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História da África I TROL História da África I Érika do Nascimento Pinheiro 1ª e di çã o História da África I P654hPinheiro, Érika do Nascimento. História da África I / Érika do Nascimento Pinheiro ; revisão de Walter P. Valverde Júnior. 1. ed. – Niterói, RJ: EAD/UNIVERSO, 2011. 264 p. : il 1. África - História. 2. Escravidão - África - História. 3. Escravos - Tráfico. 4. África - Política social. I. Valverde Júnior, Walter P. II. Título. CDD 960 DIREÇÃO SUPERIOR Chanceler Joaquim de Oliveira Reitora Marlene Salgado de Oliveira Presidente da Mantenedora Wellington Salgado de Oliveira Pró-Reitor de Planejamento e Finanças Wellington Salgado de Oliveira Pró-Reitor de Organização e Desenvolvimento Jefferson Salgado de Oliveira Pró-Reitor Administrativo Wallace Salgado de Oliveira Pró-Reitora Acadêmica Jaina dos Santos Mello Ferreira Pró-Reitor de Extensão Manuel de Souza Esteves DEPARTAMENTO DE ENSINO A DISTÂNCIA Assessora Andrea Jardim FICHA TÉCNICA Texto: Érika do Nascimento Pinheiro Revisão Ortográfica: Walter P. Valverde Júnior Projeto Gráfico e Editoração: Ruan Carlos Vieira Fausto Supervisão de Materiais Instrucionais: Janaina Gonçalves de Jesus Ilustração: Eduardo Bordoni e Fabrício Ramos Capa: Eduardo Bordoni e Fabrício Ramos COORDENAÇÃO GERAL: Departamento de Ensino a Distância Rua Marechal Deodoro 217, Centro, Niterói, RJ, CEP 24020-420 www.universo.edu.br Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Universo – Campus Niterói Bibliotecária: ANA MARTA TOLEDO PIZA VIANA – CRB 7/2224 © Departamento de Ensino a Distância - Universidade Salgado de Oliveira Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem permissão expressa e por escrito da Associação Salgado de Oliveira de Educação e Cultura, mantenedora da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO). História da África I Informações sobre a disciplina Nome da disciplina: História da África Carga horária : 75 h Créditos: 04 Ementa: África: mitos e a-historicidade. O continente africano: mulheres e homens e a paisagem. Questões teóricas e metodológicas para o estudo da história africana. África em movimento: a expansão Banto. A penetração do Islã e comércio transaariano. As diferentes escravidões. A formação das sociedades subsaarianas. Os contatos com os europeus. Antigas e novas rotas comerciais. A formação do Mundo Atlântico e os africanos como sujeitos históricos na formação do Novo Mundo. Objetivo: O curso pretende discutir questões postas para a História da África. Debater sobre a existência de uma identidade africana, as possibilidades de um ponto de vista africano para a construção dessa história e como fazer história da África a partir do Brasil. Para tanto, propõe identificar e discutir a dinâmica dos processos culturais, sociais e políticos próprios ao continente africano entre os séculos XI e XIX. Problematizar concepções associadas ao continente, como afrocentrismo e eurocentrismo. Pensar nos desafios teóricos e metodológicos para estudar sua história. Analisar as transformações ocorridas com a penetração do cristianismo e do Islã, pelo deserto do Saara, assim como os contatos com os europeus, pelo Atlântico. Entender que a expansão do amálgama religioso-cultural do Islã trouxe transformações para as sociedades convertidas e identificar a noção anacrônica de que os europeus colonizaram o continente já nos primeiros contatos sem levar em conta que africanos foram sujeitos históricos nas novas relações estabelecidas. História da África I Conteúdo Programático: UNIDADE 1: A África inventada: preconceitos, desafios e métodos África: mitos e a-historicidade. Desafios: eurocentrismo, etnocentrismo e afrocentrismo. Métodos e fontes: a busca de um ponto de vista africano. UNIDADE 2: O continente africano África, berço da humanidade. O continente: mulheres e homens e a paisagem. A África na Antiguidade UNIDADE 3: Instituições políticas e sociais da África Ocidental Comércio, cristianismo e islamismo. Formações políticas da África Ocidental: Dogon, Gana, Mali, Songhai, Iorubas, Haussa. UNIDADE 4: Expansão Banto e instituições políticas e sociais da África Central África em movimento: Expansão Banto. Formações políticas da África Central: Congo, Luba, Ndongo e Monomotapa. Desvendando o outro: africanos e europeus: o encontro, da escravidão à comercialização atlântica de escravos e a formação do Mundo Atlântico: africanos como sujeitos históricos. História da África I Referências Bibliografia básica: FAGE, J. D. História da África. Lisboa: Edições 70, 1995. M’BOKOLO, Elikia. África Negra: História e Civilizações. Lisboa: Editora Vulgata, 2003. SILVA, Alberto da Costa. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. Bibliografia complementar: GIORDANI, Mário Curtis. História da África, anterior aos descobrimentos. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.NIANE, D.T. (Coord.). História Geral da África. São Paulo: Ática,1985. Vol. 4. SARAIVA, José Flávio. Formação da África Contemporânea. São Paulo: Ática, 1990. SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil Africano. São Paulo: Ática, 2006. THORNTON, John. África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400- 1800. Rio de Janeiro: Campus, 2003. História da África I História da África I Palavra da Reitora Acompanhando as necessidades de um mundo cada vez mais complexo, exigente e necessitado de aprendizagem contínua, a Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) apresenta a UNIVERSO Virtual, que reúne os diferentes segmentos do ensino a distância na universidade. Nosso programa foi desenvolvido segundo as diretrizes do MEC e baseado em experiências do gênero bem-sucedidas mundialmente. São inúmeras as vantagens de se estudar a distância e somente por meio dessa modalidade de ensino são sanadas as dificuldades de tempo e espaço presentes nos dias de hoje. O aluno tem a possibilidade de administrar seu próprio tempo e gerenciar seu estudo de acordo com sua disponibilidade, tornando-se responsável pela própria aprendizagem. O ensino a distância complementa os estudos presenciais à medida que permite que alunos e professores, fisicamente distanciados, possam estar a todo momento ligados por ferramentas de interação presentes na Internet através de nossa plataforma. Além disso, nosso material didático foi desenvolvido por professores especializados nessa modalidade de ensino, em que a clareza e objetividade são fundamentais para a perfeita compreensão dos conteúdos. A UNIVERSO tem uma história de sucesso no que diz respeito à educação a distância. Nossa experiência nos remete ao final da década de 80, com o bem- sucedido projeto Novo Saber. Hoje, oferece uma estrutura em constante processo de atualização, ampliando as possibilidades de acesso a cursos de atualização, graduação ou pós-graduação. Reafirmando seu compromisso com a excelência no ensino e compartilhando as novas tendências em educação, a UNIVERSO convida seu alunado a conhecer o programa e usufruir das vantagens que o estudar adistância proporciona. Seja bem-vindo à UNIVERSO Virtual! Professora Marlene Salgado de Oliveira Reitora História da África I História da África I Sumário Apresentação da disciplina ............................................................................................................. 10 Plano da disciplina .............................................................................................................................. 11 Unidade 1 –A África inventada: preconceitos, desafios e métodos................................. 14 Unidade 2 – O Continente africano.............................................................................................. 71 Unidade 3 –Instituições políticas e sociais da África Ocidental......................................... 128 Unidade 4 –.Expansão Banto e instituições políticas e sociais da África........................ 194 Considerações finais........................................................................................................................... 254 Conhecendo a autora ........................................................................................................................ 256 Referências............................................................................................................................................. 257 Anexos ................................................................................................................................................... 258 História da África I 10 Apresentação da Disciplina A Disciplina História África I propõe introduzir-nos nos estudos sobre a História da África, de modo a problematizar as visões comumente associadas ao continente pelo senso comum. Debater sobre alguns mitos e preconceitos que apareceram na literatura sobre a África e até hoje se encontram presentes nos livros didáticos e no senso comum. Discutir aspectos do continente africano do ponto de vista físico e histórico. Lançar um novo olhar sobre as diferentes formas de narrativas deixadas por africanos ao longo do tempo e compreendê-las como produção historiográfica legítima e singular. A diversidade lingüística e a nova regionalização africana: as seis macrorregiões. Refletir sobre a África na Antiguidade: as relações entre religião, poder e arte. Alisar os contatos das diversas sociedades africanas com o exterior pelos mares Vermelho e Mediterrâneo e o Oceano Índico. Perceber como a expansão do cristianismo e do islamismo no continente trouxe mudanças significativas. Como os diversos amálgamas cultural-religiosos contribuíram para mudar as relações sociais e na construção de novas práticas sociais assim como mudanças na arquitetura. Refletir sobre as formações políticas e sociais da África Ocidental e Centro-Ocidental possibilitando a formação de um olhar crítico sobre os que procuram ver essas sociedades como uma coisa só. Compreender o funcionamento da instituição escravista no continente africano, objetivando a identificação os diferentes tipos de escravidão praticados no continente e compreender as mudanças que a instituição sofreu com a chegada dos muçulmanos no século VIII e dos europeus no século XV. Entender como se deram os primeiros contatos entre africanos e portugueses a partir do século XV, desmistificar a noção anacrônica de que os europeus colonizaram ou civilizaram o continente desde os primeiros contatos, como também jogar luz nas discussões sobre os diversos sujeitos históricos que se estabeleceram nessas relações. Utilizaremos, para tanto, a metodologia da micro-história e dos jogos de escala. A conjunção dos dois métodos permite olhar para o micro sem perder de vista o macro. Analisar uma dada sociedade africana não significa isolá-la de seu contexto mais amplo tanto dentro do continente como as ligações transcontinentais. História da África I 11 Plano da Disciplina Esta disciplina tem como objetivo discutir questões postas para a História da África. Debater sobre a existência de uma identidade africana, as possibilidades de um ponto de vista africano para a construção dessa história e como fazer história da África a partir do Brasil. Para tanto, propõe identificar e discutir a dinâmica dos processos culturais, sociais e políticos próprios ao continente africano entre os séculos XI e XIX. Problematizar concepções associadas ao continente, como afrocentrismo e eurocentrismo. Pensar nos desafios teóricos e metodológicos para estudar sua história. Analisar as transformações ocorridas com a penetração do cristianismo e do Islã, pelo deserto do Saara, assim como os contatos com os europeus, pelo Atlântico. Entender que a expansão do amálgama religioso-cultural do Islã trouxe transformações para as sociedades convertidas e identificar a noção anacrônica de que os europeus colonizaram o continente já nos primeiros contatos sem levar em conta que africanos foram sujeitos históricos nas novas relações estabelecidas Assim esta disciplina foi subdividida em quatro unidades, das quais faremos um pequeno resumo de seus respectivos objetivos para lhe dar uma visão geral do que será abordado no conteúdo. Na Unidade 1 - A África inventada: preconceitos, desafios e métodos Em nossa primeira unidade refletiremos sobre questões teóricas que envolvem a produção da história da África e percorreremos o ponto de vista africano uma análise dessa história. Desconstruiremos mitos e preconceitos que obstaculizam os estudos mais profundos sobre o continente. Objetivos: Analisar a construção de mitos e preconceitos forjados por uma produção historiográfica baseada no evolucionismo e no pensamento conservador do século XIX. Desconstruir a concepção de que a África seria um continente a- histórico. Refletir sobre os desafios metodológicos que se colocam para História da África I 12 uma produção historiográfica do ponto de vista africano – eurocentrismo, etnocentrismo, afrocentrismo, fontes orais e cronologia. Na Unidade 2 - : O continente africano Em nossa segunda unidade debateremos sobre aspectos do continente do ponto de vista físico e histórico. Como a Geografia, a Linguistica e a Arqueologia podem contribuir para os estudos africanos. Compreender características gerais da África na antiguidade. Objetivos: Analisar as relações estabelecidas entre os aspectos físicos do continente e as formações sociais: possibilidades, dificuldades e movimentos. Refletir sobre as concepções de tempo nas sociedades tradicionais e as diferenças linguísticas. Compreender que a ideia de África como berço da humanidade foi utilizada, também, para uma valorização da história africana. Por fim, não menos importante, discutiremos o papel da África na Antiguidade. Na Unidade 3 - Instituições políticas e sociais da África Ocidental Em nossa terceira unidade faremos um estudo mais vertical sobre as sociedades da África Ocidental. Conheceremos os dogons, os mandingas, soninquês, haussas e iorubas, por exemplo e como estabeleceram-se como formações políticas e sociais. Objetivos: Analisar as diversas relações estabelecidas entre africanos e estrangeiros. Compreender como ocorreu a expansão do Islã e do cristianismo no território africano. Refletir sobre as formações sociais e políticas da África Subsaariana. As suas singularidades, práticas culturais, concepções de poder e relações História da África I 13 sociais. Como o comércio contribuiu para o fortalecimento ou não dessas sociedades. Na Unidade 4 - Expansão Banto e instituições políticase sociais da África Central Em nossa ultima unidade faremos um passeio pela África Centro-Ocidental e veremos os bantos, inclusive no momento de sua grande dispersão, a chamada Expansão Banto. Veremos como ocorreram os diversos contatos com os mercadores europeus e como os africanos participaram na formação do Mundo Atlântico. Objetivos - Analisar como a Expansão Bantu como um dos movimentos migratórios mais importantes do continente africano. Discutir sobre os aspectos gerais que formam as sociedades da África centro-ocidental. Compreender como era o funcionamento da instituição escravista no continente e as transformações que ocorreram a partir dos contatos com muçulmanos e europeus. Entender como ocorreram os primeiros contatos com os europeus e desconstruir a noção de que colonizaram e civilizaram o continente desde o início. Bons Estudos! História da África I 14 A África inventada: preconceitos, desafios e métodos África: mitos e a-historicidade. Desafios: eurocentrismo, etnocentrismo e afrocentrismo. Métodos e fontes: a busca de um ponto de vista africano 1 História da África I 15 Nesta unidade, Introduzir os alunos nos estudos sobre a História da África, de modo a problematizar as visões comumente associadas ao continente pelo senso comum. Discutiremos alguns mitos e preconceitos que apareceram na literatura sobre a África e até hoje se encontram presentes nos livros didáticos e no senso comum. A importância de se refletir sobre conceitos como eurocentrismo, etnocentrismo e afrocentrismo, assim como as relações estabelecidas entre a produção historiográfica e os mesmos. Pensar na produção de uma História da África a partir do ponto de vista africano, ou seja, que possibilite a compreensão das lógicas internas das diversas sociedades e quais as fontes privilegiadas para tais análises, como a tradição oral. As propostas para uma cronologia africana que possibilite compreender os processos históricos como diferenciados e não como subordinados aos fatos importantes europeus Desta forma, falar sobre a África constitui-se como um desafio para pesquisadores e professores e por isso a importância de começarmos um estudo abordando questões teóricas e metodológicas. Objetivos: Analisar a construção de mitos e preconceitos forjados por uma produção historiográfica baseada no evolucionismo e no pensamento conservador do século XIX. Desconstruir a concepção de que a África seria um continente a- histórico. Refletir sobre os desafios metodológicos que se colocam para uma produção historiográfica do ponto de vista africano – eurocentrismo, etnocentrismo, afrocentrismo, fontes orais e cronologia. História da África I 16 Plano da unidade: África: mitos e a-historicidade. Desafios: eurocentrismo, etnocentrismo e afrocentrismo. Métodos e fontes: a busca de um ponto de vista africano Bons Estudos! História da África I 17 África: mitos e a-historicidade Para começo de conversa... Certa vez, em uma entrevista para a TV Brasil o apresentador, chamado Marcus, me questionou sobre a forma como os livros didáticos trabalhavam as questões da história indígena. Meu primeiro pensamento foi a Lei 10639/2003 que foi modificada, em 2008, pela Lei 11645. A última acrescentava ao Currículo Oficial a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Indígena. Devolvi a pergunta ao apresentador da seguinte forma: a promulgação de Leis mostra que foram histórias negligenciadas durante muito tempo. A implementação da Lei 10639/2003 possibilitou tratar de um tema que aparecia sempre de forma marginal no currículo escolar. Ausência injustificável, pois somos, em nossa grande maioria, descendentes de africanos. Há muito “afro” no âmbito particular e pouca “África” nos espaços coletivos e sociais (LOPES & ARNAUT, 2005, p. 7). Definia-se também uma data para a comemoração da “consciência negra” no calendário escolar, dando uma tradição cívica ao conteúdo que deveria ser trabalhado em sala de aula. Tarefa nada fácil, concorda?. Por muito tempo, o estudo da história brasileira tem deixado de lado uma de suas principais influências: aquela resultante da massiva presença, na América Portuguesa e no Brasil independente, de centenas de milhares de africanos escravizados, cujos costumes, visões de mundo e tradições ajudaram a moldar novas formas culturais que se mostraram marcantes no processo de definição da cultura e da identidade brasileiras. Devemos enfrentar tal desconhecimento, entendendo tanto como ele foi constituído como a multiplicidade de experiências que ele encobre. VAMOS REFLETIR Que África é essa? E como olhá-la a partir do Brasil? História da África I 18 Mitos Quando se fala em África, uma série de imagens e estereótipos vem a nossa cabeça. Visto como uma unidade, o continente costuma ser definido a partir de projeções feitas por um olhar estrangeiro que desconsidera, quase sempre, a imensa variedade de povos, culturas e costumes compreendidos numa determinada região. O primeiro passo será confrontar tais imagens (LOPES & ARNAUT, 2005, PP. 9-11). Quem nunca ouviu falar da maldição de Cã? Conta a Bíblia, em Gêneses, que da arca de Noé saíram seus três filhos: Sem, Cã e Jafet. A Terra fora povoada por eles e Cã era o pai de Canaã. Noé teria se embriagado e Cã viu seu corpo nu. Ao contar o fato aos irmãos, estes tomaram uma capa e cobriram o corpo do pai com os rostos voltados para não verem sua nudez. Quando despertou, soube o que fez seu filho mais novo e o amaldiçoou e a sua descendência a se tornarem escravos dos seus irmãos. Esta foi, por muito tempo, a justificativa ideológica dos europeus para a escravidão de negros. Maldito seja Canaã, disse ele; que ele seja o último dos escravos de seus irmãos! E acrescentou bendito seja o senhor Deus de Sem, e Canaã seja seu escravo. Que Deus dilate a Jafet; e este habite nas tendas de Sem, e Canaã seja seu escravo! (http://www.bibliacatolica.kit.net, acesso em 20/02/2011, 16h) Desta forma, os camitas, habitantes da África, tornaram-se os “naturais” escravos dos europeus, pois estavam marcados pelo pecado. E nos dias de hoje? Qualquer um que frequente salas de cinema ou assista televisão já se deparou com representações do continente africano que o define, de maneira geral, como o avesso da civilização, partindo de uma associação direta entre a África e o mundo da natureza. Produzidas a partir dos primeiros contatos dos europeus com a África, tais imagens ganharam traduções mais claras entre o final do século XIX e o início do XX – ao longo do processo de partilha da África, no bojo da corrida imperialista História da África I 19 que marcou a Europa no período. Vejamos como o pensamento conservador, apoiado na ciência do século XIX e seu viés racialista, forjou imagens da África. O pensamento conservador O conservadorismo, na segunda metade do século XIX, estabelece relações com o pensamento racial e passa a escalonar as sociedades. As explicações sobre o mundo deixam de ser dadas pelo sobrenatural, lugar do pensamento religioso, e passam a ser dadas pelo natural, lugar da ciência. A ciência definiu novos saberes e atribuiu a eles um sentido universal, posto que estivessem baseados na razão: como exemplo temos o saber médico que luta por legitimar seu campo frente a outras formas de cura (SILVEIRA, 1999, PP. 90-93). A ciência forjada como fruto desse processo, longe de se limitar às esferas biológicas da vida, viria a estenderseu alcance sobre as esferas sociais e políticas. “Organizar cientificamente a humanidade é, portanto a última palavra da ciência moderna é a sua audaciosa, porém legítima pretensão.” Ernest Renan (1823-1892) A ciência, no Oitocentos, transformou-se em forma privilegiada não só de interpretar, mas de gerir o mundo. Queria atribuir uma ordem à realidade de diferenças do mundo social, para tanto, adotou critérios das ciências naturais. Pretendia, também, estabelecer uma relação de causalidade entre as diferenças sociais e diagnosticar a realidade. Conseguiu isso com a utilização do conceito de raça. A nova ciência racial tinha uma perspectiva muito delimitada e por mais que se pretendesse neutra e objetiva ela partia de um pressuposto claro: a supremacia da raça branca europeia sobre os demais povos. Para tanto, utilizava o sistema classificatório forjado em fins do século XVIII quando o Homo sapiens foi: “[...] classificado em cinco variedades, cujas principais delas são sumariadas em seguida: História da África I 20 1-Homem selvagem. Quadrúpede, mudo, peludo. 2-Americano. Cor de cobre, colérico, ereto. Cabelo negro, liso, espesso; narinas largas; semblante rude; barba rala; obstinado, alegre, livre. Pinta-se com finas linhas vermelhas. Guia-se por costumes. 3- Europeu. Claro, sanguíneo, musculoso; cabelo louro, castanho, ondulado; olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo. Coberto por vestes justas. Governado por leis. 4- Asiático. Escuro, melancólico, rígido; cabelos negros; olhos escuros, severo, orgulhoso, cobiçoso. Coberto por vestimentas soltas. Governado por opiniões. 5- Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, crespos; pele acetinada; nariz achatado, lábios túmidos; engenhoso, indolente, negligente. Unta-se com gordura. Governado pelo capricho” (BURKE apud HERNANDEZ, 2005, P. 19). Este sistema classificatório informou os discursos político-idelógicos que pretendiam hierarquizar o mundo a partir da proximidade ou não do padrão racial das elites europeias. No contexto da expansão do imperialismo pelo mundo, Le Bon advoga uma “classificação psicológica das raças” que hierarquiza os diferentes povos do planeta, de modo a estabelecer a supremacia incontestável dos brancos europeus. A evolução industrial moderna daquele século teria levado a uma progressiva divisão do trabalho que tenderia a reduzir a inteligência daqueles que se dedicam à produção, ou seja, os trabalhadores. Um representante exemplar desse momento foi o filósofo Friedrich Hegel. Na perspectiva de Hegel, os povos negros eram incapazes de se desenvolverem e receberem uma educação. A África subsaariana não teria condições de produzir história. Esta a-historicidade defendida por Hegel é constada em sua obra Filosofia de La historia natural. Nela o filósofo defende que a África propriamente dita (subsaariana) pode ser deixada de lado por não possuir interesse histórico. Nesta parte da África, classificada como a verdadeira África por ele, os homens viveriam na barbárie e na selvageria, sem fornecer elementos à civilização, “[...] é o país Fleumático : calmo, sereno, impassível Túmidos : inchados História da África I 21 criança, envolvido na escuridão da noite, aquém da luz da história consciente” (HEGEL, 1928, p. 187). Durante muito tempo pesquisadores e professores parecem ter partilhado as ideias de Hegel, pois é recente a avalanche de pesquisas sobre tal tema. A situação de grande parte do material didático é mais periclitante, pois salvo momentos pontuais, africanos e afrobrasileiros desaparecem dos livros sem deixar vestígios. Outra noção era fortemente partilhada – a ausência de códigos escritos de linguagem, principalmente na parte subsaariana. Soma-se ao fato de que a História estava se constituindo quanto disciplina obcecada pelo progresso e tinha nos documentos escritos sua verdadeira fonte legítima. Tornou-se natural, aos olhos dos historiadores, acreditar na impossibilidade de produção histórica da maioria História da África I 22 dos povos africanos. Como o modelo de progresso europeu não se aplicava à África, foi tido como um continente a-histórico. Partindo desse pressuposto, a história produzida sobre o continente não foi a de suas sociedades e sim dos europeus nele. Esse ponto de vista imperou mesmo quando a história da África se tornou um campo legítimo de estudos. O grande interesse não era sobre os africanos e seu continente e sim sobre os europeus e suas modificações, o quanto de progresso haviam levado para os primeiros. A noção de uma África que precisava ser civilizada assombrava grande parte da literatura sobre o continente. O século que se iniciara sob o entusiasmo de um ideário iluminista, que negou com veemência as ordenações sociais do Antigo Regime, aproximava- se, assim, de seu fim testemunhando a rearticulação do pensamento conservador, capaz de oferecer uma alternativa autoritária e ainda mais excludente ao mundo criado pelo liberalismo. O pensamento conservador e a filosofia hegeliana contribuíram muito para uma ideia de África estereotipada. Não por acaso, em 1912, Edgar Rice cria “Tarzan, o rei dos macacos”. Ele trazia a representação da supremacia europeia, representada por Tarzan, sobre o mundo africano. A sua origem europeia foi suficiente para que se destacasse entre os africanos. Este personagem fez e faz um grande sucesso, consagrando a imagem de um continente definido como espaço da natureza, do exótico, incivilizado e imóvel. Mais recentemente, outras imagens se juntaram a esta para definir o continente: aquelas que o ligam à miséria, à corrupção e à guerra. Imagens que insistem em mostrar a África como lugar da barbárie, avessa a qualquer forma de civilização. E temos como exemplo Hotel Ruanda filme fruto de um olhar preconceituoso e distanciado que trata a história africana como uma tragédia. Além de filmes, propagandas televisivas veiculam imagens do continente que ligam seus habitantes ao canibalismo, atraso e exótico. Muitas vezes são ridicularizados de forma aberta havendo pressão por parte de afrodescendentes para a interrupção das aparições. História da África I 23 Essas imagens estão longe de mostrar a grande diversidade de povos e culturas existentes no território africano. Continente que possui cerca de 30 milhões de quilômetros quadrados onde se encontram diversas paisagens que vão desde as florestas e savanas, popularizadas nos filmes, até desertos, zonas de clima mediterrâneo e regiões de altas montanhas cobertas de neve (caso do monte Kilimanjaro, no Quênia). Nessas diversas paisagens habitam mais de 800 milhões de pessoas, que fazem da África o segundo continente em termos populacionais. Como resultado, tornou-se berço das mais diferentes culturas e tradições que se expressam nas distintas identidades de seus habitantes: são faladas aproximadamente duas mil línguas, diversas opções religiosas, políticas, sociais e econômicas. História da África I 24 O que se constata é a impossibilidade de se definir para a África um perfil homogêneo como aquele que aparece nos filmes. IMPORTANTE A África deve ser vista como um continente multifacetado e complexo. Este é o grande objetivo e desafio desse curso, propor uma reflexão sobre como o conhecimento de África foi construído a partir de uma ideia de homogeneidade que encobriu a diversidade de experiências do continente. Para tanto, convido o leitor a fazer uma pausa e refletir sobre o que parece óbvio: o termo África. Paremos um instante para conjeturarsobre o título de nossa unidade. Debatemos até o momento sobre alguns preconceitos que envolvem tal tema. Chegou o momento, haja vista que a discussão está amadurecendo, de parar para questionar o termo que nomeia nosso conteúdo. Por trás dessa ideia, há uma série de simplificações e uma forma monolítica de tratar a história. O que entendemos por África? África Se nos aproximarmos do continente, falaremos de suas características físicas, suas florestas, rios, lagos e desertos. A descrição continuará incompleta. A África construída desta forma, pode ser colocada nas estantes de história natural ao lado da história da zebra, do leão ou elefante. E as pessoas? O que buscamos aqui são pessoas vivendo em grupo, organizando instituições, criando cultura, amando, mudando a natureza, logo, uma descrição física do continente não nos satisfaz completamente. O termo África foi usado por muito tempo para designar um recorte geográfico definido por áreas de relações comerciais ou de expansão colonial. História da África I 25 Vejamos mais de perto. Os gregos denominavam os povos africanos de Aithiop.Com esse termo, Heródoto, em seu livro História, denominou os habitantes ao sul do Egito. Os gregos também chamavam a região norte de Líbia. A África do Norte, desde a Antiguidade, destacou-se por ser palco de diversas conquistas promovidas por povos do Oriente e da Europa. Foi, também, caminho para a expansão islâmica em direção à Península Ibérica, no século VIII d.C.. O reino mítico de Preste João povoava, neste período, o imaginário ocidental. Seria um reino cristão que faria frente ao avanço muçulmano, em território africano. Segundo o mito que conta a história do reino de Preste João, ele teria sido o sucessor de Baltazar, um dos três reis magos e o rico e poderoso imperador da Etiópia. Neste reino, os cristãos eram batizados e marcados a ferro para se diferenciarem dos infiéis localizava-se na Abssínia e teria sido evangelizado pelo apóstolo Tomás. Acreditava-se que ele poderia ajudar na reconquista de Jerusalém, com seu poderoso exército e poderes sobrenaturais que faziam com que tanto as águas do Nilo como seres fantásticos o obedecessem. O sonho acabou quando os portugueses chegaram à Abssínia e viram uma sociedade totalmente diferente do mito e nada das esperadas maravilhas: corpos nus, poligamia, e punições severas aos criminosos (corte de mãos e pés, por exemplo). Foi a designação romana que se estendeu para todo o continente. Os fenícios denominavam por afri os cartagineses, esta denominação latina que ficou para a posteridade, pois os gregos não utilizavam, como vimos, um único termo para designar os povos desse continente. Percebemos, desta maneira, a longa duração na forma genérica de tratar essas sociedades. Falamos até aqui da África do Norte. E ao sul do Saara? Esta teve um surgimento tardio, como África. Foi a regionalização do continente africano, pelos europeus, que fez com que a África surgisse. Logo, essa é uma denominação externa. Os seus habitantes não se viam como africanos. A definição geográfica da África Atlântica está intimamente ligada ao avanço português na área compreendida entre a Alta Guiné – Senegâmbia – e Angola. Segundo Alberto da Costa e Silva (2006), a invenção da África Atlântica foi uma competição entre o camelo e a caravela. Desde a Idade Aithiops: Rosto queimado e nome antigo para certos óxidos e sulferetos metálicos escuros) (LOPES & ARNAUT, 2005, p. 16). História da África I 26 Média, grande parte do ouro que circulava nos mercados europeus tinha origem no que no futuro seria a África Atlântica. Região que também era palco de um lucrativo comércio de marfim e escravos, porém um comércio dominado por berberes e muçulmanos. Os portugueses tiveram de enfrentar um duplo obstáculo para chegarem às rotas de comércio do ouro, marfim e escravos. Por um lado estavam os italianos, no Mediterrâneo, defendendo o caminho marítimo, e de outro, os muçulmanos, no norte da África, defendendo o trajeto continental. Os portugueses lançaram-se ao Atlântico e conquistaram, em 1416, as Ilhas Canárias; em 1419-1425, Ilha da Madeira; em 1427, os Açores; em 1434, o Cabo Bojador (DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004, p.33). Antão Gonçalves foi o precursor do tráfico de negros para a Europa, em 1445. Na ilha de Aguim, ele troca mercadorias europeias por ouro e nove africanos de pele negra (DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004, p. 36). Esta região atlântica, caracterizada pelo comércio de ouro, transformar-se-á num imenso mercado de escravos. E foi assim que as caravelas venceram os camelos muçulmanos na luta pela abertura de rotas comerciais. Avanço português Fonte: DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004, p. 32. História da África I 27 VAMOS REFELTIR: Outra noção muito utilizada na historiografia é a de “continente negro”. As pessoas começam a aparecer! Mas todos os africanos são negros? Na maioria dos livros, a África negra refere-se à parte do continente que fica abaixo do Saara, a África subsaariana. Habitantes descritos pela cor da sua epiderme parecem pertencer mais à ordem da natureza, como um elemento seu, do que criadores de cultura, sociedade, estética ou qualquer outra criação tipicamente humana. A difícil penetração no continente, devido à resistência de seus povos e do meio ambiente, transformou o desconhecido em exótico e bestial. A dificuldade de interpretar o “outro” sempre foi uma constante ao longo da história universal. As dificuldades e fabulações não permitiram um estudo sistemático do continente. Este só começou com o expansionismo do século XVIII. No entanto, a África foi e ainda é, em grande medida, qualificada como uma unidade selvagem, pobre e inculta. A perspectiva de Hegel, de que “os povos negros são incapazes de se desenvolverem e receberem uma educação”, ainda prevalece. O que entendemos por africano? Africanos Outra questão que devemos enfrentar: o que entendemos por africano? O que entendemos por brasileiro? Latino? Resposta óbvia, habitantes da África, do Brasil e da América Latina respectivamente. Mas o que entendemos por habitantes da África? Deve ser uma resposta cuidadosa para não cairmos em simplificações tentadoras. São seres humanos que vivem em sociedade, criam padrões comportamentais, linguísticos, culturais, alimentares, religiosos, de honra, de virilidade. São essas produções que nos interessam, ou deveriam interessar. História da África I 28 Mas eis que surge outro problema: africano nos sugere a ideia de unidade e um de padrão comum aos habitantes que habitam o continente chamado África. E a diversidade, nosso interesse privilegiado? As denominações “África” e “africanos” não podem ofuscar as diferenças. Essa ideia de unidade entre esses povos é tardia, quando no século XIX inaugurou-se o pan-africanismo. Pensemos no que escreveu Eçá de Queiroz em sua obra Carta aos Ingleses, no século XIX: Em toda a parte onde o inglês domine e impere, todo o esforço consiste em reduzir as civilizações estranhas ao tipo da sua civilização anglo-saxônica. O mal não é grande quando eles operam sobre a Zululândia e sobre a Cafraria, nessas vastidões da Terra Negra, onde o selvagem e a sua cubata (casa) mal se distinguem das ervas e das rochas, e são meros acessórios da paisagem: aí encontram apenas uma matéria bruta, onde nenhuma anterior forma de beleza original se estraga, quando eles a refundem para a fazer a sua imagem. Como o europeu se julgava a medida e o referencial da humanidade, ao não ver sua imagem refletida deduziu imediatamente que não seencontrava diante de seres humanos. E mais, que os africanos deveriam ser guiados, educados, civilizados e cristianizados para serem moldados à imagem e semelhança dos europeus – de Deus. E quando conferiram humanidade aos africanos? Se os negros eram humanos os europeus eram mais que humanos e a humanidade foi dividida em raças. Por mais que os negros fossem humanos, eles tinham outra natureza, inferior, porque eram de outra raça. Estabeleceu-se, desta forma, no século XIX, a subordinação da cultura à biologia, nascendo o racismo, viés da ciência do Novecentos. História da África I 29 Representação europeia de africanos Fonte: HERNANDEZ, 2005, p. 55. Espero que o objetivo mínimo que nos orientou até aqui tenha sido alcançado e que meus interlocutores possam refletir de forma mais rica, plural e instigante sobre o continente africano. Geralmente, nossa produção intelectual só opera com essas culturas na medida em que interferem no Ocidente, no nosso caso, formando o afrobrasileiro. A proposta é estabelecer uma relação entre Brasil e África que se distancie das óticas apresentadas, que consigamos (re)construir uma história baseada numa perspectiva plural possibilitando acabar com o desconhecimento sobre o assunto no espaço escolar e enriquecer, sobretudo, a história do Brasil ao mostrar que a história dos ancestrais africanos não foi de escravidão e sim de liberdade. História da África I 30 Desafios: eurocentrismo, etnocentrismo e afrocentrismo Faraó divindade do Egito “Eu falei faraó êeeee faraó Eu clamo Olodum Pelourinho êeeee faraó É pirâmide da paz e do Egito Despertai-vos para Cultura egípcia no Brasil Em vez de cabelos trançados Veremos turbantes de Tucamom E nas cabeças Enchei-se de liberdade O povo negro pede igualdade Deixando de lado as separações Que Mara Mara Maravilha Ê Egito, Egito Ê”. (Luciano Gomes dos Santos) Esta música foi um dos primeiros sucessos do grupo Olodum, o mais importante grupo afro da Bahia. A partir da leitura da letra da música intitulada “Faraó Divindade do Egito”, podemos dar início a nossa conversa sobre eurocentrismo, etnocentrismo e afrocentrismo e as armadilhas que tais posicionamentos teóricos representam. História da África I 31 Vencemos alguns obstáculos que se apresentam para o estudo da África, como mitos e preconceitos e historicisamos o próprio termo África. Que outros obstáculos poderemos encontrar pela frente? Chegamos ao momento em que a história coloca desafios para a teoria. O desconhecimento sobre a lógica que alimenta a dinâmica interna das sociedades africanas nos leva, em muitos momentos, a olhá-las com um olhar distante e acabamos por imprimir em nossas conclusões sentidos que estão longe de se aproximar da experiência dos africanos. Adotamos, desta forma, uma perspectiva eurocêntrica e buscamos nos modelos europeus modelos teóricos que expliquem a história africana. Eurocentrismo O momento imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial foi significativo para os povos africanos. Houve o surgimento de diversos movimentos políticos e sociais que pleiteavam a independência das colônias africanas. Num contexto de luta contra o imperialismo, muitos historiadores se debruçaram sobre a História da África, mas a olharam com o olhar europeu e projetaram sobre o continente as sociedades europeias e suas instituições: Estados, Impérios, Reinos e Classes. Acarretou numa produção historiográfica marcada por equívocos e distorções. A produção historiográfica do Brasil não escapou de tais armadilhas. A História da Europa foi e ainda é tida como a História Geral e outras localidades ficam relegadas ao segundo plano, como Ásia e África. Essa é uma visão eurocêntrica que relega pouco espaço aos estudos africanos nos livros didáticos de História, como vimos anteriormente. O autor que faz uma excelente análise sobre o diálogo ou falta dele entre livros didáticos de História e a academia é Anderson Oliva (2003). Ele analisou a produção de material didático da década de 1980, mostrou como muitos livros didáticos distorcem essa história e a apresentam como uma incompletude em relação à europeia. Mesmo quando livros procuram enfrentar o assunto o fazem de forma deformada. A História da África aparece como um apêndice da História Mundial. Sendo assim, fica difícil desconstruir mitos e preconceitos, pois a imagem que se tem do continente não consegue ser modificada. Além de pouco espaço nos depararemos com outro problema: como essa história é contada? História da África I 32 Ao aceitarem o desafio de escrever sobre a história africana, muitos autores o fazem a partir de uma perspectiva europeia. Como se este fosse o modelo a ser buscado nas sociedades de uma forma geral. Ao explicar a história africana diante desse arcabouço teórico-metodológico, os autores aproximam de forma ligeira e superficial as formações políticas e sociais africanas das europeias. Identificam “reis” e suas “cortes” sem nenhuma preocupação em compreender a lógica interna dessas sociedades e buscam, a todo custo, inventariar as sociedades africanas a partir da lógica que movia a sociedade europeia. A consequência é que, analisada a partir de um padrão europeu, as sociedades africanas aparecem nessas obras de modo frágil, como se constituíssem exemplos imperfeitos e atrasados de um desenvolvimento que continuava a ter na Europa o seu modelo. Esses autores, mesmo numa tentativa de valorizar a história da África, usam um vocabulário que acaba por colocá-la na perspectiva do atraso. Como nomear organizações distintas das já conhecidas como Estado, Reino ou Império? E termos como povos, aldeias e tribos passam a pulular nestes textos. Conceitos que expressam, principalmente o último, a noção de primitivismo e atraso. O último passa a ser visto como um dado quase natural de análise sobre o continente. Este é um vocabulário que coloca em evidência a perspectiva eurocêntrica e que ainda é um obstáculo para a compreensão das lógicas internas das sociedades africanas. Representação europeia sobre o Reino do Dahomé História da África I 33 Vimos até aqui que o eurocentismo é uma armadilha analítica na qual muitas vezes caímos sem sentir. Ora reproduzimos em nossas aulas expositivas ora em nossos textos. Claro! Podemos justificar colocando a questão sobre a falta de termos específicos para as formações sociais africanas e a difícil tarefa de se colocar no lugar do outro, no momento da análise. Acabamos sempre por considerar nossa comida a mais gostosa, nossos costumes os mais lógicos, nossa arte a mais bela. Porém, existe um limite entre apreciar o que nos é familiar e caro e desvalorizar os outros projetos de vida e soluções diferentes para desafios que aparentemente são parecidos. O etnocentrismo turva o olhar do observador e nos acende um sinal de alerta, pois é uma característica condenável e inevitável. Etnocentrismo O etnocentrismo pode ser entendido como uma característica comum entre as culturas e ao mesmo tempo algo que deve ser evitado, pois traz em seu bojo a noção de superioridade. Nada substitui a familiaridade que temos com nossos História da África I 34 hábitos, mas devemos aprender a nos familiarizar com o estranho a ponto de não o segregarmos. Mas tal exercício intelectual nem sempre foi a ordem. Como vimos no começo de nossa unidade, Hegel, no início do século XIX, escreveu que “A África não é um continente histórico, não demonstra nem mudança, nem desenvolvimento”. Essa sentença foi acatadaem sua autoridade por muitos intelectuais daquele século. Ao negar dimensão histórica aos povos africanos estes passaram a ser estudados por linguistas, antropólogos e etnólogos informados pelo olhar eurocêntrico. Estamos falando do auge do racismo científico, da vitória do pensamento conservador, que anunciava a inferioridade biológica dos negros. A popularização dessas ideias foi conveniente, pois encobria os atrasos de suas próprias sociedades (AMAURI PEREIRA, 2002, p. 10). Uma forma muito instigante para se pensar o etnocentrismo é visitar o conceito do intelectual palestino-americano Edward Said (1990): orientalismo. Este conceito serviu para que críticas, para além de somente políticas e econômicas, fossem elaboradas ao colonialismo. Estabeleceram-se críticas culturais contundentes nas sociedades que tiveram um passado colonial recente, como grande parte dos Estados africanos. Em sua obra Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente, Said faz uma análise de obras literárias inglesas e francesas dos séculos XVIII e XIX, que retratavam o Oriente e o oriental. O autor defendeu a ideia de que o espaço geográfico denominado “Oriente” correspondia a uma longa tradição de imagens idealizadas sobre a Ásia e o Oriente Médio produzidas pelo etnocentrismo ocidental sobre o outro. Narrativas que intencionavam justificar a dominação do outro, principalmente o árabe muçulmano. Usou, para tanto, o argumento foucaltiano de que saber é uma forma privilegiada de poder. Said usou como exemplo a ocupação do Egito pelos franceses em 1798. Napoleão levou vários sábios para estudarem o Egito. Com a dominação inglesa, foi feita a mesma coisa e desta forma surgiu o egiptólogo. Este especialista passara a conhecer o Egito melhor que seus habitantes. O autor faz uma citação que exemplifica o olhar etnocêntrico desse momento: História da África I 35 O europeu é um raciocinador conciso; suas declarações de fato são desprovidas de qualquer ambiguidade; ele é um lógico natural, mesmo que não tenha estudado lógica; é por natureza cético e requer provas antes de aceitar a verdade de qualquer proposição; sua inteligência treinada trabalha como a peça de um mecanismo. A mente oriental, por outro lado, assim como suas pitorescas ruas, é eminentemente carente de simetria. Embora os antigos árabes tenham adquirido em um grau um tanto mais alto a ciência da dialética, seus descendentes são singularmente deficientes de faculdades lógicas. São muitas vezes incapazes de tirar as conclusões mais óbvias de qualquer simples premissa cuja verdade possam admitir. Tente-se arrancar uma declaração de fato direta de qualquer egípcio normal. Sua explicação será em geral longa e carente de lucidez. Ele provavelmente entrará em contradição uma dúzia de vezes antes de acabar sua história. Com frequência sucumbirá ao mais brando método de análise. (Lord Crommer. O Egito Moderno apud SAID, 1990, PP. 48-49) O Egito passou a ser objeto de análise da ciência positiva produzida no Ocidente que não encontrava paralelo no Oriente. Assim ficava provada a incapacidade de o oriental, como vimos no exemplo acima, de produzir um pensamento coerente ou mesmo o autoconhecimento. Precisava ser tutelado por civilizações mais “iluminadas” pelo saber racional. Poder e saber, na análise de Said, se entrelaçavam. Os egípcios demonstravam não conseguir estabelecer domínio sobre seu destino histórico. Os ocidentais enfatizaram, nas representações sobre o Oriente, as paixões, sua arquitetura incompreensível, seu mundo sem razão e controle. O Oriente surge, portanto, como uma “invenção” do Ocidente que passara a narrar os atributos e características dos orientais. História da África I 36 Fonte: DEL PRIORE & VENÂNCIO, 2004, p 62. Como vimos, o etnocentrismo surge de um olhar maculado a ponte de impossibilitar a compreensão de costumes que não lhes sejam familiares. Ao desqualificar o modo de ser e de agir do outro, valoriza-se aquele que observa. Ao criar o Oriente, “inventava-se”, ao mesmo tempo, o Ocidente. Falar do outro, de suas incapacidades e limites, foi a forma encontrada para exaltar as capacidades e autonomia atribuídas a si mesmo, como fica claro no texto de Lod Crommel, citado acima. As atitudes etnocêntricas, como mostra a análise de Edward Said, não atingem a um indivíduo específico e sim a um grupo de pessoas culturalmente ligadas. É uma dupla construção identitária – do “eu” e do “outro”. Por isso, afirmamos acima que o etnocentrismo na sua forma de pensamento eurocêntrico, serve para mascarar os próprios limites. Ao afirmar a irracionalidade do outro, reafirmo a minha racionalidade. No Brasil, podemos pensar na eliminação da “mancha negra”, como uma tentativa de etnocídio (CLASTRES, 1982). Este conceito nos ajuda a pensar as diversas tentativas não de um genocídio, com a morte física, mas a História da África I 37 tentativa de destruição cultural. Tentativa, pois a história mostrou a impossibilidade da aculturação. E quando a África conquista o direito à história? Apagar das Ciências Sociais o racismo científico, hegemônico no século XIX, não seria tarefa fácil. Ele teimava em perdurar. A luta pela conquista do direito á história partira dos africanos com a ajuda dos negros da diáspora. Foi no campo da política que deram os primeiros passos para resolverem tais questões. Com o intuito de valorizar uma história que leve em conta a perspectiva dos africanos, acabaram por afirmar novas mitologias sobre o continente. Estavam, em grande parte, baseadas na naturalização de uma identidade africana, mas não impossibilitou a discussão sobre os problemas e o processo de construção dessa identidade. IMPORTANTE A definição de identidades, de quem somos “nós” e de quem são os “outros”, varia conforme o contexto em que estamos inseridos e segundo quais características privilegiamos nas buscas pelas semelhanças e diferenças. Vimos até aqui que o eurocentrismo foi uma forma etnocêntrica de se constituir a história de africanos e orientais. Outro obstáculo, que afirma novas mitologias sobre o continente e naturaliza outro tipo de ideia comum hoje, a existência de uma identidade que liga os diversos povos do continente africano, é o afrocentrismo. A identidade emerge em uma situação de contraste, manifesta-se no coletivo, não isoladamente, caracterizando-se pelo estabelecimento de fronteiras entre grupos quando se afirma o “Nós” – a identidade – em relação aos “Outros” – “Eles” (MANUELA CUNHA, 1986, pp. 115-16). História da África I 38 Afrocentrismo A identidade ampla forjada entre africanos e descendentes precisa ser historicisada. Refere-se principalmente à África subsaariana. É uma ideia importante por ter um sentido político, mas só faz sentido na atualidade e não pode ser tomada como uma definição que explique os processos históricos das muitas sociedades africanas em séculos anteriores. O afrocentrismo foi a forma como muitos autores passaram a enfrentar a tarefa de explicar a história do continente africano e confrontar a lógica eurocentrista. O afrocentrismo foi uma forma encontrada por intelectuais para fazer uma análise da história africana em que os africanos aparecessem como sujeitos e não como vítimas. Foi uma postura teórica assumida para fugir das amarras da cultura ocidental. Visava valorizar a herança africana, vista, pelo Ocidente, como sinônimo de atraso e barbárie. Se caracteriza, desta forma, como uma corrente historiográfica que se contrapõe às análises eurocentristas que por muitotempo hegemonizaram os estudos sobre a África. Foi no contexto das independências africanas que surgiu o afrocentrismo. Proposta de um novo posicionamento, tanto para a história africana, que deveria ser pensada do ponto de vista africano como para a história mundial, que também deveria ser feita a partir do ponto de vista africano. Os afrocentristas, para realizarem seu projeto, retomaram a ideia de que a civilização surgiu na Grécia Antiga e colocaram a África como berço da humanidade. A ideia de uma sociedade branca e europeia como centro da civilização marginalizava todos aqueles que não são europeus, como a África, que ficaria relegada a um papel secundário. O filósofo, George James (1954), nascido na Guiana, estuda na Inglaterra e lá descobre a identidade negra ao redor do mundo. A partir de sua experiência, e que informa sua obra, como Legado Roubado, que são dadas as bases para o florescimento do afrocentrismo. O filósofo afirmava que houvera uma falsificação histórica, alimentada pelo eurocentrismo, ao colocar a Grécia como ponto de partida para a civilização. No subtítulo de seu livro, James escreveu o seguinte: “Os gregos não são os autores da filosofia grega, e sim as pessoas do Norte da África, geralmente chamadas egípcias.” (GEORGE JAMES, 1954). História da África I 39 Vários autores seguiram os passos de James e questionaram a historiografia ocidental. Em contra partida, afirmavam a primazia do continente africano no desenvolvimento da civilização. Para eles, a separação entre a cultura europeia e a africana seria um equívoco, pois ambas teriam uma mesma origem na civilização do Egito. Os discursos racistas do século XIX que fizeram tal separação, ou seja, a civilização da barbárie, sociedades europeias das africanas ao sul do Saara. A consequência foi a produção de uma perspectiva histórica que negava suas bases. A intenção era afirmar a ideia de uma civilização negra, negada pelas análises eurocentristas. Um dos primeiros militantes do movimento negro na América Central, o jamaicano Marcus Garvey partiu para a Inglaterra em 1912 e lá conheceu outros negros de diversas localidades que tinham as mesmas dificuldades que as suas. Essa experiência partilhada e marcada por problemas, impulsionou Garvey a defender a existência de uma identidade africana e de seus descendentes em todo o mundo. Levando-o a lutar pela tomada de consciência dos negros a respeito do valor de suas culturas. Afirmava que o tipo de ensino a que estavam submetidos garantia o sucesso dos brancos em detrimento dos negros. Para reverter este quadro, seria necessário um sistema de ensino que valorizasse e mostrasse a superioridade da cultura de africanos e seus descendentes. Marcus Garvey Os afrocentristas responderam aos apelos de Garvey e observamos isso na análise, citada acima, do filósofo James. A adoção de tal perspectiva seria uma forma de afirmar o orgulho étnico entre os africanos e seus descendentes, rompendo com as barreiras impostas pelo pensamento racista. O que observamos é a transformação de uma perspectiva política, que afirma a necessidade de valorização da cultura africana, que se transforma numa perspectiva acadêmica. A partir dessa perspectiva, afirma-se a legitimidade da herança africana. O afrocentrismo surgiu como doutrina a partir da valorização da cultura africana e intelectuais negros tentaram se apropriar de uma história que os colocava num papel secundário, a história produzida a partir de uma visão eurocêntrica. História da África I 40 Começamos a perceber as armadilhas tanto do eurocentrismo como do afrocentrismo, concorda? Umas das críticas mais interessantes dessas duas doutrinas que se opõem pelo vértice foi feita por Kwame Appiah. Filósofo filho de ganenses, Appiah mostra as proximidades entre as duas doutrinas. Fosse para valorizar a identidade africana ou para colocá-la como sinônimo de atraso, ambas as doutrinas assumiram como dado histórico inquestionável a existência de uma identidade negra expressa na ligação com o continente africano. Tal identidade foi construída ao longo do século XIX, como nos chama a atenção Appiah para a sua historicidade. Foi no Oitocentos, que descendentes de africanos tanto na América como na Europa, que experimentavam cotidianamente a exclusão e o racismo, passaram a postular seus laços de criação com o continente africano. Foi dentro da lógica europeia que tal identidade foi forjada. Informado por essas ideias, Alexandre Crummel, pastor afroamericano nascido nos EUA em 1818, defendeu em meados do século XIX, uma ação conjunta de africanos de todas as regiões. Segundo ele, a “raça africana” como um todo deveria se unir na luta contra a discriminação. Ele tornou-se um dos inventores do sentimento nativista africano. Em 1853, Crummel muda-se para a Libéria, onde foi atuar como missionário. A defesa que fazia de uma identidade africana era baseada em concepções europeias e isso fica claro na sua História da África I 41 atuação como missionário. Objetivava evangelizar e converter os nativos, afastando-os de suas religiões tradicionais. Defendeu a adoção da língua inglesa pelos africanos como uma forma de evolução. Postulava que as diversas línguas faladas por africanos eram atrasadas. Para ele, a colonização seria uma forma de desenvolver a África. Appiah analisa a atuação de Crummel como exemplar desse momento, século XIX, de uma identidade africana. Não partia da lógica das culturas locais, que eram por eles menosprezadas. Era uma construção externa aos povos dos continentes. Em sua base estava um conceito desconhecido pelas sociedades ao sul do Saara, o conceito de raça. Como essa identidade não pôde ser construída com base na cultura, a saída foi estabelecê-la com base em um elemento natural, a cor da pele. Porém a cor da pele não conseguiu estabelecer um elo inquebrantável entre diferentes sujeitos e grupos. Foi sobre o conceito de raça que intelectuais como Crummel forjaram o conceito de identidade africana. Não partiam de uma efetiva compreensão da lógica e das culturas dos povos do continente, capazes de mostrar uma diversidade muito diferente da ideia de unidade que queriam construir. Tal ideia estava pautada na oposição entre negros e brancos vivenciadas na América, sem levar em conta as diferentes vivências na diáspora. No século XX, diversos movimentos culturais se apropriaram de tais ideias para mostrar a singularidade dos africanos frente aos europeus, como o pan-africanismo e a negritude. Foi com base em uma ideia essencialista a respeito da África e seus habitantes que tal identidade foi edificada. Kwame Appia jogou uma luz sobre as discussões a respeito do eurocentrismo e afrocentrismo. Segundo o autor, os autores que utilizam a perspectiva afrocêntrica, ou seja, a suposição de que existe uma identidade inata entre os africanos, que se estenderia do Egito antigo aos negros escravizados na América, baseiam-se nos mesmos conceitos e ideias que autores eurocêntricos usam para desconsiderar a História da África. A produção historiográfica resultante dessas análises não é tão diferente das decorrentes do olhar eurocêntrico. Ambas trabalham com a noção de uma identidade ontológica para os povos africanos. São os valores da sociedade História da África I 42 ocidental que continuam sendo reforçados e estes são muito diferentes das diversas sociedades constituídas no continente africano. São dois modelos analíticos que não dão conta de compreender os modos de viver e pensar próprios dos muitos africanos ao longo desua história. Métodos e fontes: a busca de um ponto de vista africano Problemas da História Única Nascida em 1977, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie deu, em 2009, um belo depoimento sobre o processo de descoberta de um ponto de vista africano nas histórias que contava. É um belo testemunho para iniciarmos nossa conversa sobre a produção de uma história da África feita efetivamente do ponto de vista africano e a força assumida pela oralidade no continente, de modo a refletir sobre a validade desse testemunho no contexto africano. Veja! “Eu sou uma contadora de história e gostaria de contar a você algumas histórias pessoais sobre o que eu gosto de chamar "o perigo de uma história única". Eu cresci num campus Universitário no Leste da Nigéria. Minha mãe diz que eu comecei a ler com dois anos, mas eu acho que quatro é provavelmente mais próximo da verdade. Então, eu fui uma leitora precoce. E o que eu lia eram livros infantis britânicos e americanos. Eu fui uma escritora precoce. E quando comecei a escrever, por volta dos sete anos, histórias com ilustrações em giz de cera que minha mãe era obrigada a ler. Eu escrevia exatamente os tipos de história que lia. Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. Eles brincavam na neve. Comiam maças. (Riso da plateia) Eles falavam muito sobre o tempo, como era maravilhoso o sol ter aparecido (risos). Eu nunca havia estado fora da Nigéria. Nós não tínhamos neve, nós comíamos mangas. E nós nunca falávamos sobre o tempo porque não era necessário. Meus personagens bebiam muita cerveja de gengibre porque as personagens dos livros britânicos que eu lia bebiam cerveja de gengibre. Não importava se eu não tinha a mínima ideia do que era cerveja de gengibre. (risos) História da África I 43 E muitos anos depois, eu desejei desesperadamente experimentar cerveja de gengibre. Mas isso é uma outra história. A meu ver, o que isso demonstra é como nós somos impressionáveis e vulneráveis face a uma história, principalmente quando somos crianças. Porque tudo que havia lido eram livros nos quais as personagens eram estrangeiras. Convenci-me de que os livros, por sua própria natureza, tinham que ter estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu não podia me identificar. Bem, as coisas mudaram quando eu descobri os livros africanos. Não haviam muitos disponíveis e eles não eram tão fáceis de encontrar quanto os livros estrangeiros, mas devido a escritores como Chinua Achabe e Camara Laye passei por uma mudança mental em minha percepção da leitura. Percebi que pessoas como eu, meninas com a pele cor de chocolate, cujos os cabelos crespos não podiam formar rabos-de-cavalo, também podiam existir na literatura. Eu comecei a escrever sobre coisas que eu reconhecia. Bem, eu amava aqueles livros britânicos e americanos que eu lia. Eles mexiam com a minha imaginação, me abriam novos mundos. Mas, a consequência inesperada foi: não sabia que pessoas como eu podiam existir na literatura. Então, o que a descoberta de escritores africanos fez por mim foi: salvou-me de ter uma única história sobre o que os livros são. Eu venho de uma família nigeriana, de classe média. Meu pai era professor. Minha mãe era administradora. Tínhamos, como era normal, empregadas domésticas, que frequentemente vinham das aldeias rurais próxima. Então, quando fiz oito anos, arranjamos um novo menino para a casa. Seu nome era Fide. A única coisa que minha mãe nos disse sobre ele foi que sua família era muito pobre. Minha mãe enviava arroz, inhame e nossas roupas usadas para sua família. E quando eu não comia tudo no jantar, minha mãe dizia: "Termine sua comida! Você não sabe que pessoas como a família de Fide não tem nada?" Então eu sentia uma enorme pena da família de Fide. Um sábado, nós fomos visitar sua aldeia e sua mãe nos mostrou um cesto com um pão lindo, feita de ráfia seca por seu irmão. Eu fiquei atônita! Nunca havia pensado que alguém em sua família pudesse ter feito esse cesto. Tudo que eu tinha ouvido sobre eles era como eram pobres, assim havia se tornado impossível para História da África I 44 eu vê-los como alguma coisa além de pobres. Sua pobreza era a minha história única sobre eles. Anos mais tarde, pensei nisso quando deixei a Nigéria, para cursar a universidade nos Estados unidos. Eu tinha dezenove anos. Minha colega de quarto americana ficou chocada comigo. Ela perguntou onde eu tinha aprendido a falar inglês tão bem e ficou confusa quando eu disse que, por acaso, a Nigéria tinha o inglês como sua língua oficial. Ela perguntou se podia ouvir o que ela chamou de minha "música tribal" e, consequentemente, ficou muito desapontada quando eu toquei minha fita da Mariah Carey. (risos) Ela presumiu que eu não sabia como usar o fogão. O que me impressionou foi que ela sentiu pena de mim antes mesmo de ter me visto. Sua posição padrão para comigo, como uma africana, era um tipo de arrogância bem intencionada, piedade. Minha colega de quarto tinha uma única história da África. Uma única história de catástrofe. Nesta única história não havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, de jeito nenhum. Nenhuma possibilidade de sentimento mais complexo do que piedade. Nenhuma possibilidade de uma conexão como humanos iguais. Eu devo dizer que antes de ir para os Estados Unidos, eu não me identificava, conscientemente, como uma africana. Mas nos Estados unidos, sempre que o tema África surgia as pessoas recorriam a mim. Não importava que eu não sabia nada sobre lugares como Namíbia. Mas eu acabei por abraçar essa nova identidade. E, de muitas maneiras, agora eu penso em mim mesma como africana. Entretanto, fico um pouco irritada quando referem- se à África como um país. O exemplo mais recente foi o meu maravilhoso voo de Lagos dois dias atrás, não fosse um anuncio de um voo da Virgin sobre o trabalho de caridade na "Índia, África e outros países." (Risos) Após ter passado vários anos nos Estados unidos como uma africana, eu comecei a entender a relação de minha colega para comigo. Se eu não tivesse crescido na Nigéria e se tudo que eu conhecesse sobre a África viesse das imagens popularizadas eu também pensaria que a África era um lugar de lindas paisagens, lindos animais e pessoas incompreensíveis lutando em guerras sem sentido, morrendo de pobreza e AIDS, incapazes de falar por eles História da África I 45 mesmo e esperando serem salvos por uma estrangeiro branco e gentil. Eu veria os africanos do mesmo jeito que eu, quando criança, havia visto a família de Fide. Eu acho que essa única história da África vem da literatura ocidental Aqui temos uma citação de um mercador Jonh Locke, quando navegou até o oeste da África em 1561 e manteve um fascinante relato de sua viagem. Após referir-se aos negros africanos como "bestas que não tem casas," ele escreve "Eles também são pessoas sem cabeças, que tem sua boca e olhos em seus seios". Eu rio toda vez que leio isso, e alguém deve admirar a imaginação de Jonh Locke. Mas o que é importante sobre a sua escrita é que ela representa o início de uma tradição de contar histórias africanas no Ocidente. Uma tradição da África subsaariana como um lugar negativo, de diferença, de escuridão, de pessoas, que nas palavras do maravilhoso poeta, Rudyard Kipling, são "metade Demônio, metade crianças." E então eu comecei a perceber que minha colega de quarto americana deve ter, por sua vida, visto e ouvido diferentes versões de uma única história. Como um professor, que uma vez me disseque meu romance não era "autenticamente africano". Bem, eu estava completamente disposta a afirmar que havia uma série de coisas erradas com o romance, que ele havia falhado em vários lugares. Mas eu nunca teria imaginado que ele teria falhado em alcançar alguma coisa chamada autenticidade africana. Na verdade, eu não sabia o que era "autenticidade africana". O professor disse que as minhas personagens pareciam-se muito com ele, um homem educado de classe média. Minhas personagens dirigiam carros, elas não estavam famintas. Por isso elas não eram autenticamente africanas. Devo acrescentar que eu também sou culpada na questão da história única. Alguns anos atrás, eu visitei o México saindo dos EUA. O clima político nos EUA àquela época era tenso. E havia debate sobre a imigração. E, como frequentemente acontece na América, imigração tonou-se sinônimo de Mexicanos. Havia histórias infindáveis de mexicanos como pessoas que estavam espoliando o sistema de saúde, passando as escondidas pela fronteiras, sendo presos, esses tipos coisas. Eu lembro andar, no meu primeiro dia em Guadalajara, vendo as pessoas indo trabalhar, enrolando tortilhas História da África I 46 no supermercado, fumando, rindo. Eu lembro que o meu primeiro sentimento foi surpresa. E então eu fiquei oprimida pela vergonha. Eu percebi que eu estava tão imersa na cobertura da mídia sobre os mexicanos que eles haviam se tornado uma coisa em minha mente: "o imigrante abjeto”. Eu tinha assimilado a história única sobre os mexicanos e não podia estar mais envergonhada de mim mesma. Então, é assim que se cria uma história única: mostre um povo com uma só coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e verá que eles se tornarão. É impossível falar sobre uma única história sem falar sobre o poder. Há uma palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo. A palavra é "Nkali". É um substantivo que livremente se traduz: "ser maior do que o outro", como nosso mundo econômico e político, histórias também são definidas pelo principio do "nkali". Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destruir uma pessoa, o jeito mais simples é contar sua história e começar com "em segundo lugar". Comece uma história com as flechas dos navios americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem uma história totalmente diferente. Recentemente, eu palestrei numa universidade onde um estudante disse-me que era uma vergonha que homens nigerianos fossem agressores físicos como a personagem do pai no meu romance. Eu disse a ele que eu havia terminado de ler um romance chamado "Psicopata Americano" - (risos) - e que era uma grande pena que jovens americanos fossem assassinos em série. (riso) (Aplausos) É óbvio que eu disse isso num leve ataque de irritação. (riso) - Nunca havia me ocorrido pensar que só porque eu havia lido um romance no qual uma personagem era um assassino em série, que isso era, de alguma forma, representativo de todos os americanos. E agora, isso não é porque eu sou uma pessoa melhor História da África I 47 do que aquele estudante, mas, devido ao poder cultural e econômico da América, eu tinha muitas histórias sobre a América. Eu havia lido Tyler, Updike, Steinbeck e Gastskill. Eu não tinha uma única história sobre a América. Quando eu soube, alguns anos atrás, que escritores deveriam ter tido infâncias realmente infelizes para ter sucesso, eu comecei a pensar sobre como eu poderia inventar coisas horríveis que meus pais teriam feito comigo. (riso) – Mas, na verdade, eu tive uma infância muito feliz, cheia de risos e amor, em um família muito unida. Mas, também tive avós que morreram em campos de refugiados. Meu primo Polle morreu porque não teve assistência médica adequada. Um dos meus amigos mais próximos, Okoloma, morreu num acidente aéreo porque nossos caminhões de bombeiros não tinham água. Eu cresci sob governos militares repressivos que desvalorizavam a educação, então, por vezes, meus pais não recebiam seus salários. E, então, ainda criança, eu vi a geleia desaparecer do café-da-manhã, depois a margarina desapareceu, depois o pão tornou-se muito caro, depois o leite ficou racionado. E, acima de tudo, um tipo de medo político normalizado invadiu nossas vidas. Todas essas histórias fazem-me quem eu sou. Mas insistir somente nessas histórias negativas é superficializar minha experiência e negligenciar as muitas outras histórias que me formaram. A história única cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentiras, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a história única. Claro, a África é um continente repleto de catástrofes. Há as enormes, como as terríveis violações no Congo. E há depressivas, como o fato de 5.000 pessoas candidatarem-se a uma vaga de emprego na Nigéria. Mas, há outras histórias que não são sobre catástrofes. É muito importante, é igualmente importante, falar sobre elas. Eu sempre achei que era impossível relacionar-me adequadamente com um lugar ou uma pessoa sem relacionar-me com todas as histórias daquele lugar ou pessoa. A consequência de uma única história é essa: ela rouba das pessoas sua dignidade. Faz o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada difícil. História da África I 48 Enfatiza como nós somos diferentes ao invés de como somos semelhantes. E se antes de minha viagem ao México eu tivesse acompanhado os debates sobre imigração de ambos os lados, dos Estados Unidos e do México? E se minha mãe nos tivesse contado que a família de Fide era pobre. E trabalhadora? E se nós tivéssemos uma rede televisiva africana que transmitisse diversas histórias africanas para todo o mundo? O que o escritor nigeriano Chinua Achebe chama "um equilíbrio de histórias". E se minha colega de quarto soubesse do meu editor nigeriano, Mukta Bakaray, um homem notável que deixou seu trabalho em um banco para seguir seu sonho e começar uma editora? Bem, a sabedoria popular era que nigerianos não gostavam de literatura. Ele discordava. Ele sentiu que pessoas que podiam ler, leriam se a literatura se tornasse acessível e disponível para eles. Logo após ele publicar meu primeiro romance, eu fui a uma estação de TV em Lagos para uma entrevista. E uma mulher que trabalhava lá como mensageira veio a mim e disse: "Eu realmente gostei do seu romance, mas não gostei do final. Agora você tem que escrever uma sequência e isso é o que vai acontecer...." (riso) - E continuou a me dizer o que escrever na sequência. Agora eu não estava apenas encantada, eu estava comovida. Ali estava uma mulher, parte das massas comuns de nigerianos, que não se supunham ser leitores. Ela não tinha só lido o livro, mas ela havia se apossado dele e sentia- se no direito de me dizer o que escrever na sequência. Agora, e se minha colega de quarto soubesse de minha amiga Fumi Onda, uma mulher destemida que apresenta um show de TV em Lagos e que está determinada a contar as histórias que nós preferimos esquecer? E se minha colega de quarto soubesse sobre a cirurgia cardíaca que foi realizada no hospital de Lagos na semana passada? E se
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