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vira adotar comportamento dúbio -; e, o mais importante, porque pertenciam a categorias populacionais que no momento estavam sob suspeita. Algumas dessas categorias eram relativamente específicas - engenheiros e especialistas no final da década de 1920, kulaks em 1931, poloneses ou baltas nos territórios ocupados durante a Primeira Guerra Mundial -, e algumas eram mesmo muito vagas. Durante todos os anos 1930 e 40, por exemplo, os "estrangeiros" se mostravam sempre suspeitos. Por "estrangeiros", refiro-me a pessoas que de fato eram cidadãs de outros países; pessoas que podiam ter contatos no exterior; ou pessoas que podiam ter algum vínculo, real ou imaginário, com outro país. Não importando o que houvessem feito, eram sempre candidatas à prisão - e estrangeiros que sobressaíssem de qualquer maneira, por qualquer razão, encaravam probabilidade particularmente alta de ser encarcerados. Robert Robinson, um dos vários negros que se mudaram dos Estados Unidos para Moscou nos anos 1930, depois escreveria: "Todo negro americano que conheci no começo da década de 30 e que se tornou cidadão soviético sumiu de Moscou num período de sete anos".{429} Diplomatas não estavam isentos. Por exemplo, Alexander Dolgun, cidadão americano e funcionário de baixo escalão da embaixada dos Estados Unidos em Moscou, descreve em suas memórias o modo pelo qual o apanharam na rua em 1948 e o acusaram, injustamente, de espionagem; em parte, a suspeita recaiu sobre ele porque Dolgun tinha uma satisfação juvenil em evadir-se à vigilância da polícia secreta e porque era perito em convencer os motoristas da embaixada a emprestar-lhe carros, levando a polícia secreta soviética a desconfiar de que ele fosse mais importante do que o cargo indicava. Dolgun passaria oito anos nos campos; depois, só voltaria para os Estados Unidos em 1971. Comunistas estrangeiros eram alvos freqüentes. Em fevereiro de 1937, Stalin, de modo alarmante, disse a Giorgi Dmitrov, secretário-geral da Internacional Comunista (o Comintern, a organização dedicada a fomentar a revolução mundial), que "todos vocês do Comintern fazem o jogo do inimigo". Dos 394 membros da Comissão Executiva do Comintern em janeiro de 1936, apenas 171 permaneciam em abril de 1938. Os restantes haviam sido fuzilados ou mandados para o Gulag, dentre eles pessoas de muitas nacionalidades - alemães, austríacos, iugoslavos, italianos, búlgaros, finlandeses, até ingleses e franceses. Os judeus parecem ter sofrido de modo desproporcional. Ao fim e ao cabo, Stalin matou mais integrantes do Politburo do PC alemão pré-1933 do que Hitler: dos 68 líderes que fugiram para a URSS após a tomada do poder pelos nazistas, 41 morreram, por execução ou nos campos. O PC polonês talvez tenha sido ainda mais dizimado. Segundo uma estimativa, executaram-se 5 mil comunistas poloneses na primavera e no verão de 1937.{430} Mas não era necessário pertencer a um partido comunista de outras terras: Stalin também visava meros simpatizantes estrangeiros, dos quais os 25 mil "fino- americanos" eram provavelmente os mais numerosos. Tratava-se de pessoas de língua finlandesa (algumas imigrantes nos Estados Unidos, as outras já nascidas naquele país) que foram para a URSS na década de 1930, os anos da Grande Depressão. Na maioria, eram operários fabris, a maior parte desempregada na América. Estimulados pela propaganda soviética - recrutadores percorriam as colônias finlandesas nos Estados Unidos falando das maravilhosas condições de vida e oportunidades de trabalho na URSS -, eles acorreram para a República Careliana, onde se falava o finlandês. Quase de imediato, criaram problemas para as autoridades soviéticas. A Carélia não se revelou muito parecida com os Estados Unidos. Muitos assinalaram ruidosamente isso a quem quisesse ouvir e então tentaram voltar. Em vez disso, acabaram no Gulag no final dos anos 1930. {431} Cidadãos soviéticos com vínculos externos não eram menos suspeitos. Os mais visados pertenciam às "diásporas": os poloneses, alemães e fino-carelianos que tinham parentes e contatos além-fronteiras, assim como os baltas, gregos, iranianos, coreanos, afegãos, chineses e romenos espalhados pela URSS. Entre julho de 1937 e novembro de 1938, conforme os próprios arquivos da NKVD, ela condenou 335.513 pessoas nessas operações "nacionais" (ou seja, referentes a nacionalidades).{432} Veremos que ações semelhantes se repetiriam durante e após a guerra. Entretanto, para levantar suspeitas, nem era preciso falar uma língua estrangeira. Qualquer um com ligações além-fronteiras era suspeito de espionagem: filatelistas, entusiastas do esperanto, toda pessoa que escrevesse para o exterior ou tivesse parentela fora da URSS. A NKVD também prendeu todas as pessoas que haviam trabalhado na Ferrovia Oriental Chinesa - que atravessava a Manchúria e cujas origens remontavam aos tempos czaristas - e as acusou de espionagem para o Japão. Nos campos, eram conhecidas como Kharbintsy, por causa da cidade manchu de Harbin (para os russos, Kharbin), onde muitas tinham morado.{433} Robert Conquest descreve a detenção de uma cantora de ópera que dançara com o embaixador japonês num baile oficial e a de um veterinário que cuidava de cães pertencentes a estrangeiros.{434} No final da década de 1930, a maioria dos soviéticos comuns já percebera o padrão e não queria absolutamente nenhum contato com estrangeiros. Karlo Stajner, comunista croata casado com russa, lembrou que "só raramente os russos se atreviam a ter qualquer relacionamento com estrangeiros [...]. Os parentes de minha mulher continuaram a ser praticamente estranhos para mim. Nenhum deles ousava visitar-nos. Quando souberam de nossa idéia de casar, todos eles advertiram Sonia disso".{435} Mesmo em meados dos anos 1980, quando visitei a URSS pela primeira vez, muitos russos se mantinham distantes dos estrangeiros, não lhes dando atenção ou se negando a encará-los nas ruas. E ainda assim... Nem todo estrangeiro era detido pela polícia, e nem todo acusado de ter vínculos externos os tinha. Também acontecia de pessoas serem presas por motivos muito mais idiossincráticos.{436} Em conseqüência, indagar "Por quê?" - a pergunta que Anna Akhmatova tanto detestava - produz uma gama verdadeiramente espantosa de explicações alegadas. Por exemplo, Osip Mandelstam (o marido de Nadezhda), foi preso em razão deste ataque poético a Stalin: Vivemos sem sentir a terra debaixo dos pés. Falamos, e ninguém nos ouve a dez passos. Mas, onde houver uma conversa, mesmo que sussurrada, O embusteiro, assassino e mata-campônios do Kremlin será mencionado. Seus dedos, gordos como larvas, são untuosos. Suas palavras, como pesos de chumbo, são finais. Seu bigode de barata desdenha. As bordas de suas botas brilham. E, em volta dele, uma panelinha de líderes frouxos, Apenas meio humanos, serve-lhe de brinquedo. Um choraminga, outro arrulha, outro geme. Só ele berra e aponta, Lançando decretos como se fossem ferraduras, Acertando uma virilha, uma cabeça, um olho... Toda sentença de morte é doce Para o osseto de peito largo.{437} Embora se apresentassem diferentes razões oficiais, Taty ana Okunevskay a, uma das mais populares atrizes soviéticas do cinema, acreditava ter sido presa porque se recusara a dormir com Viktor Abakumov, o chefe da contra-espionagem da URSS durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo Taty ana, para assegurarem- na de que esse era o verdadeiro motivo, foi-lhe mostrado um mandado de prisão com a assinatura de Abakumov.{438} Os quatro irmãos Starostin, todos excepcionais jogadores de futebol, viram-se presos em 1942. Sempre acreditaram que isso se devia ao fato de seu time, o Spartak, ter tido o azar de derrotar o Dy namo - pelo qual Lavrenty Beria torcia - por um placar demasiado elástico.{439} Tampouco se fazia necessário nada fora do comum. Ly udmila Khachatryan foi presa por ter-se casado com um estrangeiro, soldado iugoslavo.