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Os presos ficavam proibidos de receber comida de fora. Permitiam-se visitas de familiares imediatos, mas só nos domingos e feriados. Os presos que tentassem fugir uma vez teriam as penas multiplicadas por dez; os que tentassem de novo seriam punidos com a morte - procedimentos extremamente severos se comparados com a leniente legislação czarista, que os bolcheviques conheciam tão bem. O mais importante: os decretos também deixavam claro que o trabalho dos presos se destinava não apenas a reabilitá-los, mas também a pagar pela manutenção dos campos. Presos com alguma incapacidade física deveriam ser mandados para outro lugar. Os campos deveriam ser auto-sustentáveis. De maneira otimista, os fundadores do sistema acreditavam que ele se pagaria.{87} Graças ao fluxo irregular de fundos estatais, quem administrava os campos logo se interessou pela idéia de autofinancia-se ou, pelo menos, fazer algum uso prático dos prisioneiros. Em setembro de 1919, um relatório secreto apresentado a Dzerzhinsky se queixava de que as condições sanitárias num campo de trânsito estavam "abaixo da crítica", em grande parte porque deixavam tanta gente doente e incapaz para o trabalho: "Na umidade do outono, não serão lugares para reunir pessoas e empregar sua mão-de-obra, mas viveiros de epidemias e outras enfermidades". Entre outras coisas, o autor propunha que os incapacitados de trabalhar deveriam ser enviados para outro local, assim tornando o campo mais eficiente - tática que depois seria muitas vezes utilizada pela liderança do Gulag. Já naquela época, os responsáveis pelos campos se preocupavam com a doença e a fome só na medida em que presos doentes e famintos não eram presos úteis. A dignidade e a humanidade deles, para nem falar de sua sobrevivência, praticamente não interessavam aos encarregados.{88} Na prática, aliás, nem todos os comandantes se preocupavam com a reabilitação ou o autofinanciamento. Preferiam, isto sim, punir os ex-abonados, humilhando- os, dando-lhes um gostinho do sofrimento dos trabalhadores. Um relatório da cidade ucraniana de Poltava, redigido por uma comissão de inquérito do Exército Branco após a recaptura temporária do lugar, observava que os burgueses aprisionados durante a ocupação bolchevique haviam recebido tarefas que se destinavam a escarnecer deles, tentando aviltá-los. Um detento, por exemplo [...], foi obrigado a limpar com as mãos uma grossa crosta de terra num chão imundo. Mandaram outro limpar um sanitário e [...] lhe deram uma toalha de mesa para fazer o serviço.{89} É bem verdade que essas sutis diferenças de intenção provavelmente faziam pouca diferença para as muitas dezenas de milhares de presos, muitos dos quais consideravam humilhação suficiente o simples fato de terem sido aprisionados por nenhum motivo. Elas provavelmente também não afetavam as condições de vida dos detentos, as quais eram horrorosas em toda a parte. Um padre enviado para um campo na Sibéria se recordaria da sopa de tripa, dos alojamentos sem eletricidade e do aquecimento praticamente inexistente no inverno.{90} Aleksandr Izgoev, político de destaque no período czarista, foi mandado para um campo ao norte de Petrogrado. No caminho, seu grupo de prisioneiros parou na cidade de Vologda. Em vez de encontrarem a comida quente e as acomodações aquecidas que lhes haviam sido prometidas, os presos foram conduzidos a pé de um lugar para outro, em busca de abrigo. Não se preparara nenhum campo de trânsito para eles. Por fim, foram alojados no que fora uma escola, "com bancos compridos e paredes nuas". Quem tinha dinheiro acabou comprando a própria comida na cidade.{91} Todavia, esses tipos de maus-tratos caóticos não eram reservados apenas aos prisioneiros. Em momentos decisivos da Guerra Civil, as necessidades emergenciais do Exército Vermelho e do Estado soviético se sobrepunham a tudo o mais, da reabilitação à vingança, passando pelas considerações referentes ao que fosse justo ou injusto. Em outubro de 1918, o comandante da frente setentrional solicitou à comissão militar de Petrogrado oitocentos trabalhadores, urgentemente necessários para abrir estradas e trincheiras. Gomo conseqüência, "vários cidadãos das antigas classes mercantis foram convidados a comparecer ao quartel-general soviético, supostamente para serem registrados para possíveis funções de trabalho em alguma data futura. Quando esses cidadãos apareceram para fazer tal registro, foram presos e mandados ao quartel Semenovsky, onde esperariam até ser despachados para a frente de batalha". Quando nem isso resultou em número suficiente de trabalhadores, o soviete (conselho governante local) de Petrogrado simplesmente cercou parte da Nevsky Prospekt (a principal rua comercial da cidade), prendeu todos os que não tinham carteirinha do Partido nem atestado de que trabalhavam para uma instituição do governo e os fez marchar para um quartel ali perto. Mais tarde, liberaram-se as mulheres, mas os homens foram despachados para o norte; "nenhum dos que foram mobilizados dessa maneira estranha pôde antes resolver seus assuntos de família, despedir-se dos parentes ou obter trajes e calçados adequados".{92} Embora certamente horrível para os pedestres assim detidos, esse episódio pareceria menos esquisito aos trabalhadores de Petrogrado - porque, mesmo naquele estágio inicial da história soviética, a distinção entre "trabalhos forçados" e trabalho comum era pouco clara. Trotski falava abertamente em transformar o país inteiro num "exército de trabalhadores" ao estilo do Exército Vermelho. Desde cedo, os trabalhadores foram obrigados a registrar-se em repartições centrais do trabalho, de onde podiam ser enviados para qualquer parte do país. Aprovaram-se decretos especiais que proibiam certos tipos de trabalhador (os mineiros, por exemplo) de largar seus empregos. Nesse período de caos revolucionário, os trabalhadores livres tampouco desfrutavam condições de vida muito melhores que as dos presos. Olhando de fora, nem sempre teria sido fácil dizer qual era o local de trabalho e qual era o campo de concentração.{93} Mas também isso era um prenúncio: durante a maior parte da década seguinte, as definições de "prisão", "campo" e "trabalhos forçados" estariam permeadas de confusão. O controle das instituições penais continuaria mudando constantemente de mãos. Os departamentos responsáveis seriam rebatizados e reorganizados sem cessar, à medida que diferentes comissários e outros burocratas tentavam assumir o controle do sistema.{94} No entanto, evidencia-se que, no final da Guerra Civil, já se estabelecera um padrão. A URSS desenvolvera dois sistemas prisionais, com regras, tradições e ideologias distintas. O Comissariado da Justiça (e depois o Comissariado do Interior) administrava o sistema "regular", que lidava principalmente com o que o regime soviético denominava "criminosos". Ainda que esse sistema também fosse caótico na prática, seus presos eram mantidos em prisões tradicionais, e os objetivos declarados de seus administradores, conforme apresentados num memorando interno, seriam perfeitamente compreensíveis em países "burgueses": regenerar os criminosos pelo trabalho correcional - "os presos devem trabalhar para aprender habilidades que possam utilizar a fim de levar vida honesta" - e impedir que cometessem mais crimes.{95} Ao mesmo tempo, a Cheka (depois rebatizada GPU, OGPU, NKVD, MGB e, por fim, KGB) controlava outro sistema prisional, que de início era conhecido como sistema de "campos especiais", ou "campos extraordinários". Embora a Cheka usasse neles parte da mesma retórica de "reabilitação" e "regeneração", esses campos não se destinavam mesmo a parecer instituições penais comuns. Estavam fora da jurisdição das outras instituições soviéticas e não eram visíveis ao público. Tinham normas especiais, penalidades mais duras para quem tentava fugir, regimes mais severos. Seus presos não haviam necessariamente