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A DISSOLUÇÃO DO COMPLEXO DE ÉDIPO (1924) TÍTULO ORIGINAL: “DER UNTERGANG DES ÖDIPUSKOMPLEXES”. PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM INTERNATIONALE ZEITSCHRIFT FÜR PSYCHOANALYSE [REVISTA INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE], V. 10, N. 3, PP. 245-52. TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE XIII, PP. 393-402; TAMBÉM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE V, PP. 243-51. ESTA TRADUÇÃO FOI PUBLICADA ORIGINALMENTE EM JORNAL DE PSICANÁLISE, SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE SÃO PAULO, V. 33, N. 60/61, PP. 483-9, DEZEMBRO DE 2000. ALGUMAS NOTAS DO TRADUTOR FORAM MODIFICADAS NA PRESENTE EDIÇÃO. Cada vez mais se revela a importância do complexo de Édipo como o fenômeno central do período sexual da primeira infância. Depois ele desaparece, sucumbe à repressão, como dizemos, e vem o período de latência. Mas ainda não é claro o que leva ao seu fim; as análises parecem mostrar que são dolorosas de- cepções experimentadas. A menina pequena, que pretende ser amada pelo pai acima de tudo, algum dia sofre uma dura pun- ição por parte dele e se vê expulsa do paraíso. O garoto, que vê a mãe como sua propriedade, nota que ela passa a dirigir seu amor e seu cuidado a um recém-chegado. A reflexão aprofunda o valor dessas influências, ao enfatizar que são inevitáveis tais experiên- cias aflitivas, que se opõem ao conteúdo do complexo. Mesmo quando não sucedem eventos especiais, como os mencionados a título de exemplos, a ausência da satisfação esperada, a contínua ausência* do filho desejado, levam a que o pequeno enamorado abandone sua desesperançada afeição. Assim, o complexo de Édipo desapareceria devido ao seu fracasso, em consequência de sua impossibilidade interna. Uma outra concepção diria que o complexo de Édipo tem de acabar porque chegou o momento de sua desintegração,** assim como caem os dentes de leite quando surgem os permanentes. Embora o complexo de Édipo seja vivido pela maioria das pess- oas individualmente, ele é um fenômeno determinado pela hereditariedade, por ela estabelecido, que programadamente de- ve passar, quando começa a fase seguinte e predeterminada do desenvolvimento. De modo que é indiferente quais as ocasiões que levam isso a acontecer, ou que não seja possível descobri-las. Não podemos contestar que as duas concepções se justificam. Mas também são compatíveis entre si; há lugar para a concepção ontogenética ao lado da filogenética, mais abrangente. Pois já no nascimento o indivíduo inteiro é destinado a morrer, e talvez os seus órgãos já contenham a indicação daquilo de que morrerá. Mas sempre interessa acompanhar como esse programa inato é executado, de que maneira danos ocasionais tiram proveito da predisposição. Recentemente pudemos perceber melhor que o desenvolvi- mento sexual da criança chega até uma fase em que o genital já assumiu o papel condutor. Mas esse genital é apenas o mas- culino, mais precisamente o pênis; o feminino não foi ainda descoberto. Essa fase fálica, simultânea à do complexo de Édipo, não continua a se desenvolver até a organização genital definit- iva, mas submerge e é substituída pelo período de latência. Mas o seu desfecho ocorre de maneira típica, e se apoiando em acontecimentos que voltam regularmente. Quando a criança (o garoto) dirige seu interesse para o genit- al, revela isso pela frequente manipulação do mesmo, e então descobre que os adultos não aprovam seu comportamento. De modo mais ou menos claro, com maior ou menor rudeza, surge a ameaça de que lhe roubarão essa parte do corpo que ele tanto es- tima. Geralmente a ameaça de castração vem de mulheres; com frequência elas buscam reforçar sua autoridade invocando o pai ou o médico, que, segundo afirmam, executará o castigo. Em certo número de casos as próprias mulheres fazem uma atenu- ação simbólica da ameaça, ao dizer que o genital, propriamente passivo, não será eliminado, mas sim a mão, que pecou ativa- mente. Com muita frequência o menino não é ameaçado de cas- tração por brincar manualmente com o pênis, mas por molhar a 184/326 cama todas as noites e não poder ser conservado limpo. As pess- oas que dele cuidam agem como se a incontinência noturna fosse consequência e prova de uma excessiva ocupação com o pênis, e provavelmente estão certas. Em todo caso, a persistência em molhar a cama deve ser equiparada à polução do adulto, expri- mindo a mesma excitação genital que impeliu o garoto a se mas- turbar nessa época. O que afirmo agora é que a organização genital fálica da cri- ança sucumbe devido a essa ameaça de castração. Não de imedi- ato, certamente, e não sem que outras influências contribuam para isso. Pois inicialmente o garoto não acredita nem obedece à ameaça. A psicanálise atribuiu valor, recentemente, a duas ex- periências que nenhuma criança deixa de ter e que deveriam prepará-la para a perda de valiosas partes de seu corpo: a re- tirada do peito materno, de início temporária, depois definitiva, e a segregação do conteúdo do intestino, diariamente exigida. Mas não há evidência de que por ocasião da ameaça de castração essas experiências teriam efeito. Apenas depois de uma outra ex- periência o menino começa a contar com a possibilidade da cas- tração, e mesmo então hesitantemente, a contragosto e não sem buscar diminuir o alcance daquilo que observou. A observação que finalmente desfaz a incredulidade do garoto é a do genital feminino. Em algum momento, o menino orgul- hoso de possuir um pênis vê a região genital de uma menina e tem de se convencer da falta do pênis, num ser tão semelhante a ele. Com isso também a perda do próprio pênis se torna conce- bível, a ameaça de castração tem efeito a posteriori.*** Não podemos ser míopes como a pessoa que cuida da criança e a ameaça de castração, não devemos ignorar que a vida sexual do garoto não se esgota na masturbação nessa época. Pode-se 185/326 demonstrar que ele se acha na atitude edípica ante seus pais, a masturbação é apenas a descarga genital da excitação sexual pró- pria do complexo, e em todas as épocas posteriores deverá sua importância a tal relação. O complexo de Édipo ofereceu ao menino duas possibilidades de satisfação, uma ativa e uma pas- siva. Ele pôde, masculinamente, colocar-se no lugar do pai e tal como este relacionar-se com a mãe, caso em que o pai logo foi visto como empecilho, ou quis substituir a mãe e se fazer amar pelo pai, caso em que a mãe se tornou supérflua. O menino pode ter tido somente ideias vagas do que constitui a relação sexual satisfatória; mas sem dúvida o pênis tinha participação nela, pois as sensações do seu próprio órgão atestavam isso. Ainda não havia por que duvidar da existência de pênis na mulher. Admitir a possibilidade da castração, perceber que a mulher é castrada punha fim às duas possibilidades de obter satisfação do com- plexo de Édipo. Pois ambas acarretavam a perda do pênis, uma, a masculina, como castigo, a outra, feminina, como pressuposto. Se a satisfação amorosa no terreno do complexo de Édipo deve custar o pênis, tem de haver um conflito entre o interesse nar- císico nessa parte do corpo e o investimento libidinal dos objetos parentais. Nesse conflito vence normalmente a primeira dessas forças; o Eu da criança se afasta do complexo de Édipo. Em outro lugar* eu descrevi de que maneira isto sucede. Os investimentos objetais são abandonados e substituídos pela identificação. A autoridade do pai ou dos pais, introjetada no Eu, forma ali o âmago do Super-eu,** que toma ao pai a severidade, perpetua a sua proibição do incesto e assim garante o Eu contra o retorno do investimento libidinal de objeto. As tendências li- bidinais próprias do complexo de Édipo são dessexualizadas e sublimadas em parte, o que provavelmente ocorre em toda 186/326 transformação em identificação, e em parte inibidas na meta e mudadas em impulsos ternos. Todo o processo, por um lado, sal- vou o genital, afastou dele o perigo da perda, e, por outro lado, paralisou-o,suspendeu sua função. Com ele tem início o período de latência, que interrompe o desenvolvimento sexual da criança. Não vejo razão para recusar*** o nome de “repressão” ao afastamento do Eu do complexo de Édipo, embora as repressões posteriores se originem mais frequentemente com a participação do Super-eu, que aqui ainda está sendo formado. Mas o processo descrito é mais que uma repressão, ele equivale, quando realiz- ado de maneira ideal, a uma destruição e abolição do complexo. Cabe supor que deparamos, aqui, com a linha divisória entre o normal e o patológico, que jamais é inteiramente nítida. Se o Eu realmente não alcançou muito mais que uma repressão do com- plexo, este persiste de modo inconsciente no Id,* e manifestará depois a sua ação patogênica. A observação analítica permite reconhecer ou adivinhar esses nexos entre organização fálica, complexo de Édipo, ameaça de castração, formação do Super-eu e período de latência. Eles jus- tificam a afirmação de que o complexo de Édipo sucumbe** à ameaça de castração. Mas com isso não liquidamos o problema; continua a haver espaço para uma especulação teórica capaz de subverter ou de pôr em nova luz o resultado alcançado. Mas antes de encetar esse caminho temos de abordar uma questão que surgiu durante esta nossa discussão e que até o momento foi posta de lado. O processo descrito se refere, como foi explicitado, à criança do sexo masculino. Como o desenvolvimento corres- pondente se realiza na garota pequena? 187/326 Neste ponto o nosso material se torna — incompreensivel- mente — muito mais obscuro e insuficiente. Também o sexo feminino desenvolve um complexo de Édipo, um Super-eu e um período de latência. Pode-se atribuir a ele igualmente uma or- ganização fálica e um complexo de castração? A resposta é afirm- ativa, mas as coisas não se passam como no garoto. Aqui a exigência feminista de igualdade de direito entre os sexos não vai longe, a diferença morfológica tem de manifestar-se em difer- enças no desenvolvimento psíquico. Anatomia é destino, po- demos dizer, parodiando uma frase de Napoleão.*** O clitóris da menina se comporta primeiramente como um pênis, mas, na comparação com um camarada de brinquedo do sexo masculino, ela nota que “saiu perdendo”,* e sente esse fato como desvant- agem e razão para inferioridade. Durante algum tempo ela se consola com a expectativa de mais tarde, quando crescer, vir a ter um apêndice grande como o de um menino. Aqui se separa o complexo de masculinidade da mulher. A menina não entende sua falta de pênis como uma característica sexual, explica-a pela hipótese de que já possuiu um membro do mesmo tamanho e de- pois o perdeu com a castração. Não parece estender essa con- clusão a outras, a mulheres adultas, mas atribuir-lhes um genital grande e completo, masculino, exatamente no sentido da fase fálica. Disso resulta a diferença essencial de que a menina aceita a castração como fato consumado, enquanto o menino teme a possibilidade da consumação. Excluído o medo da castração, também deixa de haver um forte motivo para a construção do Super-eu e a demolição da or- ganização genital infantil. Bem mais que no menino, essas mudanças parecem consequência da educação, da intimidação externa, que ameaça com a ausência de amor. O complexo de 188/326 Édipo da menina é muito mais inequívoco do que o do pequeno portador de pênis; segundo minha experiência, raramente vai além da substituição da mãe e da postura feminina diante do pai. A renúncia ao pênis não é tolerada sem uma tentativa de com- pensação. A garota passa — ao longo de uma equação simbólica, poderíamos dizer — do pênis ao bebê, seu complexo de Édipo culmina no desejo, longamente mantido, de receber do pai um filho como presente, de lhe gerar um filho. Temos a impressão de que o complexo de Édipo vai sendo aos poucos abandonado porque tal desejo não se realiza. Os dois desejos, de ter um pênis e um filho, permanecem fortemente investidos no inconsciente, e ajudam a preparar o ser feminino para o seu futuro papel sexu- al. A intensidade menor da contribuição sádica ao instinto sexu- al, que bem podemos relacionar ao definhamento do pênis, facil- ita a transformação das tendências diretamente sexuais em afetuosas, inibidas na meta. Mas no conjunto é preciso admitir que nossa compreensão desses processos de desenvolvimento da menina é insatisfatória, plena de lacunas e pontos obscuros. Não duvido que sejam típicas as relações temporais e causais entre complexo de Édipo, intimidação sexual (ameaça de cas- tração), formação do Super-eu e começo do período de latência, que aqui foram descritas. Mas não desejo afirmar que esse tipo seja o único possível. Variações na sequência temporal e no en- cadeamento dos processos terão de ser muito significativas para o desenvolvimento do indivíduo. Desde que foi publicado o interessante estudo de Otto Rank sobre o Trauma do nascimento, também o resultado desta pequena investigação, o de que o complexo de Édipo do menino sucumbe ao medo da castração, não pode ser acolhido sem maior discussão. No entanto, parece-me prematuro entrar nessa 189/326 discussão agora, e talvez também inadequado iniciar aqui uma crítica ou apreciação do ponto de vista de Rank. *“Ausência”: Versagung, que geralmente traduzimos por “frustração”. O Vocabulário da psicanálise lembra, corretamente, a “generalidade do uso” desse termo e a dificuldade de achar-lhe uma tradução que não dependa do contexto; cf. apêndice C de As palavras de Freud, op. cit. Algumas das versões estrangeiras tendem a lhe atribuir uma acepção técnica, específica, que ele não possui: [omissão na tradução espanhola], denegación, frustrazione, re- fusement, denial, weigering [recusa]. **“Desintegração”: Auflösung no original — do verbo auflösen, “dissolver, desintegrar”. Já o termo usado no título deste ensaio, Untergang, pode signi- ficar “ruína, naufrágio, ocaso, poente (referindo-se ao sol), destruição”. Ele se acha, por exemplo, no título de um livro famoso de Oswald Spengler, Der Un- tergang des Abendlandes [O declínio do Ocidente], e no de um longo poema de Hans Magnus Enzensberger, Der Untergang des Titanic [O naufrágio do Titanic]. Dois dos tradutores consultados também preferiram “dissolução” para verter o título: disolución, sepultamiento [!], tramonto, disparition, dis- solution, ondergang. Em O Eu e o Id (1923, cap. iii), Freud já havia mencion- ado o Untergang ou Zertrümmerung (“desmoronamento, desintegração”) do complexo de Édipo. ***“A posteriori”: nachträglich. Cf. capítulo sobre esse termo em As palavras de Freud, op. cit. As versões consultadas oferecem: entonces, con posteriorid- ad, posticipatamente, après coup, idem, deferred effect, alsnog effect [alsnog significa “ainda”]. *No terceiro capítulo de O Eu e o Id (1923). **“Super-eu”: Über-ich. A versão brasileira do Vocabulário de psicanálise ap- resenta supereu como alternativa para superego. A forma com hífen (e com maiúscula) me parece melhor, porque mantém em destaque o “Eu”, como no original. Quanto à alternativa super-eu/superego, há argumentos a favor de ambas as formas. Super-eu tem a vantagem da relação com Eu (que nos parece preferível a ego), mas talvez ainda soe estranha, ao passo que superego 190/326 está difundido, tem o peso da “tradição” criada pela edição Standard brasileira, que o tomou da Standard inglesa; cf. nota em O Eu e o Id, neste volume. *** “Recusar”: versagen. Outro exemplo em que versagen não tem um sentido técnico. Nas traduções consultadas: no considerar [...] como, denegar, rifi- utare, refuser, denying, onthouden [privar, negar]. *“Id”: Es. Embora também apareça como alternativa para Id, na mencionada edição do Vocabulário de psicanálise, e embora tenha sido usada na versão brasileira da obra de Georg Groddeck, O Livro dIsso (Ed. Perspectiva, 1987), a forma “Isso” talvez não soe menos estranha do que“Super-eu”. Os italianos adotaram io, super-io e es, ou seja, conservaram o termo alemão apenas para uma das três instâncias; de modo que haveria um precedente para se usar Eu, Super-eu e Id, em português. Ou talvez, como achava a psicanalista e tradutora Marilene Carone, o trio ego, superego e id já tenha se institucional- izado na psicanálise brasileira, a ponto de tornar ociosa qualquer discussão a respeito (ela também achava artificial a alternativa). Sobre a adoção dos ter- mos latinos pelos ingleses — e, portanto, no Brasil — ver o capítulo “Ich/ ego/ moi, Es/ id/ ça”, em As palavras de Freud, op. cit.; ver também a longa nota sobre a versão desses termos na 31a das Novas conferências introdutórias, v. 18 destas Obras completas, p. 213. ** “Sucumbe à ameaça de castração”: an der Kastrationsdrohung zugrunde geht. No verbo alemão, que significa “arruinar-se, perecer, ir a pique”, há um nexo com o sentido “náutico” do substantivo empregado no título. Nas demais traduções: sucumbe a la amenaza, va al fundamentto a raíz de la amenaza, tramonta in forza della minaccia, sombre du fait de la menace, périt de la menace, [the destruction of the Oedipus complex] [...] is brought about by the threat, te gronde gaat [mesmo verbo em alemão]. ***Segundo informa a nova edição francesa, a frase de Napoleão foi: “Le destin, c’est la politique”. * “Saiu perdendo”: “zu kurz gekommen” ist (aspas no original) — a expressão alemã significa também, literalmente, “saiu curto demais”. Das outras versões, 191/326 apenas a inglesa e a francesa esclarecem esse duplo sentido: encuentra pequeño el suyo, “demasiado corto”, “è troppo piccolo”,“réduite à la portion congrue” [uma nota acrescenta: être mal loti, ne pas avoir sa part, e explica que a tradução literal seria venir trop court], come off badly [uma nota traz o sentido literal: come off too short], “te kort gekomen” is. 192/326
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