lançamento de uma bomba de 10 toneladas, empregada para destruir um único edifício, corre o risco produzir efeitos amplos, como danos em edifícios vizinhos. Enquanto, um míssil menos poderoso seria suficiente para destruir o edifício (EBERLIN et al, 1986). 35 Adverte-se que a quarta e quinta alíneas estão previstas no §5º, debaixo da expressão: ataques considerados como efetuados sem discriminação. Isso não quer dizer, segundo Eberlin et al (1986), que não figuram no rol de ataques indiscriminados proibidos. 36 Eberlin et al (1986) comentam que são os dados de inteligência que orientam a definição dos alvos militares. Assim, essas informações, ao menos, deverão ser precisas e recentes. 37 Sobre esse dispositivo, Eberlin et al (1986) exemplificam o caso dos foguetes V2, empregados no final da Segunda Guerra Mundial, demasiadamente imprecisos. 38 Ressalta-se que o uso de armas biológicas é proibido, nos termos do Protocolo de Genebra de 1925 (CICV, 2001). 19 Com o propósito de conter ações análogas àquelas praticadas na Segunda Grande Guerra – e em certos conflitos mais recentes –, quando se praticaram bombardeios maciços (ou bombardeio de zonas) que visavam matar qualquer forma de vida, presente numa região, e destruir as edificações nela existentes, erigiu-se a vedação consignada na alínea d (EBERLIN et al, 1986). Aqui, observa-se a violação da norma do princípio da distinção e da necessidade militar, visto que a população civil e os alvos militares não eram distinguidos, por conseguinte, não se buscava uma vantagem militar. E por fim, o último viés proibitivo dado aos ataques sem discriminação reside no equilíbrio entre a vantagem militar esperada e os danos colaterais resultantes do ataque. Será proporcional o ataque do qual os danos colaterais não sejam excessivos em relação à vantagem militar, mas, se excessivos, será tido como desproporcional, o que não permitido. Eberlin et al (1986) defendem a satisfação de três requisitos para a realização dos ataques legítimos: alvo militar; meios apropriados; e efeitos limitados à vantagem militar esperada. Então, advertem que, cumpridas essas condições, é necessário que as perdas civis e os danos não sejam excessivos 39 . Entretanto, concluem que qualquer planejamento sobre a proporcionalidade entre os danos colaterais e a vantagem militar enfrenta um problema delicado: algumas situações são inequívocas, enquanto em outras, haverá hesitação. Em tais casos, a proteção à população civil deve ter precedência. 5 REGULAÇÃO JURÍDICA DO CANI O CANI como já se sabe possui características conceituais. O reconhecimento dos fatores indicativos dar-lhe-á a devida qualificação e, por conseguinte, autorizará a aplicação de normas jurídicas próprias. O 3º artigo comum às Convenções de Genebra e o GPII são as regras convencionais que regem os conflitos internos. Entretanto, na lacuna dessas disposições, aplica-se o DIHC. 39 No mesmo sentido, ficou registrado, no Expert Meeting, capitaneado pelo CICV, em 2015, intitulado de Explosive Weapons in Populated Areas: Humanitarian, Legal, Technical and Military Aspects (EXPERT..., 2015), que, independentemente dos tipos de armas à sua disposição, as forças armadas continuarão vinculadas à proibição de ataques indiscriminados e às regras de proporcionalidade e precaução, quando visarem aos alvos militares em áreas povoadas. 20 Nesta seção, coube identificar o regramento de DIH que proíbe os ataques indiscriminados, no âmbito de um CANI. 5.1 Regras convencionais do DIH Os conflitos internos são regulados pelas Convenções de Genebra (art. 3º comum) e pelo GPII. Entre esses sistemas de proteção residem diferenças no âmbito de aplicação (requisitos ou elementos materiais de classificação), ensejando a incidência de cada norma em função da conformidade com os requisitos. No art. 3º comum às Convenções de Genebra, a concepção de CANI é ampla, pois se limita a prescrevê-lo somente como um conflito armado de caráter não internacional 40 – o que denota a necessidade de uma leitura contrario sensu do art. 2º comum 41 –, de ocorrência em território das Altas Partes Contratantes42. Por outro lado, o âmbito de aplicação das regras do GPII é mais específico e, por conseguinte, mais restrito, pois se preocupou em: delimitar os limiares superiores e inferiores da situação de CANI 43 ; estabelecer os elementos de sua definição 44 ; e preservar a existência do art. 3º comum. Peytrignet (1996) assegura que se aplica o art. 3º comum às Convenções (mini- tratado humanitário) em todos os conflitos armados sem caráter internacional, entretanto, em algumas situações, emprega-se, concomitantemente, o GPII, desde que esteja vigente no sistema jurídico do país em questão e que alguns requisitos materiais sejam atendidos. 40 Os elementos constitutivos do conceito de CANI são definidos com menos precisão, o que permite uma aplicação mais ampla das disposições desse sistema de proteção. Assim, o art. 3º comum é considerado como uma “miniconvenção” dentro das Convenções e tem aplicação em todas as situações nas quais os conflitos não tenham caráter internacional e ocorram em território de umas das Partes signatárias. Não é por acaso essa amplitude, visto que se intenta integrar ao direito internacional convencional a maior proteção que se possa outorgar às vitimas de conflitos aramados (SWINARSKI, 1998). 41 Este artigo define o campo de aplicação das Convenções de Genebra ao estabelecer o conceito de CAI, a saber: “[...] a presente Convenção aplicar-se-á em caso de guerra declarada ou de qualquer outro conflito armado que possa surgir entre duas ou mais das Altas Partes contratantes, mesmo que o estado de guerra não seja reconhecido por uma delas. A Convenção aplicar-se-á igualmente em todos os casos de ocupação total ou parcial do território de uma Alta Parte contratante, mesmo que esta ocupação não encontre qualquer resistência militar [...]” (CICV, 1992, p. 19). 42 Esse aspecto perde sua importância prática, uma vez que as Convenções têm caráter universal (CICV, 2008), determinando a aplicação desses tratados internacionais em todos os países. 43 A situação de CANI fica localizada entre o nível superior e o nível inferior. Segundo Eberlin et al (1986), aquele reside no conceito de CAI, expresso no art. 2º comum às Convenções; este, nas definições de distúrbios interiores e tensões internas. 44 No tocante aos elementos relacionados aos insurgentes: comando responsável; controle de uma parte do território que permita conduzir operações militares contínuas e concertadas; e capacidade para aplicar o Protocolo (EBERLIN et al, 1986). 21 Nesse diapasão, Swinarski (1998) conclui que o art. 3º comum é aplicável em todas as situações de conflito armado não internacional, em razão de sua amplitude. Entretanto, em alguns casos, haverá a simultaneidade das disposições da “miniconvenção” e do Protocolo, conforme Vité (2009) e Eberlin et al (1986) . Assim, o CANI ficará sujeito também ao regramento do Protocolo 45 , quando observadas na situação algumas condições constitutivas,previstas no §1º, art. 1º do GPII, a saber: o controle territorial e os contendores envolvidos. Isto é, as partes não governamentais devem exercer um controle territorial que lhes permita levar a cabo operações militares continuas e organizadas; e os embates dão-se entre as forças armadas do Estado e forças armadas dissidentes ou outros grupos armados organizados (CICV, 2008). Logo, a contenda interna, mutatis mutandis, será regulada simultaneamente pela “miniconvenção” e pelo Protocolo se na situação houver território sobre o controle dos dissidentes, de modo a permitir-lhes a realização de operações militares; e se os embates ocorrerem entre as forças armadas governamentais e as forças armadas dissidentes, ou entre aquelas e os grupos armados. Mas, se as contendas internas forem conduzidas entre grupos armados, apenas o art. 3º comum será aplicado, conforme a lição de Vité (2009), ao explicar que o GPII não contempla o conflito entre apenas grupos armados não governamentais. Por fim, cumpre verificar que a condição ratione loci determina que as disposições do art. 3º comum às Convenções e do GPII deverão ser observadas pelas Altas Partes Contratantes (VITÉ, 2009), recordando que o mini-tratado possui aplicação erga omnes, haja vista sua natureza universal. 45 Vité (2009) e Eberlin et al (1986) explicam a simultaneidade de aplicação de ambos os sistemas de proteção, argumentando que o campo de aplicação do art. 3º comum, mais amplo, abarca, o do Protocolo, mais restritivo. Ressalta-se também que o GPII completa e desenvolve o art. 3º comum, sem comprometer sem modificar suas condições atuais de aplicação (CICV, 2008). 22 5.1.1 Sistema de proteção do art. 3º comum Ficou patente que as disposições do mini-tratado são aplicáveis em todas as situações de contendas internas. Essas normas, segundo, Swinarski (1997) expressam uma proteção mínima que é devida ao ser humano, em qualquer tempo ou lugar. Esse mínimo tratamento, continua o autor, é garantido a todas as pessoas que não participam ou deixaram de participar das hostilidades, abrangendo, assim, os membros das forças armadas e outras pessoas que tenham ficado fora do combate. Então, na situação de CANI, o conteúdo do padrão mínimo de tratamento humano, disposto no art. 3º comum, proíbe, verbi gratia: os atentados contra a vida e integridade física, especialmente o homicídio sob todas as formas, as mutilações, os tratamentos cruéis, torturas e suplícios; a tomada de reféns; as ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes; e as condenações e as execuções sem prévio julgamento, realizado por um tribunal regularmente constituído, que ofereça todas as garantias judiciais reconhecidas como indispensáveis pelos povos (SWINARSKI, 1997). Observa-se que o mínimo de tratamento, disposto no art. 3º comum (sistema de proteção), não dispõe sobre as normas que vedam os ataques indiscriminados. 5.1.2 Sistema de proteção do GPII O sistema protetivo do Protocolo, em síntese, relativamente a todos feridos, doentes e náufragos, preconiza o respeito, a proteção, o tratamento humano e a assistência médica sem qualquer discriminação. Abarca também o serviço sanitário, suas equipes, seus equipamentos e suas instalações (SWINARSKI, 1997). Em relação às pessoas, que não participam diretamente ou deixaram de participar das hostilidades, e às crianças, esse sistema garante um tratamento humano assegurando direitos e proibindo ofensas (CICV, 1998). Feitas as considerações sintéticas acima – sem abordar a plenitude do conteúdo –, focaliza-se o sistema de proteção da população civil e dos indivíduos civis ao redor dos quais gravita o tema estudado. Nesse sistema de proteção, ficam proibidos ataques contra a população civil e os civis, bem como contra os bens indispensáveis à sobrevivência da população civil (gêneros alimentícios, zonas agrícolas, colheitas, gado, instalações e reservas de água 23 potável e as obras de irrigação), as obras e instalações contendo foças perigosas e os bens culturais e lugares de culto (CICV, 1998). Notadamente, bens de caráter civil não foram contemplados no sistema de proteção, exceto aqueles supramencionados (EBERLIN et al, 1986), tampouco proibiu- se, a exemplo do GPI, os ataques indiscriminados em suas cinco designações 46 , conforme lição de Henckaerts e Doswald-Beck (2006). 5.2 Regras costumeiras do DIH Até o momento, à luz do direito convencional, ficou evidenciado que, nos conflitos armados sem caráter internacional, não há disposição normativa que proíba os ataques indiscriminados. Como foi estudado na seção 2, as fontes do DIH funcionam como o repositório de regras reguladoras dos conflitos armados. Visto que o direito emanado do art.3º comum às Convenções e do GPII não vedam as ações relacionadas aos ataques em questão, cumpre perscrutar se o direito consuetudinário responde a essa necessidade, uma vez que o costume tem a função de preencher as lacunas deixadas pelo direito convencionado. Em resposta a essa indagação, Henckaerts e Doswald-Beck (2006) observam que a proibição de: ataques não dirigidos contra um alvo militar determinado; ataques cujos métodos e meios de combate empregados não possam ser dirigidos contra um alvo militar determinado; e ataques em que os efeitos gerados pelos métodos e meios de combate não sejam limitados, é de natureza costumeira, aplicável nas situações de CANI, e apoia-se na jurisprudência da Corte Internacional de Justiça e do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia. Concluem que a vedação de ataques indiscriminados representados por bombardeios maciços (ou bombardeio de zonas) também é uma norma de caráter consuetudinário 47 , incidente nas contendas internas. A proibição de ações militares, das quais se possam esperar danos colaterais excessivos em relação à vantagem militar concreta e direta esperada, encerra a regra da 46 De acordo com Henckaerts e Doswald-Beck (2006), a proibição de ataques indiscriminados figurava no projeto do GPII, mas foi abandonado como parte de iniciativas para permitir a adoção de um texto simplificado. 47 Os autores, segundo a metodologia por eles empregada, constataram a existência de manuais militares e instrumentos jurídicos que proíbem esse tipo de ação militar, em CANI. 24 proporcionalidade que não se encontra no GPII (HENCKAERTS E DOSWALD- BECK, 2006). Contudo, a proporcionalidade nos ataques é corolário do princípio da humanidade, que é invocado no preâmbulo desse Protocolo para preencher as eventuais lacunas, o que leva à compreensão de que a proporcionalidade não pode ser negligenciada nos conflitos internos. Logo, entre outras razões 48 , a proibição de ataques desproporcionais é acolhida pelo DIHC (HENCKAERTS E DOSWALD-BECK, 2006). Portanto, conclui-se que, apesar do hiato deixado pelo sistema de proteção do art. 3º comum e do GPII, ao não regularem a vedação dos ataques indiscriminados, o Direito Internacional Humanitário Costumeiro dispõe a norma proibitiva erga omnes, que impede a realização desses ataques nas suas cinco versões, no âmbito dos conflitos armados não internacionais. Este desfecho vai ao encontro da lição de Kellenberger (2006) que afirmou que o DIHC atende às necessidades de proteção relacionadas aos conflitos armados não internacionais, que foram minimamente regulamentados e não respondidas pelos tratados internacionais. Por derradeiro, conclui-se que as regras de DIH que vedamos ataques indiscriminados, nos conflitos internos, são aquelas emanadas do DIHC. 6 CONCLUSÃO Haja vista a perplexidade advinda da observação de atos de violência, principalmente, contra a população civil, em conflitos internos, em especial aqueles ocorridos no Oriente Médio, este artigo teve o objetivo de fazer uma aproximação teórica para conhecer as regras do DIH que proíbem os ataques indiscriminados, nos conflitos armados não internacionais. Para tanto, o trabalho dispôs de quatro seções, onde pode se discorrer sobre o DIH, o CANI, os ataques indiscriminados e a regulação jurídica, de modo a articular as ideias que propiciassem uma conclusão correspondente ao objetivo posto. 48 Segundo o método utilizado em sua pesquisa, Henckaerts e Doswald-Beck (2006) verificaram a existência de manuais militares e instrumentos jurídicos que proíbem ataques desproporcionais, em CANI, bem como normas estatais que os consideram uma infração. 25 Assim, no primeiro momento dissertou-se sobre o DIH, suas fontes convencionais, suas fontes costumeiras e o seu âmbito de aplicação, identificando-se as origens do direito e, especialmente, seu campo de incidência (CAI e CANI). Em seguida, examinou-se o conflito armado de caráter não internacional, concluindo-se que a sua classificação corresponde aos fatos constitutivos da situação, tais como: a organização das partes contendoras e o nível mínimo de intensidade das hostilidades. Nesse contexto, foi necessário diferenciar a contenda interna dos distúrbios e das tensões internos. Ao final, foi apresentado o ambiente operacional do CANI, dando ensejo às circunstâncias militares onde se perpetram os ataques indiscriminados. Na seção 4, depois de discutidos aspetos materiais constitutivos do CANI, iniciou- se o exame dos ataques indiscriminados, a partir da constatação de sua recorrência no contexto das contendas internas. Seguiu-se com a abordagem dos princípios humanitários (humanidade, distinção, necessidade militar, limitação e proporcionalidade) para entender-se o fundamento das cinco normas proibitivas de ataques indiscriminados. Derradeiramente, foram analisados os sistemas de proteção do art. 3º comum às Convenções de Genebra e do GPII. Primeiro, estudou-se o campo de aplicação de cada sistema de proteção, quando constatou, em suma, que o mini-tratado abarca todos os conflitos internos sem caráter internacional e que o Protocolo, aqueles conflitos que preencham as condições materiais previstas. Ato contínuo, ficou claro que as disposições de ambos não vedavam a prática de ataques indiscriminados, deixando uma lacuna jurídica. Depois, analisaram-se as regras costumeiras e observou-se que esse regramento, ao preencher as brechas deixadas pelo direito convencional, com base nos estudos de Henckaerts e Doswald-Beck (2006), proíbe a realização de ataques indiscriminados em suas cinco versões. Portanto, para responder ao objetivo proposto, concluiu-se que as regras do direito costumeiro (DIHC) regulam a proibição de ataques indiscriminados, em conflitos armados não internacionais, conforme as conclusões de Henckaerts e Doswald-Beck (2006). 26 REFERÊNCIAS BERNARD, Vincent. Éditorial: comprende et dialoguer avec les groupes armés. Revue Internationale de la Croix-Rouge. Genève. v. 93 (selection française), 2011/2, 883, p. 5-14. Disponível em:< https://www.icrc.org/fre/resources/international-review/review- 883-engaging-armed-groups/index.jsp>. Acesso em: 08 set. 2015. BIERRENBACH, Ana Maria. O conceito de responsabilidade de proteger e o direito internacional humanitário. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011. BRASIL. Ministério da Defesa. Estado Maior de Defesa. Glossário das Forças Armadas. 4. ed. 2007. Disponível em: < http://www.defesa.gov.br/arquivos/File/legislacao/emcfa/publicacoes/md35_g_01_gloss ario_fa_4aed2007.pdf>. Acesso em: 15 set 2015. ______. Ministério da Defesa. Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. Manual de emprego do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) nas Forças Armadas. 1. ed. 2011. Disponível em: < http://www.defesa.gov.br/arquivos/File/legislacao/emcfa/publicacoes/md34_m_03_dica _1aed2011.pdf>. Acesso em 15 set. 2015. ______. Ministério da Defesa. Comando da Aeronáutica. Doutrina Básica da Força Aérea Brasileira. 2012. BUGNION, François. Droit international humanitaire coutumier. Revue suisse de droit international et européen. 2007/2, p. 165-214. Disponível em: <https://www.icrc.org/fre/resources/documents/article/other/droit-coutumier-article- 241107.htm>. Acesso em: 13 set. 2015. CICR. Convention (I) de Genève pour l'amélioration du sort des blessés et des malades dans les forces armées en campagne, 12 août 1949. Commentaire de 1952: application de la Convention . 1952. Disponível em: <https://www.icrc.org/applic/ihl/dih.nsf/Comment.xsp?action=openDocument&docume ntId=3C1DFAABF34C395AC12563BD002C635A>. Acessado em: 16 set. de 2015. CICV. Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949. Genebra, 1998. ______. Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949. Genebra, 1992. 27 ______. Direito internacional relativo à condução das hostilidades. Genebra, 2001. ______. Como o Direito Internacional Humanitário define “conflitos armados”? 2008. Disponível em: < https://www.icrc.org/por/assets/files/other/rev-definicao-de- conflitos-armados.pdf>. Acesso em: 10 set. 2015. COUR INTERNATIONALE DE JUSTICE. Statut de la Cour Internationale de Justice. [19--]. Disponível em: < http://www.icj- cij.org/documents/index.php?p1=4&p2=2&p3=0>. Acesso em: 10 set. de 2015. DEYRA, Michel. Direito Internacional Humanitário. Portugal: Gabinete de Documentação e Direito Comparado Procuradoria-Geral da República, 2001. EBERLIN, Philippe et al. Commentaire des Protocoles additionnels du 8 juin 1977 aux Conventions de Genève du 12 août 1949. Comité International de la Croix- Rouge. Genève, 1986. Disponível em: <https://www.icrc.org/applic/ihl/dih.nsf/Comment.xsp?action=openDocument&docume ntId=46D8B672E858EDB3C12563BD002D361A>. Acesso em: 10 set. 2015. EXPERT MEETING: Explosive Weapons in Populated Areas: Humanitarian, Legal, Technical and Military Aspects.2015, Chavannes-de-Bogis, Report. Geneva: International Committee of the Red Cross, 2015. Disponível em: <https://www.icrc.org/eng/resources/documents/publication/p4244.htm>. Acesso em: 22 set. 2015. HENCKAERTS, Jean-Marie; DOSWALD-BECK, Louise. Droit international humanitaire coutumier. Volume I : Règles. Bruxelle: Bruylant, 2006. Disponível em: <https://www.icrc.org/fre/resources/documents/publication/pcustom.htm>. Acesso em: 30 jul. 2015. ICRC. Annual Report 2010. 2010. Disponível em: <http://www.icrc.org/fre/resources/documents/annual-report/icrc-annual-report- 2010.htm>. Acesso em: 16 set. 2015. ______. Annual Report 2014. 2014. Disponível em: <https://www.icrc.org/fr/document/rapport-dactivite-les-operations-du-cicr-en-2014>. Acesso em: 16 set. 2015. 28 KELLENBERGER, Jakob. Prefácio. In: HENCKAERTS, Jean-Marie; DOSWALD- BECK, Louise. Droit international humanitaire coutumier. Volume I : Règles. Bruxelle: Bruylant, 2006. Disponível em: <https://www.icrc.org/fre/resources/documents/publication/pcustom.htm>. Acesso em: 30 jul. 2015. p. XVIII-XX. KOUTROULIS, Vaios. Comment identifier l’existence d’ un conflitarmé non international? Enseignements à la lumière des situations conflictuelle récentes. 2014. Disponível em: <http://www.ismllw-be.org/session/2014-02-27- KOUTROULIS%20V.pdf>. Acesso em: 17 set. 2015. MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Direitos humanos e conflitos armados. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. NAPOLEONI, Loretta. A fênix islamista: o Estado Islâmico e a reconfiguração do Oriente Médio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. ONU: ataque a hospital da MSF é crime de guerra. O Globo, Rio de Janeiro, 04 de outubro de 2015. Mundo, p. 39. PEYTRIGNET, Gérard. Sistemas internacionais de proteção da pessoa humana: o direito internacional humanitário. In: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. As Três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana. San José, Costa Rica: IIDH, 1996. p. 125-194. SASSÒLI, Marco et al. Un droit dans la guerre? Cas, documents et supports d’enseignement relatifs à la pratique contemporaine du droit international humanitaire. Genève: CICR, 2012. 3v. Disponível em: <https://www.icrc.org/fre/resources/documents/publication/p0739.htm>. Acesso em: 12 set. 2015. SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento; ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. SWINARSKI, Christophe. Introdução ao Direito Internacional Humanitário. Brasília: CICV, 1997. 29 UNITED NATIONS. International Tribunal for the Prosecution of Persons Responsible for Serious Violations of International Humanitarian Law Committed in the Territory of Former Yugoslavia since 1991. Case number IT-98-29-A. Prosecutor. Stanislav Galic. 30 november 2006. Disponível em: < http://www.icty.org/x/cases/galic/acjug/en/gal- acjud061130.pdf>. Consultado em 12 set. 2015. ______. International Tribunal for the Prosecution of Persons Responsible for Serious Violations of International Humanitarian Law Committed in the Territory of Former Yugoslavia since 1991. Arrêt relatif a l'appel de la défense concernant l'exception préjudicielle d'incompétence .Procureur. Dusko Tadic, Alias "Dule". 2 octobre 1995. Disponível em <http://www.icty.org/x/cases/tadic/acjug/fr/tad-aj951002.pdf>. Acesso em: 12 set. 2015. VISACRO, Alessandro. Guerra irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história. São Paulo: Contexto, 2009. VITÉ, Sylvain. Typologie des conflits armés en droit international humanitaire: concepts juridiques et réalités. Revue internationale de la Croix-Rouge, Genève, 873, 2009. Disponível em: <https://www.icrc.org/fre/assets/files/other/irrc-873-vite-fre.pdf>. Acesso em: 01 set. 2015.
Compartilhar