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Algumas teses sobre a perversao e sobre Laranja Mecânica

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1 
 
[Os números entre colchetes fazem referência ao texto tal como publicado no livro: 
Belo, F. (2016). Algumas teses sobre a perversão e sobre o romance Laranja 
Mecânica. In Coutinho, J., org. (2016). Direito e Psicanálise: interseções e 
interlocuções a partir de Laranja Mecânica, de Anthony Burgess. Rio de Janeiro: 
Lumen Juris, pp. 85-109.] 
 
 
[85] Algumas teses sobre a perversão e sobre o romance Laranja Mecânica 
Fábio Belo1 
 
1. Ponto de Partida 
A teoria da sedução afirma a prioridade do outro na constituição 
do ser humano e da sua sexualidade. Não o Outro lacaniano, mas o 
outro concreto: o adulto face à criança. Um adulto perverso? Sim, 
pode-se dizer; mas perverso intrinsecamente, pelo fato de que 
suas mensagens são comprometidas por seu próprio inconsciente. 
(Laplanche, 1992c: 454) 
A partir da TSG2, o abuso sexual infantil e a violência contra a criança devem 
ser pensados em termos de grau. A sedução é generalizada e condição universal 
indispensável para a constituição do humano. O ponto de partida é acolher a 
impossibilidade de distinguir muito claramente o que deixa de ser mera sedução Dzlibidinizantedz – necessária para trazer a cria humana ao mundo simbólico dos 
afetos – e o que passa a ser sedução mortífera, perversa, propriamente dita. Não há 
fronteiras nítidas aqui. O que não quer dizer – e seria perverso dizê-lo – que toda 
maternagem dá no mesmo... e que toda perversão se equivale. 
Isso parece estar de acordo com o que a tese fundamental da psicanálise 
acerca da sexualidade humana: [86] 
A onipotência do amor talvez nunca se mostre com maior 
intensidade do que nessas aberrações. O mais nobre e o mais vil, 
por toda parte da sexualidade, aparecem na mais íntima 
 
1 Prof. Adjunto II, de Psicanálise, da UFMG. www.fabiobelo.com.br 
2 Teoria da sedução generalizada: em linhas gerais, a teoria de Jean Laplanche que visa 
retomar a ideia de que a constituição subjetiva se dá através e apenas através do aporte libidinal do 
cuidador sobre a criança. Esse fato incontornável determina a natureza pulsional do inconsciente, 
no sentido que este é sempre comprometido com a sexualidade infantil, perversa e polimorfa. Esta, 
por sua vez, tem funcionamento mortífero e contra ela erigem-se as defesas egóicas, essas também 
pulsionais, porém regidas por um princípio de ligação, contenção. 
2 
 
dependência mútua (Dzvom Himmel durch die Welt zur Hölledz). 
(ESB, VII, 153; GW, V, 61) 
 Ponto de partida, portanto: esforço de análise, de distinção entre as 
perversões. Não para encontrar uma área (do amor, da política) livre dessa 
incômoda mistura, pois é nosso pressuposto: há dependência mútua entre as 
forças inconscientes (perversas, pervertedoras) e aquelas outras sociais, egóicas, 
de maneira geral, contrárias às primeiras. 
 No romance de Burgess (2012 [1962]) essa mistura talvez já seja 
representada pela droga que anima as noitadas de horrorshow: o moloko com 
substâncias sintéticas. O leite tóxico é uma metáfora desse elemento infantil que é 
também mortífero e excitante. 
 
2. O sexual perverte o biológico 
 Acredito que a distinção entre agressividade e sadomasoquismo, esboçada 
por Laplanche (1985 [1970]), em seu livro Vida e Morte em Psicanálise, é um ponto 
fundamental na definição da perversão tendo em vista a TSG. A passagem é bem 
clara: 
(...) reservamos, pois, os termos sádico (sadismo), masoquista 
(masoquismo) para tendências, atividades, fantasias, etc., que 
comportam necessariamente, de modo consciente ou inconsciente, 
um elemento de excitação ou de gozo sexuais. Assim nós os 
distinguimos da noção de agressividade (auto ou hetero-
agressividade) que, então, será considerada como de essência não 
sexual. Essa distinção prévia não supõe em absoluto a existência 
efetiva de uma agressividade não sexual e, inversamente, não 
desmente a priori que comportamentos comumente chamados Dzsádicosdz possam em realidade depender de elementos instintivos 
não sexuais. (Laplanche, 1985 [1970], p. 91) 
 Laplanche coloca a agressividade no campo do auto-conservativo 
justamente para fazer notar que, a partir desse apoio, ela adentra no campo do 
sexual. Talvez seja possível pensar que a agressividade puramente biológica só 
exista antes da constituição do aparelho psíquico. Uma vez constituído o ego, a 
agressividade passa a ser traduzida como sadismo e/ou masoquismo. O biológico 
[87] serve, portanto, como apoio3. É pela via da sedução generalizada que o sexual 
é implantado: apoiado nas funções biológicas. 
 
3 Como apoio e também, em alguns casos, como fonte pulsional. Não no sentido em que 
Freud propunha, uma fonte direta, mas sempre no sentido em que o corpo também age como 
3 
 
 O ponto que nos interessa é a afirmação – muitas vezes proferida por 
Laplanche – de que a sexualidade só aparece posteriormente ao biológico, graças à 
sedução. O sexual é o que perverte o biológico. 
 Nossa primeira tese sobre a perversão, portanto: há que se distinguir entre 
dois campos e examinar as relações entre eles. (1) A sexualidade, na medida em 
que nos é aportada do outro, é, ela mesma, perversa. (2) Há uma posição subjetiva, 
geralmente em tensão com o que o social chama Dznormaldz. Quais as relações entre 
esses dois campos? Onde se encontram, quando se afastam? Lembremos alguns 
exemplos: 
 o beijo é a perversão da boca (início do tubo digestivo); 
 o prazer anal: qual seu sentido biológico? 
 as auto-mutilações artísticas (Orlan) ou religiosas; 
 a dietética (anorexia, bulimia, jejuns). 
Uma consequência geral dessa primeira tese é que sempre será necessário 
estabelecer relações entre a sexualidade humana – fundamentalmente infantil, 
inconsciente e perversa – e uma posição subjetiva que designamos perversão. 
Vamos entender melhor essa derivação – da sexualidade perversa para a 
perversão – mais adiante. 
 
2.1. No final, o biológico 
 
Burgess nos conta a curiosa história de que seu romance tem duas versões. 
Uma americana e outra britânica. A primeira com 20 capítulos e a segunda com 21. 
O editor norte-americano não gostou do final: Dz(...) ele tinha visto algo implausível – ou talvez, meramente invendável – em minha noção de que a maioria dos 
adolescentes inteligentes inclinados à violência e ao vandalismo sem sentido 
superava isso quando pressentia a chegada da maturidadedz (Burgess, 2012 [2004], 
p. 341). 
[88] No capítulo 7, da última parte do romance, Alex compara o jovem a um 
daqueles Dzbrinquedos malenksdz: 
(...) como pequenos tcheloveks feitos de lata e com uma mola 
dentro e uma chave de corda do lado de fora e você dá corda nele 
e grrr grrr grrr e ele vai itiando, tipo assim andando, Ó, meus 
 
mensagem. A dor mais lancinante pode ter sentidos muito distintos e suas traduções dependem de 
outras traduções mais complexas. O que importa destacar aqui é que o corpo é colonizado pelo 
pulsional: mesmo quando ele se manifesta em sua materialidade real, é como ataque pulsional que 
essa manifestação é traduzida. 
4 
 
irmãos. Mas ele itia numa linha reta e bate direto em coisas bang, 
bang e não pode evitar o que está fazendo. Ser jovem é como ser 
uma dessas máquinas malenks. (Burgess, 2012 [1962], 273) 
 O autor faz seu personagem expor seu desvio biológico de forma clara. Tão 
logo a juventude acaba (a corda no brinquedo), o sujeito se endireita. 
 É difícil não ver nesse último capítulo um sinal claro do recalcamento de 
uma descoberta tão bem exposta nos capítulos anteriores. É quase um antídoto ao 
tóxico exposto de forma tão brutal ao leitor.As críticas de Laplanche (1992d) ao recurso biológico em Freud mostram 
que o biológico sempre aparece como razão explicativa quando se trata de recusar 
a primazia da alteridade na fundação da subjetividade. Elementos como fantasias 
originárias, cena primária, heranças filogenéticas (como a culpa de ter matado o 
pai primevo): todos esses elementos podem ser vistos como desvios biologizantes 
que tentam recentrar no eu sua própria origem e a origem do inconsciente. O 
romance de Burgess ao atribuir ao biológico as razões da violência de Alex faz o 
mesmo: ali onde poder-se-ia perceber o caráter sexual da violência, advém uma 
teoria biológica. 
 
3. A posição originária do masoquismo 
 
Em sua leitura de DzUma criança é espancadadz, elaborada em Vida e Morte e 
no artigo DzLa position originaire du masochismedz (1992b), Laplanche demonstra a 
posição originária do masoquismo. Essa é uma das primeiras consequências que 
devemos tirar da TSG quanto à perversão. 
Depois dos Três Ensaios, o artigo sobre o fetichismo é o texto mais 
importante de Freud sobre a perversão. Nele, Freud lembra que o fetiche é o 
substituto do falo (Phallus) da mulher (da mãe)4 e que o protótipo do fetiche é o Dzpênis dos homensdz (a tautologia é importante, pois o pênis é um objeto parcial, 
cuja pro[89] priedade só se dará muito mais tarde). A leitura do texto freudiano 
poderia nos levar a pensar no fetichismo como perversão paradigmática, pois ele é 
resposta ao Complexo de Édipo. Com a TSG, porém, fica evidente que o Complexo 
de Édipo já é uma tradução bem posterior à situação originária. É com relação a ela 
que Laplanche insiste no masoquismo como paradigma da perversão. 
 
4 Importante mencionar: Freud parece usar como sinônimos os termos falo e pênis nesse 
texto. Ele utiliza tanto o Phallus quanto a expressão Penisersatz (cf. GW, XIV, 312). 
5 
 
Numa releitura de seu próprio artigo, Laplanche (1992c) lembra que o 
segundo momento – a fantasia inconsciente de que sou espancado pelo meu pai – é 
o momento inaugural da sexualidade. 
A situação originária, seu protótipo, é sadomasoquista. Há uma enorme 
discrepância entre o adulto e o bebê. A passividade da situação infantil é inelutável 
e alvo de enorme esforço de simbolização e recalcamento. A tradução impossível 
(no sentido de ser sempre incompleta, pois a criança não possui material narcísico 
à disposição para traduzir) deixa um resto, esse resto é a fantasia inconsciente. É 
ela Dza única fonte da pulsão sexual humanadz (Laplanche, 1992c: 455). 
 O ponto aqui é pensar como se dão as traduções posteriores dessa posição 
originária – o masoquismo – para outras perversões. O que determina os destinos 
do masoquismo originário? 
Quando Tosko pergunta Dzcomo deve ser lá em cimadz, nas estrelas, Alex 
responde: Dz – Ora, glupi miserável que és. Não pensai nelas. Haverá vida cá para 
baixo, é o mais provável, com uns sendo esfaqueados e outros a esfaqueardz 
(Burgess, 2012 [1962], p. 63). No mundo binário de Alex, o sadomasoquismo 
adquire a forma da penetração mais violenta. Veremos adiante como a imagem da 
intromissão é fundamental para Laplanche pensar na constituição do sujeito 
violento. 
 
3.1. O primeiro sonho de Alex 
Mas eu me deixei voltar à sonolândia e cochilei horrorshow 
mesmo, e eu tive um sniti estranho e muito real, sonhando por 
alguma razão com meu drugui Georgie. Nesse sniti ele estava 
muito mais velho, muito esperto e severo, e estava govorotando 
sobre disciplina e obediência e como todos os maltchiks sob seu 
controle tinham que pular miudinho e bater a velha continência 
como se estivessem no exército, e eu estava na fileira como o resto 
dizendo sim senhor e não senhor, e então eu videei claramente 
que o Georgie tinha estrelas nos pletchos e era assim tipo um 
general. E então ele trouxe o bom e velho Tosko com um chicote, e 
o Tosko estava muito mais starre e grisalho e tinha uns zubis 
faltando [90] como se podia ver quando ele soltava um smek, me 
videando, e então meu drugui Georgie disse, apontando para mim 
assim: - Esse homem tem sujeira e kal nas platis todas – e era 
verdade. Então krikei: - Não me batam, por favor, irmãos – e 
comecei a correr. E eu estava correndo assim, em círculos, e o 
Tosko atrás de mim, smekando até cair a gúliver, estalando o 
velho chicote, e cada vez que eu recebia um toltchok verdadeira 
6 
 
horrorshow com esse chicote parecia que tinha uma campainha 
elétrica muito alta trimtrimtrim, e essa campainha era uma 
espécie de dor também. (Burgess, 2012 [1962], p. 84-5). 
 O sonho de Alex deixa bem claro o avesso masoquista de seu desejo sádico 
generalizado. Seus subalternos aparecem em posição de poder e o espancam. O 
pesadelo mostra como o sadismo de Alex deve ser compreendido como resposta a 
um masoquismo primário. 
O par ser espancado / espancar é uma tradução corporal do par passividade 
/ atividade. É importante questionar as razões pelas quais tal tradução se impõe na 
vida psíquica de alguém. Por que usar o corpo como arma de espancamento e 
como alvo de espancamento? O que na história libidinal de alguém erotiza o corpo 
de tal forma a articular dor, prazer e narcisismo? 
É como se existir fosse sempre uma ameaça. O pesadelo mostra: por um 
detalhe, a roupa suja, há um castigo desproporcional. Narcisismo, portanto, em 
risco. Como se a tessitura do eu ameaçasse ser rompida a todo o momento. Talvez, 
para defender-se disso, o sujeito precise reiteradamente produzir o horror dessa 
ameaça no outro. 
Por fim, notemos no sonho a presença clara de uma assimetria. Seja 
marcada pela idade (Georgie Dzmuito mais velhodz e Tosko Dzgrisalhodz) ou pela 
discrepância numérica e de força. Evidentemente, essa assimetria repete a tensão 
da situação originária. Note-se que a mensagem que vem do outro tem uma força 
brutal e invasiva. É uma mensagem predicativa (no caso, algo como Dzvocê está 
sujodz) sem abertura alguma para traduções alternativas. Mensagem-vaticínio, por 
assim dizer. Seriam esses os tipos de mensagem nas origens desse tipo de sujeito 
violento? Acredito que sim, mas faço uma observação. Laplanche lembra que esse 
tipo de mensagem kafkiana se coloca para todos nós, na situação antropológica 
fundamental: 
No início, há uma espécie de mensagem enigmática, julgamento ou 
comunicação que se esconde atrás de um comportamento, julgamento 
que se pode tomar em seu sentido mais kafkiano, pois desse Dzcomunicado ao [91] sujeitodz, o sujeito não conhece nem os 
considerandos nem mesmo o verdadeiro sentido. Tal como em Kafka, só 
lhe é transmitido o veredicto. O que é o veredicto? Diremos, em síntese, 
que é o energético puro. A Dzmensagemdz desqualificada não veicula nada, 
exceto energia. (Laplanche, 1992g, p. 101). 
Gostaria de levantar a hipótese de que, nos casos de perversão, esse 
veredicto se mantém. E o faz sob forte ameaça. Uma mensagem que impõe algo ao 
sujeito e que não autoriza nenhuma tradução nova. Há que se recordar que há uma 
forma específica de violência que se estabelece como tal exatamente por recusar o 
7 
 
sentido de seu ato. Uma violência que se recusa a perguntar e/ou responder a 
qualquer Dzpor quê?dz, como se o mal não tivesse sentido. Já tentei mostrar que esse 
tipo de violência é um tipo de resposta a um mesmo tipo de violência sofrida 
anteriormente (Belo, 2004). 
 
4. Algo entre a intromissão e a implantação 
No artigo DzFetichismodz, Freud lembra que, no fetiche, Dzum fragmento da 
realidade (Stück der Realität)dz é escotomizado. Acredito que essa observação é 
importante pois traz evidentes relações com a psicose. É bastante curiosa a análise 
de Freud. Ele começa falando da diferença entre neurose e psicose. Ele lembra que 
na neurose duas Dzcorrentesdz (Strömung) se preservam: uma ligada ao Isso e outra 
ligada ao Eu. No exemplodado: o jovem obsessivo que Dzescotomizoudz a morte do 
pai. De um lado, ele achava que o pai ainda estava vivo e atrapalhava suas 
atividades; de outro, ele se achava o sucessor do pai. O que quero destacar dessa 
leitura é que Freud não traça nenhuma diferença radical entre a neurose obsessiva 
e a perversão. Freud recusa, nas duas patologias, uma Dzescotomizaçãodz e defende 
ainda a ideia de um recalcamento / recusa da ideia angustiante. A oposição se faz, 
de fato com a psicose, na qual ele acredita que essa Dzcorrentedz que está de acordo 
com a realidade realmente se perdeu (... im Fall der Psychose die eine, die 
realitätsgerechte Strömung, wirklich vermiβt werden würde [cf. GW, XIV, 316]). 
De um lado, neurose e perversão; de outro, psicose. É importante fazer 
trabalhar esse texto com os Três Ensaios, nos quais Freud lembra que a neurose é o 
negativo da perversão. Negativo, nesse caso, não quer dizer contrário; quer dizer o 
outro lado, o reverso. A metáfora do filme fotográfico ainda é importante. É preciso 
uma longa elaboração para transformar o negativo na fotografia revelada. Quais 
são os processos químicos dessa elaboração? Equivalem, metaforicamente, a quais 
processos de subjetivação / tradução? 
[92] Outra distinção entre fenômenos como a perversão e a neurose, pode 
ser pensada a partir das noções de implantação e intromissão. Pressupomos que a 
origem do sujeito psíquico da perversão está a meio caminho – mais uma vez, uma 
questão de grau, de gradação – da neurose e da psicose, na medida em que 
pressupomos que o adulto que cuidou do bebê que se tornará perverso tanto 
implantou quanto intrometeu no bebê sua sexualidade inconsciente. Vejamos 
como Laplanche define esses termos: 
A implantação é um processo comum, quotidiano, normal ou 
neurótico. Ao lado dela, como sua variante violenta, é preciso 
situar a intromissão. Enquanto que a implantação permite ao 
indivíduo uma resposta (reprise) ativa, com sua dupla face 
tradutiva-recalcadora, é preciso tentar conceber um processo que 
8 
 
faz obstáculo a essa resposta, curta-circuita as diferenciações das 
instâncias em via de formação, e coloca no interior um elemento 
rebelde a qualquer metábole. 
Eu não duvido que um processo aparentado à intromissão 
desempenha também seu papel na formação do supereu, corpo 
estrangeiro não metabolizável. 
(...) A intromissão está mais relacionada com a analidade e 
oralidade. A implantação se refere mais à superfície do corpo no 
seu conjunto, à periferia perceptiva. (Laplanche, 1992a: 358) 
 
Pontos importantes: é uma questão de gradação, da forma... e talvez nem 
tanto do conteúdo; algo da intromissão está presente no neurótico, no seu supereu: 
daí a possibilidade de se pensar num Dzsupereu sádicodz; a forma da sedução tem a 
ver com as zonas erógenas visadas pelo adulto sedutor: o bebê visto como orifício 
é aquele com mais probabilidade de se tornar psicótico ou perverso; o bebê visto 
mais Dzinteirodz é o que vai se tornar neurótico. 
 Essa distinção da forma da sedução tem muito a ver com o que aparece nos 
textos iniciais de Freud também. Ele dizia da idade da sedução: quanto mais cedo, 
mais traumática, mais grave a patologia a surgir... quanto mais o ego estivesse 
preparado, ou seja, quanto mais tarde for o trauma, mais ameno será o sofrimento 
psíquico. 
 
4.1. As mensagens para Alex 
Pensemos agora no caso de Alex. Uma primeira interpretação de seu 
comportamento seria pensar num tipo de tentativa de traduzir invasões precoces, 
[93] reproduzindo / traduzindo essas invasões na forma dos espancamentos e das 
relações sexuais violentas. O caráter repetitivo e compulsivo desse comportamento 
faz pensar não no prazer experienciado de forma tranquila e egossintônica. Trata-
se, antes, de colocar o outro reiteradamente na posição de objeto, apassivá-lo de 
forma bem radical. A repetição compulsiva de Alex tenta traduzir invasões 
precoces, muito provavelmente insuportáveis e mortíferas. Há que se levantar a 
hipótese de que ele identifica-se inconscientemente com seus objetos espancados. 
Sua atividade, portanto, é, ao mesmo tempo, sua passividade espelhada. É 
psicanálise selvagem tentar imaginar um passado para Alex. 
Há, no romance, muito pouco sobre as interações de Alex com a família. 
Pensem na cena na qual a mãe chama Alex para acordar e ele responde que está 
com Dzum pouco de dor de gúliverdz (p. 84). Apesar de dar uma Dzespécie de suspirodz, 
ela nada diz além de um trivial: DzEntão vou colocar seu café no fogão, filho. Preciso 
ir embora.dz (p. 84). A cena é simples, mas deixa claro como a mãe e o pai (em 
9 
 
outras cenas) não colocam limite, não questionam a posição de Alex. Quando ele 
vai preso, os pais mostram indiferença ou cansaço e alugam seu quarto sem culpa 
ou consideração. Será que essa indiferença já estava na origem da vida psíquica de 
Alex? É só uma hipótese: se houve essa mensagem de enfado e cansaço dirigida à 
criança, ele não poderia reagir de forma violenta demandando o cuidado que não 
houve e, ao mesmo tempo, colocando o outro na posição passiva, invertendo os 
papeis originários? Primeiro polo de mensagens para Alex, portanto: não me 
importo com você, estou cansada(o) demais para te colocar limites. 
Há uma passagem bem interessante na qual se narra um sonho do pai de 
Alex: 
Foi bem real – disse meu pai – Eu vi você deitado na rua e você 
tinha acabado de levar uma surra de outros garotos. Esses garotos 
eram os garotos com quem você costumava sair antes de ser 
enviado para aquela última Escola Correcional. (Burgess, 2012 
[1962], p. 99) 
Segundo polo de mensagens: eu não te coloco limites, mas desejo que esses 
limites sejam impostos pelos outros, da forma mais violenta possível. O sonho do 
pai tem Alex como destinatário. A narrativa do romance irá cuidar para que esse 
sonho seja profético. Freud, nos textos dedicados a esse tipo de sonho, insiste em 
sua tese: ainda e sempre são realizações de desejo. Observem que, no sonho do pai, 
o Dzbem realdz dá o tom da força de que isso de fato aconteça. 
[94] Depois do tratamento, Alex volta para casa e diz aos pais que eles terão 
que decidir Dzquem vai ser o chefedz, ao que o pai responde: Dzestá ótimo, filho (...) as 
coisas serão como você quiser. É só você melhorar.dz (Burgess, 2012 [1962], p. 254). 
A inversão de poder entre as gerações é evidente aqui. 
Parece haver clara articulação entre perversão e a parentalidade que não 
barra o pulsional da criança. Não se trata de um moralismo simples: a lei que 
impõe limite ao pulsional não precisa ter um formato fixo ou ser atrelada a um 
gênero específico (a lei do pai, por exemplo). Trata-se de fazer perceber como a 
sexualidade perversa infantil – sua onipotência sádica, sua violência corporal – 
deriva para a perversão se a própria criança tiver que se impor limites. O problema 
na perversão é que os limites são erotizados de tal forma a reproduzir algo da 
assimetria recusada pelos próprios pais na situação originária. 
 
5. Horrorshow e sadomasoquismo 
10 
 DzComo são estranhas à nossa consciência as 
coisas pelas quais nossa vida mental inconsciente 
é governada!dz5 (Freud, 1974 [1928], p. 213) 
Imaginem a situação antropológica fundamental. Trata-se de uma situação 
radicalmente dissimétrica. De um lado, um adulto, portador de um inconsciente 
sexual, repleto de fantasias inconscientes. De outro, um bebê ainda sem eu 
constituído. É impossível descrever exatamente tal como as coisas acontecem a 
esse bebê. Apenas um eu pode descrever o que lhe sucede. DzDo ponto de vista do 
bebêdz é uma expressão um tanto sem sentido, mas inevitável, caso queiramos 
avançar sobre a compreensão de como suas vivências precoces afetam o adulto 
porvir. 
Portanto, imaginemos, a título heurístico, tal ponto de vista. Trata-se de um 
mar de excitações vindas de todos os lados: ainda, na verdade, semDzladosdz, pois 
sem nenhuma demarcação de fronteira... Nem dentro, nem fora. Apenas sensações 
múltiplas: boas e más também sem muita distinção, misturadas. Aos poucos, são 
essas fronteiras que vão se constituindo. O dentro e o fora, o bom [95] e o mau. Aos 
poucos: é preciso insistir, a partir do olhar do cuidador, a partir de seu holding, de 
um manejo adequado, da suposição desse adulto que há um pequeno sujeito ali, 
onde ainda não há ninguém, propriamente. Esse é o primeiro vetor identificatório: 
identifica-se alguém ali onde está o bebê. Esse vetor se mistura a um segundo: o 
adulto identifica-se com o bebê, coloca-se no lugar dele, tenta interpretar o que ele 
sente e deseja. Terceiro vetor, mais tardio, absolutamente dependente desses dois 
primeiros: o bebê identifica-se com o outro. Quarto e último vetor, radicalmente 
articulado ao terceiro, o bebê começa a identificar-se consigo mesmo, com suas 
partes, distinguindo-se cada vez mais do objeto. No início, é muito provável que 
essa penúltima identificação apoie-se em processos biológicos de imitação precoce. 
Resta saber o que são esses processos biológicos e qual sua persistência em traços 
de subjetividade. De início, prefiro deixar tais elocubrações de lado, sempre 
insistindo que, muito provavelmente, tais processos biológicos sejam radicalmente 
colonizados pelo pulsional, pelas identificações amorosas vivenciadas pelo bebê. 
Quando essas fronteiras começam a se constituir, começa a se organizar 
também o que Freud chamou Lustprinzip. Essa palavra, Lust, significa a um só 
tempo: excitação e prazer. Princípio do prazer, portanto, mas também princípio da 
excitação. Trata-se de um modo de funcionamento geral do aparelho psíquico: 
busca de excitação, busca de apaziguamento dessa excitação. Tensão e 
relaxamento. Esse modo, observem, já organizado de lidar com as excitações 
provenientes do outro, já é um modo de metabolizar essas excitações. Fazê-las 
funcionar em dois movimentos, em dois momentos distintos: tudo isso é uma 
 
5 DzSo fremd sind aber unserem Bewsstsein die Dinge, von denen unser unbewusstes Seelenleben beherrscht wird.dz ȋFreud, ͳͻͻͻ [ͳͻʹͺ], p. 4ͲͺȌ. 
11 
 
grande aquisição psíquica. De forma alguma pode-se dizer que tal funcionamento é 
inato, já presente no bebê desde as origens. Trata-se de uma aquisição psíquica 
angariada junto ao outro cuidador. Mais uma vez: é um holding suficientemente 
bom que, a um só tempo, excita em demasia o bebê, mas que também dá a ele todas 
as condições de fazer fronteiras que contenham essas excitações. 
E é exatamente esse processo de contenção de excitação que se aproxima do 
que podemos chamar masoquismo originário. Entendam aqui masoquismo como 
essa tarefa primária de fazer circular as excitações que nos são implantadas de 
forma a torná-las menos mortíferas, menos disruptivas. Esse prazer básico de ter 
prazer com o que nos sucede, o que nos acontece, é masoquista, pois, mesmo que 
consigamos algum tipo de domínio sobre a situação, a passividade é mantida. 
Observem: trata-se de uma posição ativamente passiva. É uma primeiríssima 
tradução da passividade radical vivida no início da vida. Não por acaso, Rosenberg 
[96] (2003) chama essa primeira versão do masoquismo de masoquismo guardião 
da vida. É ele que permite a constituição das fronteiras que citei há pouco. O 
investimento libidinal nessas fronteiras é sempre um tanto sadomasoquista: a um 
só tempo me constituo como um dentro/fora para que eu possa, minimamente, 
dominar (sadicamente) as excitações que me penetram (masoquisticamente). 
Em contraposição a esse masoquismo guardião da vida, podemos imaginar 
um masoquismo mortífero. Trata-se de um movimento compulsivo de tentar 
controlar e dominar as excitações invasivas, mas de tal forma a perpetuamente 
reproduzir as efrações sofridas por essas excitações. É como nos sonhos 
traumáticos: o eu sonha com a situação traumática, tentando preparar-se para o 
mal que já lhe aconteceu... mas, obviamente, não é possível defender-se de algo já 
ocorrido. O sonho traumático reabre sucessivamente a ferida, na medida em que 
busca uma forma de cicatrizá-la. Assim também acontece com os comportamentos 
masoquistas muito pronunciados. Quando, p.ex., alguém se machuca, talvez esteja 
querendo produzir, ele mesmo, uma efração anteriormente perpetrada por um 
outro. Esse retorno sobre si mesmo, no limite, insisto já é um tanto sádico, pois o 
sujeito está tomando-se como objeto, mesmo que inconscientemente. 
 
5.1. O segundo sonho de Alex 
 
Eu sonhei, Ó, meus irmãos, que fazia parte de uma orquestra 
muito grande, centenas e centenas de músicos, e o maestro era 
uma mistura de Ludwig van e G. F. Handel, com um jeito assim de 
muito surdo e cego e cansado do mundo. Eu estava na seção dos 
instrumentos de sopro, mas o que eu estava tocando era um tipo 
assim de fagote banco-rosado feito de carne e que crescia do meu 
12 
 
ploti, bem no meio da minha barriga, e quando eu soprava não 
conseguia deixar de smekar hahaha bem alto porque fazia 
cosquinhas, e aí Ludwig van G. F. ficou muito razdraz e bizummi. 
Aí ele veio direto pro meu litso e krikou no meu oko, e aí eu 
acordei suando. (Burgess, 2012 [1962], p. 254) 
 O segundo sonho de Alex parece ser a realização de um desejo autoerótico. 
Um autoerotismo que não é primeiro em relação ao sexual, pois parece ser uma 
resposta em forma de recusa. No caso do sonho: ao invés de tocar junto, produzir 
música, o seu fagote de carne, grudado ao seu corpo, só produz cócegas. O som do 
riso não é compartilhado em composição, mas para produzir ruído, irritação. 
 [97] Pensemos na ideia de que a sublimação é uma defesa que visa fazer 
desviar o sexual naquilo que ele tem de mais mortífero. Sublimar é encontrar 
estratégias para o eu não ser alvo da pulsão sexual de morte. De forma geral, uma 
saída é identificar-se com outros, tornando o eu mais plural, mais disperso e ao 
mesmo tempo mais consistente, pois compartilhado, reforçado pela libido que 
circula no grupo homogêneo. A cultura é uma forma de desviar o sexual, fazê-lo dar 
uma volta, por assim dizer, antes de voltar ao eu, diretamente. Sublimar é uma 
forma de ligar o sexual de tal maneira a fazer com que o laço social possa fazer às 
vezes do trabalho que de outra forma deveria ser solitário. A tese a ser explorada 
aqui é a ideia de que o neurótico obsessivo pode abandonar sua religião particular 
caso consiga se articular a uma religião coletiva. Não se trata apenas de uma 
poupança libidinal, mas também de um tratamento pulsional na medida em que as 
identificações com o grupo permitem que o eu não seja alvo prioritário, nem 
isolado. 
 No segundo sonho de Alex, no entanto, o que vemos é a incapacidade da 
orquestra, de orquestrar o desejo junto ao outro. Ou ainda: a insistência em 
desmontar a orquestra, em atormentá-la. Produzir ruído ali onde deveria haver 
som. Uma metáfora poderosa para dizer da perversão: a gargalhada estridente, o 
peido, o arroto, o som sádico e agressivo. Tudo que penetre o outro de forma a 
efratar seus ouvidos, apassivá-lo, mostrar como o esforço de tocar junto, de 
produzir ritmo e harmonia é sempre vão e superficial e deve ser destruído. 
 Apesar de grudado ao corpo, o fagote de carne é um apêndice externo. A 
carne que deveria ser interna é exibida. Exibir o que deveria ser interno. A fantasia 
perversa frequentemente guarda essa característica: mostrar ao neurótico o que o 
recalcamento esconde. O trabalho da neurose é exatamente o oposto: mostrar que 
há harmonia, que podemos sim tocar juntos, compor juntos. Na perversão, essa 
harmonia precisa ser desestruturada. 
 O sonho termina reproduzindo, mais uma vez, a inversão do par 
atividade/passividade. Frente ao som do fagote de carne, há apenas uma solução: o 
grito do maestro Dzmuitosurdo e cego e cansado do mundodz. Mais uma vez, a 
13 
 
autoridade é frouxa e ao mesmo tempo violenta. Uma dupla mensagem: cansado 
demais, porém sempre pronto para a violência. Não há meio-termo para Alex: ou o 
máximo de passividade ou o máximo de atividade. 
 
[98] 5.2. Excurso: por que insistir no caráter sexual da pulsão? 
 
Gostaria de insistir no caráter sexual das excitações que fundam o sujeito 
psíquico. Por que a manutenção desse nome? Não bastaria dizer apenas excitação? 
Por que, afinal, essa insistência da psicanálise, com o termo sexual? Bem, há 
algumas razões pra isso. 
A primeira delas é para fazer notar que essa excitação vem do outro, isso é, 
é proveniente de uma relação. O termo sexual, nesse sentido, faz referência à 
alteridade, sem a qual essa excitação não existiria. Um termo portanto para 
explicitar que não se trata de uma excitação que brota do próprio corpo. 
Uma segunda razão é pensar na relação sexual genital como um modelo 
para essa excitação-prazer que é a relação da pulsão com o eu. Na relação sexual 
também temos essa ida e vinda da excitação como tensão e o prazer como alvo, no 
sentido de um apaziguamento dessa tensão. Pensemos então em termos de uma 
derivação metonímico-metafórica6 que é própria à epistemologia da psicanálise. 
Pegamos uma parte (a relação genital) e a tomamos pelo todo (a relação do sujeito 
com suas excitações internas). 
Uma terceira razão é para frisar que a sexualidade da qual fala a psicanálise 
sempre irá se contrapor à sexualidade biológica. No caso dos humanos, nosso 
amadurecimento corporal se dá muito tardiamente. Quando a sexualidade 
biológica chega, no início da adolescência, seu lugar encontra-se plenamente 
ocupado por essa psicossexualidade. Os jogos de prazer já estão profundamente 
marcados, nossos arranjos pulsionais estão bem estabelecidos. Essa sexualidade 
genital será, portanto, colonizada, parasitada, por essa outra sexualidade, 
prioritária e infantil. 
Uma quarta razão articulada com essa terceira é o fato de que a sexualidade 
pode ser reprimida sem que haja extinção do sujeito, ao contrário das outras forças 
biológicas do corpo (o sono e a fome, por exemplo). Mais uma vez, ela serve de 
modelo metafórico para aquilo que é recalcado por excelência: a sexualidade 
infantil. Articulado a essa quarta razão está o fato de que a sexualidade pode 
 
6 Recomendo a leitura do artigo DzDerivação das entidades psicanalíticasdz que serve de 
apêndice ao livro de Laplanche (1985[1970]). 
14 
 
encontrar substitutos. Desde o autoerótico até os derivados metafóricos mais 
complexos. 
Dizer, portanto, que a pulsão é sexual é insistir no caráter único desse tipo 
de funcionamento entre humanos. Não há tal estado de coisas em nenhum [99] 
animal. Estamos bastante longe do campo do instinto. E é justamente esse tipo de 
funcionamento psicossexual que nos afasta desse campo. 
 
5.3. O genital: via facilitada, mas não exclusiva 
A cena do estupro me parece importante porque a relação sexual tem um 
papel importante enquanto via facilitada / facilitadora do sexual. E por que a 
relação sexual é uma tradução para o sexual? A primeira razão é aquela da 
derivação: o genital guarda exatamente a lógica de uma excitação que, por mais 
que seja satisfeita, irá retornar e exigir novo apaziguamento. A segunda razão é 
que a relação sexual também ajuda bastante a metaforizar e a dar sentido à ideia 
de invasão, transgressão da tópica dentro/fora. A penetração sexual é 
paradigmática aqui para se compreender a derivação facilitada entre esses dois 
elementos7. O sexual deriva metaforicamente para a relação sexual, pois ele, o 
sexual, foi também implantado na criança pelos adultos que cuidaram dela. Essa 
implantação do sexual pode ser, claro, mais ou menos violenta, mais ou menos 
acompanhada de um holding que ajuda a constituir uma fronteira. Pois bem, 
quanto mais esse sexual estiver desligado, isto é, sem esse apoio-egoico, sem as 
vias narcísicas de ligação, mais mortífero, mais desligante, ele será. 
Como vimos, Laplanche utiliza o verbo intrometer para a sedução do adulto 
que vai sem muito desses auxílios narcísicos de ligação. Pensemos nos casos 
bastante distintos de um bebê que é seduzido de forma generalizada nos cuidados 
básicos (o banho, o carinho, a brincadeira) e a criança que é maltratada física e 
psicologicamente. Entre implantar e intrometer, evidentemente, não há uma 
fronteira muito nítida, mas, há, evidentemente, razões para tentarmos pensar nos 
cuidados originários com todo cuidado possível justamente pelos efeitos que 
acarretam. 
Observem como é importante insistir no caráter matizado da sedução 
generalizada. Tomemos o caso de um sujeito que goste de lutar ou de esportes 
violentos ou de apassivar outrem numa relação sexual, mas que, em outras áreas 
de sua vida, o sadismo não assume lugar proeminente, nem mortífero. Pensemos 
nas diferenças importantes entre esse sujeito, cuja sexualidade não é compulsiva, 
 
7 Muito importante notar que a penetração aqui não é, necessariamente, heterossexual. Aliás, 
quanto mais distante da heteronormatividade, mais o penetrar o corpo do outro visando excitá-lo e 
excitar-se deixará claro que o corpo é, antes de tudo, uma tópica dentro/fora penetrável, mais ou 
menos violentamente. 
15 
 
mas animada por uma fantasia sádica, atuada com um ou alguns parceiros. O [100] 
termo fantasia aqui é indispensável: trata-se de um roteiro, de uma tradução, da 
relação entre o pulsional e o eu. Que tal fantasia possa ser traduzida, por sua vez, 
em Dzespanco-tedz ou Dzfodo-lhe com forçadz ou ainda Dzte maltratodz é questão singular. 
O importante é entender que em alguns sujeitos tais fantasias serão mais ou menos 
atuadas e terão esse aspecto mais objetalizante dirigido ao outro a depender das 
origens do sexual a traduzir. Quanto mais intrometido foi o sexual, mais 
objetalizado o eu será nessa tradução. Não irá bastar, portanto, apenas a relação 
sexual com pitadas de violência, bem circunscrita dentro de uma relação amorosa 
permeada pelo respeito em todos seus outros momentos. Se houve intromissão, a 
fantasia exige ser vivenciada literalmente, atuada, com o corpo, de forma a deixar 
bastante evidente o caráter subjugado do eu frente ao pulsional e frente ao outro. 
A compulsão à repetição não deixa dúvidas: observem como o sujeito é 
dominado por seu desejo. Aliás, dizer Dzseu desejodz é um tanto problemático aqui. O 
desejo surge como que vindo de um outro lugar, de um outro. É bastante 
importante notar essa característica alteritária do desejo. De um ponto de vista 
bem radical, pode-se dizer que o desejo pulsional, inconsciente, nunca é 
propriamente do eu, do sujeito. É sempre um tipo de apropriação que se faz, um 
tipo de arrendamento. O eu é inquilino em sua própria casa, ou melhor, acredita 
que a casa é sua, mas está pagando um aluguel bastante caro para habitar junto ao 
inconsciente. Obviamente, há bons contratos de aluguel possíveis, mas são os 
contratos leoninos que deixam ver de forma mais clara a assimetria entre o eu e o 
inconsciente. 
O que quero fazer notar é como a relação entre o eu e a pulsão reproduz 
uma situação de passividade radical. Notem que o desamparo do eu, frente à 
pulsão – o desamparo que realmente importa para a psicanálise – é 
obsessivamente obturado pelas cenas de espancamento. Para deixar ainda claro: 
essa tradução agonística é apenas uma, dentre infinitas, para metabolizar a pulsão 
sexual de morte, os fortes ataques pulsionais ao eu. Resposta sádica ao 
masoquismo mortífero: traduz-se mortificando o outro, para assegurar-se de que 
não estou morto... Reproduzo a morte da qual fugi, mortificando incessantemente o 
outro, tornando-o a umsó tempo retrato do que outrora fui e exorcista dessa 
fantasia inconsciente: não sou eu o passivo, é o outro. Há nula passividade em mim. 
 Um exemplo um tanto cômico dessa tentativa constante de anular essa 
passividade está na cena na qual Alex faz um teste projetivo. Ele vê, na figura que 
lhe é mostrada, um Dzninho de passarinhodz, Dzcheio de ovinhos. Muito bonitinho.dz 
(Burgess, 2012 [1962], p. 255). O médico então pergunta o que ele gostaria de 
fazer. A resposta enuncia de forma clara a fantasia sádica em torno [101] da qual 
gira a vida psíquica de Alex: DzEsmagá-los. Pegar esses ovos todos e tipo assim atirá-
los contra uma parede ou encosta ou alguma coisa assim e depois videá-los todos 
se quebrarem muito horrorshow.dz (Burgess, 2012 [1962], p. 255). Impossível 
16 
 
deixar de notar: ali onde deveria haver cuidado com o frágil, há hiper-violência. E 
há uma mensagem para horrorizar o outro, deixar bem evidente que essa 
assimetria pode ser usada sadicamente e não será respeitada. 
 
6. Não há perversão fora do campo moral 
 É importante retomar uma reflexão de Durkheim sobre o crime. Ele 
argumenta que não se pode julgar muito apressadamente o crime como uma ação 
humana contra o laço social. O autor lembra que a autoridade que a consciência 
moral possui não pode ser excessiva, pois esse excesso impediria que o crime 
aparecesse, mas também obstruiria o idealismo e qualquer crítica ao status quo. 
Durkheim adverte: DzQuantas vezes, com efeito, o crime não é senão uma 
antecipação da moral por vir, um encaminhamento em direção ao que será!dz 
(Durkheim, 2003 [1895]: 72). Essa passagem se coaduna com o que dizíamos em 
nosso ponto de partida, sobre a dependência mútua de forças sexuais-mortíferas e 
forças egoico-civilizatórias. 
 A reflexão de Durkheim também se aproxima do que a psicanálise postula 
acerca da virulência do superego. Assim como acreditamos que a internalização da 
lei moral contribui para a contenção do crime e de comportamentos tidos como 
perversos, também lembramos que o superego pode ser extremamente cruel e 
violento. 
 Mais uma vez, é importante lembrar o artigo DzFetichismodz, de Freud. Ele 
termina lembrando o caso do coupeur de nattes e dos chineses que mutilam o pé 
feminino para depois reverenciá-lo como fetiche. Além de mostrar que as duas 
correntes existem na vida psíquica – uma contra e outra a favor da castração – os 
exemplos apontam para algo da crueldade social. 
 Do ponto de vista da TSG, seria possível pensar no outro da cultura como 
um outro que também envia mensagens enigmáticas, cujas traduções são mais ou 
menos concedidas, aceitas, recusadas... Pensemos na discussão que o 
etnocentrismo levanta. Afinal, podemos ou não julgar como perversão o 
sepultamento de bebês vivos por algumas tribos indígenas apenas porque eles 
apresentam algum defeito físico? Podemos ou não julgar como perverso o 
apedrejamento das mulheres adúlteras nas religiões tradicionais? 
Para início de análise é preciso questionar a lei social de forma geral, pois 
ela é depositária das forças de recalcamento. É preciso acolher o paradoxo que 
[102] isso traz: se questionamos demais a lei, estamos correndo o risco de ir contra 
o laço social e sermos julgados como perversos; por outro lado, se acolhemos a lei 
como verdade absoluta, também a utilizamos como fetiche – algo que nos protege 
contra os enigmas da ética, que por sua vez são os que nos obrigam a questionar e 
pensar nos nossos vínculos amorosos e políticos – e impedimos quaisquer 
17 
 
modificações no laço social. O ponto parece ser mesmo uma questão de grau: até 
que ponto defendemos a lei e até que ponto a questionamos? Freud, no I Ensaio, DzAs aberrações sexuaisdz, insiste na presença de algumas perversões nas Dzpessoas 
normaisdz. Fica muito claro o caráter quantitativo, de grau, na definição de Freud. O 
patológico, diz ele, tem a ver com Dzexclusividade e fixaçãodz: é essa característica 
que ele define como Dzsintoma patológicodz. (ESB, VII, 152-3) 
Sem dúvida, parecem existir pontos, na nossa cultura, que não admitem 
concessão. A violência física contra mulheres e crianças é apenas um exemplo. Esse 
núcleo duro tem bastante a ver com a tese ampla sobre o que é perversão sob o 
ponto de vista da TSG: manter-se ou manter o outro na posição passiva originária. 
É acreditar que apenas um ocupa o lugar de passividade. 
 
6.1. A lei perversa, perversões da lei 
 
 Laplanche (cf. Foucault, 2001 [1977]) se posicionou publicamente contra a 
pena de morte numa conversa com Michel Foucault. Acreditamos ser possível 
estender a argumentação do autor para as penas aviltantes como a narrada em 
Laranja Mecânica. 
Para Laplanche, a pena de morte adiciona maldade ao mal já feito. A pena só 
faz sentido se ela abole, simbolicamente, o crime. Quando se pune, sem nenhuma 
intenção de modificar o sujeito, mas apenas para provar a existência da lei e sua 
importância, entramos no campo da perversão da lei. Como diz Foucault: Dza justiça 
se inocenta de punir fingindo tratar o criminosodz (Foucault, 2001 [1977], p. 290). 
Punir aqui, claro, no sentido de estancar o jogo sádico de tratar o outro 
violentamente, reduzi-lo a um objeto. 
 Nessa mesma conversa, Laplanche levanta uma tese importante: DzA 
necessidade de punição já é uma maneira de traduzir [faire passer] a angústia 
primordial em algo de exprimível e, como consequência, de negociável. O que pode 
ser expiado, talvez abolido, compensado simbolicamente.dz (Foucault, 2001 [1977], 
p. 293). De onde provém essa angústia primordial? Laplanche não diz aí no diálogo, 
mas sua obra posterior deixa claro: vem da situação originária, da constituição do 
eu. 
 [103] O argumento central de Laplanche (1992e) é lembrar que há desejo 
de morte em todos nós. Tais desejos, atrelados às nossas fantasias inconscientes, 
entram em jogo quando punimos alguém. Laplanche critica pesadamente a 
ideologia da recuperação na medida em que, com essa proposta, a pena pressupõe 
que o criminoso é um doente, num certo sentido, irresponsável pelos seus atos. DzNum mundo sem lei, não há outro recurso senão fingir, se submeter ou se revoltardz 
18 
 
(Laplanche, 1992e, p. 164). A internação do criminoso, baseada nessa ideologia de 
que a pena deve recuperar o sujeito doente, acaba por negar a justiça, torna o 
mundo um lugar sem lei no qual o sujeito não pode responder por seus atos. 
 O tratamento de Alex exemplifica bem essa tripla saída apontada por 
Laplanche: fingir, submeter-se ou revoltar-se. Na impossibilidade da primeira e da 
última, Alex submete-se pela via do condicionamento físico mais brutal. A pena é 
tão perversa quanto o criminoso: a justiça torna-se mero prolongamento de uma 
polícia fascista, exigindo uniformidade e submissão máximas. 
Laplanche (1992e) ainda lembra os Dzbaremasdz para apreciar a Dzesperança 
de vidadz (p. 161) do criminoso. Ele compara tais baremas àqueles usados pelas 
companhias de seguro de vida. Essa comparação vem, a meu ver, mostrar 
interesses econômicos também presentes na dinâmica complexa da punição. 
Contra tal lógica estatístico-econômica, basta lembrar que tais baremas sempre 
atendem a determinados interesses. É impossível determinar um barema de 
normalidade a partir do qual os sujeitos possam ser mensurados, sem que esse 
barema já não atenda interesses políticos determinados. Num mundo repleto de 
desigualdades brutais, por que deveríamos confiar num sistema de justiça que se 
propusesse a normalizar alguém? Por que confiar que tal normalização possa ser 
vista como saúde psíquica? São perguntas que Foucault já nos ajudou a responder 
ao longo de sua obra e que me parecem estar de acordo com o que se pode 
depreender ideologicamente da TSG. 
Laplanche não aceita o argumento falacioso de que a pena de morte é 
dissuasiva e por isso deve ser aceita e aplicada. O autor argumenta quea pena de 
morte – e, acredito, também as penas aviltantes com as que sofre Alex – ultrapassa Dzo quadro das remunerações simbólicas e os limites de todo código no qual uma 
justiça humana deve necessariamente se inscreverdz (Laplanche, 1992e, p. 166). O 
ponto alto de sua argumentação, a meu ver, está em lembrar que a pena de morte 
pode ter valor excitante e não apenas dissuasivo, na medida em que responde às 
nossas fantasias sádicas também (Laplanche, 1992f, p. 177). 
[104] As longas discussões entre Alex e o padre da prisão parecem ir ao 
encontro dos argumentos de Laplanche. Se a pena visa condicionar o prisioneiro de 
tal forma a suprimir sua capacidade de escolha, então, essa pena acaba por 
suprimir o criminoso juntamente com o crime. Uma coisa é restringir o direito de ir 
e vir, aprisionando. Outra, bem distinta, é controlar a capacidade de livre escolha. É 
fazer da lei um Dznão podedz ao invés de um convite para o Dzpode nãodz (cf. Belo, 
2013). 
 Para Laplanche (1992f), a pena deveria permitir o reconhecimento de que a 
reparação está presa entre Dza nostalgia da integridade e aceitação do desastre 
como incitação a uma nova criaçãodz (p. 180). A pena ideal permitiria reconhecer 
que o que se destruiu jamais se recomporá, mas que o crime também pode ensejar 
19 
 
novos recomeços. Criminosos como Alex parecem minar a esperança quanto a esse 
tipo de reparação interna, um tipo de reparação que também permita novas 
ligações para conter o Dzincontrolável da pulsão de mortedz (p. 183). A perversão faz 
seu trabalho quando torna impossível a reparação – interna e externa. Tomar esse 
efeito de desesperança próprio à perversão como paradigma do crime é nefasto, 
pois coloca a lei obedecendo a essa mesma lógica. 
 Fundamental atentar para a operação metonímica que entra em jogo 
quando falamos de uma lei perversa. O criminoso gera um álibi para realização de 
nossas fantasias sadomasoquistas. Posso matá-lo, violentá-lo, humilhá-lo porque 
ele mesmo, o criminoso, assim o fez. Tomar a lei de Talião como paradigma da lei é 
ficar submetido à operação metonímica de reduzir o criminoso ao seu crime. O 
sujeito deixa de ser sujeito e passa a ser exclusivamente criminoso, monstro sem 
história, em quem é possível exercer toda forma de crueldade de forma a 
neutralizar nosso sentimento de culpa. A operação metonímica é devidamente 
acompanhada da lógica cínica: primeiro, eu não te matei. Segundo, se eu te matei é 
para contribuir para um mundo melhor, sem monstros. Terceiro, não fui eu que te 
matei, foi a lei, purificada de toda libido e história, que visa apenas manter 
reprimidas as forças violentas dos humanos. 
 
6.2. O terceiro sonho de Alex 
 
Tive um pesadelo, e, como seria de se esperar, foi um daqueles 
trechos de filme que eu havia videado à tarde. Um sonho ou 
pesadelo é realmente apenas como um filme dentro da sua gúliver, 
só que é como se você pudesse entrar dentro dele e fazer parte 
dele. E foi isso o que aconteceu comigo. Foi um pesadelo de um 
dos trechos do filme que me mostraram [105] quase no final 
daquela tipo assim sessão da tarde, todo de maltchiks smekando e 
ultraviolentando uma ptitsa novinha que krikava cheia de króvi 
vermelho-vermelho, as platis todas razrasfadas muito horrorshow. 
Eu estava ali meio que filando, smekando e sendo meio que o líder 
do bando, vestido no auge da moda nadsat. E então, no auge de 
toda aquela drata e toltshoks, eu me senti tipo assim paralisado e 
com vontade de vomitar, e todo os outros maltchiks semekaram 
muito gromki de mim. Então eu abri meu caminho de volta até 
acordar através do meu próprio króvi, litros e litros dele, e aí eu vi 
que estava na minha cama neste quarto. (Burgess, 2012 [1962], p. 
255). 
 
20 
 
 Efeito do poder mais brutal: invadir também o espaço onírico. Observem, no 
entanto, que essa invasão não retira do pesadelo um tipo semelhante de realização 
de desejo infantil encontrada também nos outros dois sonhos de Alex que 
analisamos. Ainda temos a repetição da cena sadomasoquista de forma reiterada, 
com vários autores. Mais uma vez, Alex oscila entre algoz e vítima, embaralhando o 
par passividade / atividade. 
 Para além desse aspecto que se repete entre os sonhos, há um elemento que 
me parece importante a se destacar na narrativa desse terceiro sonho: a 
comparação entre o sonho e o filme. A aproximação é evidente, mas pode ser 
interpretada de várias formas. Se, por um lado, sonho e filme trabalham com 
imagens em movimento, por outro, ficamos com a impressão que, ao aproximar 
seu sonho de um filme, Alex está recusando uma vez mais a responsabilidade sobre 
seu desejo. É como se o desejo que o sonho veicula nada tivesse a ver com ele, 
como se o sonho fosse mesmo mera repetição dos restos diurnos aos quais faz 
referência. 
 Tal distanciamento do desejo é um traço importante da perversão sádica. O 
desejo é transformado em lei imperativa – dirigida ao outro e ao próprio sujeito. 
Parece não haver um momento de ponderação ou crítica. O desejo se impõe como 
inevitável. Esse como se fosse um filme traduz bem a cisão entre o sujeito e a 
apropriação crítica do seu desejo. Um exemplo já clássico é o caso do soldado que 
acata às ordens pelo fato de serem ordens. Não questionar sua implicação no 
cumprimento dessa ordem é parte fundamental desse tipo de engrenagem sádica. 
 Mais uma vez, nos perguntamos sobre os tipos possíveis de situação 
originária que levaria o sujeito a tratar seu desejo com tal distanciamento. Que tipo 
de relação amorosa levaria a criança a essa inibição intelectual específica, isto é, a 
essa recusa de reflexão sobre o próprio desejo, sobre as razões pelas quais agimos 
como agimos. Os pais de Alex, já vimos, parecem não convocá-lo para esse 
exercício. Não deixam [106] claro em momento algum que o desejo do filho existe 
também e inevitavelmente em resposta ao desejo dos pais. Também não o 
convocam a articular a resposta que Alex produz aos efeitos que ela produz. É 
como se, de fato, o desejo fosse isolável do relacional (o sujeito consigo mesmo e 
também com os outros). 
 
7. A linguagem é veículo libidinal 
Como interpretar a linguagem do romance Laranja Mecânica? Uma 
linguagem que se quer nova, que deseja contestar o código. Perversão da 
linguagem, pode-se dizer, na medida em que tenta-se subverter o código 
supostamente padrão. Perversão também no sentido de tornar próprio, 
individualizado ou restrito algo que supostamente deveria ser público. A 
21 
 
linguagem de Alex, no entanto, é também a linguagem do romance. Evidentemente, 
podemos pensar que, de vez em quando, é tarefa da própria literatura nos lembrar 
do fascismo do código linguístico. De sua pretensa imutabilidade, neutralidade. 
Gostaria de considerar esse jogo de espelhos entre o personagem e o 
próprio romance. Pensemos em como esse romance também deseja, por um lado, 
exibir a perversão em seu máximo e, por outro lado, simultaneamente, dobra essa 
exibição através da linguagem utilizada para a tarefa. Não basta, portanto, falar da 
perversão, é preciso fazer essa dobra: falar da perversão de forma perversa. Fazer 
o leitor se sentir desconfortável não apenas com o conteúdo, mas também com a 
forma através da qual se veicula a mensagem. 
Gostaria de pensar em tal operação literária como metáfora do que sucede 
na gênese psíquica da perversão. Isto é, a escrita de um romance como Clockwork 
Orange mimetiza um efeito típico da perversão: mostrar a contingência da lei, do 
que é estável. Uma consequência típica da perversão é subverter a estabilidade 
supostamente permanente. Mostrar que ela é contingente e também violenta. Isso 
não é, percebam, de todo ruim: desconstruir engrenagens que produzem muito 
sofrimento, por exemplo, exigem muito desse tipo de trabalho. Portanto, é preciso 
sempre estar atento à dialética da perversão: por um ladoquer mostrar que toda 
construção de sentido é contingente, abrindo espaços para construção de novos 
sentidos... Por outro lado, esse mesmo exercício da perversão, um pouco mais 
comprometido com a pulsão sexual de morte, quer destruir todo sentido, seja 
impondo um sentido apenas, seja entrando numa espiral infinita da crítica que 
inviabiliza qualquer estabilidade e certeza, mesmo que provisórias. 
[107] Se para toda constituição psíquica que coloca em funcionamento dois 
sistemas distintos, a consciência e o inconsciente, há sempre uma espécie de 
clivagem originária, no caso da perversão, essa clivagem é erotizada. O perverso 
tem prazer ao mostrar o que na neurose fica restrito ao inconsciente. 
De qualquer forma, mesmo na perversão – e também na psicose – é preciso 
insistir: o inconsciente nada comunica. Depois da clivagem originária, os restos 
que sobram do lado do inconsciente agem como objetos-fonte da pulsão. Não 
comunicam propriamente no sentido de serem uma linguagem, no entanto, exigem 
tradução a todo momento. No caso da perversão, veremos como resposta a esses 
restos ora o desejo de impor uma comunicação única, ora o desejo de destruir toda 
comunicação, ora um amálgama dessas duas saídas: comunicar destruindo a 
comunicação, dizer desconstruindo o código. A escrita do romance de Burgess, 
então, mimetiza um pouco desse processo. 
Há, na experiência da arte e na génese da obra, um momento em que 
esta não é ainda senão uma violência indistinta que tende a abrir-se e a 
fechar-se, que tende a exaltar-se um espaço que se abre e que tende a 
retirar-se para a profundidade da dissimulação: a obra é então a 
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intimidade em luta de momentos irreconciliáveis e inseparáveis, 
comunicação dilacerada entre a medida da obra que se faz poder e a 
desmesura da obra que quer a impossibilidade, entre a forma em que 
ela se encerra e o ilimitado em que ela se recusa, entre a obra como 
começo e a origem a partir da qual não nunca obra, onde reina o Dzdésouvrementdz eterno. (Blanchot, 2003, p. 36-7) 
 Em que pese o Dzpathosdz da perda presente na obra de Blanchot, passagens 
como essas são descrições metafóricas importantes para entendermos a clivagem 
originária. Tão logo o eu (a obra, no caso) tenta nomear o inconsciente (a violência 
indistinta), ele o perde. O inconsciente só se apresenta – através da linguagem da 
consciência – na medida em que abre mão do que ele é (o pulsional, informe, pura 
excitação desligante) e faz parceria com o que pode dar a ele alguma contenção e 
via de satisfação. Representa-se sob o custo, necessário e indispensável, de perder-
se. 
(...) o inconsciente é fenômeno de sentido, mas sem nenhuma finalidade 
de comunicação. Pode-se dizer – talvez metaforicamente – que o 
inconsciente fala, mas não quer comunicar nada, não veicula nenhuma 
mensagem. (...) É a análise que retransforma em comunicação o que 
essencialmente está fechado sobre si mesmo, no inconsciente, e é 
justamente na medida em que está fechado sobre si mesmo que o 
inconscien[108]te é repetitivo. Por que falei de Dzretransformardz – e não 
de transformar – em comunicação? Isso quer dizer, provavelmente, que 
no Dziníciodz, na gênese do inconsciente, havia um fenômeno de 
comunicação que, em seguida, se fechou sobre si mesmo, convertendo-
se então a comunicação em Dzcirculaçãodz. (Laplanche, 1992, p. 98-9). 
 O romance de Burgess é prova que não apenas a análise retransforma em 
comunicação o que está fechado em si mesmo, as comunicações mais primitivas. A 
arte talvez também possua esse poder. Romances como esse que analisamos têm o 
poder de recolocar em comunicação algo desses enigmas constitutivos do humano. 
Sentimos que tais obras de arte cumprem esse papel quando despertam em nós a 
pulsão de traduzir, um desejo de interpretá-las. Temos a impressão de que obras 
de arte com qualidade impactante são assim justamente porque, depois de ler 
muitas interpretações e de se tentar fazer várias interpretações, temos a certeza de 
que toda tradução é precária. Nisso está nossa tragédia e nossa fonte inesgotável 
de alegria. Um bom romance exige não apenas muitas leituras. Exige também a 
manutenção de sua abertura para novas interpretações. 
 
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